Resumo
Com base em pesquisa etnográfica realizada na periferia de São Paulo, o artigo propõe identificar os atores e os jogos de poder inscritos nos arranjos em torno da formação de ocupações urbanas que se realiza em meio a uma trama intrincada de interesses envolvidos na expansão urbana dos mercados de terra e moradia. Ao contrário do que muitas vezes se supõe, a instalação de uma ocupação envolve arranjos, negociações e disputas entre os mais diferentes atores, que se processam na zona cinzenta que faz esborraçar as fronteiras do formal-informal, legal-ilegal. É um fazer-cidade que vai se processando nessas formas de gestão da precariedade e das urgências da vida, transformadas em oportunidades de negócios e recursos de poder. É nesta chave que se pode apreender a lógica dos mercados, acionando a expansão das fronteiras urbanas.
Ocupações urbanas; Mercados urbanos; Precariedade; Fazer-cidade; São Paulo
Abstract
Based on ethnographic research carried out on the outskirts of São Paulo, the article proposes to identify the actors and power games inscribed in the arrangements surrounding the formation of urban occupations that take place amidst an intricate web of interests involved in the urban expansion of land and housing markets. Contrary to what is often assumed, the installation of an occupation involves arrangements, negotiations and disputes between the most different actors, which take place in the gray zone that blurs the boundaries of formal-informal, legal-illegal. It is a city-making that takes place in these forms of managing the precariousness and urgencies of life, transformed into business opportunities and power resources. It is in this key that the logic of markets can be understood, triggering the expansion of urban borders.
Urban occupations; Urban markets; Precariousness; City-making; São Paulo
São Paulo. Zona Norte. Extremo norte – lá onde a cidade encontra e pressiona a imponente Serra da Cantareira. Uma região fronteiriça. Em termos geográficos: localizada nos limites do município. Em termos políticos: região de expansão – em disputa – das fronteiras urbanas de mercados, disputa que se constela nos conflitos travados em torno da demarcação de novos territórios, da consolidação e urbanização de ocupações de terra, da gestão cotidiana desses territórios e de suas populações.
Nessas franjas da capital paulista, as ocupações são agenciadas por práticas e iniciativas de diferentes atores, com variados recursos e escalas de poder e atuação: de lideranças comunitárias a policiais, passando por empresários locais, (supostos) proprietários de terra, loteadores, advogados, funcionários da subprefeitura e de empresas públicas (ou de terceirizadas) que agenciam a oferta de infraestrutura e serviços básicos, assessores parlamentares, também gente vinculada a organizações criminosas. Por entre e por meio desses diversos operadores desses mercados informais de terra e moradia – pois é disso que se trata – vão se instalando centenas de indivíduos e famílias em busca de um local de moradia. É uma trama heterogênea de atores, atravessada por disputas e acomodações, acertos e desacertos, negociações mais ou menos violentas que vão incidir sobre o futuro de cada novo território. É a produção da cidade em ato o que pode ser captado a partir dos modos diferenciados pelos quais esses territórios se constituem. Comum a todos, o acolhimento de populações submetidas a contínuos processos de despossessão e que acionam os mais diversos arranjos para estabelecer moradia e ganhar a vida a partir de seus novos territórios de vida.
Ao longo de quatro anos, entre 2018 e 2022, acompanhamos a formação e a consolidação de ocupações urbanas nessa região da cidade2. Tratava-se de perscrutar a lógica de produção do espaço urbano nos nexos entre expansão das fronteiras urbanas e expansão dos mercados ditos informais de terra e moradia. Na dinâmica das ocupações que estavam se instalando na região, não há nada de “espontâneo”, ao contrário do que muitas vezes se supõe quando se têm por referência os chamados movimentos organizados de moradia.
A identificação de terrenos plausíveis para uma nova ocupação, a distribuição dos lotes, as providências para tornar o local habitável (instalação de redes de água e luz, canalizações, arruamentos, serviços urbanos básicos), também para evitar investidas policiais e processos de reintegração de posse, tudo isso envolve arranjos, negociações, disputas, tudo se fazendo na zona cinzenta que faz esborraçarem as fronteiras do formal e informal, legal e ilegal, mobilizando atores diversos: grileiros antigos, empreendedores interessados em expandir seus negócios nessas fronteiras de expansão dos mercados de terra e moradia, organizações criminosas e seus negócios ilegais, grupos policiais e seus serviços de proteção (sempre no limiar da extorsão), funcionários de empresas públicas interessados no “ganho extra” auferido nos serviços de instalação das “gambiarras” locais (água, luz, canalizações de esgoto), também políticos interessados nesses mercados e na expansão de suas clientelas políticas. É um fazer-cidade3 que se vai processando nessas formas de gestão da precariedade e das urgências da vida. Colocando a questão sob um outro ângulo: é essa trama intrincada de interesses que permite ver os modos pelos quais a gestão da precariedade e das urgências da vida se transforma em oportunidades de negócios e recursos de poder. É nesta chave que se pode apreender a lógica dos mercados acionando a expansão das fronteiras urbanas – não se trata de uma razão mercantil abstrata, pois a produção dos mercados passa justamente por essa teia intrincada de relações, mediações, interesses, arranjos e negociações de que é feita a trama da cidade e seus espaços.
Neste artigo, proponho recuperar algumas das histórias recolhidas ao longo dessa pesquisa para reconstituir situações e circunstâncias de deslocamento forçado de indivíduos e famílias que, ao longo de seus percursos, transitam entre diversas ocupações e/ou formas precárias de moradia. Nesses percursos é possível identificar um fazer-cidade na medida em que indivíduos e suas famílias acionam formas de sociabilidade, redes de aliados e conhecidos por onde circulam informações sobre lugares possíveis para uma nova morada, também para se protegerem de possíveis investidas policiais ou então contornar “zonas de perigo”, supostamente associadas a organizações criminosas ou forças policiais ditas milícias. Por meio de suas práticas de ancoramento, um fazer-cidade que ganha corpo por meio do dispêndio de tempo, de dinheiro e de trabalho na produção de materialidades urbanas que, pouco a pouco, transformam o solo ocupado em espaço construído a partir de negociações e acertos com os operadores locais desses mercados que ali se constituem, envolvendo o acesso e a distribuição dos lotes, bem como os serviços básicos de urbanização, tudo isso atravessado pelas nebulosas (e por vezes violentas) transações de mercadoria política (Misse, 2006), constitutivas dos mercados informais.
Este o argumento que se propõe construir aqui: nas margens da maior metrópole do país, um fazer-cidade se realiza por meio de práticas engendradas e ativadas face a processos sucessivos de despossessão e deslocamentos forçados, afetando um número crescente de indivíduos. Marca dos tempos que correm, tais processos não constituem novidade na história urbana das nossas cidades, mas mudaram de escala e intensidade nas últimas décadas, com impactos consideráveis nos territórios e modos de vida.
Nas circunstâncias locais das ocupações que pontilham as periferias paulistas, ressoam tendências estruturantes do mundo atual. Expulsões, remoções, desapropriações, deslocamentos forçados: em mundo atravessado por guerras e desastres ambientais, por mecanismos de financeirização da terra e da moradia, que transformam os espaços de vida em ativos financeiros e em negócios, a insegurança e os deslocamentos forçados compõem o cenário de uma crise global (Rolnik, 2015). Sob diferentes arranjos e configurações, o Estado comparece como um ator central na promoção de muitos dos processos que culminam nesses deslocamentos, por meio de instrumentos, políticas e programas urbanos que produzem a condição de transitoriedade permanente (Ibidem)4.
Por meio de distintas engrenagens e assumindo contornos variados, expulsão (Sassen, 2016) tornou-se a tônica da lógica predatória de mercados em expansão. Pois, então, Sassen lança a pergunta: como se estruturam os espaços nos quais se instalam essas populações expulsas de seus pontos de ancoramento de vida, trabalho e moradia? Em outros textos, a autora vai propor tomar esses espaços como “fronteiras analíticas”, prismas privilegiados para observar e analisar reconfigurações dos nexos entre poder, direito e territórios (Idem, 2013). Sem a menor pretensão de responder a uma questão dessa envergadura teórica, tal como formulada pela autora, a sugestão de tomar esses territórios como “fronteiras analíticas” pode nos dar uma pista para qualificar o feixe de questões que podem estar inscritas na expansão das fronteiras urbanas de que trata este artigo.
Há todo um mundo social e urbano que se forma em meio a tramas sociais que se configuram em uma conjuntura atravessada por processos variados de despossessão e precarização das condições de vida, de um lado, e pela expansão dos circuitos de mercado informais, ilegais e ilícitos, de outro lado. E os modos como esses territórios se formam e se estruturam tornam inoperantes as categorias binárias de formal-informal como grade analítica e referência normativa. É o que argumenta Ananya Roy (2005; 2017) ao se debruçar sobre os modos de urbanização das metrópoles indianas. Segundo a autora, os territórios ditos informais se constituem por meio de transações e negociações realizadas em torno de normas e modos de regulação que conectam diferentes atores e espaços, em um complexo continuum de legalidade-ilegalidade próprio da lógica de urbanização dos países do chamado Sul Global. Pois então, o desafio está na construção de outro prisma descritivo e analítico das práticas, das mediações, das relações de poder, dos jogos de escala envolvidos no fazer-cidade investigado aqui.
Nosso posto de observação são as ocupações nas fronteiras urbanas da cidade de São Paulo. De um lado, são territórios que servem como abrigo (ainda que temporário) para uma população sujeita a deslocamentos sucessivos. Compõem os circuitos de sobrevivência dessa população. Por outro lado, nessas mesmas ocupações, a gestão da precariedade se transforma em negócio e recurso de poder de atores diversos, operadores e mediadores dos expansivos mercados de terra e moradia nessas fronteiras urbanas, também em expansão. E é sob esta perspectiva que se pode apreender a lógica dos mercados acionando a expansão dessas fronteiras urbanas. Mas é nesta chave também que se torna possível reconstituir as fricções (Tsing, 2004) e os conflitos em torno de uma desejada permanência e consolidação dessas ocupações – o que nem sempre acontece, reabrindo, então, o ciclo de andanças pela cidade em busca de outro local de moradia e ancoramento.
Entre remoções – ocupações – remoções…
Era um final de tarde de um dia frio de julho de 2018. A ação de reintegração de posse que acompanhávamos havia dois dias chegava ao fim, removendo mais de 250 famílias5. Foram dias de muita tensão, de disputas e conflitos que culminaram em barracos incendiados e bombas de gás lacrimogêneo lançadas pela Polícia Militar6.
Ao final do segundo dia, quase todas as famílias já haviam sido retiradas de suas casas. Algumas foram para a casa de parentes ou alugaram, às pressas, algum canto para morar; outras foram acolhidas por um pastor de uma igreja local. Muitas buscaram abrigo em outras ocupações da região. Jonathan foi um dos responsáveis por acolher alguns dos removidos. Apresentando-se como uma liderança de muitas das ocupações estabelecidas na região, ele circulava pelo local oferecendo acolhimento às famílias. Foi ele, ademais, o responsável por uma das cenas que mais nos chamaram a atenção naquele final de tarde: posicionado em meio aos entulhos das casas demolidas e à fumaça dos barracos que pegaram fogo, Jonathan começou a proferir um discurso eloquente culpabilizando o Estado pela falta de acesso à moradia digna para a população mais pobre. Em alto e bom som, afirmou que, se o Estado não fazia o seu papel, ele faria: disse “possuir” muitas ocupações na região para onde poderia levar aquelas famílias. Algumas pessoas aplaudiam, outras faziam chacota. Enquanto discursava, sua esposa anotava, em um caderninho, os nomes dos interessados.
Jonathan é uma das lideranças locais responsáveis por várias das ocupações nessa porção da zona norte paulistana. Ocupações recentes, instaladas a partir de 2015, logo após o início das obras de implantação do Trecho Norte do Rodoanel Mário Covas. Trata-se de uma obra viária de escala metropolitana que veio rasgando um tecido urbano popular, ambientalmente sensível, provocando um ciclo de remoções-ocupações-remoções que incidiu sobre o território e as dinâmicas socioterritoriais locais (Lacerda, 2023; Lacerda et al., 2021; Ungaretti et al., 2020). Para se ter uma ideia da dimensão desse movimento: dentro de um raio de 2,5 km traçado a partir de determinado ponto das pistas do Rodoanel, foram identificados 21 novos assentamentos estabelecidos entre 2015 e março de 2020. Durante a pandemia de covid-19, entre os meses de março de 2020 e setembro de 2021, outras sete ocupações foram identificadas no local. Nesse mesmo período e perímetro, identificamos ao menos nove remoções7.
É neste movimento, entre as desapropriações e remoções promovidas pelo Estado e o solo criado a partir das áreas remanescentes, que novos assentamentos urbanos passaram a ganhar forma e lugar. De um lado, o início das obras representou processos variados de despossessão – remoção de moradias8 e deslocamento forçado de centenas de pessoas, transformação dos usos da terra e a perda de subsistência para pequenos agricultores. De outro, as obras representaram uma alternativa para o reposicionamento no território dessas mesmas famílias impactadas pela intervenção pública, e de tantas outras mais. A abertura de novas porções de terra às margens do anel rodoviário passou a ser, rapidamente, objeto de disputa.
Foi este o processo que buscamos investigar ao longo dos mais de quatro anos de pesquisa etnográfica, acompanhando e circulando pelas ocupações da região. Ao longo deste percurso acompanhamos, também, algumas remoções. Entre os processos de territorialização e desterritorialização, de construção de casas, ruas e infraestruturas e de destruição de casas, ruas e infraestruturas, buscamos prospectar a lógica de produção do espaço urbano, tal como ela se realiza nas margens da capital paulista.
Vidas em constante deslocamento
David é morador de uma das ocupações de Jonathan. Um jovem de 22 anos (em 2019), nascido em São Paulo, autodeclarado negro, que vive na ocupação “de favor”, na casa de uma das coordenadoras locais, onde oito pessoas compartilham os dois pequenos barracos construídos sobre o lote.
A trajetória de David é marcada por uma série de situações de deslocamento forçado, episódios que irromperam em seu cotidiano e desestruturaram as redes e arranjos que sustentavam sua vida. Ao nos contar sua história, deu-se conta de toda uma vida passando de uma “invasão” a outra. Tudo começou com a morte da mãe quando ele tinha apenas cinco anos. Sem nunca saber do pai, foi viver com um tio materno em um conjunto habitacional em um bairro da zona norte. Após alguns anos, o tio decidiu vender o apartamento para comprar um lote em uma ocupação que então se formava nas proximidades. Mas o novo arranjo não durou muito tempo.
Não sabemos por quanto tempo eles viveram na ocupação, mas David conta que houve uma remoção provocada por obra pública na área. Foram expulsos do local quando ele ainda era adolescente. Cadastrado pela prefeitura, o tio recebeu auxílio-aluguel no valor de 400 reais. Com esse recurso, comprou materiais de construção e tentou novamente a sorte em uma outra ocupação, onde vive ainda hoje. Esta ocupação, agora, está sob ameaça de uma ação de reintegração de posse. Como nota Guerreiro (2020), os valores irrisórios do auxílio-aluguel, apresentado como programa social do governo para compensar moradores da remoção compulsória de suas casas, terminam por se constituir em instrumento propulsor da precariedade urbana e de processos de deslocamentos forçados – grande parte de seus beneficiários acaba em moradias tão ou mais precárias do que antes, submetidos a uma insegurança habitacional ainda maior do que anterior. Pois foi isso que aconteceu com o tio de David. Está arriscado a perder tudo o que investiu nesta ocupação, mais uma vez.
Antes mesmo de saber o desfecho dessa nova ameaça, David já planejava encontrar outro local para morar. Em pouco tempo, ele se engajaria em uma ocupação por conta própria. David começou a trabalhar logo cedo, ajudando o tio no trabalho de coleta de material reciclável. Circulava quase todos os dias pelas ruas de vários bairros da cidade em busca de material que pudesse ser vendido. Graças aos seus trânsitos constantes, ficou sabendo de uma nova ocupação que se iniciava em meados de 2015 e rapidamente se juntou ao grupo. Era uma das empreitadas de Jonathan, uma ocupação realizada em um terreno público de propriedade da Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU). Assim que garantiu um lote para si, David deixou a casa do tio e passou a investir na futura moradia o pouco dinheiro que conseguia com a reciclagem. Deise era sua vizinha de lote. Foi ali que ele conheceu a coordenadora da ocupação com quem vive atualmente.
Dois anos após o início da ocupação, a CDHU obteve uma liminar na Justiça para a remoção das famílias, com a justificativa de que a área já estaria destinada à produção de habitação pública de interesse social. Uma destinação que até hoje não se concretizou, mas que funcionou como a justificativa para retirar as famílias do local – de forma bem concreta, e uma vez mais, foi a política pública, neste caso, de habitação social a responsável pelas remoções. Mais uma vez, em sua curta trajetória de vida, David foi forçado a se deslocar para encontrar outra solução habitacional.
Naquele momento, Jonathan já era responsável por algumas ocupações estabelecidas nas redondezas – ocupações sempre muito precárias. Era seu objetivo, conforme ele mesmo nos relatou, sempre manter várias ocupações para ter para onde levar as famílias quando (e não se) uma delas fosse removida. Quando a remoção do terreno da CDHU se concretizou, boa parte de seus moradores conseguiu um espaço nas demais ocupações. Por ser coordenadora do movimento encabeçado por Jonathan, Deise foi uma delas e teve direito a um lote na ocupação Duas Irmãs. Quando David chegou, no entanto, estes já não estavam mais disponíveis, e a coordenadora decidiu acolhê-lo em sua moradia até que uma nova ocupação fosse realizada. A morada de favor na ocupação apareceu, assim, como mais uma parada na tortuosa trajetória de David em busca de moradia.
A partir da trajetória deste jovem homem em suas andanças pela capital paulista em busca de moradia, é possível apreender a fragilidade dos arranjos que estruturam a vida daqueles e daquelas que não podem contar com as redes de proteção social, sujeitos à destruição de seus arranjos de vida e moradia sob o impacto de efeitos excludentes de obras públicas ou pela ação predatória nas fronteiras de expansão dos mercados urbanos. Esses territórios e suas populações são marcados pela transitoriedade permanente, nos termos colocados por Rolnik (2015):
[…] têm em comum o fato de constituírem zonas de indeterminação entre legal/ilegal, planejado/não planejado, formal/informal, dentro/fora do mercado, presença/ausência do Estado. Tais indeterminações são os mecanismos por meio dos quais se constrói a situação de permanente transitoriedade, a existência de um vasto território de reserva, capaz de ser capturado “no momento certo” (Rolnik, 2015, p. 174).
Um “vasto território de reserva”, habitado por uma população que se encontra sob a constante ameaça do deslocamento forçado. Quando a remoção acontece, essa população precisa mobilizar suas redes sociais para construir outro arranjo habitacional, por vezes mais precário que o anterior. Mas a remoção é apenas um dos processos que impõem o deslocamento forçado a um número crescente de indivíduos. Conforme Milano e Sá (2020), o deslocamento forçado pode ser também o resultado de situações variadas de insegurança: incapacidade de arcar com os custos de aluguel ou com as parcelas do financiamento imobiliário, ou, então, o rompimento de contratos informais e precários de aluguel. São circunstâncias muito concretas, em muitas delas, com atuação ativa do Estado que, por meio de seus instrumentos e políticas públicas, submete indivíduos e famílias à insegurança como condição de vida. Um processo que, em diferentes arranjos, atravessa a experiência de populações nas grandes cidades de norte a sul do planeta.
A insegurança como condição de vida é marca dos tempos que correm. Essa é questão trabalhada pelo geógrafo israelense Oren Yiftachel (2009a; 2009b). O autor mobiliza o conceito de zonas cinzentas (gray spaces) para caracterizar a geografia política da informalidade urbana nos tempos atuais. No seu foco, realidades urbanas marcadas pela presença cada vez mais expressiva de populações circulantes, migrantes transnacionais e outros tantos sujeitos submetidos a deslocamentos forçados de seus lugares de moradia e que buscam se instalar em assentamentos precários nos interstícios das cidades ou no seu entorno imediato. Ao propor a noção de zonas cinzentas, o autor chama a atenção para a ambivalência desses lugares, que não estão nem dentro nem fora da “comunidade urbana”, oscilando entre uma incorporação precária (e sem garantias) e a ameaça de expulsão. Segundo o autor, a produção das zonas cinzentas deve ser entendida em sua dimensão estrutural, relacionada a processos que destroem as formas de morar e viver de determinadas populações.
Este é um quadro analítico passível de ser mobilizado para situar as ocupações urbanas aqui tratadas. São territórios que se estruturam nessa zona de indeterminação entre a “legalidade/aprovação/segurança” e a “remoção/destruição/morte”, nem dentro nem fora do ordenamento estatal-legal, mas constituindo-se em suas fronteiras sempre cambiantes, com base em acordos continuamente (re)negociados com os operadores do Estado. E como bem enfatiza o autor, as zonas cinzentas são também espaços de disputas, pois é neste jogo entre a tolerância e a repressão que se vão tecendo agenciamentos práticos para garantir as condições de vida nas quais está em questão o seu reconhecimento perante o Estado, ou sua aniquilação.
A partir de outro contexto empírico e outras chaves teóricas, Ayse Çaglar e Nina Glick-Schiller (2018) mobilizam o par conceitual displacement-emplacement9, de modo a conectar as várias dimensões sociais implicadas nos processos de despossessão – destruição da moradia, precarização do trabalho, desmonte da seguridade social e privatização dos direitos sociais, bem como o aumento do endividamento que, sob suas várias modalidades, é registro dos efeitos deletérios dos processos de financeirização das formas de vida. As autoras formularam suas questões a partir de pesquisas sobre a experiência urbana de migrantes transnacionais em suas formas de interação com trabalhadores precarizados em cidades médias de países do chamado Norte Global, buscando reconstituir as formas de sociabilidade, redes de apoio em escala variada, bem como as formas de circulação e disputa nos espaços urbanos dessas cidades. As autoras oferecem uma chave analítica pertinente para o entendimento dos processos que observamos por aqui, nos quais diferentes grupos sociais compartilham experiências urbanas semelhantes na busca por um arranjo habitacional mais ou menos permanente. Para as autoras, displacements e emplacements visibilizam a inter-relação entre esses processos de reestruturação do espaço e das redes de relações sociais que, em contextos situados, produzem a cidade.
Essas populações estão, a todo momento, construindo possibilidades de vida nos territórios onde buscam se instalar. São as urgências da vida que ditam o ritmo cotidiano. Em suas práticas de vida, estão produzindo cidade: seja nas ocupações de terra instaladas na periferia da capital paulista, seja em moradias improvisadas nas ruas, nas ocupações de edificações abandonadas, debaixo de viadutos, na beira do córrego ou do barranco. Suas ações produzem materialidades e sociabilidades urbanas, ainda que estejam suscetíveis de serem destruídas a qualquer momento, quando então vão reconstruí-las novamente, ali ou em outro lugar. Nesses contínuos deslocamentos, estão produzindo cidade, tanto por meio das redes que criam e mobilizam, quanto pelas materialidades que produzem.
Desde esse ponto de vista, as ocupações urbanas compõem o que poderíamos chamar de circuitos de sobrevivência10 dessa população continuamente expulsa de seus espaços de ancoramento. São soluções, que podem ser mais ou menos provisórias, agenciadas por meio de suas redes sociais – parentes, vizinhos, conhecidos que mobilizam outras tantas redes em torno dos espaços (re)construídos para acolher essa população continuamente deslocada. É uma dimensão fundamental desses territórios e que os conecta a outros espaços e temporalidades da cidade nessa contínua construção e reconstrução das possibilidades de vida.
Mas além de constituírem uma alternativa de moradia, as ocupações também oferecem meios para que seus moradores possam “compor renda”. É o caso de moradores que fazem algum negócio com a venda de um lote sobressalente, que constroem casas para fins de aluguel ou que abrem um pequeno comércio na abertura da casa para a rua. Ou, ainda, pessoas que acumulam lotes em várias ocupações ao mesmo tempo, com o objetivo de gerar renda a partir deles. Não à toa, passou a ser comum em nossas andanças pelas ocupações vermos lotes ou barracos vazios. A ocupação de terra começou a ser vista como um bom “investimento”. Esses pequenos negócios compõem e se compõem com a contínua viração que sustenta os arranjos da vida, ao mesmo tempo que passam a alimentar as chamadas economias populares, associadas aos mercados informais, também em expansão nas periferias da cidade.
Mas se a insegurança habitacional se expande e submete uma quantidade crescente de indivíduos e famílias que veem na ocupação uma forma de lidar com tal insegurança, em outra escala e outros desdobramentos, também outros jogos de interesse, essa insegurança e a precariedade das condições da vida urbana também podem ser – e têm sido – instrumentalizadas por verdadeiros operadores dos mercados informais de terra e moradia. Envolvidos na promoção de ocupações, tratam de comercializar lotes, cobrar taxas para a urbanização e a manutenção dos territórios e para a organização de suas rotinas. Jogos de interesse que podem envolver lideranças locais que mobilizam sua larga “expertise”, organizando ocupações ao longo de muitos anos. Mas podem também envolver empreendedores que, à distância das “boas intenções” dessas lideranças, buscam expandir seus negócios e recursos de poder nesses vastos e cada vez mais rendosos mercados informais de terra e moradia, que se constituem em meio a jogos nebulosos de interesses, envolvendo grileiros locais, empresários, grupos criminosos cada vez mais presentes nesses mercados, políticos e suas máquinas partidárias sob formas renovadas de clientelismo urbano.
Fronteiras urbanas, fronteiras de mercado: na interface desses processos, se configuram tramas sociais e territórios que acolhem populações sujeitas a processos de deslocamentos forçados.
A produção da cidade em ato
A heterogeneidade é uma marca desses territórios. Diferenças em termos de forma urbana e de gestão cotidiana são resultado dos modos diferenciados de sua constituição a partir de práticas e agenciamentos diversos e que se constelam, de formas variadas, a cada nova empreitada. Ainda que a insegurança e a precariedade urbana sejam traços comuns às ocupações de terra, há variações importantes nas condições de vida em cada território, em decorrência do maior ou menor investimento despendido no local – investimento de tempo, de trabalho e de recursos materiais e de poder. Vamos falar rapidamente sobre duas delas para bem situar as questões.
Duas Irmãs
Duas Irmãs é uma das ocupações agenciadas por Jonathan. Formada no início de 2018, está localizada em uma área remanescente das desapropriações realizadas para o Rodoanel. Com a paralisação das obras do anel rodoviário, as pequenas porções de terra que não foram utilizadas pela Dersa11 foram ocupadas. Esta foi a origem da Duas Irmãs. No início, ainda contando poucos meses de existência, eram cinquenta famílias em barracos construídos de forma desordenada. Os moradores fizeram amplo uso de materiais de construção deixados à vista nas obras do Rodoanel, como blocos de concreto, canaletas e outros.
Na Duas Irmãs não há uma demarcação clara de lotes e ruas. Distante do discurso cheio de protocolos apresentado por Jonathan, na prática, o que se via caminhando pelas vielas da ocupação eram pequenos barracos de madeira construídos de forma desordenada sobre o terreno, com pouco ou quase nenhum acesso a condições básicas de moradia como água e energia elétrica. Alguns poucos barracos possuíam ligações irregulares nas redes de água e luz do bairro, feitas a partir do esforço individual de determinado ocupante ou grupo, seja ele próprio realizando a ligação, seja por meio da contratação do serviço no pujante mercado de urbanização que se estabelece no entorno desses territórios em formação, como veremos adiante.
A condição por demasiado precária da ocupação chama a atenção, uma condição que só é possível compreender em relação à trajetória do grande responsável pelo seu agenciamento, Jonathan, figura bastante controversa na região. Jonathan se apresenta como um ex-usuário de crack salvo por Deus e por sua esposa, Clara, a quem conheceu quando tinha 27 anos e ela, apenas doze. É pai de catorze filhos, oito deles com Clara. Apesar de ter sido batizado na Igreja Mundial do Poder de Deus, diz não frequentar nenhuma igreja. Também se diz de “esquerda”, sem filiação partidária. Muito de sua formação política se deve aos mais de cinco anos em que viveu em uma ocupação de moradia no centro de São Paulo, organizada por um conhecido movimento social da capital.
Em seus discursos e suas vivências, Jonathan mobiliza esses múltiplos repertórios que o formaram, combinando o “direito à moradia” à “providência divina” para justificar suas ações à frente das ocupações de terra; o repertório religioso se soma aos aprendizados adquiridos junto aos movimentos de moradia, em uma equação na qual o resultado só pode ser compreendido em sua própria trajetória, atravessada pela instabilidade e precariedade, em que a busca pela igreja ou pelas ocupações de movimentos de moradia compõe os expedientes de sobrevivência mobilizados por ele – e por tantas outras famílias. De fato, as redes construídas em torno das igrejas evangélicas são a principal fonte de recursos de Jonathan. É por meio das igrejas por onde circula que ele acessa cestas básicas para si e para as demais famílias das ocupações que agencia e, vez ou outra, um advogado para apoiá-lo nos processos a que responde e também nas ações de remoção que recaem sobre algumas dessas ocupações. Em seu horizonte não está a permanência e consolidação dos territórios, mas a sua multiplicação, para que sempre tenha para onde levar as famílias em caso de remoção, fazendo a gestão de uma população que vive em situação de transitoriedade permanente.
Na Duas Irmãs não é possível notar um projeto coletivo sendo perseguido, apenas a busca por soluções de escopo individual e emergencial. Não há sequer um horizonte compartilhado de expectativas de uma possível permanência da ocupação. E é justamente por não contar com um projeto coletivo que a ocupação se torna mais acessível para pessoas que não conseguem acessar ou se manter em outras ocupações da região, que exigem maiores custos e demandas aos ocupantes. É a precariedade extrema das ocupações formadas por Jonathan que faz delas pontos de acolhimento de homens e mulheres que transitam nas franjas as mais precarizadas dos mercados informais, que vivem entre o desemprego prolongado, o trabalho incerto e bicos esporádicos, sujeitos a uma sucessão de deslocamentos forçados, transitando de ocupação em ocupação, entre ocupações e formas as mais precárias de moradia.
Jardim Milão
Vizinho à Duas Irmãs, mas localizado do outro lado das pistas inacabadas do Rodoanel Mário Covas, está o Jardim Milão. Formado a partir de outros atores e agenciamentos, ele nos informa sobre diferentes dimensões desse fazer-cidade que se realiza nas zonas cinzentas da maior metrópole do país.
O Jardim Milão foi agenciado por uma rede extensa de atores, entre lideranças comunitárias locais, responsáveis por encabeçar o processo, e os chamados apoiadores, atores que, na avaliação das lideranças, tiveram papel decisivo no estabelecimento da ocupação. Isto é, pessoas com importante capacidade de mobilização de recursos materiais e de poder nas muitas negociações travadas em torno da formação do território. No Jardim Milão, compuseram o grupo: um arquiteto, um advogado, empresários locais, um policial militar e supostos membros do PCC. Por sua atuação, cada apoiador recebeu dois lotes.
Não cabe aqui entrar nos meandros bastante tortuosos em torno da formação e consolidação da ocupação (Lacerda, 2022), mas importa salientar, ainda que brevemente, alguns de seus aspectos. O primeiro desafio enfrentado foi seu estabelecimento e a demarcação de suas fronteiras. A região na qual se estabeleceu o Jardim Milão é área de atuação de um conhecido, e controverso, loteador local, famoso por suas práticas de grilagem aberta ou camuflada. Mas antes de chegar até ele, foi preciso travar delicadas negociações com os policiais enviados para atender a ocorrência de invasão logo nas primeiras horas – e para isso a presença do advogado foi fundamental. Em seguida, tratou-se de barganhar os limites do território com o tal loteador, então em vias de implantar um loteamento (irregular) em área vizinha. Dessa vez, a atuação dos sócios da empresa de ônibus que opera linhas na região, membros do grupo de apoiadores, foi o que garantiu a equalização de poder na mesa de negociação entre loteador e ocupantes, que envolveu, ainda, um policial militar que fazia o serviço de segurança da empresa de ônibus, também conhecido como matador na região. A mediação da contenda ficou a cargo dos irmãos – supostos membros do PCC que, a todo momento, aparecem nos relatos de nossos interlocutores como os responsáveis por gerir os conflitos cotidianos da ocupação e também aqueles que se dão em torno da apropriação e transformação da terra12.
Uma vez definidas as fronteiras, deram-se a instalação da ocupação e a definição dos lotes a serem distribuídos, negociados ou vendidos a seus futuros moradores. Desde o início, a distribuição dos lotes, o desenho das quadras, do arruamento e os demais parâmetros para o estabelecimento da ocupação, tudo isso foi calculado com cuidado, com o objetivo de mimetizar o que é tido como a forma urbana legal-formal, visando a um possível reconhecimento junto aos poderes públicos. Não à toa, um arquiteto foi convidado, desde o princípio, para compor o grupo de apoiadores. A transformação de uma ocupação informal-ilegal em bairro plenamente reconhecido, com todos seus direitos perante os poderes públicos: é isso que sempre esteve na mira de seus empreendedores.
O Jardim Milão é formado por quadras bem desenhadas, com ruas e lotes padronizados e projetos de implantação de praça, uma sede para a associação de moradores e quadra poliesportiva desenhados desde os primeiros dias. Foi seguindo o projeto delineado pelo arquiteto que se deu a consolidação da ocupação. Para tanto, toda uma rede de operadores do mercado de urbanização foi acionada em meio a transações de mercadorias políticas (Misse, 2006) para garantir que as melhorias13 fossem executadas.
Quando colocadas em perspectiva, a realização das melhorias dá forma ao processo local de urbanização, tal como se constituiu no Jardim Milão: de maneira fragmentada, precária, contínua e altamente custosa, feita por meio de agenciamentos locais que mobilizam uma trama de atores e de recursos (financeiros e de saberes) que extrapolam o perímetro local. Aparecem aqui funcionários de empresas públicas ou de terceirizadas responsáveis pela implantação de infraestrutura urbana e pelos serviços públicos; operadores locais dos mercados de serviços urbanos que se dispuserem ao trabalho de terraplanagem, canalização e aterramento; policiais militares e ambientais que interferem na regulação desse mercado ao fazer (e cobrar) a proteção. A associação de moradores, representante da ocupação, figura como o comprador de todos esses serviços. A construção da legitimidade da associação entre os ocupantes é um elemento importante na medida em que o coletivo centraliza a execução das melhorias, conferindo alguma coesão ao processo de urbanização agenciado no território, mas que se viabiliza pelo acionamento de redes que extrapolam em muito sua localidade imediata.
Aos moradores cabem as taxas e mensalidades pagas para cobrir os custos das melhorias. Todo o investimento exigido na transformação do espaço recai sobre os ocupantes. E os custos desse investimento variam de acordo com as condições urbanas locais e o tempo em que se pretende alcançar as almejadas melhorias. Daí decorrem as diferenças na forma urbana encontradas entre as ocupações e nas suas dinâmicas internas: o maior investimento na ocupação contribui para a valorização dos preços dos lotes e das moradias ali construídas, constituindo um promissor mercado de moradia em territórios sem garantia de permanência e com precária infraestrutura, ao lado do intenso mercado de vendas de lotes e moradias, incluindo, com frequência cada vez maior, construções voltadas ao aluguel.
Como mostram Pires, Hirata e Maldonado (2020), os mercados populares associados aos ilegalismos urbanos acolhem os imperativos da sobrevivência, ao mesmo tempo que se consolidam como indutores de produção e acumulação de riquezas por meio da circulação de bens, serviços e tecnologias. Trata-se aqui de sair da zona de abstração para pensar os mercados na concretude das relações que os constituem, nos modos que fazem circular bens e riquezas, apropriadas de forma desigual entre os vários atores envolvidos. No caso dos mercados informais e ilegais, a relação com os operadores do Estado é central, pois é por meio da transação das mercadorias políticas que é feita a regulação das trocas, que depende dos mercados de proteção, nos termos trabalhados por Misse (2006).
Esta é uma discussão que se apoia em uma vasta linhagem de pesquisas e estudos sobre o comércio informal e os mercados de drogas. No entanto, este o ponto a frisar aqui, os mercados informais de terra e moradia também podem ser vistos nessa conjugação entre imperativos da sobrevivência e os circuitos de produção, circulação e apropriação de riquezas – circuitos que se territorializam nessas zonas de expansão das fronteiras urbanas e que encontram, justamente nas ocupações urbanas, um de seus mais produtivos e promissores pontos de ancoramento.
Resta, então, identificar os atores e os modos pelos quais esta circulação de riquezas se produz e os modos desiguais de sua apropriação.
Trata-se de um mercado que se constitui e se alimenta da precariedade e das urgências da vida que levam tantos a se instalarem nas cada vez mais numerosas ocupações que pontilham as periferias urbanas, fazendo delas uma oportunidade de negócios e recursos de poder por parte de empreendedores que agenciam a expansão dos mercados de terra e moradia nas fronteiras urbanas da cidade. É também toda uma trama de atores implicada em um mercado que se estrutura em torno da (e que estrutura a) provisão de infraestrutura e serviços urbanos, operando nessas zonas cinzentas nas quais o formal/informal e o legal/ilegal se embaçam e se conectam, dando materialidade aos territórios em formação nas franjas da cidade.
A presença do Estado em todas essas transações é algo a ser enfatizado. O Estado está inteiramente envolvido por meio de seus agentes e dos usos privatizados que são feitos de sua tecnologia e infraestrutura: assim, por exemplo, no Jardim Milão, foram os funcionários da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo, a Sabesp, atuando “fora do expediente”, os responsáveis por prover as ligações (irregulares) de água. Por outro lado, entre as estratégias mobilizadas para se obterem o reconhecimento e a formalização do território (a transformação da “ocupação” em “bairro”) vemos a atualização das históricas redes do clientelismo político, ainda muito atuantes. No Jardim Milão, a chegada ao território das redes de um importante e histórico vereador da capital, a partir das eleições de 2020, já garantiu uma série de benefícios: a regularização do abastecimento de água, a realização do asfaltamento das ruas e a construção das guias e sarjetas, até a visita do atual prefeito da cidade à ocupação, prometendo a regularização fundiária. Tudo isso faz do Jardim Milão um “caso de sucesso” entre as ocupações vizinhas, elevando o capital político daqueles ali envolvidos e contribuindo para a disseminação da “boa fama” das ocupações de terra como um bom “investimento”. Se as ocupações são mobilizadas como meio de expansão das fronteiras urbanas dos mercados de terra e moradia, eis que também passam a ser mobilizadas nos jogos políticos inscritos nesses mercados.
Uma questão em aberto
Aqui, poderíamos voltar à pergunta lançada páginas atrás: que tramas sociais e urbanas são tecidas pela lógica de precariedade, insegurança e transitoriedade permanente que caracteriza os dias atuais?
Nas ocupações urbanas descritas e nas populações que ali vivem e transitam, estão contidos os registros dos vários processos por meio dos quais se realizam a insegurança e a precarização das condições de vida. Diferentes processos de despossessão estão na origem dessas ocupações: remoções promovidas pelo Estado, relações precárias e incertas de trabalho, endividamento, encolhimento (quando não destruição) de políticas sociais e das redes de seguridade social, dentre tantas outras configurações que despojam as populações de seus espaços de vida.
Mas nos seus percursos, essas populações, em situação de transitoriedade permanente, estão a todo momento construindo possibilidades de vida, mobilizando suas formas de sociabilidade e redes ampliadas de relações para improvisar e engendrar alternativas para habitar e estabelecer pontos de ancoramento para seguir em frente. A cidade vai sendo tecida nessas práticas, nas materialidades construídas, nas mediações e conexões que se fazem nessas zonas incertas próprias das zonas cinzentas em que ocorrem.
Nesses territórios em que ficam embaralhadas as práticas de vida e de exploração econômica, as tensões e fricções são constantes, tensionando os acordos e arranjos que sustentam as microrregulações da vida cotidiana. A partir das ocupações, é possível apreender os jogos de poder e interesses que se instauram no campo incerto e conflituoso entre o formal e o informal, entre o legal, o ilegal, e o extralegal, em que estão implicados os variados atores presentes nestes processos, com interesses diversos que fazem da expansão das fronteiras urbanas um meio de expansão, também, das fronteiras de mercado. Ao mesmo tempo que respondem às urgências da vida em uma conjuntura de empobrecimento e precariedade das condições de vida, as ocupações também representam a expansão das fronteiras de mercado – mercado de terra e moradia nas franjas da cidade.
Agradeço ao professor Gustavo Prieto pelos comentários precisos e instigantes na leitura deste artigo, que abriram portas para discussões e elaborações futuras.
Referências Bibliográficas
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2
. Essa pesquisa resultou em minha tese de doutorado (Lacerda, 2022), tendo sido realizada no âmbito de dois laboratórios de pesquisa: no LabCidade da FAU-USP, no quadro de um projeto mais amplo, pude desfrutar da parceria com as demais pesquisadoras e pesquisadores do laboratório; e no Grupo Cidade e Trabalho, da FFLCH USP, essa pesquisa foi devedora de programas de leitura, reflexões partilhadas com demais colegas em torno de outros temas, além da discussão coletiva em torno do andamento de nossas respectivas pesquisas.
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3
. A noção fazer cidade mobilizada aqui foi construída a partir das leituras e discussões compartilhadas no Grupo de Pesquisa Cidade e Trabalho (FFLCH-USP), regido pela professora Vera Telles, e é o fio condutor do Dossiê “Nas tramas da cidade: Produção de territórios, mercados, conflitos”, do qual este artigo faz parte. Nossa formulação é devedora dos debates propostos por Charles Tilly (1996) em torno da formação do Estado ocidental; por Aysa Çaglar e Nina Glick-Schiller (2018) sobre a produção dos espaços urbanos a partir das convergências entre diásporas migratórias e populações urbanas continuamente deslocadas de seus espaços de ancoramento; e, também, daqueles propostos por Frank Muller e Julienne Weegels (٢٠٢٢), que, apoiados em uma releitura de Tilly, colocam em foco as formas de soberania e governo urbano, em disputa, ancoradas na produção material dos espaços urbanos. Trata-se, portanto, de uma noção que se constitui enquanto um feixe de questões, ou um prisma, a partir do qual é possível apreender o processo de fazer cidade tal qual o compreendemos, em suas múltiplas dimensões. Estas questões foram melhor trabalhadas no texto de Introdução do Dossiê (Lacerda, Telles, Santos, 2025), e também em Lacerda e Telles, 2024.
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4
. Em São Paulo, a rede de pesquisa Observatório das Remoções é uma das iniciativas que buscam construir as remoções como objeto de pesquisa, de debate público e de incidência política. Na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), o OR realiza o mapeamento, o monitoramento e a análise das ameaças e remoções coletivas desde 2012. Ao longo de sua atuação, a rede do OR tem contribuído para a identificação dos grupos sociais mais atingidos e para a compreensão dos impactos sobre a vida da população removida. Além disso, vem construindo subsídios e reflexões que avançam no entendimento sobre a natureza dos processos, políticas e programas urbanos que promovem remoções (Moreira et al., 2020).
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5
. Os dois dias de ação foram acompanhados por mim, Débora Ungaretti e Martim Ferraz, no âmbito das pesquisas desenvolvidas pelo LabCidade e pelo Observatório de Remoções. A eles, meu agradecimento pela parceria em campo e pelas reflexões que se seguiram ao longo dos anos em que trabalhamos juntas.
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6
. Essa remoção foi trabalhada em Ungaretti et al., 2018.
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7
. O mapeamento das ocupações realizado no âmbito do LabCidade apoiou-se em nossas visitas a campo, bem como nos relatos de nossos interlocutores e interlocutoras, combinado com o levantamento, ao longo dos anos, de fotos aéreas da região disponíveis no Google Earth e os dados do Observatório de Remoções.
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8
. O Estudo de Impacto Ambiental e o Relatório de Impacto Ambiental (EIA-Rima) elaborado para o trecho norte previram 2.784 edificações impactadas pela obra (Ungaretti, 2021).
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9
. De modo a não perder todo o sentido contido no par de conceitos elaborado pelas autoras, optamos por mantê-los em inglês. Segundo as autoras, displacement se articula aos processos associados à noção de acumulação por despossessão cunhada por David Harvey. Já emplacement conecta dois processos: de um lado, a contínua reestruturação do espaço promovida por meio das redes multiescalares de poder e, de outro lado, os esforços individuais e coletivos em meio às contingências locais para construir e reconstruir a vida a partir de redes relacionais de escalas variadas (Çaglar e Glick-Schiller, 2018, pp. 19-21).
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10
. A expressão “circuitos de sobrevivência” foi cunhada pelo sociólogo e professor da Universidade Estadual do Maranhão (Uema), Rafael Godoi, em um dos encontros do grupo Cidade e Trabalho, quando discutíamos a pesquisa de mestrado, então em desenvolvimento, de Ananda Endo. A pesquisa de Ananda aponta para uma presença crescente de sobreviventes do cárcere que vivem em ocupações de moradia na região central de São Paulo. O mesmo vale para as ocupações acompanhadas nesta investigação. Ao comentar essa presença, Rafael Godoi ressaltou a importância das ocupações ao compor esses “circuitos de sobrevivência” para uma população que é constantemente marginalizada, expulsa, deslocada.
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11
. A Dersa – Desenvolvimento Rodoviário S/A é uma empresa de economia mista responsável por gerenciar empreendimentos rodoviários no estado de São Paulo, dentre eles o Rodoanel Mário Covas.
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12
. Em artigo recente (Lacerda e Telles, 2024), trabalhamos de forma mais detida a presença dos homens do PCC nas ocupações de terra e seus impactos sobre a gestão cotidiana nesses territórios.
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13
. A provisão de infraestrutura urbana – relacionada às ligações de água e luz, ao esgoto e aos viários – é sempre referida por nossos interlocutores e interlocutoras como melhorias realizadas na ocupação. E é assim que vamos também nos referir a elas, pois, de fato, são melhorias, mas não soluções para a ausência de infraestrutura, equipamentos e serviços urbanos públicos e de qualidade.
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Editora
Ana Paula Hey
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
08 Set 2025 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2025
Histórico
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Recebido
04 Out 2024 -
Aceito
28 Nov 2024
