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Matias Spektor, 18 Dias: quando Lula e FHC se uniram para conquistar o apoio de Bush

RESENHAS

Daniel Afonso da Silva

Professor de relações internacionais na Universidade Estadual da Paraíba

Matias Spektor, 18 Dias: quando Lula e FHC se uniram para conquistar o apoio de Bush. Rio de Janeiro, Objetiva, 2014. 470 pp.

De 28 de outubro a 10 dezembro de 2002, o presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e seu sucessor, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), promoveram o mais intenso e decisivo esforço cooperativo de transição presidencial democrática no Brasil contemporâneo. Equipes de situação e oposição abdicaram de mágoas e ressentimentos e se empenharam no objetivo de fazer a esperança depositada no candidato do Partido dos Trabalhadores (pt) no pleito de 27 de outubro daquele ano ter sucesso e colaborar para a condução dos assuntos do Estado e da nação. Dos imperativos mais decisivos dessa operação, o absolutamente incontornável consistia na reversão da imagem do Brasil no exterior. Especialmente em relação aos Estados Unidos. O "medo Lula", firmado ao passo que foram ficando evidentes as possibilidades do antigo líder sindical brasileiro chegar ao poder, tomou conta de setores políticos, empresariais e intelectuais norte-americanos e mundiais. O "risco país" brasileiro - conceito que busca expressar de forma objetiva o risco de crédito a que investidores estrangeiros estão submetidos quando investem no país - ultrapassou estimativas entendidas como razoáveis. Superou os 2.400 pontos. As instabilidades nos países vizinhos - a Argentina do calote de 2001, a Venezuela do presidente Hugo Chaves (1999-2013) e a Colômbia da tumultuada gestão do presidente Gonzalo Bustamante (2002-2003), a quem sucederiam Carlos Mesa (2003-2005) e Eduardo Volté (2005-2006), antes da chegada de Evo Morales ao poder em 2006 - faziam crescer ainda mais o receio internacional acerca do principal representante da América do Sul, que era e continua sendo o Brasil. O radicalismo tradicional dos núcleos esquerdistas latino-americanos, consolidado pelo Foro de São Paulo - criado e liderado sob os auspícios do pt de Lula da Silva e apoiador solidário de países como Venezuela e Cuba -, contribuía para amplificar a desconfiança de setores dominantes mundiais com interesses alocados na região. Por essas e outras, os Estados Unidos tinham suas razões para suspeitar do futuro do Brasil entregue às mãos do presidente Lula da Silva.

Vivendo seu período de constrangimento, frustração e malaise gerado pelos atentados de 11 de setembro de 2001, o núcleo decisório norte-americano seguia redefinindo sua cartografia de ação, atuação e reação no meio internacional. Seu objetivo principal era superar o mais rapidamente possível o sentimento de mal-estar e impotência que estava colocando em questão até mesmo a vitalidade do American dream. Nesse sentido, a doutrina da guerra ao terror, para "trazer nossos inimigos à justiça ou levar a justiça aos nossos inimigos" (Bush, 2001), estava em grande marcha. Os países "amigos da América" iam definindo seu grau de solidariedade com apoio simbólico e concreto às investidas norte-americanas no Afeganistão e no Iraque. Os demais eram considerados abertamente inimigos; partícipes do "eixo do mal". O presidente George W.Bush (2001-2009) fora direto ao afirmar que seria essa a condição - de inimigos e eixo do mal - dos não apoiadores explícitos de sua ação contra o terrorismo. O Brasil sob o presidente Lula da Silva tinha assim grande probabilidade de acessar essa categoria de inimigo no universo norte-americano de interação internacional.

Toda a experiência acumulada durante os mandatos do presidente Fernando Henrique Cardoso, no entanto, levava os tomadores de decisão em exercício no Brasil a reconhecer a importância do imperativo da imprescindibilidade da manutenção de boa relação com os Estados Unidos. Fosse como simples parceiro em assuntos bilaterais comerciais ou políticos, fosse como aliado em decisões multilaterais de resposta a eventuais abalos financeiros e econômicos mundiais, a exemplo dos ocorridos de 1999 a 2001. Convencer as lideranças políticas, econômicas e intelectuais norte-americanas a propósito do caráter inofensivo e racional do presidente eleito brasileiro no sufrágio de 2002 era, portanto, essencial para o futuro do Brasil. Essa operação de convencimento foi a principal demanda da transição do presidente Fernando Henrique Cardoso ao presidente Lula da Silva, cujo alvo era, sobretudo, promover o bom entendimento entre o antigo metalúrgico brasileiro e o fiador da guerra ao terror.

Em 28 de outubro de 2002, o presidente Bush e o presidente Lula da Silva tiveram seu primeiro contato. O presidente norte-americano telefonara ao Brasil para felicitar o brasileiro por seu sucesso eleitoral. Mês e pouco depois, em 10 de dezembro, ambos se reuniram no Salão Oval da Casa Branca, em Washington. Para a surpresa de todos os observadores e analistas internacionais, além de desfazer definitivamente todos os receios e suspeições, os dois presidentes e os setores dominantes de seus países iniciaram ali uma intensa relação de maturidade e respeito. A história e a análise do processo de aproximação e convencimento que gerou esse congraçamento entre o Brasil e os Estados Unidos correspondem à essência do enredo do livro muito inteligente e impecavelmente fundamentado que é 18 dias: quando Lula e fhc se uniram para conquistar o apoio de Bush, de Matias Spektor.

O autor, profundo conhecedor e astuto observador do meio internacional e da história política brasileira e norte-americana contemporâneas, vem se afirmando como um dos principais analistas políticos de sua geração. Doutor pela Universidade de Oxford, com passagem pela London School of Economics and Political Sciences, pelo Council on Foreign Relations e pelo Woodrow Wilson International Center for Scholars, Spektor, que continua a ser colunista do jornal Folha de S. Paulo, fundou e coordenou o curso de relações internacionais da Fundação Getúlio Vargas, onde teve acesso e ajudou a ampliar o importante acervo de história oral do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (cpdoc). Desse empenho surgiu seu decisivo Azeredo da Silveira: um depoimento (2010) que se somou ao seu não menos visionário Kissinger e o Brasil (2009). 18 dias segue as trilhas de excelência e esmero de seus demais estudos e, de maneira fluida e envolvente, vai demonstrando a interação dos homens do Partido da Social Democracia Brasileira (psdB) e do pt na sedução do establishmet norte-americano.

O livro revela que, desde o início de 2002, o presidente Fernando Henrique Cardoso instruiu seu embaixador em Washington, Rubens Barbosa, a auxiliar os petistas a adentrar o meio político e econômico norte-americano. Em meados do ano, antes de a "Carta ao Povo Brasileiro" ser apresentada, José Dirceu desembarcou nos Estados Unidos para avançar a tessitura desses contatos. Quando as eleições de outubro ratificaram Lula da Silva como futuro presidente do Brasil, o staff do presidente Bush tinha um conhecimento mais detalhado e menos estereotipado do líder brasileiro nascido em Garanhuns.

No fim da manhã do dia 28 de outubro de 2002, o day after do segundo turno das eleições, o presidente Bush então telefonou ao presidente brasileiro eleito. Esse gesto foi recebido como muito positivo no processo de aproximação dos dois. Desse contato surgiu o convite para Lula da Silva ir visitá-lo na Casa Branca ainda em 2002.

Uma visita, desnecessário muito mencionar, impõe preparação. Uma visita de reconhecimento entre pessoas estranhas com diferenças políticas e ideológicas impõe ainda mais preparação e previsão. No caso do encontro entre o representante do mundo livre e o depositário dos países párias do mundo, todos os detalhes precisavam ser vistos e revistos à exaustão, e assim se fez.No dia seguinte ao convite do presidente Bush, o presidente brasileiro eleito foi a Brasília ter encontro com o presidente na função. A reação do presidente norte-americano ao resultado das eleições brasileiras foi pauta da conversa, assim como a necessidade da eficácia do encontro em Washington. Após falar com o presidente Fernando Henrique Cardoso, o presidente eleito regressou a São Paulo para ter com a embaixadora norte-americana no Brasil, Donna Hrinak. A tônica da conversa de Lula da Silva com a enviada do presidente Bush foi convencê-la - e, por meio dela, mandar o recado aos Estados Unidos - de que as ideologias esquerdistas radicais professadas pelo pt histórico estavam superadas e de que o governo brasileiro sob sua chancela seria, antes e acima de tudo, pragmático. Esse pragmatismo, continuava o presidente eleito, envolveria trabalhar

hand by hand com os Estados Unidos do presidente Bush.

Ao longo da primeira semana após o pleito de 2002, os rumos da transição presidencial viraram obsessão entre os observadores da política brasileira. Antonio Pallocci, José Dirceu e Dilma Rousseff foram os indicados pelo presidente eleito para promover o processo de transição. Esse processo tinha sido longamente gestado e formalizado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso. Uma de suas etapas foi a apresentação de seu projeto aos assessores políticos do presidente Bush. O objetivo dessa estratégia era demonstrar aos Estados Unidos a solidez e a confiabilidade da democracia brasileira. Mesmo assim, seguia imensa a inquietação das lideranças estrangeiras a propósito de um Brasil sob Lula da Silva.

No fim de semana seguinte ao segundo turno das eleições, quando o presidente brasileiro eleito foi descansar em Araxá, Minas Gerais, saiu uma entrevista sua no Washington Post que não passou despercebida aos olhos do presidente Bush e de seus correligionários. Após o 11 de setembro de 2001, virou tônica nas rodas do poder norte-americano reconhecer a importância do Brasil e buscar conhecê-lo melhor.

Muito antes de a classificação Brics da Goldman Sachs sobre países emergentes promissores virar evidência, o Departamento de Estado norte-americano vinha reconsiderando a condição do Brasil no mundo e, com isso, passando a reconhecê-lo como "potência emergente" de valor. O momento da transição presidencial brasileira de 2002 correspondia exatamente ao momento de confirmação da tese norte-americana do "Brasil potência potente. O presidente brasileiro na função e o presidente eleito perceberam isso e, nessa sintonia, foram compondo os ministérios da futura gestão. Entre as posições absolutamente estratégicas estava a chefia do Itamaraty.

Muitos diplomatas de carreira aspiravam e demandavam o posto de chanceler. Sobretudo pelos contratempos gerados na gestão do ministro Celso Lafer, que não era diplomata de carreira. A exoneração do embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, por sua postura independente e destoante sobre o dossiê Alca, produziu imenso mal-estar no interior da confraria. O embaixador Rubens Barbosa, enviado de Brasília a Washington, era um dos mais cotados para substituir o professor, empresário e intelectual Celso Lafer. Por fim, veio do presidente Fernando Henrique Cardoso a indicação do nome do enviado brasileiro a Londres, o embaixador Celso Amorim. Desconhecido do presidente eleito e dos circuitos do pt, o embaixador Celso Amorim dispunha de imenso prestígio nacional e internacional. Eram reconhecidas como muito exitosas as suas passagens pelos mais variados setores públicos, da direção da Embrafilmes à função de chanceler do presidente Itamar Franco e à atuação em diversas missões brasileiras em organismos internacionais.

Em 13 de novembro de 2002, quando o presidente Fernando Henrique Cardoso foi a Oxford receber o título de doutor honoris causa, ocorreu um importante encontro entre ele e o embaixador Celso Amorim. Desse encontro se fez a primeira aproximação do embaixador com os assessores do presidente Lula da Silva. Menos de um mês depois, o nome de Celso Amorim estava praticamente definido na equipe do futuro governo. E, com a equipe de ministros quase toda decidida, o presidente brasileiro eleito desembarcou nos Estados Unidos para seu primeiro encontro com o presidente George W. Bush, em 10 dezembro de 2002. O encontro, previsto para durar trinta minutos, passou dos quarenta e cinco. Aconteceu interação instantânea entre eles. O assunto mais delicado era, claramente, a posição do Brasil com relação à intervenção norte-americana no Iraque. A resposta do brasileiro presidente eleito foi certeira e definiu o vínculo de respeito e afeição entre os dois: "Eu entendo, presidente Bush. Mas minha guerra é outra. É a guerra contra a fome. Eu quero que cada brasileiro faça três refeições por dia". A partir daí o presidente Bush passou a ser o principal apoiador internacional do programa Fome Zero e do governo do presidente Lula da Silva. Assim, teve, por fim, êxito o esforço do pt e do psdB, do presidente Fernando Henrique Cardoso e do presidente Lula da Silva, na conquista do apoio de Bush.

Muitas lições podem ser retiradas do enredo denso e plural proposto por Matias Spektor em 18 dias. Uma das principais talvez seja a constatação do imenso amadurecimento da democracia brasileira, expresso na disposição da situação e da oposição, pt e psdB, em superar mágoas e ressentimentos e cooperar pelo bem comum do Estado e da nação brasileiros. Outra, não menos relevante, reside no reconhecimento da importância do momento presidencial entre o resultado das urnas e a posse do novo governo, especialmente no que concerne à exposição internacional.

O presidente Tancredo Neves (1985) e o presidente Fernando Collor de Mello (1990-1992) utilizaram esse momento de maneira exemplar, e suas viagens ao exterior como presidentes eleitos foram essenciais na apresentação do Brasil e da nova república ao meio internacional. Celso Lafer com "O legado diplomático da viagem presidencial de Tancredo Neves" (1985) e Rubens Ricupero com Diário de bordo: a viagem presidencial de Tancredo (2010) praticamente imortalizaram a centralidade das viagens de Tancredo, em 1985, enquanto uma leitura acurada da crônica política brasileira e estrangeira de janeiro e fevereiro de 1990 indica a importância da grande "volta ao mundo" feita por Collor. Nesses dois momentos, 1985 e 1990, o Brasil vivia a agonia de crise financeira e dívida externa somada aos instantes finais da transição dita lenta, segura e gradual do regime militar à democracia. Essa agonia coincidiu com o desaparecimento do bloco soviético e com a afirmação dos Estados Unidos como superpotência solitária no mundo. Nesse sentido, ter boas relações com os norte-americanos, se desde muito importante, tornava-se algo cada vez mais decisivo.

Muito embora transitasse entre a 8ª e 11ª economia do mundo entre 1985 e 1990, o Brasil era um país frágil nacional e internacionalmente. A estabilidade política e financeira iniciada no governo Itamar Franco (1992-1994) e consolidada nos mandatos de Fernando Henrique Cardoso modificou essa condição. O Brasil deixou de ser a "Belíndia" sugerida pelo economista Edmar Bacha para se tornar un nouveau grand como indicara o embaixador Alain Rouquié em seu notável Le Brésil auxxie siècle (2006). Como um novo grande na cartografia das nações, o relacionamento do Brasil com os Estados Unidos foi ganhando sentidos e significados distintos.

O esmaecimento da noção de terceiro mundo, a emergência da tipologia países emergentes e a forte tendência à multiplicação de blocos econômicos mundo afora modificou absolutamente a percepção da distribuição de poder depois do muro. A formalização do Mercosul possibilitou ao Brasil ampliar a sua atuação e resiliência no meio internacional, sobretudo por reforçar sua condição natural de líder político e econômico da América do Sul. Essa liderança possibilitou o melhoramento progressivo dos mecanismos de inserção internacional positiva do país. O acrônimo Bric, apresentado no fim de 2001 pelo economista Jim O'Neill, mesmo que limitado e limitador, foi a expressão mais elucidativa desse processo, ao destacar o Brasil ao lado de Rússia, Índia e China.

No início do século XX, o primeiro-ministro francês Georges Clemenceau vaticinara que o Brasil era um país do futuro que continuaria assim por muito tempo. Nos momentos finais do século, o governo de Fernando Henrique Cardoso demonstrava que o afamado e controverso político francês poderia estar amplamente equivocado. O futuro que muitas vezes insinuava chegar - no governo de Ernesto Geisel (19741979), por exemplo, o Brasil era concebido como uma "ilha de prosperidade num mar turbulento" - parecia agora aportar, na senda aberta pelo sucesso do Plano Real, de modo consistente e duradouro. Entretanto, o reconhecimento dessa consistência política e econômica não era necessariamente consenso pelo mundo, menos ainda nos Estados Unidos - daí o "medo Lula".

A vitória de Lula da Silva nas eleições de 2002 demonstrou que a esperança havia vencido o medo dos brasileiros. Restava agora superar o medo dos estrangeiros, começando pelos norte-americanos. E assim se fez de 28 de outubro a 10 de dezembro de 2002. Matias Spektor foi muito feliz ao perceber e analisar a importância desse momento. Da campanha das Diretas Já (1983-1984) ao governo da presidente Dilma Rousseff (2011-2014), poucos momentos foram tão decisivos para definir o destino do país. Por essa simples, mas não isolada razão, 18 dias é leitura obrigatória para todos aqueles empenhados em entender o Brasil contemporâneo. Sua apreciação auxilia muitíssimo, por exemplo, a compreensão dos motivos que levariam o presidente Fernando Henrique Cardoso a defender o presidente Lula da Silva de um eventual processo de impeachment quando do "escândalo do mensalão" em 2005. Por outro lado, ajuda a explicitar as condicionantes que permitiriam ao presidente Lula da Silva responsabilizar diretamente os Estados Unidos pela crise financeira global e ao mesmo tempo afirmar tranquilamente: "vou encontrar o meu amigo Bush agora, no dia 24 [de setembro de 2007], e vou dizer: Bush, resolva o problema da crise" (Silva, 2007).

Mesmo assim, uma avaliação mais rigorosa da construção do argumento do livro, apresentado no estilo da melhor prosa contemporânea, indica diversos pontos cegos e polêmicos que, diferentemente de diminuir o brilho do texto, aguça ainda mais reflexões.

Analisando a trajetória de Lula da Silva desde a liderança sindical do fim do decênio de 1970 ao sucesso no sufrágio de 2002, fica evidente que a metamorfose do político radical ao político soft - depois imortalizado pelo "Lulinha, paz e amor" dos marqueteiros de campanha - teve início já em sua primeira corrida presidencial, e não a partir de 1995, como sugere Spektor (pp. 32-36). Para constar isso, basta observar a mutação do estilo do candidato Lula da Silva entre o primeiro e o segundo turnos das eleições de 1989, embalados pelo "Lula, lá". Ao mesmo tempo, afirmar que em 2002, "aos 71 anos, Fernando Henrique era o mais experiente homem público do Brasil" (p. 84) representa algo no mínimo discutível, muito embora o presidente Fernando Henrique Cardoso tenha um background político e intelectual realmente espetacular e, em muitos aspectos, insuperável em escala mundial.

Outro aspecto merecedor de problematização parece ser o impacto do 11 de setembro de 2001 no ordenamento internacional. Spektor demonstra ou subentende com maestria os impactos desse 11 de setembro sobre as relações dos Estados Unidos com o mundo. Entretanto, vale notar que em fins de 2002, os eixos de solidariedade aos norte-americanos estavam em grande medida definidos. O Brasil não constava deles. Sobre a devassa ao Afeganistão, o consenso fora absoluto como primeira reação mundial aos ataques. Sobre o Iraque, não. O embaixador do Brasil em Londres, Celso Amorim - que presidira a missão brasileira permanente nas Nações Unidas entre 1995 e 1999 para discutir justamente o dossiê Iraque -, expressou, em grande medida, a posição brasileira no texto "Guerra contra o Iraque é evitável" (2002). Naquele momento, o veto francês à intervenção internacional contra o Iraque estava plenamente esquadrinhado, e em 14 de fevereiro de 2003 o chanceler do presidente Jacques Chirac, Dominique de Villepin, apenas reiterou a tendência no Conselho de Segurança das Nações Unidas. Nesse quesito, portanto, o Brasil estaria mais próximo da França que dos Estados Unidos. Quais teriam sido as implicações dessa evidência na aproximação entre os países? O presidente Lula da Silva de fato seduzira o presidente Bush com o adágio "minha guerra é outra. É a guerra contra a fome". Mas seduzira também vasta chusma de mandatários mundo afora, em especial os líderes do vieux pays e vieux continent do chanceler Villepin (2003). Como teria sido o processo de conquista e aproximação do presidente eleito brasileiro com os demais países do concerto internacional após o 11/9 parecer ser, portanto, a núcleo da questão e o centro do estímulo de pesquisa que emerge das páginas de 18 dias.

Estas e outras questões não reduzem em nada a agudeza e o engenho desse mais recente estudo de Matias Spektor, que, repleto de qualidades, merece fortemente ser lido. Se não pelo tema e pelo problema - que são absolutamente formidáveis -, por uma razão ainda mais rudimentar: o livro tem ideias, insumo cada vez mais raro nos dias que correm.

  • AMORIM, Celso. (2002), "Guerra contra o Iraque é evitável". Folha de S. Paulo, 25 set.
  • BACHA, Edmar. (2012), Belíndia 2.0: fábulas e ensaios sobre o país dos contrastes Rio de Janeiro, Civilização Brasileira.
  • BUSH, George W. (2001), "George Bush's address to a joint session of Congress and the American people". Washington, 21 set.
  • LAFER, Celso. (1985), "O legado diplomático da viagem presidencial de Tancredo Neves". Contexto Internacional, 1(2):13-18.
  • RICUPERO, Rubens. (2010), Diário de bordo: a viagem presidencial de Tancredo São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo.
  • ROUQUIÉ, Alain. (2006), Le Brésil auxxie siècle Paris, Fayard.
  • SILVA, Luiz Inácio Lula da. (2007), "Declaração à imprensa seguida de entrevista coletiva concedida pelo presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, em conjunto com o presidente da Espanha, José Luis Zapatero". Madri, 17 set.
  • SPEKTOR, Matias. (2009) Kissinger e o Brasil Rio de Janeiro, Jorge Zahar.
  • ______. (2010), Azeredo da Silveira: um depoimento. Rio de Janeiro, Editora da Fgv.
  • VILLEPIN, Dominique de. (2003), "Discours prononcé à l'onu lors de la crise irakienne". Nova York, 14 fev.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jan 2015
  • Data do Fascículo
    Dez 2014
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