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Coelho Netto, o “homem com profissão” 1 1 . Agradeço a leitura e as sugestões de Sergio Miceli.

Coelho Netto, the “man with a profession”

Resumo

O presente artigo dedica-se ao exame das experiências sociais, escolares e culturais que marcam a trajetória de Henrique Maximiano Coelho Netto, e são a base para suas estratégias de carreira e concepções do trabalho intelectual. A partir da mobilização de um conjunto de materiais biográficos e autobiográficos, são explorados os condicionantes e as disposições que contribuem na conformação de uma posição específica, da qual Coelho Netto é o caso exemplar.

Coelho Netto; Trajetória; Intelectuais; Literatura

Abstract

This article dedicates itself to the examination of the social, scholar and cultural experiences that marked Henrique Maximiano Coelho Netto’s trajectories and are the basis of its career strategies as well as its conceptions of intellectual work. Mobilizing a network of biographical and autobiographical materials, we examine conditions and dispositions that contributes to form a specific position in which Coelho Netto is an exemplary case.

Coelho Netto; Trajectories; Intellectuals; Literature

Introdução

Sou um trapista do trabalho, a bête de somme dos franceses –

quero, e mourejo como um servo da gleba…

O Momento Literário (1908, p. 20).

“Não sabem eles que o artista é o resultado de mil influências desencontradas”, assinalou Coelho Netto em 1908, durante entrevista ao Momento literário de João do Rio. A representação espontânea da posição de “artista” enquanto sujeito “sem vínculos nem raízes”, logo como individualidade que não pode ser compreendida sem a consideração das mais íntimas e contingenciais experiências, sempre irredutíveis umas às outras, simboliza a determinação pela indeterminação. O “ser” e o “definir-se” como “artista” envolvem, portanto, a relativização do conjunto das constrições históricas e sociais que pesam nas condições de sua constituição e realização, ao mesmo tempo que buscam afirmar os traços mais característicos de uma individualidade e sensibilidade específicos, cuja função social está no distanciamento – o artista não é apenas aquele que se esforça, mas o que possui o “dom” – e no reforço da própria “representação idealista do criador como sujeito puro” ( Bourdieu, 1996BOURDIEU, Pierre. (1996), As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário . São Paulo, Companhia das Letras. , p. 43). Dessa forma, a “literatura de exaltação” e a “atividade de simbolização”, que estão na base dos “processos de acumulação e reprodução responsáveis” pela sacralização de indivíduos e grupos, participam da objetivação de traços que consubstanciam determinada posição e, assim, os meios e práticas que lhe são característicos e que se impõem como exigências aos seus pretendentes ( Coradini, 1998CORADINI, Odaci Luiz. (1998), “Panteões, iconoclastas e as ciências sociais”. In: FÉLIX, L. O. & ELMIR, C. P. (orgs.). Mitos e heróis: contrução de imaginários. Porto Alegre, Editora da UFRGS, pp. 209-235. ; Miceli, 2001MICELI, Sergio. (2001), “Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-45)”, “Biografia e cooptação (o estado atual das fontes para a história social e política das elites no Brasil). In: Intelectuais à brasileira . São Paulo, Companhia das Letras, pp. 69-291, 345-356. , 2007MICELI, Sergio. (2007) “Jorge Luis Borges: história social de um escritor nato”. Novos Estudos , 77: 155-182. ).

Como componente de uma geração que se viu às voltas com a abolição, com a propaganda republicana e com a queda do Império, e que ao mesmo tempo logrou criar e controlar as instâncias de consagração disponíveis – “a Academia Brasileira de Letras […], as grandes editoras (Garnier, Laemmert, Francisco Alves)”, o “acesso às sinecuras burocráticas” e toda espécie de “prebendas” associadas à literatura oficial ( Miceli, 1975MICELI, Sergio. (1975), “Division du travail entre les sexes et division du travail de domination: une étude clinique des anatoliens au Brésil”. Actes de la Recherche en Sciences Sociales , 1 (5-6): 162-182. , p. 168) –, Henrique Maximiano Coelho Netto representa um caso exemplar do “operário das letras”, cujas experiências intelectuais e sociais flagram os processos centrais de dependência “das instituições e dos grupos que exercem o trabalho de dominação”, quer dizer, “da grande imprensa, que constituía a principal instância de produção cultural da época e que fornecia a maioria das gratificações e posições intelectuais” ( Ibidem , p. 162), e do poder político. Combinados ou separados, esses arrimos se exprimem através de experiências as mais variadas e, ao mesmo tempo, se constituem como os invariantes que tensionam e dividem a vida intelectual e as “vocações” literárias no período em pauta.

As insígnias de consagração (membro-fundador da Academia Brasileira de Letras, “príncipe dos prosadores brasileiros”, indicação ao prêmio Nobel de literatura, autor de “copiosa obra”), que lastreiam a posição representada por Henrique Coelho Netto, designam um alvo contra o qual se insurgem os que visam a fissurar ou subverter a estrutura estabelecida. Desde o “sujeito mais nefasto que tem aparecido no nosso meio intelectual”, cuja produção literária é uma “ chinoiserie de estilo e fraseado” (Barreto, [1918] 2017, p. 180), até alguém cujo destino é “ser comido” ( Graciotti, 1928GRACIOTTI, Mario. (1928), “Comidas”. Revista de Antropofagia , São Paulo, 1 (3): 5. Disponível em https://digital.bbm.usp.br/bitstream/bbm/7064/4/Anno.1_n.03_45000033273.pdf, consultado em 1/3/2020.
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), Coelho Netto tende a aparecer como exemplar por excelência da literatura como “sorriso da sociedade”. Com produção voltada a um público leitor “que se compraz na superfície e no virtuosismo […], em suma, fundamentalmente hedonista” (Bosi, [1970] 1994, p. 199), a crítica de época denota uma literatura “confortável, infiltrada de humorismo, sem tramas emocionais, leve e simples”, tendo como principal consequência a ausência de “um ideal literário” ( Caminha, 1895CAMINHA, Adolpho. (1895), “Coelho Netto”. In: Cartas litterarias. Rio de Janeiro, Ty. Aldina, pp. 57-67. , pp. 59-60), e o sacrifício da sinceridade artística em nome de uma “versatilidade estética”, de “uma complicação toda literária, sem nenhuma, ou quase nenhuma, complexidade interna” (Veríssimo, 1904, p. 7).

Os materiais que fornecem a base sobre a qual se produz a imagem de Coelho Netto não podem ser desvinculados das estratégias pessoais e familiares de gestão de informações e representações que o colocam como fundador de uma posição: “o homem que realizou em sua época, no Brasil, o heroísmo de viver exclusivamente da pena” (Coelho Netto, 1942, p. 17). As construções sociais de sua trajetória, portanto, apresentam a característica de amalgamar a emergência da categoria de “escritor profissional” aos elementos mais diretamente ligados à definição de traços “vocacionais” que garantem o sucesso e o “pioneirismo” da empreitada coelhonetiana. Os esforços em plasmar um sistema de contornos que modulam simultaneamente o autor, a posição que ele ocupa e o espaço das posições disponíveis no qual se move têm lugar tanto nos romances “francamente autobiográficos […] – A capital federal, A conquista e Fogo fátuo ” ( Daniel, 1993DANIEL, Mary L. (1993), “Coelho Neto revisitado”. Luso-Brazilian Review , 30 (1): 175-180. , p. 175), quanto nas entrevistas, memórias, homenagens, notícias necrológicas e biografias das quais Henrique Coelho Netto é objeto.

A biografia produzida por Paulo Coelho Netto, filho de Henrique Maximiano Coelho Netto, e publicada em 1942, assume, pois, um lugar central na construção dos sentidos da trajetória e na gestão da imagem do escritor, notadamente por calcar sua validade na “mímica da ciência” e expor “a fileira de documentos exumados com paciência” ( Bourdieu, 2015BOURDIEU, Pierre. (2015), “Campo do poder e habitus de classe”. In: A economia das trocas simbólicas. São Paulo, Perspectiva. , p. 183), “para o estudo completo da vida e da obra de Coelho Netto” (Coelho Netto, 1942, pp. 15-16). A fisionomia geral da obra se expressa nas múltiplas conexões entre os aspectos mais íntimos e raros da personalidade do escritor e seus feitos literários, suas escolhas de carreira, e a “missão” assumida, colocando em evidência a filosofia social que reivindica a “criação” como expressão irredutível do “criador”. A literatura de celebração ganha expressividade ao ser cotejada com os romances autobiográficos de Henrique Coelho Netto, nos quais a recriação da vida intelectual do Rio de Janeiro nos dois últimos decênios do século XIX se expressa pela lupa de Anselmo Ribas. Há, pois, uma sobreposição entre o percurso e as experiências do protagonista e de seu “criador”, revelando a “sociologia espontânea” que informa as estratégias, os investimentos e as apreciações de que Coelho Netto lança mão ao retratar o meio intelectual com o qual se debateu no início de sua carreira.

Interessa, pois, o exame das experiências sociais, escolares e culturais que marcam a trajetória e são o sustentáculo das estratégias e dos esquemas cognitivos que lastreiam o trabalho e a carreira intelectual de Coelho Netto, impingindo-lhes um feitio que permite entrever os ajustamentos decorrentes dos “efeitos de posição” e dos “efeitos de atitude” ( Bourdieu, 2007BOURDIEU, Pierre. (2007), “Le mort saisit le vif: as relações entre a história reificada e a história incorporada. In: O poder simbólico . Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, pp. 75-106. , p. 90). Integrante da “falange boêmia”, posteriormente reconvertido à “boêmia dourada” na pós-instauração do regime republicano ( Broca, 1975BROCA, Brito. (1975), A vida literária no Brasil – 1900. Rio de Janeiro, José Olympio. , p. 20), as disposições e os meios que garantem sua afirmação e reconhecimento estão fortemente imbricados ao contexto “favorável à profissionalização do trabalho intelectual, sobretudo em sua forma literária” ( Miceli, 1975MICELI, Sergio. (1975), “Division du travail entre les sexes et division du travail de domination: une étude clinique des anatoliens au Brésil”. Actes de la Recherche en Sciences Sociales , 1 (5-6): 162-182. , p. 162), e aos rendimentos desiguais que os membros dessa geração conseguem acumular em um contexto de transformação das condições que presidem a produção literária e o acesso aos cargos disponíveis no estado.

O desafio sociológico é, portanto, contra e com a construção imagética pretensamente coerente e singular de uma trajetória, buscar a explicação às tomadas de posição nos trunfos de que estão em condições de lançar mão os agentes que participam da demarcação dessas zonas de incerteza que caracterizam as posições intelectuais, cujo traço mais evidente é que “estes postos […] são feitos para [e por] aqueles que são e se sentem feitos” para fazê-los, sendo que a coincidência entre a “vocação” e a “missão” é quase total ( Bourdieu, 2007BOURDIEU, Pierre. (2007), “Le mort saisit le vif: as relações entre a história reificada e a história incorporada. In: O poder simbólico . Rio de Janeiro, Bertrand Brasil, pp. 75-106. , p. 91). Assim, dividido em duas partes, o presente texto procura, em primeiro lugar, realizar um exame cruzado do sistema de constrangimentos e das experiências familiar, escolar e cultural que são constitutivas da trajetória de Coelho Netto, para posteriormente se debruçar sobre sua carreira, suas concepções do trabalho intelectual, e as relações e investimentos que marcam suas modalidades de inserção no meio político e intelectual do período.

A “herança” e o “herdeiro”

A máxima segundo a qual a herança só existe na e pela relação com o herdeiro expressa todo seu sentido através do nexo que liga as expectativas familiares, ou seja, o “projeto de futuro” vislumbrado pela família, e os modos através dos quais o “herdeiro” se apropria delas. Em suas reminiscências, Henrique Coelho Netto destaca a “palavra a todo momento anunciada” por seu pai, por sua mãe e pelas “pessoas íntimas que se interessavam” por ele, “sempre engastada em frases severas: Olha para o futuro! Pensa no futuro” (Coelho Netto, 1927, pp. 187-188). O “futuro” aparece, destarte, como o horizonte de expectativas que ilumina os caminhos a serem trilhados pelo “herdeiro”; mas mostra-se também como “sombra”, sanção aos desvios mais efêmeros, externada “ora em resmungos amuados” do pai, “ora em promessas carinhosas” da mãe ( Ibidem , pp. 188-190). Alicerce das experiências familiares, as expectativas de futuro projetadas para Coelho Netto se veem rompidas já nos idos dos anos 1880, e se resumem na desolação da mãe com o destino do filho: “Poeta!”.

Não só a mãe mas todos que souberam da “escolha infeliz” lastimaram, aconselharam-no a “não persistir naquele vício e perdição”. Os “versos”, por sua vez, lhe fluíam prontos, “com imagens e rimas”, logo o caminho era inescapável ( Ibidem , pp. 177-179). As pretensões de “viver das letras” produziram, nas mais diversas figuras que cruzaram o caminho de Coelho Netto, recomendações desencorajadoras. Neiva [Francisco de Paula Ney] afirma a Anselmo Ribas que “a mania das letras é perigosa e fatal”, exceto se forem as “letras de câmbio” (Coelho Netto, [1899] 1985, p. 19). Serapião Ribas, tio de Anselmo em A Capital Federal , sugere a ele que se forme, torne-se bacharel (Coelho Netto, [1893] 1915, p. 314), o que também faz Teixeira, o “médico e filósofo” d’ A Conquista , ao aconselhá-lo para que “tire seu diploma e depois, nas horas vagas, escreva seu soneto” (Coelho Netto, [1899] 1985, p. 91). Afinal, como afirma Neiva, “em um país de analfabetos, como este, quem tem um diploma é rei” (Coelho Netto, 1929, p. 13). O jogo dos juízos exprime, em termos relativos, o sentido dos investimentos possíveis e sua hierarquia, desenhando o conflito de legitimidades que começa a ser delineado no período, o qual opõe a literatura, os títulos escolares, e as “letras de câmbio”.

Em termos gerais, no sistema de referências que informa as apreciações, o diploma funciona como uma espécie de coringa que permite combinar a cultura livresca e a legitimidade de uma ocupação reconhecida, com um leque de postos possíveis e um reconhecimento social afirmado, cujo estereótipo é o personagem Dr. Gomes de Almeida, d’ A Capital Federal: advogado, burguês e diletante (Coelho Netto, [1893] 1915, p. 97). Afinal, “qual é o homem de letras que”, no período, “vive exclusivamente da pena? Nenhum…”, afirma Teixeira (Coelho Netto, [1899] 1985, p. 90). No sistema de trajetórias alternativas delineado pela “sociologia espontânea” de Coelho Netto, há uma hierarquia e um conflito entre a “vocação subjetiva” e o “projeto” traçado pela família. O desafio é compreender como as tensões entre o “dom” e as condições vão pouco a pouco se afrouxando, até que a “predestinação […] que preside ao aparecimento de tipos excepcionais” rompa com as coerções e se realize “como as grandes torrentes” que nunca podem ser “refreadas” (Coelho Netto, 1957, pp. 5-7).

Nascido Coelho Netto na cidade de Caxias, interior do Maranhão, em 1864, as informações sobre suas origens sociais são parcamente detalhadas, sendo bastante recorrentes as autorrepresentações sobre sua condição: “nascido em lar humilde”, “pobrezinho”, “um lutador”. Filho de Antônio da Fonseca Coelho e Ana Sylvestre Coelho, a classificação ocupacional de seu pai é imprecisa, aparecendo como “comerciante português”, “negociante”, ou “pequeno comerciante sem letras” (Coelho Netto, 1942, p. 23; Coelho Netto, 1925, p. 1; CORREIO PAULISTANO , 1934, p. 3). O mais evidente é que o pai ocupa uma posição dominada no polo econômico e, após ter a “má lembrança de meter-se em política”, muda-se para o Rio de Janeiro em decorrência da perseguição que sofria em Caxias. Entre 1870, quando desembarcou com a família no Rio de Janeiro, e 1884, quando faleceu, Antônio da Fonseca Coelho “montou um hotel […] em São Domingos”, empreendimento inicialmente próspero, mas que depois veio ao fracasso; “montou uma loja de móveis na rua da Alfândega”, mas “a sorte não lhe sorriu”, o que lhe causou “um profundo abatimento moral” (Coelho Netto, 1925, p. 1).

Ana Sylvestre Coelho, “brasileira, índia civilizada”, era “exímia costureira”, e montara uma “oficina no Rio de Janeiro” logo que por lá se instalaram (Coelho Netto, 1942, p. 23; Correio Paulistano , 1934, p. 3). Em diversas passagens de suas reminiscências, Coelho Netto destaca as virtudes da mãe, e a alusão ao fato de ser uma “índia civilizada” parece remeter tanto à forte devoção religiosa que, às vezes, deixava-a “absorta” (Coelho Netto, 1927, p. 135), quanto ao fato de haver granjeado “todas as prendas caseiras que constituíam o dote das moças pobres de seu tempo” (Coelho Netto, 1942, p. 16). Com a falência econômica e o “abatimento moral” do pai, é a mãe que, com “envergadura de aço”, torna-se o “braço direito da casa”, “mourejando para suster nos pulsos o peso formidável de uma família”. A centralidade da figura de Ana Sylvestre na trajetória de Henrique Coelho Netto é reforçada pela referência de que, em 1883, quando ele parte para São Paulo a fim de se matricular na Faculdade de Direito, é ela que lhe dá a “mesada de 70$000” (Coelho Netto, 1925, p. 1).

O terceiro pilar na base familiar, social e cultural de Coelho Netto é o tio, Manoel Rezende da Fonseca, seu “primeiro mestre”, “dado ao estudo dos clássicos portugueses e latinos” (Coelho Netto, 1942, pp. 16, 23). Foi o tio que os recebeu no Rio de Janeiro, quando vieram de Caxias, assim como é o tio de Anselmo Ribas, Serapião Ribas, que o recebe para sua primeira visita à cidade. A sobreposição entre os personagens traz à tona as experiências sociais que atravessam a relação entre Henrique Coelho Netto e o “tio Resende”, “guarda-livros” e “amigo dos clássicos”. Além de “guarda-livros”, classificação genérica que nos impede de qualificar a atividade realmente exercida, Manoel Rezende da Fonseca era “solicitador”2 2 . O exame de habilitação para solicitadores versava sobre a prática do processo e deveria ser prestado perante os juízes de direito (Decreto n. 5.618, de 2 de maio de 1874). . Combinadas, as funções abarcam um leque de atividades ligadas ao direito contratual, sucessoral, e ao controle e corretagem de transações comerciais. Serapião Ribas, tio de Anselmo e a quem o livro A Capital Federal é dedicado, enriqueceu “de um dia para o outro em transações felizes”, comprou “apólices, comprou muitos prédios”, e vive na praia do Russell “sem a dura preocupação do fim do mês e do caderno de compras” (Coelho Netto, [1893] 1915, pp. 20, 25). Em 1872, Manoel Rezende da Fonseca e Antônio da Fonseca Coelho foram nomeados “testamenteiros” de Antônio Gomes da Silva, “natural da cidade do Porto”3 3 . Confira-se: A Nação , Sábado, 28 de dezembro de 1872, p. 2; e também o Dicionário da elite política republicana (Abreu, CPDOC) e as dissertações de Carvalho (2012) e Lopes (1997) . , cuja relação com ambos não está clara, mas reforça as funções de mediação exercidas pelo “tio Resende” na gestão do patrimônio econômico e social da família.

As bases sobre as quais se assentam as condições e experiências de Henrique Coelho Netto servem de lastro ao “destino” vislumbrado pela família. A herança cultural e o gosto pelos clássicos são influências do “tio Resende”, com quem estudava em casa, e mesmo o pai parece ter sofrido a influência deste, “adquirindo alguma cultura” através da convivência (Coelho Netto, 1942, p. 16). O pai representa, nessa tríade, o modelo “austero”, “ríspido”, a crença na realização individual pelo esforço, cujos conselhos expressam a máxima “faze por ti mesmo”, “estuda, trata de aprender, não te importes com” os outros ( Coelho Netto, 1927COELHO NETTO, Henrique Maximiano. (1927), Canteiro de saudades . Porto, Livraria Chardon. , p. 170). As constrições impostas pela família, na esperança da realização de um trajeto ancorado em títulos escolares, prendiam-no com “excessivo rigor”, e, ao queixar-se, lançavam-lhe a repreensão: “Deus queira que te não arrependas no Futuro!” ( Idem , p. 188). Assim, após a formação inicial em casa, Henrique Coelho Netto vai para o “Colégio Jordão”4 4 . A consulta ao Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro permite identificar a Escola João Rodrigues da Fonseca Brandão, funcionando à rua do Hospício entre os anos de 1870 e 1872. , na rua do Hospício, uma escola pública onde eram “tantos, apinhados como árvores na floresta” ( Idem , p. 171). Frequentando-a entre 1871 e 1872, sai em razão da “perna encolhida” e, por recomendação do médico, seus pais o levaram para um retiro “na roça”, nos “Trapicheiros”, onde poderia livrar-se da “paralisia que [o] entrevara”. O período de retiro expressa tanto a condição na qual se encontrava no Rio de Janeiro, já que na “roça” estava “naquela casa acanhada, naquela rua estreita”, quanto o efeito da moléstia e o medo da recaída ( Idem , pp. 109-111).

Ao regressar dos “Trapicheiros”, ingressa no Mosteiro São Bento, onde funcionava um “colégio de humanidades com um professorado distinto”5 5 . Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro , 1885, p. 1222. , depois segue para “um curso particular, na rua do Riachuelo”, e em seguida para o Externato do Colégio Pedro II, onde fez o “curso de humanidades” (Coelho Netto, 1942, p. 23; Coelho Netto, 1925, p. 1). Em 1882, ingressa na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, mas abandona o curso por não simpatizar com o “anfiteatro”. Ainda durante o curso de humanidades, Coelho Netto já havia “estreado […] o nome em letra de forma na seção paga do Jornal do Commercio ”, com uma poesia dedicada a “Melo Moraes Filho” (Coelho Netto, 1957, p. 7). Matriculando-se na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, em 1883, tornou-se companheiro de casa de Raul Pompeia, de quem também fora contemporâneo no Colégio Pedro II, e “entrou a fundo na grande literatura lendo orientais, gregos (em francês), italianos, franceses, espanhóis e ingleses, quando achou o seu Deus: Shakespeare” ( Idem , p. 8).

Dedicando-se à “poesia”, “escrevendo febrilmente”, “improvisando arengas em todas as cervejarias de fama, principalmente no Corvo”, meteu-se em “um grande rolo na capital paulista”, sendo ponta de lança no embate com a Gazeta do Povo e publicando “artigos flamejantes, versos e contos” na Onda, Quinzenário Abolicionista . Incompatibilizando-se em São Paulo, transferiu-se para Recife, “onde conheceu Tobias Barreto e concluiu” o primeiro ano (Coelho Netto, 1925, p. 1; Coelho Netto, 1957, p. 8). Em 1884, retornou a São Paulo e completou o segundo ano. É também em 1884 que ocorre o falecimento de seu pai6 6 . Gazeta de Notícias , 26 de maio de 1884, p. 4. , o que vem representar o desaparecimento dessa posição no seio da estrutura de reprodução familiar, afetando os constrangimentos associados ao “futuro”, ou seja, a condição social específica a ser reproduzida. O sentimento de ausência é redobrado pelo fato de ter sido “chamado de tão longe para chegar inutilmente, depois de tudo acabado” ( Coelho Netto, 1927COELHO NETTO, Henrique Maximiano. (1927), Canteiro de saudades . Porto, Livraria Chardon. , pp. 209-210). A morte do pai, aliada ao desaparecimento do tio, em 1876, representa a supressão dos modelos masculinos, o primeiro, “austero” e “ríspido, tendo se metido em política, o segundo, burguês, diletante, cordial, para quem o mundo era “um jogo de concessões” (Coelho Netto, [1893] 1915, p. 314). Além disso, ambos tinham suas atividades ligadas ao comércio, o primeiro “negociante em Caxias”, proprietário de hotel, “pequeno comerciante”, depois moral e economicamente falido; o segundo, ligado à corretagem, aos registros comerciais, à atuação como “procurador prático” em transações sucessorais e de propriedade. A “herança”, assim, indica uma reconversão de estirpes escoradas em posições subalternas no polo do poder econômico em direção aos títulos escolares, movimento, contudo, interrompido, visto que Coelho Netto abandona o curso de Direito no final de 1884.

A não conclusão dos estudos é atribuída a dois elementos: i) sua “atitude francamente abolicionista e republicana”, o que “fê-lo incorrer na antipatia de certo lente de grande severidade”; ii) e o “ingresso na falange abolicionista de Patrocínio” (Coelho Netto, 1957, p. 8). O contato com José do Patrocínio deixou-o “doido, completamente doido”, fazendo-o abandonar “os estudos, […] os sonhos de doutor para acompanhar o grande vulto” (Coelho Netto, 1925, p. 1). O ingresso na vida literária é uma ruptura com o “futuro” traçado pela família, uma forma de dar vazão aos “primeiros versos” escondidos “nas páginas do dicionário” e descobertos pelo pai, “canções” que jurou nunca mais escrever para que ele “não [mais] as achasse, irritando-se com elas e fazendo chorar de tristeza [sua] pobre mãe” (Coelho Netto, 1929, pp. 178-179). O desvio relaciona-se, assim, ao desaparecimento das posições ligadas ao modelo masculino, e se expressa pela entrada na “grande falange dos boêmios da época”: sem casa, nem pouso certo, escrevia nas mesas dos cafés, principalmente “no Café do Rio, à rua do Ouvidor”, e “comia quando Deus queria”. Foi nesse período que conheceu Aluísio de Azevedo – o Ruy Vaz de A conquista e Fogo fátuo –, com o qual foi morar em uma pensão na rua Formosa, juntamente com “Carlos Toledo, irmão do Dr. Pedro Toledo” (Coelho Netto, 1925, p. 1). A errância nos estudos superiores contrasta com a relativa linearidade no percurso escolar anterior, e expressa o efeito das constrições familiares que pesam no trajeto de Henrique Coelho Netto. Prensado entre dois modelos diferencialmente incorporados: o do mundo “prático”, representado pelo pai e pelo tio, e o “projetado” pelas expectativas familiares. A extinção das amarras que marcaram sua infância e adolescência abre as portas para a “liberdade”, permite o “risco” e, em sua avaliação retrospectiva, torna possível viver a vida na qual “se sentia bem” ( Idem, ibidem ). As influências culturais e o gosto pelos clássicos, o mergulho na “grande literatura”, as relações de sociabilidade tecidas durante o curso de humanidades e a frequência aos bancos das faculdades de Direito abrem o flanco para uma bifurcação em sua trajetória, impulsionada pelo contexto social e político que marca a geração de 1870.

ILUSTRAÇÃO 1
Percurso social e escolar de Coelho Netto no Rio de Janeiro.

O ingresso de Coelho Netto na boêmia coincide com o momento de abertura de uma “espécie de microespaço público paralelo à vida parlamentar”, especialmente relacionado com a “alteração no padrão da imprensa” e, assim, dos “canais de expressão política” ( Alonso, 2002ALONSO, Ângela. (2002), Ideias em movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil-Império. São Paulo, Paz e Terra. , p. 95). Isso tem um impacto significativo para a transformação do trabalho intelectual, notadamente pelo fato de a imprensa “deixar de ser a urna, para ser uma oficina” (Coelho Netto, 1908, p. 20). No entanto, o leque de atividades intelectuais disponíveis e a relativa profusão de espaços de divulgação literária são desigualmente distribuídos, e variam em função das garantias de sobrevivência, e do acesso aos círculos sociais e literários. N’ A conquista , Coelho Netto apresenta os refúgios de seus companheiros de pensão: Aluísio de Azevedo (Ruy Vaz) recorria ao Visconde da Barra Mansa (Visconde de Montenegro), ao passo que Toledo acionava seus parentes em Santa Teresa. Anselmo (Coelho Netto), contudo, “sem amigos influentes, lançado no grande desconhecido, passeava com orgulho sua fome” (Coelho Netto, [1899], 1985, p. 54) e, somente em “casos extremos”, “recorria à mesa materna”, já que a mãe, “à viva força”, queria afastá-lo da “vida boêmia” e pô-lo “no bom caminho” (Coelho Netto, 1925, p. 1).

O afastamento de Henrique Coelho Netto do meio familiar é produto da recusa em se apropriar do caminho que lhe fora traçado, e cujo sucesso dependia da aquisição de condições materiais que lhe permitissem abandonar, ao menos em parte, o modelo de reprodução social posto a sua disposição. As próprias concepções do trabalho intelectual, especialmente em suas apreciações sobre a possibilidade de “viver da pena”, apontam nessa direção. A literatura “não dava”, logo as condições de subsistência estavam ancoradas na diversificação dos investimentos frente às oportunidades que se abriam em um mercado intelectual em expansão. O período inicial de deslocamentos – posições 1, 2, 3 e 4 – representa, para Anselmo, uma constante em termos de acesso e reconhecimento nos círculos intelectuais. Do “cômodo”, para a pensão de “Dona Ana”, depois para a “República” idealizada por Crebillon, um herdeiro que dilapidou o próprio patrimônio, “um sonhador” cujos empreendimentos não se conectam às condições objetivas de sua realização, e, por fim, Ruy Vaz e Anselmo, antes da separação, instalam-se nos “cômodos” da casa de Carlota (Coelho Netto, [1899] 1985, pp. 76, 83). “A vida, porém, tornava-se cada vez mais apertada”, e Ruy Vaz, “extenuado, instalou-se no palacete do Visconde de Montenegro”, Anselmo, por sua vez, “muito enfraquecido”, empenhou a caixa de música, presente dos pais, buscou notícias de sua peça com Heller; o empresário, recebendo a negativa, saiu “para a noite alegre, fresca e estrelada” ( Ibidem , pp. 92-93). Sem dinheiro, vai para Cascadura a convite de Pedroso, professor que “lecionava Português, Aritmética e Geografia” ( Ibidem , p. 94). O período em Cascadura é apresentado por Coelho Netto como uma decisão de “estudar literatura”, e, após estudar “como um louco” por quase um ano (Coelho Netto, 1925, p. 1), “resolveu descer” (Coelho Netto, [1899] 1985, p. 97).

Seu retorno é marcado pelo episódio no Polytheama.

Em 6 de agosto realizava-se um novo meeting à noite, no Politeama , com a presença do 3º delegado. Em certo momento, e quando Quintino Bocaiuva já ia em meio do seu discurso, ouviu-se o estalejar de uma carta de bichas, arremessada das galerias; apagaram-se as luzes, e o teatro viu-se atacado por um bando de capoeiras, capitaneado pelo célebre facínora Benjamin , que foi logo subjugado e desarmado pelo moço escritor Coelho Neto (Duque Estrada, [1918] 2005, p. 169).

Coelho Netto destaca que o feito lhe abre as portas ao reconhecimento, ou seja, seus “contos e crônicas começam a ser lidos com simpatia”, sendo, a partir de então, “armado cavaleiro […], recebeu a accolada do cerimonial”. Antes, mesmo tendo “relações na imprensa”, participando em meetings , frequentando rodas literárias e rondando “a Távola Redonda” do “Rei Arthur, que era José do Patrocínio”, suas “fantasias rabiscadas em jornais do Rio” não recebiam atenção (Coelho Netto, 1925, p. 1). Os signos do reconhecimento são, assim, expostos. Dependendo, efetivamente, da audiência qualificada, a qual divide o meio literário entre “um grupo muito pequeno, dos que podem”, e outro enorme, “dos que não podem” (Coelho Netto, 1908, p. 20), a “geração de 1870” logrou monopolizar as instâncias de consagração e as posições que forneciam a maior parte das gratificações ao trabalho intelectual, ou ao menos serviam de salvaguarda para sua realização. O senso de orientação nesse espaço indica, assim, as críticas que devem ser levadas a sério, e aquelas que devem ser relegadas ao ostracismo; como diria Octávio Bivar (Olavo Bilac) a Ruy Vaz (Aluísio de Azevedo) frente à dúvida deste último em responder ou não a uma crítica: “Silêncio, meu amigo. Se lhe respondes estás perdido. […] Cala-te. Nem pio!” (Coelho Netto, 1929, p. 327).

No período, o jornalismo funciona como principal veículo de difusão e retribuição, constituindo um “ofício compatível com o status de escritor” ( Miceli, 1975MICELI, Sergio. (1975), “Division du travail entre les sexes et division du travail de domination: une étude clinique des anatoliens au Brésil”. Actes de la Recherche en Sciences Sociales , 1 (5-6): 162-182. , p. 179). Coelho Netto passa a atuar em diversas frentes: recorre a José do Patrocínio e ingressa na Gazeta da Tarde ; vai para o Novidades , com Alcindo Guanabara, mas deixa o periódico por ser “fracamente escravocrata”; através de Pardal Mallet, e este por intermédio do Visconde de Matosinhos, consegue um folhetim n’ O Paiz , a 25$000; Olavo Bilac, após ingressar na Gazeta de Notícias , atira “todos nos braços hospitaleiros de Ferreira de Araújo”; dirige o Diário Illustrado dos “Srs. Malafaia e Pinto Moreira”; trabalha como redator do Diário de Notícias , de Ruy Barbosa; e emplaca a peça Indenização ou República no Teatro Príncipe Real, juntamente com Émile Rouède. “Com os cobres dos direitos autorais, reforma o guarda-roupas e aluga um quarto”: pela primeira vez um quarto seu, pago com seu dinheiro (Coelho Netto, 1925, p. 1). A transformação das condições materiais é acompanhada, assim, pelo deslocamento geográfico para a zona sul do Rio de Janeiro, mas a situação normalmente incerta sobre a sobrevivência e o sucesso dos empreendimentos editoriais produz desclassificações sociais e geográficas, como a saída da Marquês de Abrantes e o retorno para a região mais central, na rua do Riachuelo e, depois, na rua do Lavradio, numa “caverna”, antes de poder retornar à Marquês de Abrantes, instalando-se na “Pensão Inglesa”, residência de “nababo, soalho encerado, tapete, cortinas, móveis de estilo”, como definiu Neiva (Coelho Netto, 1929, pp. 305-306).

As relações de reconhecimento e interconhecimento têm um peso central no conjunto das chances de acesso aos lugares disponíveis. O percurso de Anselmo n’ A conquista indica o trajeto específico a partir do qual se constituíam os companheiros “da caravana”, aos quais o livro é dedicado. No trançar dessas relações, o jogo das apresentações é primordial: Ruy Vaz apresenta Neiva, introduzindo-o na “sucursal do Parnaso”, na qual conhece “Victorino Motta, o bem-aventurado”, o “Duarte, rapazinho magro, pálido, com ricto que lhe dava à fisionomia uma expressão hilariante”, e “o Lins [Miguel Arcanjo Lins de Albuquerque], baixinho, muito moreno, olhos apertados e oblíquos”. Neiva apresenta “Fortúnio [Guimarães Passos], poeta lírico em disponibilidade”; o “Freitas, um satírico baiano”, apresenta Octávio Bivar, e através de “Lins, Neiva, Ruy Vaz [e] o Duarte” conhecem Luiz Moraes [Luiz Murat], “o grande poeta republicano”, o qual, em outra ocasião, apresentará a Anselmo, Artur [Azevedo], “um grande poeta, natural, correto, suave e brilhante”.

Ao passo que a maioria dos personagens é representativa dos diferentes trajetos intelectuais que marcam os dois decênios finais do século XIX, Victorino Motta representa, estereotipicamente, uma posição específica no polo econômico do campo do poder. “Nédio e rubro, com um ventre quase esférico”, o “carne seca”, como o denomina Neiva, “tressua ádipe e saúde”, pois tem todos os “regalos: come como uma traça, bebe como um abismo, dorme como a Justiça e gasta como o diabo que o carregue!”. Os louros da glória não são suficientes; segundo Neiva, é necessário ser um “leão”, “ir ao comércio […], se quer ter consideração neste país”. Insistindo, reforça que o investimento não deve ser na escola, pois “a carta do ABC é subversiva”, e recomenda a Anselmo fiar-se no exemplo do Motta: “assina de cruz e tem mais de trezentas apólices, não sei quantos prédios, dois armazéns, três comendas, mais de vinte amantes” (Coelho Netto, [1899] 1985, pp. 19-20). Ao caracterizar a posição representada por Victorino Motta, Neiva expõe o sistema de signos que plasmam o polo do poder econômico: acúmulo significativo de bens materiais em contraposição ao cultivo do espírito.

Uma vida intelectual entre dois mundos: a literatura e a política

As duas primeiras décadas do século foram, por excelência, o período do apogeu de Coelho Neto.

Broca (1975BROCA, Brito. (1975), A vida literária no Brasil – 1900. Rio de Janeiro, José Olympio. , p. 26).

Ao participar do quadro “os triunfadores” do jornal A Noite , em 15 de julho de 1925, Henrique Coelho Netto, o “doido do Polytheama”, atribui ao fato de ser quem é ao seu casamento com Maria Gabriella Brandão, a D. Gaby. O efeito de inflexão da trajetória ocasionado pelo casamento é caracterizado por ele como uma espécie de compromisso moral: a promessa feita, em “uma tarde de abril”, a Alberto Olímpio Brandão e a sua filha (Coelho Netto, 1925, p. 1). A responsabilidade assumida é, em diversas situações, a justificativa acionada para a devoção ao trabalho intelectual e a decorrente produtividade, a qual representa a submissão ao polo mais comercial e voltado ao atendimento às demandas externas. “Trabalhador insigne, o mais disciplinado e pontual dos trabalhadores da pena”, ele produziu, segundo calcula seu biógrafo, o equivalente a “pouco menos de quinze composições mensais” com cerca de cinquenta crônicas cada, “durante 45 anos de trabalho” (Coelho Netto, 1942, pp. 37-39).

Com uma rotina metódica, “normalmente [levantava-se] às cinco da manhã, [sentava-se] para escrever às seis, [e trabalhava] até as doze […], às três da tarde [recomeçava] para só terminar quando se [acendiam] na cidade as primeiras luzes (João do Rio, 1907, p. 18). Cumpridor rigoroso de seus compromissos e prazos, “tudo em Coelho Netto […] denotava uma ordem, um cuidado, uma meticulosidade excepcional” (Coelho Netto, 1942, p. 34). O modo encontrado por Coelho Netto para encarar esse “processo de trabalho constante” foi “disciplinar o vocabulário” e, com isso, a partir de “uma certa impressão”, de “concluída uma ideia”, poder sentar-se e escrever. Subordinando, assim, “o estilo à concepção, a pena trabalha quase mecanicamente” (Coelho Netto, 1908, p. 19). No discurso coelhonetiano, a forte disciplina e a produção constante são opostas aos que têm a “preguiça física que inibe de escrever”, e aos críticos que confundem “mercenarismo” com a “realização imediata de uma ideia acabada”. Em suma, faz o que deveria fazer, o que sua atividade lhe impõe (Coelho Netto, 1942, p. 31). Associando o trabalho à capacidade de disciplinar o corpo e o vocabulário, mas também à necessidade de prover a família de “relativo conforto” e “rodear os filhos de bem-estar” (Coelho Netto, 1908, p. 20), Coelho Netto vinculava a atividade literária às lógicas e dinâmicas específicas do mercado e aos crivos do público. Aceitava ajustar romances e produzir textos de acordo com a vontade do redator para “entrar em casa feliz levando um corte de vestido, um chapéu gracioso, uma joia modesta” (Coelho Netto, 1925, p. 2).

Não conheces a história do Rajá? Eu entrava na Gazeta precisando de dinheiro e encontrei o Araújo zangado. Por quê? Tinham perdido um novo e sensacional folhetim. Não se incomode, doutor, faço-o eu. Qual! Tens muitas psicologias… Faço sem psicologias! Fomos dali tomar um sorvete. Então fazes? O príncipe encantado serve? Também é um título velho. O rajá seja, o Rajá de Pendjab. Para depois de amanhã? Para depois (Coelho Netto, 1908, p. 19).

A concepção do trabalho intelectual de Coelho Netto pode ser contraposta àquela representada, n’ A Conquista , por Ruy Vaz (Aluísio de Azevedo). Quando o diretor do teatro sugere que deve “arranjar umas coplas e um jogo para a comédia”, o autor se nega a “ceder uma linha”, indicando que a peça “há de ir como” foi escrita, “sem enxertos”. Justificando a demanda de modificação, o diretor afirma que “o publico não aceita uma peça serena”, e Ruy Vaz pontua: “mas que tenho eu com o público?”. Mesmo que a “peça caia”, como sugere o Duarte, não aceita “fazer concessões vergonhosas simplesmente porque” o público, “saturado de vícios, entende que teatro deve ser como um templo devasso”. Prefere que a “peça caia”, a ceder (Coelho Netto, [1899] 1985, p. 22). As bases que respaldam as diferentes experiências e que impingem uma feição específica ao trabalho intelectual se assentam, assim, nos modos diferenciais de relação com as instâncias de produção e difusão de bens simbólicos. Coelho Netto, assumindo que o jornalismo era “um grande bem” para a literatura, considera, contudo, que isso implica um trabalho intelectual realizado não em função do “gênio do autor, mas sempre de acordo com o agrado do público” (Coelho Netto, 1908, p. 21). O acordo entre “escritor” e “jornal” é, assim, responsável pela decadência da “arte” e pelo estado de inércia do povo. O modo para sair deste círculo vicioso seria a “proteção oficial”, só assim o “público admirará a arte no teatro e no romance” ( Idem , p. 20).

Ao mesmo tempo que o casamento impele um compromisso moral e, assim, passa a funcionar como princípio de justificação das escolhas e investimentos em termos de trabalho intelectual, representa uma transformação no leque de oportunidades de carreira. Filha de Alberto Olympio Brandão, “notável educador e político de grande prestígio”, membro de uma família de políticos e proprietários, o “acto civil” teve como testemunhas o presidente da república, marechal Deodoro da Fonseca, o general João Severiano da Fonseca, irmão do presidente, Francisco Portela, então governador do Rio de Janeiro, e José do Patrocínio. Na cerimônia, “celebrada na matriz da Glória”, foram padrinhos: da noiva, Francisco Portela e sua esposa, Isabela Portela; e do noivo, João Severiano da Fonseca ( O Paiz , 1890, p. 1). A inserção de Alberto Brandão no meio político, econômico e cultural do Rio de Janeiro se expressa pela capilaridade das atividades de sua família. Filho de Modesto Olympio Brandão, e sobrinho de Antônio Torquato Leite Brandão e de Joaquim Eduardo Leite Brandão, Alberto Olympio Brandão pertencia a uma estirpe de proprietários rurais e lavradores de café instalados na região de Vassouras (RJ), com forte poder econômico, político, judicial e policial na região (Vasconcelos & Vasconcelos, 1918, p. 578). Antônio Torquato Leite Brandão, além de vereador, delegado e polícia e substituto do juiz municipal de Vassouras, foi secretário da Sociedade Promotora da Civilização e da Indústria de Vassouras, associação que reunia os “lavradores da região”; Joaquim Eduardo Leite Brandão, proprietário da fazenda Retiro, também foi vereador. Além dos múltiplos braços da família em diversas esferas da vida social, atuavam como “capitalistas” na região, notadamente através do fornecimento de empréstimos a lavradores e comerciantes ( Ribas, 1989, pRIBAS, Rogério de Oliveira. (1989), Tropeirismo e escravidão: um estudo das tropas de café da região de Vassouras, 1840-1888. Curitiba, dissertação de mestrado, Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Paraná. , p. 139).

O pai de D. Gaby pertencia ao Partido Liberal durante o Império, e foi deputado provincial à Assembleia do Rio de Janeiro entre 1874 e 1881 e, em 1878, fundou o Colégio Brandão em Vassouras. Na ocasião do casamento de sua filha com Henrique Coelho Netto, era diretor da Fazenda do Estado do Rio de Janeiro e integrou a primeira legislatura do Rio de Janeiro à câmara federal após a instauração do regime republicano. Após o término de sua legislatura, fundou uma filial de seu colégio em Niterói e mudou-se para Franca (SP), onde faleceu em 1897. Após o casamento, Coelho Netto é convidado para secretário do governo do Estado do Rio de Janeiro e, em seguida, passa a Diretor dos Negócios do Estado, da Justiça e Legislação. Bem posicionado, aciona os trunfos que lhe são disponíveis e atua como mediador aos mais íntimos, reunindo “os boêmios da propaganda que vagavam sem vintém às mesas do Café Globo e da Maison Moderne ”, e levando-os “para a repartição, transformada em arcádia” ( Fontoura, 1937FONTOURA, João Neves. (13 jun. 1937), “O novo imortal da Academia Brasileira de Letras”. Correio Paulistano . São Paulo, pp. 8-10. Disponível em http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=090972_08&pagfis=18820&url=http://memoria.bn.br/docreader#, consultado em 10/3/2020.
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, p. 9). Como descrito em Fogo fátuo , Pardal, Bivar e Ruy Vaz ingressaram no “funcionalismo” como arquivista, oficial da fazenda e oficial-maior na Secretaria dos Negócios da Fazenda, respectivamente (Coelho Netto, 1929, p. 327).

Com a ascensão de Floriano Peixoto e o início do estado de sítio, em 1892, deixaram as posições no estado. Coelho Netto reconverte seus investimentos para os postos disponíveis e mais ligados ao trabalho intelectual, sendo “designado”, em 1892, lente de História das Artes na Escola Nacional de Belas Artes e, em 1893, redator dos debates do Senado. Ao mesmo tempo que ocupava postos no estado, Coelho Netto e D. Gaby animavam um “salão de arte” à rua Silveira Martins, “um dos mais famosos do Rio”, lugar onde “Afonso Arinos leu seus primeiros contos regionalistas” (Coelho Netto, 1942, p. 28). O salão funcionou até aproximadamente 1901, período em que são publicados, entre outros, os romances A Capital Federal e A conquista , e em que Coelho Netto participa ativamente da fundação da Academia Brasileira de Letras, em 1897. No ano de 1899, após ser designado secretário da Comissão do 4º Centenário da Descoberta do Brasil, excursiona pelos estados do norte do país. Finda a atividade de “paladino da cultura”, “adoeceu gravemente”, ficando “impossibilitado de escrever”, tencionando “vender, em leilão, não só seus móveis, livros e cristais, mas também uma coleção completa de armas e artefatos de nossos selvícolas”. Assim, em 1901, “premido pela necessidade, viaja para Campinas, onde presta concurso para lente de literatura do ginásio local” (Coelho Netto, 1957, p. 19). De volta ao Rio de Janeiro, em 1905, passa a morar na rua do Rozo e, em 1907, é nomeado lente interino do Externato Pedro II, sendo efetivado sem concurso em 1909. É nesse endereço que funcionará o “famoso salão de Coelho Netto”, local no qual predominava a “literatura e a cordialidade” ( Broca, 1975BROCA, Brito. (1975), A vida literária no Brasil – 1900. Rio de Janeiro, José Olympio. , p. 26). Os “saraus e tertúlias” que ali se realizavam eram oportunidades ímpares para a celebração de relações entre pares, para encontros ocasionais, para conversas informais, para o jogo das apresentações, ou talvez, simplesmente, para saber-se lá.

A fama dos saraus e tertúlias que ali se realizavam atravessou fronteiras e projetou-se no Uruguai, Argentina, Chile, Portugal, França, Itália, Alemanha. Celebridades internacionais, de passagem pelo Rio, iam conhecer Coelho Netto e se faziam ouvir não só entre políticos, sábios, juristas, artistas e escritores consagrados, mas também entre jovens intelectuais que começavam a trilhar o caminho da glória. Vejo alguns já muito distantes em minha memória visual, outros bem nítidos: Euclides da Cunha, Machado de Assis, Hermes da Fonseca, Rio Branco, Ruy Barbosa, Paulo de Frontin, Bento Ribeiro, Souza Aguiar, Rivadávia Corrêa, Pandiá Calógeras, João Luiz Alves, Domício Gama, Carlos de Laet, Enrico Ferri, Paul Fort, João de Barros, Júlio Dantas, Dantas Barreto, Lauro Muller, Félix Pacheco, Gregório da Fonseca, Sílvio Romero, Alexandrino de Alencar, Miguel Couto, Pedro Lessa, Aurelino Leal, Osório Duque Estrada, Veiga Miranda, Santos Dumont, Viveiros de Castros, Coelho Lisboa, João Ribeiro, Medeiros de Albuquerque, Ramiz Galvão, Pinheiro Machado, Freitas Vale, Afonso Arinos, João do Rio, Irineu Marinho, Anibal Teófilo, Goulart de Andrade, Luís Murat, Olavo Bilac, Martins Fontes, Alberto de Oliveira, Henrique Oswaldo, Leopoldo Miguez, Alberto Nepomuceno, Francisco Braga, Rodolfo Amoedo, Batista da Costa, Antonio Parreiras, Julião Machado, Carlos Malheiros Dias, Oliveira Viana, os irmãos Bernardeli, Alcides Maia, Oscar Lopes, Roberto Gomes, Augusto de Lima, J. J. Seabra, Amadeu Amaral, Carlos Chagas, Justo de Moraes, Fernando de Magalhães, Afrânio Peixoto, Edmundo Bittencourt, Lindolfo Collor, Saul de Gusmão, Luís Carlos, João Luso, Felipe d’Oliveira, Monteiro Lobato, Candido de Campos, Heitor Lima, Leal de Souza, Antônio Austregésilo, Pontes de Mirante, Rondon, Gustavo Barroso, Olegário Mariano, Viriato Corrêa, Mucio Leão, Alvaro Moreyra, Carlos Maul, Adelmar Tavares, Paulo Filho, Povina Cavalcanti, Menotti del Picchia, Guilherme de Almeida, Mario Pollo, Cásper Líbero, Paulo de Magalhães, Astério de Campos, Pascoal Carlos Magno, e grandes inteligências femininas: Angela Vargas, Guiomar Novaes, Rosalina Coelho Lisboa, Ana Amélia de Queiroz Carneiro de Mendonça, Antonieta Rudge Muller, Leonor Pousada, Francisca de Basto Cordeiro, Laurita Lacerda Dias, Lúcia Magalhães e Bidú Sayão (Coelho Netto, 1957, pp. 26-27).

O funcionamento do salão à rua do Rozo é acompanhado pelos anos de “bonança”, especialmente caracterizados pela chegada de Coelho Netto ao cargo de deputado federal pelo Maranhão, em 1909, e por sua nomeação para diretor e titular da cadeira de Teatro e Literatura Dramática da Escola Dramática Municipal. Em 1917, porém, os arranjos da política maranhense, chefiada por Urbano dos Santos, acabam por excluir seu nome da chapa de representantes, “pois nunca foi parlamentar servil, submisso” (Coelho Netto, 1957, p. 22). Nesse período, Coelho Netto já era membro do diretório da Liga de Defesa Nacional, de cuja fundação participou, ocupando o cargo de secretário-geral entre 1919 e 1922, em substituição a Olavo Bilac. O conjunto dos investimentos sociais e literários serão, ainda, celebrados pelo título de “Príncipe dos Prosadores Brasileiros”, conferido pela revista Malho em 1928, e pela indicação do nome de Coelho Netto, pela Academia Brasileira de Letras, da qual ele fora presidente em 1926, para representante do Brasil ao Nobel de literatura, em 1932.

O trabalho de acumulação e de gestão de relações é central na apreensão da multiplicidade de investimentos que caracterizam o trajeto do autor, sendo a “condição da reprodução do capital social e de acumulação dos lucros que lhe estão associados” ( Saint Martin, 2020SAINT MARTIN, Monique. (2020), “Uma grande família”. Repocs – Revista Pós Ciências Sociais , 17 (33): 37-68. , p. 67). Nutrindo “verdadeiro culto pelas amizades”, aos críticos e comentadores que não lhe fazem “justiça”, ou seja, que rompem o compromisso moral de reconhecimento e de construção de sua imagem pública, é atribuída a alcunha de “ingratos” (Coelho Netto, 1942, p. 67; Coelho Netto, 1957, pp. 22-25). As relações de amizade celebradas em sua biografia são indicativas do trânsito que Coelho Netto dispunha entre as diversas esferas da vida social, notadamente entre a política e a literatura. “Acolhido na amizade do marechal Deodoro da Fonseca”, sempre foi recebido “na intimidade de sua família” (Coelho Netto, 1942, p. 101). As relações tecidas com Deodoro da Fonseca e João Severiano da Fonseca são ilustrativas da “grande consideração” e do “vasto círculo de amizades” que Coelho Netto dispunha “entre as altas patentes [das] classes armadas”, cujas afinidades se expressam em seu apego à disciplina e à ordem, “ardoroso propagandista […] dos esportes [e] do serviço militar ( Idem , p. 155). O meio do caminho entre a política e a cultura é representado pelo barão do Rio Branco, companheiro da Academia Brasileira de Letras, o qual “queria muito bem a Coelho Netto e tudo fez para que ingressasse na diplomacia”. “Uma vez ou outra”, ia a sua casa para uma xícara de café, “que ele e Pinheiro Machado gabavam ser o mais saboroso da terra” ( Idem , p. 115). O último, representante por excelência do polo político, “foi grande amigo de Coelho Netto” e o visitava com frequência para “um dedo de prosa e um café” ( Idem , p. 119).

Considerações finais

As experiências familiares, escolares e culturais que marcam o trajeto de Henrique Maximiano Coelho Netto flagram o princípio subjacente a suas estratégias intelectuais e de carreira: a modulação do trabalho intelectual a partir dos registros que expressam a conformidade com a ordem social e cultural estabelecidas. Os marcadores sociais da posição de escritor que acompanham o diagnóstico da mãe – vagando com fome, esmolando a troco de canções (Coelho Netto, 1929, p. 177) – se expressam como o completo oposto das expectativas familiares de um futuro seguro, de um “bom caminho” escorado em títulos escolares e em uma atividade reconhecida. A ânsia pela segurança, própria às frações de classe para as quais o destino se apresenta como urgência, se manifesta na severidade do pai e nas promessas carinhosas da mãe.

A falência econômica e moral do pai e seu posterior desaparecimento representam a morte de sua posição e das posições homólogas, mas as disposições do modelo masculino, representadas pela “força”, “virilidade”, “capacidade física para o trabalho”, fluência do discurso e do improviso, “coragem pessoal e determinada disposição para a “violência”, permanecem (Coelho Netto, 1942, pp. 59-63). Assim, a liberdade tomada em relação ao futuro, após o desaparecimento das constrições morais representadas pelo pai, o gosto pelos “clássicos” adquirido com o “tio Resende” e as experiências decorrentes do percurso escolar em instituições de “boa companhia” abrem o flanco para a conversão de recursos em direção às carreiras abertas pela expansão das atividades intelectuais, o que exige uma “reconversão” e do “trabalho [e] do tempo” necessários à inscrição, acumulação e gestão de patrimônios variados ( Bourdieu, 2016BOURDIEU, Pierre. (2016), Sociologie générale, volume 2. Paris, Raisons d’Agir/Seuil. , p. 214).

Dessa forma, a relação diferencial que Coelho Netto estabelece com as oportunidades de carreira intelectual impinge uma modalidade específica às concepções de trabalho que põem em movimento um conjunto de práticas e justificativas que colocam no centro da criação o automatismo das manipulações do vocabulário. A multiplicidade de atividades assumidas antes do acesso às sinecuras burocráticas, especialmente vinculadas aos cargos nas redações, é sistematicamente ampliada pelo trabalho social de acumulação, primeiramente marcado pela recepção à “távola redonda”, e, posteriormente, pelo casamento para cima. Henrique Coelho Netto finca, então, o pé em uma variedade de frentes, reunindo, em graus diversos, a consagração advinda da atividade de polígrafo, e do capital de relações sociais decorrente de contatos bem posicionados tanto no polo cultural quanto no político. As práticas e disposições que caracterizam sua carreira moldam a figura do “ditador” edificada por Lima Barreto: possuindo em “cada jornal de importância um embaixador”, sendo “conselheiro dos editores”, e dispondo de “um bando” na Academia, institui o princípio da acomodação e da “mobilidade de pensamento” como “critérios literários”, cuja variação decorre, portanto, da amizade e da frequência “às suas salas” (Barreto, [1918] 2017, pp. 123-124). A submissão à ordem na qual pretende se integrar e as exigências tácitas para manter-se integrado desenham as feições de seu trabalho intelectual, as quais envolvem simultaneamente uma multiplicidade de sistemas de referência e variam em função dos confrontos e conjunturas, sem que isso, no entanto, signifique a inexistência de “uma matriz geral básica” ( Coradini, 2003CORADINI, Odaci Luiz. (2003), “As missões da “cultura” e da “política’: confrontos e reconversões de elites culturais e políticas no Rio Grande do Sul (1920-1960)”. Estudos Históricos , Rio de Janeiro, 32: 125-144. , p. 13).

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  • 1
    . Agradeço a leitura e as sugestões de Sergio Miceli.
  • 2
    . O exame de habilitação para solicitadores versava sobre a prática do processo e deveria ser prestado perante os juízes de direito (Decreto n. 5.618, de 2 de maio de 1874).
  • 3
    . Confira-se: A Nação , Sábado, 28 de dezembro de 1872, p. 2; e também o Dicionário da elite política republicana (Abreu, CPDOC) e as dissertações de Carvalho (2012)CARVALHO, Claunísio Amorin. (2012), O insigne pavilhão: nação e nacionalismo na obra do escritor Coelho Netto . São Luís, dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Maranhão. e Lopes (1997)LOPES, Marcos Aparecido. (1997), No purgatório da crítica: Coelho Neto e o seu lugar na história da literatura . Campinas, dissertação de mestrado, Departamento de Teoria Literária do Instituto de Estudos da Linguagem na Universidade Estadual de Campinas. .
  • 4
    . A consulta ao Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro permite identificar a Escola João Rodrigues da Fonseca Brandão, funcionando à rua do Hospício entre os anos de 1870 e 1872.
  • 5
    . Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro , 1885, p. 1222.
  • 6
    . Gazeta de Notícias , 26 de maio de 1884, p. 4.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    11 Abr 2020
  • Aceito
    16 Abr 2020
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