Resumo
A proposta deste artigo é analisar como diferentes imagens de mulher aparecem construídas no filme España heroica (1938 – versão espanhola), peça de propaganda produzida pelo lado nacional durante a Guerra civil espanhola. Nosso foco está na organização interna do filme, sendo nosso principal objetivo compreender como certas avaliações, sobretudo com relação à mulher, aparecem nele encenadas. Esse cuidado, de fundo teórico-metodológico, caro a autores como Pierre Francastel e Pierre Sorlin, deve nos ajudar a evitar reconhecer no produto audiovisual o que já sabemos acerca da sociedade ou da época. Nosso plano é realçar diferentes tipos de imagem de mulher ao longo do filme, discutindo como eles se coadunam com a Espanha projetada pelo filme, utilizando como fio condutor a noção de (in)disciplina. À guisa de conclusão, traremos uma pequena glosa a respeito de um plano específico do filme.
Sociologia do filme; España heroica (1938); Análise de filme; Imagem de mulher; (In)disciplina
Abstract
This article analyzes how different images of women are constructed in the film España Heroica (1938 – Spanish version), a propaganda piece produced by the Nationalists during the Spanish Civil War. Our focus is on the internal organization of the film. The article aims to understand how specific evaluations – primarily related to women – appear staged in it. From a theoretical-methodological perspective, this care is central to authors such as Pierre Francastel and Pierre Sorlin. It should help us avoid recognizing what we already know about society or the era in the audiovisual product. We plan to highlight different types of female images throughout the film, discussing how they fit in with the Spain projected by the film, using the notion of (in)discipline as a guiding thread. To conclude, we provide a brief interpretation of a specific shot of the film.
Sociology of film; España Heroica (1938); Film analysis; Image of women; (In)discipline
Introdução e metodologia
A proposta deste estudo é analisar como está construída a imagem da mulher no filme España heroica, produção alemã e espanhola, de 1938, com direção e argumento de Joaquín Reig Gozalbes. Para tanto, pretendemos uma incursão pelos elementos expressivos do filme, de maneira a verificar como tal imagem se insere nessa obra de propaganda do lado nacional, cujo discurso, conforme apontam Vicente Sánchez-Biosca e Rafael Rodriguez Tranche, está integrado na luta contra a barbárie, o bolchevismo, na qual é preciso escolher entre “destruição e anarquia de um lado e autoridade, quer dizer, ordem e organização de outro” (Tranche e Sánchez-Biosca, 2011, p. 67).
Considerando que o decisivo na análise sociológica de um filme não é “um processo de reconhecimento, mas de compreensão” (Francastel, 1987, p. 141), nossa proposta é entender como, em España heroica, são elaboradas “proposições sobre a sociedade” (Sorlin, 1977, p. 287), em particular, com relação à mulher. Em vista disso, não está em nosso escopo discutir a história e a situação da mulher nos anos de 1930, o que escreviam aquelas que se pronunciavam em publicações da época, ou tentar identificar, na tela, a que pessoa ou fato uma cena se refere. O que é significativo para nós é como se dá essa construção, isto é, como o filme estabelece classificações e hierarquizações (Sorlin, 1977, p. 237) no que concerne à mulher, com ênfase não na realidade dos fatos, mas na análise de planos e sequências selecionados.
Consequentemente, nosso primeiro procedimento metodológico será nos dirigir àquelas passagens em que a mulher está em destaque, deixando de lado outros planos e sequências que, conquanto importantes e nucleares para a compreensão do discurso produzido pelo filme (a luta contra o comunismo), nos obrigariam a desvios que nos distanciariam do que aqui gostaríamos de levar a termo. Outro procedimento será sublinhar, ao longo das análises, os aspectos expressivos dessa construção, o que significa voltarmos nossa atenção sobretudo para os elementos visuais do filme, sendo, portanto, o nosso desafio não apenas mostrar o que diz e mostra o filme, mas como o faz.
Tal perspectiva reforça nosso ponto de partida teórico-metodológico, ancorado em aspectos da sociologia da arte de Pierre Francastel (1987, 2011) e da sociologia do cinema de Pierre Sorlin, em que buscaremos compreender as relações sociais encenadas no filme, isto é, “a sociedade tal como se mostra no cinema” (Sorlin, 1977, p. 230), traço metodológico que Paulo Menezes traduziu como uma tentativa de apreender “as condições simbólicas da constituição do social” em vez de “as condições sociais de constituição do simbólico” (Menezes, 2017, p. 26 – itálicos do autor).
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O texto está dividido em quatro passos. No primeiro, procedemos a uma breve apresentação do filme, apontando sua importância para um estudo sociológico; em seguida, abordamos três diferentes imagens de mulher e como são mobilizadas dentro da concepção geral do filme; no terceiro, destacamos uma série de planos, pertencente a um curto bloco dedicado à República, em que notamos a acoplagem mulher e arma; para, depois, impulsionados pela presença da disciplina (militar, como metáfora da harmonia social), realizarmos uma pequena digressão sobre a noção de indisciplina, utilizando para tanto uma revista de época, intitulada Mujeres Libres. Por fim, nas considerações finais, concluímos as análises centrando nossa atenção em um plano específico do filme.
Apresentação do filme e do problema
A importância de España heroica, realizado por J. Reig Gozalbes (optamos por utilizar o nome do diretor conforme grafado nos créditos do filme), é rapidamente identificada nas obras de estudiosos das relações entre cinema e história. Vicente Sánchez-Biosca o concebe como a “obra maestra” da propaganda produzida pela Hispano-Film-Produktion (Sánchez-Biosca, 2005, p. 327) ou “a mais audaz película de montagem realizada pelo lado nacionalista sobre uma guerra ainda em curso” (Idem, p. 478), um dos “pilares sobre os que se erige o monumento da propaganda nacional” (Tranche e Sánchez-Biosca, 2011, p. 16), finalizado e exibido ainda durante a guerra civil espanhola. Destaque semelhante é dado por Rosa Álvarez Berciano e Ramón Sala Noguer, considerando-o um “emblemático filme de propaganda dos nacionais” (Berciano e Noguer, 2000, p. 240), além de ser o “documento fílmico mais prodigioso” do lado nacional, “o intento mais bem-sucedido de legitimação ideológica do alzamiento militar, e nenhum outro filme da Espanha sublevada teve repercussões tão profundas no exterior” (Idem, p. 236). Importância também aquilatada por Magí Crusells, para quem “Este filme foi, sem dar lugar a dúvidas, a película mais importante, desde o ponto de vista propagandístico, que teve a Espanha nacional”; e, finalizada a guerra, reconhecido como “o documento fílmico mais prodigioso da passada epopeia” (Crusells, 2000, p. 80).
Da série de razões para tais avaliações de España heroica – e dada a perspectiva metodológica expressa acima, a de nos dedicarmos à organização interna do filme (imagens e sons) –, uma, em especial, interessa-nos: a equipe de produção não filmou nenhuma cena ou sequência, tendo sido o filme totalmente montado em estúdio.
Isso não chama atenção por ser uma novidade à época1, mas porque as proposições acerca da sociedade, que é o que buscamos identificar, construídas em España heroica, ocorrem por meio da montagem de uma série de planos e sequências filmados por outras equipes de produção, retirados, inclusive e principalmente, de realizações do lado da República. Tais planos e sequências, capturados como butim de guerra em decorrência do avanço das tropas sublevadas, são ressignificados (justapostos a outros, de outros filmes), remontando ou reencenando o encenado, roubando-lhes a voz, apagando-a, ou as obrigando a dizer o que nunca disseram2. Em suma, criando sentidos não a partir de material produzido por uma (extensa ou reduzida) equipe de filmagem, mas rearticulando uma série de materiais visuais e sonoros que circulavam à época pela Espanha (ou pelo mundo, em reportagens a respeito dos acontecimentos na Espanha). É dessa opulenta quantidade de imagens que destacamos aquelas em que a presença da mulher é central, para discutir como elas são mobilizadas para valorar e hierarquizar os dois lados em guerra (o lado nacional, que resiste pela Espanha, e o lado republicano, caracterizado mais de uma vez por “forças republicano marxistas”). Não nos aprofundaremos nas numerosas situações nas quais a imagem do inimigo – o comunismo3 – é cuidadosamente construída por meio de sua associação com o que não é Espanha – a falta de ordem e de disciplina, a destruição, o desrespeito à religião etc. Salientaremos, contudo, como esse processo de construção acontece envolvendo a figura da mulher.
Imagens de mulher
Nos momentos em que España heroica mostra a República se armando, não raro vemos planos de homens, mulheres e crianças, ora marchando, perfilando-se ou erguendo o punho cerrado. Nesses planos, acompanhamos civis armados ou sendo armados para lutar, imagens que, nos filmes de orientação republicana, significavam, grosso modo, trazer para a tela o frenesi de um momento revolucionário – e não era incomum a figura da mulher uniformizada, armada e em caminhões, indo para a frente de guerra. Pois bem, España heroica, ao apropriar-se desses materiais, decide não apenas incorporar tais situações à montagem, como o faz sem que a locução emita qualquer comentário ou avaliação. Só ouviremos algo semelhante quando for explicitamente indicado o papel que cabe à mulher, momento no qual a locução fará referência às virtudes femininas (trecho inserto na passagem que aborda o Auxílio Social e a Seção Feminina da Falange, depois de mais de uma hora e doze minutos de filme).
Antes disso, porém, deparamo-nos com uma série de momentos nos quais é possível identificar mulheres, desde aquelas que parecem engajadas em alguma atividade, como as que estão uniformizadas (milicianas ou militantes da Falange4) ou envolvidas em situações nas quais experimentam os efeitos da guerra (incluem-se aí as mulheres chorosas em meio à destruição e fome ou as que, alegres, recebem mantimentos ou participam de manifestações de rua, separadas ou não dos soldados que estão de partida ou de retorno das batalhas). Dentro dessa organização proposta por España heroica, parece-nos possível estabelecer três tipos de imagem de mulher. A dois deles reconhecemos de pronto, pois facilmente os associamos à mulher do lado republicano ou à do nacional. Servem-nos como indicadores os gestos com os quais ambos realizam a saudação na rua e o uniforme que vestem. Destarte, ao braço erguido e mão espalmada, mais o uniforme, que nos permitem distinguir na tela as mulheres das fileiras da Falange, vemos o mesmo ocorrer com os gestos e indumentárias das mulheres do lado das forças da República (a saudação com o punho erguido, fechado e o uniforme de miliciana). A separá-las, dois elementos. O primeiro, menos pronunciado e, assim nos parece, menos significativo, é o uso da calça comprida (peça que não observamos, na tela, no uniforme da seção feminina da Falange). Por outro lado, o elemento que a nós parece decisivo é a presença do fuzil na composição do quadro, aqueles planos em que a mulher está carregando uma arma – informação visual que merece, inclusive, destaque na caracterização da mulher do lado da República, esteja ela com uniforme de miliciana ou não.
A esses dois tipos, rapidamente identificáveis, junta-se um terceiro, cujo traço caracterizador não nos é dado de pronto, pois é construído paulatinamente, por meio de protocolos mais sutis e variados. Diferente dos outros, identificados pelos gestos ou indumentária, e justamente pela ausência deles, essa imagem será sintetizada ao longo do filme, constituindo o que classificaríamos como a mulher ideal da Espanha futura (a de José Antonio, a de Franco). Essas mulheres estão na rua, em manifestações nas quais observamos a empolgação (no início do filme, de ambos os lados) ou, com o avanço da trama, o padecimento das consequências da guerra. Não são identificadas por uniformes, gestos e sequer a atividade na qual estão engajadas (códigos que nos identificam as mulheres dos dois lados), mas pelos afetos que as envolvem. Gradualmente, esse tipo será composto ao longo do filme, quando mulheres – notadamente mulheres – são mostradas expressando ora a tristeza (pois choram as perdas e lamentam a carência de mantimentos), ora a esperança (pelos avanços das tropas de Franco e novos territórios conquistados), ora o cuidado (associado à criança a quem alimentam ou àquelas a quem protegem e aninham no colo).
Na história contada pelo filme, é como se as mulheres das sequências iniciais, logo após o bloco de abertura, sorridentes, desfilando (sob os olhares de Largo Caballero, presidente do governo espanhol em 1936, montadas em plano e contraplano) ou misturadas aos soldados na rua, paulatinamente cedessem lugar àquelas que, no bloco final, saúdam Franco. Depois das sequências de batalhas (nas quais temos dificuldade para identificar quem dispara, quem ataca e quem retrocede5), que dominam os blocos intermediários do filme, elas não estarão mais simplesmente nas ruas. Quando, finalmente, nas sequências dedicadas às ações da Falange, antes do encerramento, acompanhamos mulheres bem-vestidas, arrumadas, distintas e comportadas, aplaudindo um Franco “vitorioso” (ainda que em 1937), elas estarão sim à rua, manifestando-se, mas diante de um desfile organizado, em que há nítida separação entre militares e civis, cada qual, a seu modo, expressando obediência, isto é, ocupando o seu devido lugar.
Notemos. Se nos filmes de orientação republicana as mulheres portam armas, vão para as frentes de batalha e discursam (como vemos, por exemplo, em Espagne, 1936), compondo um quadro que poderíamos caracterizar de empolgação com o momento revolucionário, no contexto das imagens compiladas e remontadas de España heroica, tais figuras, movidas por esse afeto, também estarão presentes, mas para significar outra coisa. Expressam sim o momento revolucionário; todavia, é uma “revolução que degenera em guerra”, como diz a locução (19min17s), um afeto fugaz, insuflado de fora, e que, por isso, não pode ser a base sobre a qual será erguida a nova Espanha. À desordem, expressa nessas manifestações nas ruas, em particular no bloco dedicado à República, contrapõe-se o desfile militar, em que heróis restituirão a Espanha ao seu destino. Moldados pela disciplina (como lembrava Weber, “A disciplina do exército […] é o seio maternal da disciplina em geral” – Weber, 2004, p. 361), lutam por uma Espanha eterna, acima dos conflitos internos (vividos no presente, por influência estrangeira) e cujo futuro é um desejo imperial, de glórias passadas. Nessa nova Espanha, una e única, habitará a mulher que, depois da empolgação passageira e livre do sofrimento da guerra, sairá então à rua. Ali, bem-comportada, ocupando o lugar que lhe é designado, aplaudirá a vitória dos que desfilam, disciplinadamente, pois treinados a obedecer6. Afinal, como lembra Foucault em Vigiar e punir,
As disciplinas […] criam espaços complexos: ao mesmo tempo arquiteturais, funcionais e hierárquicos. São espaços que realizam a fixação e permitem a circulação; recortam segmentos individuais e estabelecem ligações operatórias; marcam lugares e indicam valores; garantem a obediência dos indivíduos, mas também uma melhor economia do tempo e dos gestos (Foucault, 1988a, p. 135).
Nesse registro, sendo a disciplina geradora de lugares hierárquicos, ela opera, como elemento expressivo no filme, valorando não apenas os lados em luta, mas os tipos de imagem de mulher que nele aparecem. Por isso, o decisivo aqui é menos os códigos que ajudam a diferençar as três imagens de mulher que apresentamos acima, e mais a existência, na tela, de algo determinante e específico para a trama do filme: a associação paulatina da mulher que luta ao lado da República à falta de disciplina (e a um mundo em decadência), uma espécie peculiar de indisciplina que é parte de como o filme enxerga a “degeneração” da Espanha, da “alta Espanha”.
A acoplagem arma e mulher
Detenhamo-nos nesse aspecto, insistindo sobre uma característica que nos pareceu específica da tipologia da mulher do lado republicano: a presença da arma. Tentemos pensar, sob a luz da disciplina, os planos e sequências povoados por essa personagem que porta ou empunha armas. Eles estão localizados nos doze primeiros minutos de filme, e podemos acompanhar, em vários planos curtos (de um, dois ou três segundos cada, dos 10min.04s aos 10min.22s), a acoplagem mulher-fuzil. Destacamos tais planos não para identificar as pessoas, informar o que faziam ali no momento, sugerir a qual atividade estariam ligadas ou mesmo para apontar de qual produção foram retirados, mas para explorar o lugar expressivo que ocupam no plano e no filme.
Tais tomadas nos chamam atenção não apenas porque mulher e arma estão presentes, mas porquanto esses dois elementos ocupem a parte dominante do quadro. Vejamos. Aos 10min04s temos o primeiro desses planos. Nele uma mulher aparece no centro do quadro, ao lado de outros homens, diante de um caminhão da FAI /CNT. Ela está uniformizada (embora sem o quepe), sorri e repousa a mão direita sobre um coldre ou algum dispositivo acoplado ao cinturão, enquanto mantém a esquerda erguida, com o punho fechado. Vemo-la movimentar-se para o lado, como se estivesse saindo da frente de um caminhão, repleto de pessoas, para que a câmera pudesse filmar a partida do veículo (aliás, é para a câmera que seu olhar atento é dirigido). O segundo desses planos está localizado nos 10min07s. Ali vemos apenas três pessoas, que caminham calmamente pela calçada: um homem ladeado por duas mulheres, milicianas, imaginamos, pois uniformizadas. Ambas carregam fuzis e parecem saber que a câmera as acompanha. No próximo, aos 10min14s, uma moça, de vestido claro com pequenos desenhos estampados, cercada de vários homens, civis e armados, ergue o braço direito, com o punho em riste, segurando uma bolsa com o outro. No quarto, aos 10min16s, outra mulher, agora loira, também de vestido claro, é mostrada no centro do quadro, rodeada de homens. No quinto, aos 10min18s, outra mulher uniformizada, empunhando uma arma – plano dominado pelo seu rosto e pelas suas mãos, que parecem ser hábeis no manuseio do fuzil –, simula mirar em algum ponto para, em seguida, recolhê-lo, como em uma demonstração da maneira de usá-lo como uma arma de guerra. Por fim, aos 10min19s, no canto do quadro (o centro está ligeiramente borrado), notamos a manga solta e curta de um vestido, manga que cai, cobrindo parte do braço de uma mulher – é o que deduzimos – que está empunhando uma arma. Arriscaríamos dizer que ela está de pé em um jipe em movimento, e o elemento mais nítido é a arma de cano longo e as mãos que a seguram.
Nem todos esses planos estão justapostos, e o que nos importa é a orientação da montagem (que é mostrar e não esconder a empolgação dessas pessoas na rua com a “revolução”, sejam homens, mulheres e crianças) e o fato de estarem aglutinados em determinado lugar do filme. Qual é esse lugar? Localizam-se depois da sequência que mostra uma tela na qual uma série de lentes, em formato poliédrico, sugere, com a música, o estilhaçamento do país (9 min), e antecedendo inúmeras sequências de ônibus e caminhões da CNT-FAI indo à batalha, apinhado de pessoas (a partir dos 10min26s), passagens que parecem servir de introito para outra, mais longa (10min51s – 13min), nas quais são mostradas igrejas em chamas, um grupo de homens simulando um pelotão de fuzilamento (tendo por alvo o coração de Jesus7) e saque em igrejas. Nesse trecho de destruição, a música, mais tensa, torna-se gradualmente lenta e triste, coincidindo com tomadas no interior de igrejas, destruídas.
O lugar que ocupam os planos acima destacados no contexto de imagens e sons construído por Espanã heroica, considerando as sequências que vinham antes e depois, é importante de ser realçado, porque associa a mulher que apoia a “revolução” (ou a que defende a República) ao comunismo e à falta de autoridade. Contudo, não obstante a centralidade dessa associação no discurso do filme – como vimos, já destacado por estudiosos –, gostaríamos de sublinhar outro ângulo, ainda mais incisivo: a acoplagem arma-uniforme-mulher anuncia seu papel ativo na luta contra os sublevados, pois sugere a mulher que vai para a frente de batalha (isto é, e frisemos este ponto, um lugar que não é o da retaguarda), redimensionando o que poderia ser entendido como mera empolgação com as manifestações de rua contra o Alzamiento militar. Em outros termos, tal acoplagem serve não só para associar a República à desordem (o que não seria uma novidade, pois homens civis portando armas levam à mesma conclusão), mas as sequências em que aparece estão encadeadas a sequências nas quais vemos templos incendiados e destruídos. Essa organização interna do filme parece qualificar a referida acoplagem como uma espécie de negação do que a tradição legou e consagrou por gerações, a Espanha eterna8 – sendo, portanto, a mulher que empunha armas uma espécie de emblema da falta de disciplina e, em consequência, da desobediência que corrompe a harmonia e a unidade nacional9. Se, como lembrava Margareth Rago em suas análises sobre o grupo “anarcofeminista” Mujeres Libres e a luta das mulheres à época, “a liberdade feminina era associada à degeneração moral pelo discurso religioso e pelo científico” (Rago, 2008a, p. 14)10, a presença do fuzil naqueles planos destacados afigura cumprir uma importante função, a de mostrar o decaimento da Espanha.
Essa acoplagem, no entanto, fornece os elementos necessários para que outro contraste seja construído: à mulher que empunha arma, aquela que se dedica ao cuidado. No filme, isso será matizado a partir das sequências que envolvem o “Auxílio social” (59min20s), mesmo sendo ali homens a prestá-lo, com a prevalência da presença de mulheres apenas nas filas para mantimentos11. Com a entrada do bloco dedicado à Falange (1h12min18s), em particular com a Seção feminina, o cuidado como “virtude” ganha protagonismo. Vemos então uma sequência de aproximadamente 50 segundos, na qual, em vários planos, abertos e aproximados, mulheres servem crianças em um grande refeitório, em que o ato de comer e a tranquilidade que dele decorre (as crianças o fazem organizadamente, sentadas em várias mesas) são celebrados pela versão instrumental da canção “Cara al sol” (hino da Falange Española de las Jons – Juntas de Ofensiva Nacional Sindicalista). Diante dessa composição, cabe à locução apenas assentar que na assistência social “encontra a mulher espanhola um campo de ação ideal para as maravilhosas virtudes femininas […]” (1h12min46s). Sublinhemos as três ideias que compõem a afirmação – a mulher espanhola, campo de ação ideal e virtudes femininas –, pois elas revelam uma distinta hierarquia com respeito à mulher: a que cuida (notadamente de crianças), diante daquela que empunha armas (envolvida na “revolução”).
Considerando as imagens de mulher, temos aqui um contraste fundamental: cuidado e arma. Estamos diante da mulher ideal, que habita uma Espanha sonhada como ideal, harmônica, eterna, ao passo que a outra (imagem) é a não Espanha, aquela que vive e valora o momento social e histórico da “revolução” e por isso se envolve na luta. As mulheres espanholas ideais, e não importa que sejam muitas e de diferentes classes, são as que se empenham no cuidado do outro (no filme, crianças), que é a realização de uma “maravilhosa virtude”. Notemos, porém, e isso nos é importante, que tal atividade virtuosa e que classifica as mulheres lhes determina também um lugar, o da retaguarda.
De um lado, a acoplagem mulher-arma, que ocupa lugares vistos como inadequados. De outro, a encenação de uma relação social12, baseada na acoplagem mulher-criança (cujo lugar é predeterminado, eterno: na retaguarda) e expressa na presença, construída por planos iluminados, em quadros em que mulheres e crianças estão juntas. Em vista disso, e reforçando a nossa perspectiva, España heroica encena menos uma relação maternal ou filial13, em que o lugar na casa seria a contraposição ideal para a mulher que foi às ruas (e aos campos de batalha), e mais a relação de cuidado, cujo lugar é o da retaguarda. Não há no filme casa e escola, elementos que poderiam reconfigurar a ideia de cuidado (a mãe, a educação das crianças, a professora). O cuidado está na retaguarda.
España heroica, portanto, dentre os vários elementos mobilizados para encenar um ideal de sociedade, apresenta-nos um julgamento sobre a mulher – ela está fora do (seu) tempo, à margem da história e da política, pois se realiza por meio de virtudes consagradas e ocupa um lugar já assentado. Ela é protagonista não da luta, mas do cuidado.
A indisciplina
Tentamos mostrar como a disciplina opera no filme como uma maneira de valorar o que é ou não a verdadeira Espanha, não apenas em sua dimensão mais visível (contrapondo o mundo harmônico, representado pelo exército, com seus generais, heróis e soldados desfilando organizadamente, e o de “voluntários” empolgados que lutam pela República), como, também, e sobretudo, na construção, não tão nítida, entre a mulher portadora do cuidado e a de fuzil. Em outros termos, a disciplina como um valor em disputa, isto é, reconhecido por ambos os lados – embora encenado como um atributo do lado nacional.
Para destacarmos um momento chave dessa construção, basta irmos ao diálogo (elemento escasso no filme), como se o áudio fosse captado no local da cena filmada, em que ouvimos: “Preste atenção a tudo o que acontece no caminho. Da disciplina, da ordem. […] Não se esqueça que é preciso obedecer às ordens. Vamos, pessoal” (aos 23min34s), seguido de “não mire em mim. […] Cuidado, vai atirar em mim”. Tais falas, dirigidas provavelmente a voluntários, não apenas soam como um conselho, mas também reforçam justamente os requisitos para a vitória: a disciplina, a obediência. Em outras palavras, as forças da República parecem reconhecer nelas próprias a ausência de algo que no lado nacional abunda: ordem, disciplina, hierarquia, obediência, evidenciando a provisoriedade do esforço de Guerra e a precariedade de mando (a voz, notemos, mais sugere apelo do que comando: “Vamos, pessoal”). Adiante, quando forem mostradas as brigadas estrangeiras, ali veremos brigadistas dispostos organizadamente na rua (diferente dos que se apinhavam em caminhões para a luta do início do filme), como se a organização de exército buscada pela República fosse uma confissão: a de que lhes falta aquela “técnica de poder” – que é como Foucault se referia à disciplina – que “exerce seu controle, não sobre o resultado de uma ação, mas sobre seu desenvolvimento” (Foucault, 1988b, p. 106).
A disciplina, pois, está encenada no filme e, como dissemos, opera como um valor. No entanto, e isso nos parece interessante, circulava à época, isto é, era tema de discussão, em particular, em uma publicação de mulheres (concebida e escrita por mulheres), ligadas aos movimentos libertários: a revista Mujeres Libres14, sugerindo fortemente que a disciplina era problematizada não só como técnica, mas como valor (uma noção a partir da qual se poderiam avaliar, inclusive, as ações revolucionárias), que circulava à época e interessava diretamente parte dos movimentos libertários femininos. Conquanto não seja possível irmos a fundo na publicação, acreditamos valer a pena, aqui, um excurso pela noção de (in)disciplina.
Mujeres Libres, desde seu número inaugural, dois meses antes da sublevação, insistiu para que fosse ouvida a voz própria da mulher, de modo a “subverter conceitos” e “evitar que a mulher submetida ontem à tirania da religião caia, ao abrir os olhos à vida plena, sob outra tirania, não menos refinada e ainda mais brutal, que já a cerca e a cobiça como instrumento de suas ambições: a política” (Mujeres Libres, 1, p. 2)15. Tendo por norte descobrir “novos horizontes”, outros modos de pensar no qual a mulher fosse protagonista, a noção de disciplina – precedida da partícula negativa “(in)” – é tematizada no número 4 (apresentado como 32 días de la Revolución, em matéria intitulada “CNT, AIT e FAI Organización de la indisciplina”). Lemos:
Da mesma forma que até agora controlamos a indisciplina da coragem e do sentimento, quando esta hora de luta decisiva terminar, poderemos controlar a indisciplina da inteligência construtiva. Mas, hoje, continuamos com o lema bem claro: não queremos disciplina que limite valor, inteligência e sentimento. (Mujeres Libres, 4, p. 2)16.
No trecho, a ideia forte, assim nos parece, é o questionamento não dos limites, mas de quem os estabelece: não a disciplina como prática, hábito, cuja determinação vem de fora, como ordem que conta com a obediência de pessoas treinadas para obedecer (cujo tipo ideal é o exército), mas a indisciplina como força construtiva, autodeterminada.
Retomada no número 7 (VIII mes de la Revolución), agora sem a partícula negativa “(in)”, uma espécie de reportagem, intitulada “Disciplina mañana”, pondera que, se a “disciplina” e a “obediência cega” podem ser fundamentais para a vitória da guerra (por meio das armas), elas “não são, não poderão ser jamais, condições da Revolução” (p. 8). A clivagem entre guerra e revolução, como vimos, também está em España heroica, filme cujo discurso elide não a palavra “revolução”, mas o caráter social que assumiu desde o início do conflito para certas forças que lutavam ao lado da República. Lembremos que, conforme a locução, a “revolução” não é social, mas “degenera em guerra”; ou seja, é um “protesto de massas impacientes”, sendo a “jovem República” incapaz de lhe “sufocar o ímpeto”17.
Ainda no número 7, “Disciplina, disciplina! Disciplina de ferro, começamos a ler, ouvir, ver em todos os lugares: e simultaneamente verificamos que as atividades revolucionárias se estancam” (p. 8)18, anunciando que a revolução (social), que era viva, começa a “aniquilar-se, a enrijecer-se, a petrificar-se”. Ora, España heroica parece justamente encenar essa disciplina a respeito da qual “começamos a ler, ouvir, ver em todos os lugares”, como se fosse tomada como padrão para ambos os lados. A diferença é que a disciplina “de ferro”, associada ao exército, implicando “submissão” e “obediência”, era a marca de origem dos sublevados. Ao passo que, em Mujeres Libres, é um problema, pois se a disciplina – como obediência “cega” – é uma arma de guerra, um dispositivo que torna mais fácil vencer a guerra, isso não significa a vitória da revolução. Para Mujeres Libres, os predicados do militarismo (não por acaso, os mesmos da disciplina: de ferro, forte, implacável, inflexível) são opostos aos que inflamam as “iniciativas populares” (vivas e ágeis), daí que “A disciplina, a obediência cega são também as primeiras condições da escravidão”19.
O tema volta a ser motivo de reportagem no número 10, II Año de la Revolución, embora matizada de outra forma. O problema não é a disciplina em si (agora reconhecida como necessária, dado que ela é importante na atuação do Ejército popular regular), mas a disciplina estabelecida como padrão externo, imposto, “cega”. Mujeres Libres retoma a partícula negativa ao relembrar aquela “primeira indisciplina heroica”, vista então como um “valor”, que sintetiza o “sem limite na coragem, na inteligência [e] no sentimento”. Trata-se de um “antigo valor suicida” e “admirável” (número 10), que faz com que a militância se discipline “com toda a responsabilidade”, isto é, obedeçam “aos superiores que eles mesmos designaram”. Tais indicadores permitem-nos imaginar que o “sem limites” de Mujeres Libres, temperado pela “responsabilidade”, não é o ilimitado, o desmedido, mas uma maneira diferente de lidar com a inteligência, a coragem, o sentimento, como se fossem espécies de afetos cuja limitação não poderia se dar por um padrão externo (como o treinamento que leva à “obediência cega”).
Em Mujeres Libres, pois, acompanhamos como o tema (da disciplina) era debatido à época, impondo-se no mesmo passo com que avançava a guerra – ainda que ao preço do retrocesso da revolução social. Ali, contudo, a disciplina não era vista da perspectiva de uma falta (a carência de uma técnica), mas da de um limite que seria obtido com responsabilidade, não por padrão externo. España heroica, por seu turno, não problematiza a disciplina, mas a encena como uma qualidade desejada por ambos os lados, acima das diferenças, e que opera como modelo de uma sociedade cuja harmonia se funda na obediência (no caso, a um líder militar).
À guisa de conclusão
Antes de encerrar, gostaríamos de retomar o plano localizado aos 10m16s. Curto, não obstante significativo.
Na tela, seis pessoas. O foco está fechado nas figuras que a compõem, homens e mulheres, isto é, não vemos o mundo sensível que as engloba, embora seja possível imaginar que estejam na rua (na verdade, sabemos disso, como apontaremos abaixo). Identificamos ali a presença de seis homens e duas mulheres, todos em trajes civis, sobressaindo duas personagens que ocupam o centro do quadro. A primeira, um homem empunhando uma espécie de revólver com um capacete militar à cabeça. A segunda, com grande destaque, uma mulher. Ela empunha na mão direita o que nos parece ser uma baioneta, trazendo apoiado ao ombro esquerdo uma arma, do tipo fuzil.
Ao longo do filme, poderíamos encontrar mulheres usando vestidos ou uniformizadas para a guerra, marchando ou erguendo o punho cerrado ou, como vimos, empunhando armas ou uma bolsa. Ocorre que tais elementos apareciam separadamente: víamos mulheres uniformizadas caminhando ou em caminhões, outras manuseando armas, algumas de vestido, marchando. A figura em destaque, porém, é diferente, dado que tais elementos estão concentrados em apenas uma personagem, que aparece na tela sem quepe, sem uniforme, mas, ainda assim, empunhando armas. No entanto, há mais. O braço direito aparece adornado por um bracelete, ao passo que no esquerdo, com o qual segura a arma, vemos um relógio e uma bolsa. A composição, e por isso a sublinhamos, é única e dissonante, pois antes ou as armas pediam uniformes, ou os vestidos eram das mulheres desfilando ou segurando uma bolsa. Aqui, há uma mulher de vestido, carregando adereços, empunhando a baioneta20 e levando uma bolsa pendurada no mesmo braço do fuzil.
Não realçamos o plano por nele estar contida a principal imagem de mulher do filme, nem a que melhor representa o lado republicano, mas porquanto seja aquele plano em que gestos, vestimentas e adereços formam um conjunto que destoa de todo o filme, aglutinando o que antes aparecia disperso: mulher, armas, roupas, cabelos soltos e adereços. Essa singular combinação – esse plano, situado nas sequências que mostram a República se armando, repleto de planos de mulheres –, é-nos significativa porque oferece uma imagem das várias faces que a (in)disciplina assume em España heroica: a empolgação da “revolução [antes de] degenera[r] em guerra”, a desorganização (a mulher longe da realização de suas “maravilhosas virtudes”), a estranheza e inadequação da acoplagem mulher e arma, que não deve lutar, mas cuidar.
Frisemos. Várias mulheres aparecem na tela – e inclusive sugerimos uma tipologia –, mas nenhuma portando todos esses adereços simultaneamente. Mais. Se separarmos aquele trecho que vai dos 10min04s aos 10min22s, do qual faz parte o plano citado, teremos observado muitas mulheres, mas nunca com a referida composição. Encontramos uma mulher, em plano aproximado, empunhando uma arma, ou o braço de outra, coberto pelo que havíamos suposto ser um vestido. Contudo, e isso é decisivo, não trazem todos esses elementos no conjunto: vestido, bracelete, relógio, baioneta, bolsa, ou tem o cabelo solto, sem o quepe.
Se, como salienta Carmen Lúcia Soares, as vestimentas “constroem, compõem, fabricam as aparências, contam trechos das histórias miúdas, cotidianas, banais […] e permitem que aspectos da vida em sociedade sejam compreendidos de maneira mais profunda” (Soares, 2011, p. 82), então o quadro que destacamos parece perfeito para compreendermos como España heroica constrói as afinidades da República com o que não é Espanha. E o faz mobilizando, dentre outros contrastes, a mulher que cuida e a que carrega um fuzil.
Em España heroica, aquém ou além de uma técnica de poder, a disciplina ganha outra dimensão, a de um afeto encenado: o da alegria de pertencimento a um todo, o da promessa de felicidade em uma Espanha sem conflitos. Não obstante, ainda assim, inserido no seio de um filme de montagem de orientação nacionalista, aquele plano destacado parece nos mostrar que outro afeto existe, insiste, persiste: o da indisciplina21.
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Referências bibliográficas
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Referências bibliográficas
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1
. Como apontam Sánchez-Biosca e Rodriguez Tranche, tal atitude está ligada ao “nascimento e expansão dos noticiários cinematográficos dos anos 10” e se estendeu aos “chamados documentários de compilação (compilation films), montagem ou arquivo […]”. Sobre a importância dos cineastas soviéticos para o desenvolvimento dessa prática, com “Esther Shub à frente”, e o uso feito da “montagem/remontagem de imagens livremente associadas, a utilização de recursos estilísticos próprios da ficção (recriação de situações, falsos raccords…), o tratamento da banda sonora (inclusão de ambientes, efeitos, simulação de sons…) e o apoio do texto”, ver Rodriguez Tranche e Sánchez-Biosca, 2011, pp. 171-172; também pp. 59-60).
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2
. Como mostram Rodriguez Tranche e Sánchez-Biosca, que realizam uma profunda análise do filme, “Alguns nós da propaganda nacional seriam incompreensíveis sem considerar que neles há resposta, diálogo, oposição, mas sempre presença encoberta, da voz do outro” (Tranche e Sánchez-Biosca, 2011, p. 16).
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3
. Ainda antes do minuto 10, vemos uma ilustração de tela inteira, em que a foice e o martelo se sobrepõem ao mapa de Espanha e Portugal, informação que será retomada, ao longo do filme, em muros pichados, inscrições em igrejas incendiadas, cartazes na parede etc., como aos 24min53s e 25min15s, entre vários outros momentos. Para facilitar o acesso, e como não apreciamos a utilização de imagens no texto, todas as referências de minutagem referem-se ao filme disponível on-line.
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4
. É possível identificar no filme outro tipo de uniforme (de mulheres que trabalham em um hospital destruído), mas não chamam a atenção como o das milicianas e das falangistas.
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5
. É o que já apontavam Álvarez Benciano e Sala Noguer: “Há momentos nos quais España heroica está tão absorvido na ação que o espectador corre o risco de confundir as trincheiras” (2000, p. 243).
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6
. Para isso, ver Weber, sobretudo quando define o conceito de dominação: “[…] disciplina é a probabilidade de encontrar obediência pronta, automática e esquemática a uma ordem, entre uma pluralidade indicável de pessoas, em virtude de atividades treinadas. […] O conceito de ‘disciplina’ inclui o ‘treino’ na obediência em massa, sem crítica nem resistência” (Weber, 1999, p. 33 – itálico do autor). No volume 2 de Economia e sociedade, o autor se detém sobre a relação entre disciplina, exército e empresa (Weber, 2004, pp. 356-362, em particular, p. 361).
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7
. Comenta Sánchez-Biosca a respeito desses planos: “É então quando irrompem novos planos procedentes de noticiários internacionais, que haviam circulado profusamente (em suporte fotográfico e em metragem fílmica): três planos que mostram o simulacro de fuzilamento da estátua do Sagrado Corazón de Jesús, em Cerro de los Ángeles, por um pelotão de milicianos. Esta série confirma a ideia de profanação e perseguição na sua mais alta expressão: o Cristo” (Sánchez-Biosca, 2011, p. 65). Tais imagens, “anarquistas”, transformam-se, em España heroica, no apontamento da “responsabilidade comunista na tarefa generalizada de destruição” (Idem, p. 65). A respeito das “profanações”, associadas aos anarquistas, e de sua transformação em atos do “mais ameaçante comunismo”, ver também 2011, p. 63. Mais sobre o fuzilamento da estátua, ver o documentário Espacios sagrados, usos profanos (2023).
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8
. A igreja como instituição que detém o poder da graça (e de consagrar) será parte fundamental do “aparato de Estado franquista” e assim aparecerá, como salienta Rafael Rodriguez Tranche, nos noticiários após a guerra – em particular nos No-Do (Tranche, 2005, em várias passagens, mas em particular na p. 218 e pp. 222-224).
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9
. Aspecto notado inclusive entre companheiros de luta. Como diz Ana Martínez Rus: “em uma sociedade machista e paternalista, a figura de uma mulher combatente resultava muito chocante, pois questionava os modelos de feminilidade e masculinidade estabelecidos. A guerra era assunto de homens e o papel das mulheres estava na retaguarda […]” (Martínez Rus, 2018). Então, “com a regularização do Exército republicano, foram abandonando os cenários de guerra acompanhadas de campanhas de desprestígio. Passaram de heroínas a repudiadas. O traje de miliciano era um mérito para os homens e uma desonra para as mulheres” (Martínez Rus, 2018). Martha Ackelsberg, citando Kyralina [Lola Iturbe] em 1935, destacava que “Todos os companheiros, por mais radicais que sejam […], costumam deixar suas roupagens de amantes da libertação das mulheres na porta de casa. Quando entram, comportam-se com suas companheiras como maridos comuns” (Kyralina, 1935 apudAckelsberg, 2019, pp. 219-220).
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10
. Mais a respeito do grupo e das lutas das mulheres “para escapar das redes de captura do Estado e do poder masculino no terreno da subjetivação”, isto é, a “produção de sua própria subjetividade”, ver Rago, 2008b, p. 188. Acerca da relação anarquismo e feminismo no “contexto histórico revolucionário” da época e da “criação de novos modos de existência a partir da ética afirmada por essas doutrinas”, ver Rago, 2008, p. 191, e também Rago e Biajoli, 2008.
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11
. Nas sequências em que aparece o bombardeio sobre Madri, também há o predomínio de mulheres nas filas de assistência, portando cestas, em busca de víveres. Nesse ponto, às imagens de escassez sofrida pela população civil, seguem-se as que mostram os “brigadistas” e milicianos comendo, bebendo e festejando, sinalizando a injustiça com a população civil (ou seja, mulheres e crianças).
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12
. Sorlin não usa a terminologia de Weber ao mencionar a ideia de encenação de relações sociais. No entanto, como uma definição parece-nos necessária para o tom sociológico da análise, é de nossa responsabilidade a aproximação. “Por ‘relação’ social emendemos o comportamento reciprocamente referido quanto a seu conteúdo de sentido por uma pluralidade de agentes e que se orienta por essa referência. A relação social consiste, portanto, completa e exclusivamente na probabilidade de que se aja socialmente numa forma indicável (pelo sentido), não importando, por enquanto, em que se baseia essa probabilidade” (Weber, 1994, p. 16). Como explica o autor, não se trata do sentido “normativamente ‘correto’ ou metafisicamente ‘verdadeiro’”, mas da probabilidade de haver, no passado, no presente ou no futuro e de forma indicável, ações reciprocamente referidas, quanto ao sentido”. Uma relação social existe (quando vemos encenado o cuidado da criança por mulheres, por exemplo) porque permanece “a probabilidade de haver determinados tipos de ação social orientados pelo sentido”. É possível notar que a narrativa do filme opera com essa dimensão, a de que quem assiste a ele compreende o sentido da relação, encenada entre mulher e criança, orientada pelo cuidado, como algo ligado a práticas imemoriais, tradicionais (o que não significa que isso seja verdadeiro ou correto).
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13
. Certamente, a relação filial (mãe e filho) havia e era forte no discurso ideológico à época, mas o que tentamos apontar é a vinculação mulher, atividade e lugar social, que é determinante no filme. Sobre a importância do tópico maternidade, que conduziria a mulher “ao auge do seu desenvolvimento como pessoa” (Nash, s/d, p. 35), assim como o debate no interior dos movimentos libertários, cuja “tônica imperante era, pois, a exaltação da mulher como mãe e a mistificação dos filhos como meio da realização completa da mulher”, ver Nash, s/d, p. 35 e p. 45. Margareth Rago (2008b, p. 15), por seu turno, aponta como no interior do grupo anarcossocialista Mujeres Libres houve um esforço de conjugar maternidade (que traria consigo a ideia de sublimação da “função animal”) e “a maternalidade, o direito à opção por ser mãe”.
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14
. Mujeres Libres foi “uma organização feminina espanhola, de orientação anarquista, […] cujo período de atuação vai de abril de 1936 a fevereiro de 1939” (Nash, s/d), e eram “militantes do movimento anarcossindicalista” (Ackelsberg, 2019, p. 219). O primeiro número é de maio de 1936, dois meses antes da sublevação, e “no total foram catorze edições. A última estava na gráfica quando a batalha chegou a Barcelona, e nenhum exemplar foi conservado” (Ackelsberg, 2019, p. 243). Para as diferenças entre Mujeres Libres e outras publicações de esquerda ou de núcleos femininos do movimento anarcossindicalista, ver Ackelsberg, 2019, pp. 255-257, também Nash, s/d, p. 22, sobre a luta mais ampla de Mujeres Libres, cuja postura não era apenas “antifascista”, pois não era suficiente “ganhar a guerra”, a qual chamavam de “guerra social” (Nash, s/d, p. 17). Sobre as edições comentadas da Revista, ver também Rago e Biajoli, 2008. Encontra-se a revista na página da CGT, Confederación General del Trabajo. Disponível em https://cgt.org.es/revista-mujeres-libres/.
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15
. No original: “evitar que la mujer sometida ayer a la tiranía de la religión caiga, al abrir los ojos a vida plena, bajo otra tiranía, no menos refinada y aun más brutal, que ya la cerca y la codicia para instrumento de sus ambiciones: la política”.
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16
. No original: “Del mismo modo que hasta ahora hemos controlado la indisciplina del valor y del sentimiento, cuando esta hora de lucha decisiva haya pasado, podremos controlar la indisciplina de la inteligencia constructiva. Pero, hoy por hoy, nos quedamos con el lema bien despejado: no queremos disciplina que limite el valor, la inteligencia y el sentimiento”.
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17
. Notemos que a ideia de indisciplina, que possui, entre outros sentidos, o de rebelião e desordem, caberia perfeitamente ao lado nacional, afinal, eram eles os “sublevados” contra o governo legítimo.
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18
. No original: “¡Disciplina, disciplina! Disciplina de hierro, comenzamos a leer, a oír, a ver por todas partes: y simultáneamente comprobamos que las actividades revolucionarias se estancan”.
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19
. No original: “La disciplina, la obediencia ciega son también las primeras condiciones de la esclavitud”.
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20
. Imagem que pode remeter à La Liberté guidant le peuple [A liberdade guiando o povo], 1830, de Eugène Delacroix – como nos foi sugerido no Seminário Ciências Sociais e Audiovisual (USP, 2024).
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21
. Instigou-nos no plano a sua potência expressiva, mais do que a identidade da referida pessoa. Ela, no entanto, pode ser identificada, como apontou o professor Rodriguez Tranche, estudioso da circulação de imagens produzidas durante a guerra civil espanhola, que nos indicou a seguinte entrevista, The Blonde Amazon, 1936, disponível em https://www.britishpathe.com/asset/226513/. O plano aparece em vários documentários, também como fotografia, na qual a disposição dos elementos da cena é diferente da do fotograma.
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Editor
Alexandre B. Massella
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
08 Set 2025 -
Data do Fascículo
Jan-Apr 2025
Histórico
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Recebido
28 Set 2024 -
Aceito
22 Jan 2025
