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Planejamento urbano, turismo e segregação socioespacial: o caso da curva do Lacet em Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil

Urban Planning, Tourism and Socio-Spatial Segregation: the case of Curva do Lacet, Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil

Planeamiento Urbano, Turismo y Segregación Socioespacial: el caso de Curva do Lacet, Juiz de Fora, Minas Gerais, Brasil

Resumo:

O objetivo do presente trabalho visou compreender o papel do turismo no processo de requalificação urbana da Curva do Lacet, em Juiz de Fora, Minas Gerais. Historicamente, esse local foi apropriado por populações de baixa renda dos bairros Dom Bosco e Teixeiras como espaço representativo de encontro e de lazer. A partir de 2006, com o início do processo de implantação de um shopping center, um edifício comercial e um hotel de alto padrão, a Curva do Lacet foi alvo de ações de requalificação, com fins estéticos, que acarretaram na supressão de um campo de futebol e um playground tradicionalmente utilizados por moradores locais. Os procedimentos metodológicos envolveram revisão bibliográfica, levantamento documental e entrevistas semiestruturadas com agentes (re)produtores desse recorte espacial. Em geral, os resultados indicam que a Curva do Lacet passou a constituir um imenso vazio urbano, uma área gramada e sem qualquer função social, o que impede que seus frequentadores históricos se (re)apropriem ou (re)estabeleçam aí algum vínculo de pertencimento. Os usos turísticos, embora tenham se intensificado consideravelmente na localidade em virtude da implantação de um shopping center de abrangência regional, acabaram contribuindo para o acirramento do processo de segregação socioespacial então percebido na Curva do Lacet.

Palavras-chave:
Requalificação Urbana; Segregação Socioespacial; Turismo; Juiz de Fora/MG

Abstract:

The objective of this article was to understand the influence of the tourism in the process of Curva do Lacet urban requalification, sited in Juiz de Fora, state of Minas Gerais. Historically, this place has been appropriated by low-income from the neighborhoods Dom Bosco and Teixeiras, as a representative space of meeting and leisure. As of 2006, with the beginning of the implantation process of a shopping center, a commercial building and a high standard hotel, the Curva do Lacet was the target of requalification actions, with aesthetic purposes, which led to the suppression of a soccer field and a playground traditionally used by the residents. The methodological procedures involved bibliographical review, documentary survey and semi-structured interviews with the (re)producing agents of this portion of space. In general, the results indicate that the Curva do Lacet has become an immense urban void, a grassy area with no social function, which prevents its historical frequenters from (re)appropriating or (re)establishing some bond of belonging. The touristic uses, in turn, had their activities intensified in the context of the regional scope shopping center implantation, ended up contributing to the process of urban and social segregation then perceived in the Curva do Lacet.

Keywords:
Urban Requalification; Socio-spatial Segregation; Tourism, Juiz de Fora/MG

Resumén:

El objetivo del presente trabajo fue comprender el papel del turismo en el proceso de recalificación urbana de la Curva del Lacet, en Juiz de Fora, Minas Gerais. Históricamente, ese local fue apropiado por poblaciones de bajos ingresos de los barrios Dom Bosco y Teixeiras, en cuanto espacio representativo de encuentro y de ocio. A partir de 2006, con el inicio del proceso de implantación de un centro comercial, un edificio comercial y un hotel de alto nivel, la Curva del Lacet fue objeto de acciones de recalificación, con fines estéticos, que acarrearon en la supresión de un campo de fútbol y un patio tradicionalmente utilizados por los residentes locales. Los procedimientos metodológicos involucraron revisión bibliográfica, levantamiento documental y entrevistas semiestructuradas con agentes (re) productores de ese recorte espacial. En general, los resultados indican que la Curva del Lacet pasó a constituir un inmenso vacío urbano, sin ninguna función social, lo que impide que sus frecuentadores históricos si (re) apropien o (re) establezcan allí algún vínculo de pertenencia. Los usos turísticos, aunque se intensificaron considerablemente en la localidad en virtud de la implantación de un centro comercial de alcance regional, acabaron contribuyendo al acentuar el proceso de segregación socioespacial entonces percibido en la Curva del Lacet.

Palabras-clave:
Recalificación Urbana; Segregación Socioespacial; Turismo, Juiz de Fora/MG

INTRODUÇÃO

A partir do século XIX, com a intensificação do processo de industrialização e o avanço do capitalismo, as cidades passaram a constituir espaço de realização da produção, da acumulação e do excedente, consolidando-se enquanto lócus do projeto modernizador, cada vez mais subordinadas à lógica do Capital. Em meio à cidade, uma gama de territórios e territorialidades se instauram, conformando um espaço urbano permeado por trocas econômicas, políticas, culturais, sociais, entre outras. Evidentemente que, ao se considerar essa diversidade de exercícios de territorialidade e respectivos interesses associados, o espaço urbano passa a constituir palco de inúmeros conflitos associados à perda de direitos, baixa qualidade de vida, desigualdades sociais e áreas urbanas completamente díspares (Lefebvre, 2006Lefebvre, Henri. (2006). A produção do espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (do original: La production de l’espace. 4e éd. Paris: Éditions Anthropos, 2000). Disponível em: http://www.mom.arq.ufmg.br/mom/arq_interface/1a_aula/A_producao_do_espaco.pdf.
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).

Paulatinamente, as dinâmicas espaciais começam a ser apropriadas por uma lógica mercadológica e o uso do solo passa a ganhar destaque como uma mercadoria valiosa, abrindo espaço para especulações imobiliárias contundentes. Ganha destaque nesse contexto, o acirramento dos processos de tentativa de dominação e exploração dos mais variados espaços, territórios e lugares, conduzidos, em geral, por agentes hegemônicos, detentores de poder, principalmente o poder público e a iniciativa privada. O poder público, nesse caso, assume o papel estratégico de conduzir os processos de gestão e planejamento territorial das cidades de forma participativa e integrada, mediando os interesses e a correlação de forças conformadoras do espaço urbano. O desafio reside, justamente, na consolidação de um planejamento urbano capaz de promover o “crescimento ordenado, a fim de aumentar os benefícios sociais, econômicos e ambientais do processo de desenvolvimento” (Murphy, 1985 apud Hall, 2004Hall, Colin. (2004). Planejamento Turístico: política, processos e relacionamentos. 2 ed. São Paulo: Contexto ., p. 29).

No âmbito desse debate, o turismo, enquanto fenômeno complexo, abarca tanto questões de ordem social e simbólica, como também àquelas de ordem econômica e ambiental, com rebatimentos diretos na conformação dos espaços urbanos e em sua dinâmica social, seja de forma direta ou indireta. Comumente, o desenvolvimento do turismo em cidades acaba influenciando os meios, processos e espaços urbanos, constituindo-se em um elemento complexo e contraditório, ao ser responsável por gerar benefícios diversos e, ao mesmo tempo, também acirrar processos de segregação e exclusão socioespacial nas cidades.

Diante dessa problemática, o objetivo do presente trabalho foi compreender o papel do turismo no processo de requalificação urbana ocorrido na Curva do Lacet, em Juiz de Fora, Minas Gerais. Pretende-se também reconhecer os motivos e interesses que justificaram o processo de requalificação urbana e melhor compreender as repercussões materiais e imateriais para seus usuários e comunidade do Bairro Dom Bosco. A Curva do Lacet está localizada na porção oeste da cidade de Juiz de Fora (mais especificamente no bairro Dom Bosco - entroncamento entre a Avenida Independência e a Avenida Dr. Paulo Japiassu Coelho), tangenciada por uma série de empreendimentos imobiliários, tais como hospitais, shopping, hotel, prédios de classe média alta e circunscrito em uma das maiores regiões de especulação imobiliária da cidade e, por isso, repleta de interesses diversos e divergentes. Esse local era tradicionalmente apropriado por moradores do bairro Dom Bosco (e, também, por moradores de bairros como Cacatinha, Teixeiras, Dom Orione), possuindo um campo de futebol e playground (ver figura 01, a seguir). O campo de várzea, além de atender às comunidades durante a semana, reunia também pessoas de cidades vizinhas para participação de campeonatos aos finais de semana. O parquinho, ainda que precário, ficava ao lado do campo e atendia às crianças dos bairros vizinhos, principalmente do Dom Bosco. Havia também uma maior arborização na localidade, facilitando espaços com sombras para que o público assistisse aos jogos. Esse espaço urbano, única área de lazer existente, propiciava a manutenção da cultura e tradição citadinas, dando suporte ao lazer de crianças, jovens e adultos, direito previsto pela Constituição Federal de 1988.

Com o início da construção em 2006/2007 do empreendimento shopping Independência, o espaço onde o campo estava localizado (em frente ao empreendimento) sofreu uma série de imposições, abrangendo ações de requalificação, com fins estéticos e de embelezamento. Com esse processo de requalificação, a Curva do Lacet foi transformada em um grande vazio urbano gramado, cumprindo funções meramente de passagem de pedestres, conforme figura 02, a seguir.

Figura 1:
Curva do Lacet antes da construção do shopping (sem data)

Fonte:http://mapio.net/pic/p-54242911/

Figura 2:
Curva do Lacet após a construção do shopping (2016)

Inicialmente, será apresentada uma reflexão teórica sobre a relação e o papel do turismo na conformação do espaço urbano contemporâneo e nos esforços de planejamento das cidades, com atenção especial para os conflitos aí incidentes e os processos de segregação socioespacial associados. Após o delineamento dos procedimentos metodológicos norteadores dessa investigação, será detalhado e debatido o processo de requalificação urbana ocorrido na Curva do Lacet, procurando-se apresentar os principais interesses e usos aí sobrepostos, bem como as repercussões nos exercícios de territorialidades das comunidades diretamente envolvidas.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

O turismo na conformação do espaço urbano contemporâneo

O turismo se consolida como um fenômeno social moderno e ganha notório crescimento a partir do fim da Segunda Guerra Mundial, passando a ser um importante vetor de transformações sociais, econômicas, culturais e políticas (Henrique, 2012Henrique, Carlos (2012). O Turismo e a Produção do Espaço: Perfil Geográfico de uma Prática Socioespacial. Geografia Ensino & Pesquisa, vol. 16, n. 2, pp. 47-61, maio/ ago.). Como consequência, adquiriu também, visibilidade crescente nas discussões e reflexões acadêmicas nas últimas décadas, cunhadas por diferentes disciplinas, como a geografia, sociologia, comunicação, administração, história, entre outros. Ao mesmo tempo, o fenômeno turístico assume centralidade nas agendas contemporâneas nos âmbitos empresarial e governamental mesmo que, em alguns casos, ainda carente de uma análise mais crítica em relação à sua natureza e complexidade, priorizando-se ainda questões de cunho essencialmente econômico (Brasileiro et al, 2012Brasileiro, Maria; Medina, Júlio César C.; Coriolano,. Luzia (Org.).. (2012). Turismo, cultura e desenvolvimento. Campina Grande: EDUEPB. ). De acordo com Coriolano e Silva (2005Coriolano, Luzia; Silvia, Sylvio. (2005). Turismo e Geografia: Abordagens críticas. Fortaleza: Ed. UECE.), diante dessa complexidade, o estudo do turismo demanda diferentes abordagens, sendo necessário contemplar a dimensão espacial nos esforços de compreensão desse fenômeno, bem como de suas implicações diversas.

O espaço, segundo Santos (2006Santos, Milton. (2006). A Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção / 4. ed. 2. reimpr. - São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo., p. 50), “é formado por um conjunto indissociável, solidário e também contraditório, de sistemas de objetos e sistemas de ações, não considerados isoladamente, mas como o quadro único no qual a história se dá”. Já para Lefebvre (2006Lefebvre, Henri. (2006). A produção do espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (do original: La production de l’espace. 4e éd. Paris: Éditions Anthropos, 2000). Disponível em: http://www.mom.arq.ufmg.br/mom/arq_interface/1a_aula/A_producao_do_espaco.pdf.
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), a produção do espaço se dá através da própria reprodução da vida, uma vez que viver, é em suma, produzir o espaço. Lefebvre ainda aponta que

o conceito de espaço reúne o mental e o cultural, o social e o histórico. Reconstituindo um processo complexo: descoberta (de espaços novos, desconhecidos, continentes ou o cosmos) - produção (da organização espacial própria a cada sociedade) - criação (de obras: a paisagem, a cidade como a monumentalidade e o décor). Isso evolutivamente, geneticamente (com uma gênese), mas segundo uma lógica: a forma geral da simultaneidade; pois todo dispositivo espacial repousa sobre a justaposição na inteligência e na junção material de elementos dos quais se produz a simultaneidade (Lefebvre, 2006Lefebvre, Henri. (2006). A produção do espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (do original: La production de l’espace. 4e éd. Paris: Éditions Anthropos, 2000). Disponível em: http://www.mom.arq.ufmg.br/mom/arq_interface/1a_aula/A_producao_do_espaco.pdf.
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, p. 6)

Na direção deste pensamento, pode-se afirmar que o fenômeno turístico representa um elemento de grande centralidade na (re)produção do espaço urbano contemporâneo, uma vez que, aliado às demandas capitalistas, impõe novos usos, cria tendências e ocupa porções espaciais que, em muitos casos, já eram historicamente apropriadas por populações locais, com processos de uso e valores diferentes e, mesmo, contraditórios àqueles apregoados pelo mercado turístico. Dessa forma, esse processo se faz complexo e conflituoso, de maneira que a inserção do fenômeno turístico e seu entendimento requerem o “desvendamento de sua natureza, de sua complexidade e de seus conflitos” (Cruz, 2007Cruz, Rita. (2007). Geografia do Turismo: de lugares a pseudo-lugares. São Paulo: Roca., p. 11). Isso exige, por exemplo, reconhecer os múltiplos interesses e agentes conformadores do processo de (re)produção do espaço urbano e turístico contemporâneos. Estado e mercado são, nesse contexto, atores hegemônicos nesse processo, mesmo que se considere a participação crescente de comunidades e movimentos da sociedade civil. Apesar da centralidade do Estado nas ações de ordenamento territorial, responsável pela regulamentação e disciplinarização dos usos pretendidos, por exemplo, não raro se presencia modelos de desenvolvimento estritamente vinculados à lógica de mercado, com valorização de aspectos econômicos do fenômeno turístico, distantes ou “descolados” das realidades socioespaciais nas quais se instalam, acarretando processos de segregação e mesmo exclusão social, com repercussões diversas para as sociedades. Ainda segundo Cruz (Idem) mesmo que esses atores hegemônicos se instaurem no espaço com interesses diversos, a ausência ou ineficiência do Estado e a voracidade conquistadora de agentes de mercado, obrigam sociedades a reagirem na luta cotidiana pela sobrevivência, seja em forma de associações, de ONGs e demais estratégias de articulação social.

Cumpre mencionar ainda o papel desempenhado pelo turista e pelas populações residentes em localidades que vivenciam processos de turistificação. Os primeiros atuam diretamente na conformação da (re)produção do espaço, seja por meio da invenção de lugares turísticos, seja pela imposição de novas dinâmicas de apropriação dos lugares, com implicações nas configurações espaciais. Já as populações locais, além de conviverem diretamente com essas transformações espaciais acarretadas pelo desenvolvimento do turismo, vivenciam também mudanças de caráter sociocultural, quando seus hábitos e modos de vida passam a ser influenciados pelo intercâmbio cultural decorrente do contato e acolhimento dos visitantes forasteiros.

No tocante, interpretar o processo de (re)produção do espaço pelo turismo requer o enfrentamento de uma abordagem que evidencie a colisão de múltiplos interesses, que se instauram concomitantemente, dos variados agentes enquadrados em tal processo (Estado, mercado, turistas e comunidade local), resultando por consequência no “trabalho para gestão do turismo organizado e trabalho para gestão da vida, desvinculada do turismo”. “Isso porque, mesmo em lugares turísticos, a vida se realiza, a despeito do desenvolvimento desta atividade, para muitas pessoas” (Santos e Elicher, 2013Santos, Telma; Elicher, Maria. (2013). Turismo e Produção do Espaço no Rio de Janeiro. Turismo em Análise, São Paulo, vol 24, n. 3, pp. 654-675, dez., p. 22). Assim, com as demandas acentuadas do capitalismo, as cidades vão sendo transformadas paulatinamente em mercadorias e os espaços, por sua vez, passam a exercer uma supremacia do “valor de troca”, visto que, a iniciativa privada irá de forma definitiva invadir a vida, a morada, os lugares. O local onde a sociedade civil se realizava enquanto cidadãos pertencentes a um lugar, seu “valor de uso” é reduzido a uma mera mercadoria na visão dos agentes hegemônicos produtores do espaço, conferindo-os novas formas de apropriação, muitas vezes por meio de empreendimentos imobiliários, como shoppings centers, hotéis e outros (Carlos, 2011Carlos, Ana. F. (2011). A condição espacial. São Paulo: Contexto.).

O turismo, nesse contexto, pode acarretar uma revalorização simbólica, econômica e social nos locais onde se desenvolve, dado o grande índice de influência que exerce sobre os espaços em geral, seja de forma direta ou indireta. Dessa maneira, “à medida que são feitos mais investimentos, o valor da terra tende a aumentar, trazendo, como consequência, uma gradual exclusão dos grupos de baixa renda e uma sociedade cada vez mais hierarquizada” (Ribeiro Filho, 2007 apud Pereira, 2012Pereira, Marlene. (2012). A cidade como mercadoria: influências do setor privado na produção do espaço urbano. Revista de C. Humanas, Viçosa, v. 12, n. 2, p. 446- 460, ./dez., p.449). Para tanto, nota-se que o fenômeno turístico necessita, em suma, de um planejamento com um viés mais participativo e democrático, atrelado ao planejamento urbano, inserido nas dimensões sociais, administrativas, culturais e econômicas, na tentativa de unir os diversos segmentos da sociedade para que haja uma intervenção na cidade de uma forma mais contextualizada e alinhada à diversidade de interesses coexistentes (Barbosa, 2013Barbosa, Raimundo. (2013). Planejamento urbano e segregação socioespacial na cidade de Macapá. PRACS: Revista Eletrônica de Humanidades do Curso de Ciências Sociais da UNIFAP, Macapá, n. 6, p. 135-148, dez.).

b) Planejamento urbano, turismo e segregação socioespacial

Para Rezende e Castor (2006Rezende, Denis; Castor, Breno (2006). Planejamento estratégico municipal: empreendedorismo participativo nas cidades, prefeituras e organizações públicas. 2. ed. Rio de Janeiro: Brasport., p. 4), de maneira geral, o planejamento urbano tem como propósito reconhecer tendências ou as propensões naturais (locais e regionais) para o desenvolvimento do espaço urbano, bem como estabelecer as regras de ocupação do solo, definindo as principais estratégias e políticas do município e explicitando as restrições, as proibições e as limitações que deverão ser observadas para manter e aumentar a qualidade de vida para seus munícipes (Rezende e Castor, 2006). Duarte (2012Duarte, Fábio. (2012). Planejamento Urbano. 1 ed. Curitiba: InterSaberes.), por sua vez, enfatiza que os objetivos desse ato de planejar precisam estar muito bem definidos e estabelecidos, tendo em vista qual o contexto vigente, quais são os recursos disponíveis, porque possíveis falhas em qualquer um desses aspectos pode acabar inviabilizando o processo.

No processo de planejamento urbano, algumas vertentes são adotadas no ato de planejar para atingir objetivos propostos, mas tudo dependerá de qual sistema institucional as cidades estão inseridas e quais são as tendências desse sistema (Oliveira e Bolaffi, 1970Oliveira, Francisco.; Bolaffi, Gabriel. (1970). Aspectos Metodológicos do Planejamento Urbano no Brasil. RAE - Revista de Administração de Empresas, vol 10, n. 1, jan-mar.). Duas delas se encaixam no contexto desse trabalho para gerar reflexão sobre o objeto de pesquisa aqui apresentado, que são: o planejamento centralizado e o planejamento descentralizado. O primeiro se enquadra numa lógica positivista, prevalecendo o caráter racional e universalista, que considera que por meio do de um viés centralizado de planejamento e sob responsabilidade de profissionais com capacidade técnica, a cidade pode ser vista como algo equilibrado e passível de controle (Batty, 2007Batty, Michael. (2007). Complexity in City Systems: Understanding, Evolution and Design. Centre for Advanced Spatial Analysis (CASA), University College London. ).

Já no que se refere ao planejamento urbano descentralizado, que ganha força a partir do final do século XX, num novo movimento de entendimento do âmbito citadino por diferentes pesquisadores e estudiosos, reforça a ideia de que o planejamento deve se ater em uma dinâmica mais horizontal e menos vertical (top-down), possibilitando ferramentas que auxiliem na colaboração e comunicação entre os entes envolvidos, facilitando e contribuindo para a construção do entendimento coletivo, visando questões de cunho criativo, adaptativo e participativo (Gheno, 2015Gheno, Patrícia (2015). Repensar o Planejamento Urbano no século XXI. 184 f. Tese (Doutorado em Planejamento Urbano e Regional) - Faculdade de Arquitetura, UFRGS, Porto Alegre. ). A intenção desse viés é fomentar políticas urbanas mais democráticas, dando suporte social para o ganho de um suporte à conquista da autonomia, vislumbrando um “empoderamento social da vida política” (Bizzotto; Nascimento; Gonçalves, 2014Bizzoto, Luciana; Nascimento, Júlia; Gonçalves, Raquel. (2014). O Espaço e o Poder: por uma práxis no planejamento urbano autônomo. Revista Paranaense de Desenvolvimento, Curitiba, v.35, n.126, p.131-145, jan./jun., p. 139). Evidentemente, a efetividade desse viés de planejamento urbano encontra inúmeras dificuldades no ato de promover a “igualdade material de participação” (Filho, 2009Filho, João. (2009). A participação popular no planejamento urbano: A experiência do plano diretor em Porto Alegre. 332 f. Tese (Doutorado em Planejamento Urbano e Regional) - Faculdade de Arquitetura, UFRGS, Porto Alegre. , p. 68), uma vez que, o processo de planejamento também se esbarra em limites práticos, pois há a “dificuldade de compreender como chegar ‘racionalmente’ ao consenso, com a deliberação de todos os envolvidos, em cidades cujo o traço característico é a diferença” (Habermas, 2002 apud Filho, 2009, p. 68).

No caso específico da requalificação urbana, tema central de debate deste trabalho, tal estratégia surge como um eixo prioritário, muitas vezes em respostas a enclaves urbanos, remetendo a uma intervenção urbana que operacionaliza o tecido físico/social, que “permite criar uma nova estética em função do desenho já existente de uma cidade” (Silva, 2011Silva, Ana. (2011). Requalificação Urbana: O exemplo da intervenção Polis em Leiria. 174 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra, Coimbra., p. 46).

Requalificação urbana é um processo social e político de intervenção no território que visa essencialmente (re)criar qualidade de vida urbana, através de uma maior equidade nas formas de produção (urbana), de um acentuado equilíbrio no uso e ocupação dos espaços e na própria capacidade criativa e de inovação dos agentes envolvidos nesses processos (Moreira, 2007 apud Silva, 2011Silva, Ana. (2011). Requalificação Urbana: O exemplo da intervenção Polis em Leiria. 174 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Faculdade de Letras, Universidade de Coimbra, Coimbra., p.47).

Celestino (2014Celestino, Paula. (2014). Requalificação Urbana: entraves e desafios no bairro Lagoa Grande na cidade de Feira de Santana - (2000-2013). 155 f. Dissertação (Mestrado em Geografia) - Faculdade de Geociências, Salvador. ) aponta que os desafios encontrados nesse ordenamento e intervenção do espaço urbano são muitos, visto que o âmbito citadino se permeia de “rupturas, conflitos e impactos territoriais, sociais, políticos, econômicos e ambientais” (Celestino, 2014, p. 53). Muitas vezes, o projeto de requalificação e reabilitação urbanas não levam em consideração o contexto histórico/social vigente na localidade, estando muitas vezes desconexos da real situação local, contribuindo dessa maneira para que os espaços na urbe se diferenciem a partir de uma visão econômica, acarretando em exclusões de ordem urbana e social (Celestino, 2014).

No que tange ao turismo, a requalificação urbana passa a ser uma alternativa para fomentar o desenvolvimento socioeconômico do destino, no que diz respeito às melhorias em infraestrutura urbana, equipamentos de lazer, transportes, no fortalecimento das atividades comerciais tradicionais no local, no aumento do fluxo turístico, entre outras (Pinheiro e Santos, 2012Pinheiro, Rafaelle; Santos, Cristiane (2012). Revitalização urbana e turismo: o caso do Centro Histórico de Aracaju (Sergipe, Brasil). Turismo & Sociedade, Curitiba, v. 5, n. 1, p. 275-294, abril.). “A adequação destes espaços para a realização de práticas de lazer e turismo também tem como objetivo o (re)desenvolvimento e a (re)apropriação destes lugares pelo capital financeiro e cultural” (Pinheiro e Santos, 2012, p. 285). O Turismo aparece, nesse contexto, como um elemento componente do espaço produzido e em produção, caracterizado também por articular a cidade sob o âmbito social, político e econômico, conferindo, de certa forma, grande influência nas trocas e nas práticas citadinas e sendo capaz de trazer para o meio urbano/social consequências tanto positivas, quanto negativas. Nesse sentido, exerce poder sobre os territórios, podendo interferir na vida em sociedade direta ou indiretamente, de maneira a contribuir muitas vezes para a conformação de territórios segregados na vida urbana contemporânea.

Não obstante, a requalificação urbana pode, muitas vezes, proporcionar para a localidade a mutilação da memória e da identidade da cidade, uma vez que, modifica completamente seus componentes produzidos por gerações no decorrer da história, introduzindo aspectos que não condizem com a comunidade local apenas com o intuito de atrair visitantes (Orrego, 2012Orrego, Juan. (2012). Práticas Contemporâneas no Centro Urbano: o caso da revitalização urbana na área de Cisneros, Medellín - Colômbia. In: III Seminário Internacional Urbicentros. Salvador.). “Operações urbanas (...) buscam atrair turistas ao oferecerem atividades dirigidas ao turismo, porém, muitas vezes esses processos mostram como resultado a banalização da cidade, vista simplesmente como objeto de consumo” (Orrego, 2012, s. p.). Pinheiro (2012Pinheiro, Rafaelle; Santos, Cristiane (2012). Revitalização urbana e turismo: o caso do Centro Histórico de Aracaju (Sergipe, Brasil). Turismo & Sociedade, Curitiba, v. 5, n. 1, p. 275-294, abril.) corrobora com tal afirmação, ao afirmar que os novos usos turísticos do espaço geram concorrência com os usos já existentes, acirrando, potencialmente, conflitos entre esses diferentes sujeitos sociais que querem se inserir naquele território. “Tais projeções podem oportunizar a criação de mecanismos de ‘controle seletivo do público’ e de ‘promoção desigual de usos públicos’” (Konzen, 2011Konzen, Lucas. (2011). A mudança de paradigma em sociologia urbana: do paradigma ecológico ao socioespacial. Revista de Ciências Humanas, Florianópolis, v. 45, n. 1, p.79-99.).

No tocante, “as cidades vêm sendo submetidas a projetos idealizados pelo empreendedorismo e pelo poder público, muitas vezes sem a participação da população” (Gonçalves, Simão & Paiva, 2017Gonçalves, Raquel; Simão, Karina & Paiva, Ricardo. (2017). Sobre conflitos urbanos, territórios e poder: a disputa pela incerteza. Sessão temática 9: novos movimentos e estratégias de luta urbana e regional, XVII Enanpur, São Paulo., p.3). Novos usos do espaço são impostos à sociedade civil pela iniciativa privada em consonância com a iniciativa pública, entretanto, mesmo que essa dinâmica espacial ocorra, muitos agentes populares tomam pra si, formas de resistências às atuações governamentais e mercadológicas, e reivindicam seu espaço (Idem). Vainer (2013Vainer, Carlos. (2013). Quando a cidade vai às ruas. In: MARICATO, Ermínia.; et al. Cidades Rebeldes: Passe livre e as Manifestações que Tomaram as Ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo: Carta Maior.), por exemplo, destaca que os conflitos urbanos e as formas de resistência possibilitam que mudanças na gestão pública aconteçam, e desta forma, propiciem canais de participação com um apelo positivo para a formulação de políticas urbanas e transformação nos atuais mecanismos de gestão.

Contudo, mesmo o Estado tendo o papel de mediar as interações sociais e resolução de conflitos nos mais diferentes níveis e segmentos da cidade, “tanto por ser detentor do poder de coerção e do monopólio da força legítima, como também por possuir o controle dos recursos naturais, o que lhe permite implementar políticas públicas”, esse agente acaba por privilegiar, muitas vezes por meio das próprias políticas públicas, certas áreas em detrimento de outras, promovendo dessa forma, a segregação socioespacial (Barbosa, 2013Barbosa, Raimundo. (2013). Planejamento urbano e segregação socioespacial na cidade de Macapá. PRACS: Revista Eletrônica de Humanidades do Curso de Ciências Sociais da UNIFAP, Macapá, n. 6, p. 135-148, dez., p. 135).

Na direção dessas reflexões, o presente trabalho tem o propósito de melhor compreender a participação do no turismo no processo de requalificação urbana do local conhecido como “Curva do Lacet”, localizada no bairro Dom Bosco, no município de Juiz de Fora - MG.

PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS

O presente trabalho possui enfoque qualitativo, uma vez que não se prendeu em projeções numéricas, mas sim na compreensão das relações e interações dos grupos sociais num determinado contexto pré-estabelecido, mais especificamente, o local chamado Curva do Lacet, em Juiz de Fora (MG). A pesquisa se apoiou, dessa forma, em uma revisão bibliográfica a partir de temas como: planejamento urbano, turismo, segregação socioespacial, produção do espaço, requalificação urbana, entre outros, que possibilitaram um entendimento e esclarecimento acerca dos debates que se inserem direta ou indiretamente no objeto de estudo aqui elucidado.

Outro procedimento metodológico adotado consistiu no levantamento documental, envolvendo pesquisas em órgãos oficiais da cidade de Juiz de Fora, na busca por atos do poder público que impactaram diretamente no processo em investigação.

Para que se compreenda a dimensão e dinâmica sociais dessas relações com o espaço urbano, fez-se necessário ainda uma pesquisa de campo, por meio da realização de entrevistas semiestruturadas junto a agentes (re)produtores do espaço envolvidos no processo de requalificação da Curva do Lacet. Essa etapa da investigação foi norteada pelos seguintes temas de análise: as relações pretéritas e contemporâneas dos agentes sociais com o espaço (re)produzido; representatividade; nível de pertencimento; visão e participação no processo; repercussões na continuidade dos exercícios de territorialidade. Para tanto, foram entrevistadas pessoas que direta ou indiretamente contribuíram para a conformação do território atual: representante da associação do bairro Dom Bosco, que participou de todo o processo de requalificação em debate; quatro moradores do Bairro Dom Bosco, usuários frequentes da Curva do Lacet até o processo de requalificação urbana; cinco turistas/visitantes do Shopping Independência; representantes do Conselho Municipal de Política Urbana (COMPUR) e da Prefeitura Municipal de Juiz de Fora; e um representante do empreendimento “Shopping Independência”.

Cumpre mencionar que, por se tratar de um estudo exploratório e de aproximação da realidade investigada, com caráter eminentemente qualitativo, as amostras não são representativas diante do universo pesquisado, privilegiando-se, nesse caso, as relações materiais e simbólicas de cada entrevistado e sua percepção sobre a situação de conflito em questão. Buscou-se identificar nas falas os signos, significados e o reconhecimento dos múltiplos interesses presentes no campo em disputa, bem como as estratégias aí adotadas. Nessa direção, os dados investigados foram coletados e analisados, procurando-se reconhecer a natureza do conflito, suas repercussões nos exercícios de territorialidade dos usuários da Curva do Lacet, as estratégias bem sucedidas e os motivos pelos quais determinados interesses são privilegiados, cujo resultado significou o desencadeamento de um espaço urbano díspar e incongruente para uma determinada parcela da população.

RESULTADOS

A seguir, serão apresentados os resultados das pesquisas realizadas sobre o processo de requalificação urbana da Curva do Lacet, que envolveram levantamentos bibliográfico e documental e, também, realização de entrevistas semiestruturadas com agentes produtores desse recorte espacial.

a) O processo de requalificação urbana da Curva do Lacet: interesses e usos sobrepostos

Para melhor compreender como se deu o processo de requalificação urbana da Curva do Lacet em termos de motivações, interesses e disputas envolvidos, realizou-se o levantamento de documentos oficiais na Prefeitura Municipal de Juiz de Fora, bem como o reconhecimento e entrevistas semiestruturadas com os agentes produtores do espaço: líder comunitário do bairro Dom Bosco; quatro moradores do bairro Dom Bosco; um representante do shopping Independência e um representante do COMPUR (Conselho Municipal de Política Urbana), órgão atrelado à Prefeitura Municipal de Juiz de Fora.

De imediato, é preciso destacar que, mesmo após inúmeros contatos telefônicos e visitas presenciais ao órgão municipal durante os anos de 2017 e 2018, nenhum interlocutor da Prefeitura se disponibilizou a conceder entrevista a respeito da atuação do órgão e seus interesses no processo. As alegações foram de que “questões internas” ou “limitação de conhecimento específico” sobre o caso, ocorrido nos anos de 2006 e 2007, impediam um posicionamento oficial.

Houve também o contato e tentativa de realização de entrevista com membros do COMPUR - Conselho Municipal de Política Urbana, “órgão colegiado superior de caráter permanente e com atribuições consultiva, deliberativa, fiscalizadora, normativa, mobilizadora e propositiva, sem prejuízo das funções do poder legislativo”. Suas competências giram em torno de ações como a colaboração na aplicação da lei, a proposição de critérios de distribuição dos benefícios urbanos, o estímulo à ampliação e o aperfeiçoamento dos mecanismos de participação e controle social, visando o fortalecimento e desenvolvimento urbano e territorial sustentáveis entre outros. A busca pelo representante que daria os esclarecimentos pelo COMPUR não teve êxito. A alegação foi que nenhum de seus membros estaria “apto” a responder os questionamentos referentes ao espaço urbano aqui em questão e sugeriram que procurássemos a Secretaria de Obras. Os representantes dessa Secretaria Municipal, por sua vez, também disseram não ter informações a respeito, e embora as investidas fossem feitas com uma série de pessoas, nenhuma delas conseguiu prestar esclarecimentos sobre o processo de requalificação urbana da Curva do Lacet.

No que diz respeito ao Shopping Independência, também não foi possível realizar a entrevista com nenhum de seus representantes. Após contato e explicação dos objetivos da pesquisa, a equipe administrativa atual afirmou não ter participado dos debates ou dos processos condizentes à época de requalificação da Curva do Lacet. Houve ainda uma tentativa de contato com representantes do Conselho do shopping, também sem sucesso. Procurava-se melhor compreender o posicionamento do empreendimento nesse processo, seus objetivos, interesses e, sobretudo, a visão sobre o potencial do shopping para a atração de turistas da região e, até que ponto, a permanência do campo de futebol representaria um entrave ou um complemento aos propósitos do futuro empreendimento.

De qualquer forma, é possível afirmar que a conclusão das obras do novo shopping impactou diretamente na oferta de espaços de lazer para a população de Juiz de Fora, além de representar, também, importante atrativo turístico da cidade, atraindo visitantes de cidades do entorno. Em entrevista de 2014 para o portal de notícias “G1”, um superintendente do empreendimento corrobora com tal afirmação, ao afirmar que “também olha o shopping como regional. Atualmente, em um raio de 100 km, é o shopping mais completo. Aos sábados e domingos, 30% do nosso público são de municípios da região”, o que configura um apelo turístico forte para a cidade de Juiz de Fora. Dessa forma, a área de influência regional direta do shopping, segundo ele, atinge 32 cidades, compreendendo aproximadamente 360 mil pessoas, subentende-se que o fator turístico foi sim levado em consideração na execução do projeto. À época de construção do empreendimento, em declaração do ano de 2007, o prefeito disse que o novo shopping iria consolidar a posição da cidade como uma capital da Zona da Mata e Vertentes, Sul de Minas e ainda de algumas cidades do Rio de Janeiro mais próximas do município, com a prerrogativa de se conseguir alcançar um alto número de visitantes e também a geração de um número grande de empregos diretos e indiretos.

As negativas constantes por parte do órgão público municipal e dos responsáveis pelo empreendimento Shopping Independência sinalizam, de qualquer forma, a postura desses agentes de (re)produção do espaço urbano, dotados de grande poder econômico e político. Como será abordado na sequência, fica evidente que a atuação conjunta desses agentes privilegiou interesses econômicos em contraposição aos interesses da população carente que se apropriava da Curva do Lacet enquanto local de lazer e sociabilidade.

Já os entrevistados (re)produtores do espaço que puderam se posicionar e dar suas contribuições a respeito do objeto de estudo aqui apresentado, possibilitaram o desvendamento mesmo que parcial dos enclaves urbanos nesta localidade específica inserida na cidade de Juiz de Fora. Inicialmente, realizou-se uma entrevista com o representante comunitário do bairro Dom Bosco, um senhor de sessenta e cinco anos que nasceu, cresceu e reside atualmente no local, travando lutas constantes para que a comunidade tenha seus direitos assegurados e possam exercer sua cidadania.

Segundo o entrevistado, o bairro Dom Bosco é “um dos bairros mais antigos de Juiz de Fora e, no entanto, não tem área de lazer nenhuma”. Por isso, a importância da Curva do Lacet pra comunidade como um todo, pois era o ponto de encontro e de socialização da população. O processo de tomada de decisão sobre a retirada do campo de futebol da Curva do Lacet envolveu, principalmente, a Comissão do campo, uma diretoria própria responsável por gerir tal espaço, que negociou diretamente com a Prefeitura Municipal de Juiz de Fora e representantes do empreendimento. “Aí veio o (...) na época, junto com o shopping e dobrou a comissão, essa comissão levou o campo lá pra perto do estádio”, (depoimento coletado em trabalho de campo). Segundo o entrevistado, houve uma consulta pública, que contou com uma participação reduzida dos moradores do bairro Dom Bosco. O poder público, segundo ele, prometeu um lugar melhor, porém afastado demais e que hoje tem se transformado num espaço subutilizado. Tal afirmação é corroborada pelos depoimentos dos moradores. A grande maioria dos entrevistados afirmou não ter tomado ciência, à época, do que estava acontecendo. Apenas um deles mencionou que houve um processo de intermediação da prefeitura junto à comunidade, propondo um campo bem mais afastado, mas que teria uma série de equipamentos para melhor atender à população. No entanto, foi feito um campo sem um mínimo de estrutura adequada para os usuários. “Teve participação da população, mas deram um chapéu no pessoal, mostraram pra eles um palácio todo de cristal e construíram pra eles um casebre depois. A parceria público e privada foi muito picareta com a comunidade”, afirmou um entrevistado.

Em geral, os processos de ordem pública, principalmente atrelados às políticas urbanas, têm como característica um viés centralizado de poder, com uma hierarquia muito bem definida, cujo papel da comunidade se reduz a aceitar o que está sendo imposto e que raramente consegue participar efetivamente das decisões. Muitas vezes, as consequências desses processos são perversas para a comunidade, visto o caso da Curva do Lacet, uma vez que, muitas promessas foram feitas, a população não pôde participar do projeto, o que culminou na perda de direitos essenciais para a manutenção da vida em sociedade e seus vínculos com o espaço urbano.

Outro aspecto central nesse processo é que, segundo o representante do Bairro Dom Bosco, havia a intenção por parte dos empresários responsáveis pelo projeto do Shopping Independência de adquirir o terreno público no qual estava sediado o campo de futebol. O objetivo seria a construção de três edifícios comerciais. O sentimento de revolta e insatisfação são constantes nas falas do líder comunitário: “o prefeito da época, segundo ele, cedeu a área pensando apenas no comércio, pois o shopping já tinha, inclusive, projeto para a construção de três prédios na área do campo” (trecho da entrevista). Para tentar impedir a venda desse espaço, foi montada uma comissão reunindo representantes dos bairros Dom Bosco, Teixeiras e Cascatinha. Esses representantes se dirigiram à Câmara Municipal de Juiz de Fora com o intuito de se manifestarem contrariamente à venda do terreno, exigindo que ali fosse implantado um espaço de lazer direcionado à população, encaminhamento que acabou prevalecendo.

O entrevistado acredita que o campo não iria interferir no êxito do projeto do shopping, entretanto, retiraram porque a intenção primeira naquele momento, era a construção de três prédios na localidade onde se situava o campo de várzea. “Se eu tivesse sabendo no princípio do projeto, teria barrado antes de tirar”, afirmou o líder da comunidade.

A mudança do campo de futebol foi então decretada por meio da Lei n.11235, de 16 de outubro de 2006Brasil. (2006) Lei n° 11235/06, de 16 de outubro de 2006. Autoriza a transferência do campo de futebol existente na praça José GattásBara (Curva do Lacet) e dá outras providências. Juiz de Fora, MG, out., que prevê, em seus dois primeiros artigos:

Art. 1º Fica o Poder Executivo Municipal autorizado a proceder à transferência do campo de futebol, atualmente existente na Praça José Gattás Bara (Curva do Lacet), para outro espaço público. Art. 2º No local do campo transferido, fica autorizada a implantação, pelo Poder Executivo Municipal, de praça pública, urbanizada, arborizada e com local para realização de eventos públicos, para a prática de atividades físicas, de lazer infantil e dotada de quadra poliesportiva, compatibilizando-a com a ampliação do sistema viário local (PREFEITURA MUNICIPAL DE JUIZ DE FORA, 2006).

Segundo o representante do bairro Dom Bosco, apesar da instituição da referida Lei em 2006, apenas no ano de 2015 teve início o processo de elaboração de projeto da nova praça para a Curva do Lacet. Sob responsabilidade dos arquitetos do MaisJF (Movimento Popular Urbanista), foram realizadas pesquisas junto aos moradores com o intuito de apreender seus anseios e ideias para o local. Nesse sentido, o projeto do novo complexo de lazer da Curva do Lacet previa uma praça, quadra poliesportiva, pista de skate, parquinho infantil, pista de caminhada, além de intervenções estéticas e paisagísticas. A execução do projeto, contudo, não teve início até os dias atuais em virtude de falta de verbas.

Ainda segundo o líder comunitário entrevistado, houve negociações junto a vereadores do município com o intuito de se garantir orçamento para o projeto. Através de uma emenda individual feita pelo Deputado Federal Júlio Delgado, juntamente com o então vereador Jucélio Maria, uma verba de duzentos e cinquenta mil reais foi adquirida para a execução do projeto, com exigência de contrapartida da Prefeitura Municipal para liberação dos procedimentos. A Prefeitura, contudo, não disponibilizou recursos para tal propósito e, até hoje, as obras não foram iniciadas (dado coletado em entrevista com o representante do bairro - a equipe não conseguiu confirmá-lo, visto a grande resistência da prefeitura em se posicionar).

A requalificação urbana da Curva do Lacet acabou resultando em uma área urbana gramada, porém vazia, cumprindo apenas o propósito de passagem, com a perda total de sentido que lhe era atribuído, bem como de suas funções. Dessa forma, o espaço deixou de ser apropriado e utilizado pela população, gerando, inclusive, sentimentos topofóbicos, de aversão à nova configuração espacial. Os impactos para a comunidade com a retirada do campo e do playground são muitos e negativos. Há uma preocupação categórica por parte do entrevistado em relação às crianças do bairro, pois, segundo ele, os mais prejudicados foram elas, que ficaram sem o parquinho e sem os projetos esportivos e socioeducativos de futebol que atendiam infanto-juvenis. Por consequência, por não terem mais uma área de lazer que pudessem gastar seu tempo com ações educativas, muitos deles acabaram entrando para a criminalidade, “onze que virou traficante na área aí, por causa disso, de não ter um espaço de lazer”, disse o entrevistado.

b) Os usos pretéritos da Curva do Lacet

Outra etapa da pesquisa buscou melhor compreender os usos e formas de apropriação (i)material da Curva do Lacet anteriores ao processo de requalificação urbana em questão. Para tanto, foram realizadas entrevistas semiestruturadas com quatro moradores do bairro Dom Bosco e, também, com seu líder comunitário.

Foi possível perceber que o processo de remoção da Curva do Lacet provocou repercussões de ordem material e imaterial aos seus frequentadores, em virtude do comprometimento do único espaço de lazer e de encontro da população do Bairro Dom Bosco e, também de bairros vizinhos como Teixeiras, Cascatinha e Dom Orione. Além do campo de futebol, que atendia os jovens e adultos para jogos e campeonatos amadores, a localidade também possuía um parquinho, ainda que em condições precárias, frequentado por crianças. Havia o costume de famílias inteiras frequentarem o local aos finais de semana para assistirem aos jogos, prática que representava momentos de lazer, diversão e sociabilidade, configurando dessa maneira, um espaço que caracterizava-se como sendo de suma importância e valorizado pelos usuários. Os moradores entrevistados demonstraram considerar a Curva do Lacet como sendo uma parte indissociável do bairro, representando um espaço culturalmente utilizado, produzido e reproduzido por gerações, apresentando, por conseguinte, um sentimento forte de pertencimento, estabelecido por relações de afetividade advindas da comunidade para com o espaço. A história oral, obtida por meio das entrevistas e conversas como moradores antigos do Bairro Dom Bosco, evidencia os tipos de vivências e experiências estabelecidas com a Curva do Lacet, principal área de lazer e convívio, de trocas sociais e de relações de pertencimento. Esses vínculos territoriais estão ainda presentes na memória dos entrevistados. É possível, portanto, reconhecer a interferência desse processo de requalificação urbana nas práticas e costumes culturais e mesmo no comprometimento de direitos constitucionais, como acesso à cultura e ao lazer.

Ainda segundo o líder comunitário do Bairro Dom Bosco, o campinho e os campeonatos ali realizados também atraíam pessoas de várias partes da cidade e, mesmo, de outros municípios da região: “O campo ali era quase um estádio, você precisava ver final de semana, a copa Bahamas que é a maior copa amadora do Brasil, ali era decisões, vinha gente de fora, de outros bairro tudo pra ver”.

Para o entrevistado, a manutenção do campo, e assim, o lugar de lazer e de encontro de moradores de bairros vizinhos, poderia, inclusive, constituir um atrativo cultural da cidade. “É por isso que a gente lutou pra não perder e acabou perdendo. Já que nós perdemos o campo, então transformar numa praça, seria considerar uma área de convivência, seria uma área de lazer ali, sem perigo”. Ele ainda evidenciou outra função social da Curva do Lacet: os projetos esportivos e socioeducativos de futebol que atendiam infanto-juvenis representavam elemento central na formação cidadã das crianças do bairro, impedindo o ingresso em atividades ligadas à criminalidade e violência. Dessa maneira, com a retirada do campo, os entrevistados afirmaram possuir um sentimento de revolta e descontentamento em virtude da perda de seu lugar cotidiano de encontro e de lazer, perda essa, também para a própria cidade de Juiz de Fora.

Em 14/09/2014, houve uma iniciativa de reivindicação da retomada de usos com fins de lazer e artístico-culturais da Curva do Lacet. Segundo Jornal Tribuna de Minas (16/09/2014)* * Disponível em <https://tribunademinas.com.br/noticias/cidade/27-05-2016/ato-na-curva-do-lacet.html> , o local recebeu o ato “Ocupa Lacet”, que reuniu cerca de mil pessoas e contou com apresentações de música, dança e cinema, além de contação de histórias e oficinas. A ação integrou a quarta edição da Semana do Audiovisual (Seda) de Juiz de Fora, festival de cinema integrado que acontece em todo o país, sob organização da Casa Fora do Eixo, em parceria com o MaisJF, Prática Ateliê, Taba Bambu, Rodamundo Produções e Vida Longa ao Skate.

Mais recentemente, em 27/05/2016, estudantes de cursos de Geografia, no âmbito do Encontro Regional de Estudantes da Região Sudeste (Eregeo-Se), promoveram um ato para reivindicar o direito à ocupação da Curva do Lacet pelos moradores do Bairro Dom Bosco e questionar o processo de segregação social então ocorrido. A matéria veiculada no Jorna Tribuna de Minas (27/05/2016)** ** Disponível em <https://tribunademinas.com.br/noticias/cidade/15-09-2014/ocupacao-reune-mil- pessoas-na-curva-do-lacet.html> traz a fala do presidente da Associação de Moradores do Bairro Dom Bosco, Luiz Cláudio do Nascimento Cardoso, que participou do ato. “A gente ainda tem fé de que possa ser construída uma praça na Curva do Lacet para atender não somente ao nosso bairro, mas também ao Cascatinha e os outros do entorno. A comunidade ainda quer a Curva do Lacet”.

c) As novas relações socioespaciais na Curva do Lacet: o Shopping Independência enquanto espaço de lazer e atrativo turístico regional

Diante da supressão do único espaço de lazer e de encontro da comunidade do bairro Dom Bosco, procurou-se investigar as relações por ela estabelecidas com o novo equipamento de lazer instalado no local, o shopping Independência. Em geral, os entrevistados não possuem o hábito de frequentá-lo, pois não se sentem confortáveis o suficiente para estarem naquele ambiente, preferindo frequentar o centro da cidade para consumir, por acharem mais acessível. Além disso, o próprio ambiente e os propósitos desse tipo de empreendimento, ancorado em valores como padronização e estímulo ao consumo, acabam se revelando frágeis quando se reflete sobre sua capacidade de geração de vínculos e processos identitários com seus frequentadores, bem como possibilitar intercâmbios e trocas culturais, interpretação que corrobora diretamente à ideia de não-lugar (Augé, 1992Augé, Marc. (1992). Não lugares: introdução a uma antropologia da sobre modernidade. 1a edição francesa. Lisboa, 90 Graus.).

O líder da comunidade acredita que o shopping não é uma forma possível de lazer para a comunidade do bairro, uma vez que, o próprio empreendimento tenta afastar ao máximo a população carente, com a prerrogativa de que vão cometer assaltos na área, num ato discriminatório e segregacionista. “Vai lá, o que que vai acontecer? Dependendo da maneira que você tiver trajado, o segurança vai ficar andando atrás de você, isso é normal”, palavras do entrevistado.

Importante mencionar que mesmo as atuais tentativas dos moradores do bairro em usar e se apropriar da Curva do Lacet - agora uma grande área gramada com funções estéticas e de passagem de pedestres - são combatidas. De acordo com o líder comunitário, os seguranças do shopping não deixam as crianças ficarem na área da Curva do Lacet para soltarem papagaio: “já até foi preciso chamar a força policial para que isso não acontecesse”. Em virtude desse fato, foram agendadas reuniões com a direção do empreendimento para que essas questões fossem colocadas em pauta e que o direito de uso da antiga área do campo de futebol seja preservado.

Outro propósito desta investigação consistiu em reconhecer a visão de turistas frequentadores do shopping sobre o caso da requalificação urbana na Curva do Lacet, bem como seu potencial turístico. Entre os cinco respondentes, provenientes de cidades como Petrópolis (RJ), Três Rios (RJ), Mar de Espanha (MG), Pequeri (MG) e Guarani (MG), três deles afirmaram ter o hábito de visitar o shopping com frequência regular, enquanto dois deles disseram visitá-lo esporadicamente.

Como imaginado, nenhum dos turistas tinha conhecimento sobre a remoção do campo de futebol para a construção do shopping. Além disso, a maioria se mostrou indiferente à situação, concluindo que tal processo, “não me afeta, não me importo” e que os moradores “podem achar outro lugar pra lazer”. Apenas dois entrevistados demonstraram maior interesse e preocupação com o processo: “se era algo de tamanha importância para a população da região, me pergunto qual é o desfecho deste ato, onde essas pessoas que usavam pra se divertir, estão agora?”.

Já com relação ao potencial turístico da Curva do Lacet na visão dos turistas, foi possível perceber que a maior parte julga que a manutenção do campo, como um lugar de lazer e encontro, se constituiria como um atrativo cultural da cidade. Os entrevistados afirmaram, inclusive, que a realização de eventos na área, com investimento em ações de divulgação regional, poderia contribuir para a consolidação da praça enquanto equipamento turístico cultural de Juiz de Fora.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Curva do Lacet, objeto de estudo deste trabalho, inserida num contexto de produção e reprodução contínuas do espaço, traz uma perspectiva citadina muito comum nos processos de tentativa de dominação dos lugares, territórios e espaços, adquirindo fracassos no que tange ao planejamento urbano e turístico, acarretando, por consequência, em prejuízos de ordem material e imaterial para populações locais, principalmente àquelas em estado vulnerável.

Um primeiro aspecto a evidenciar no âmbito dos resultados desta investigação foi a negligência por parte de dois agentes diretos de produção do espaço em estudo: a prefeitura de Juiz de Fora e o empreendimento Shopping Independência. Detentores do poder - político e econômico - coercitivo para com o espaço urbano público contemporâneo, a atuação desses agentes acabou por apoiar as trocas econômicas em detrimento da valorização da cultura, tradição e do lazer citadinos. Notou-se que o jogo de interesses presentes no espaço se caracteriza principalmente por ações arbitrárias e omissivas, muitas vezes com uma tentativa rasteira e frustrada de participação da população, para que haja ganhos escusos no campo de disputas, o que implica certos interesses sendo privilegiados, acarretando num espaço urbano completamente descontextualizado, subutilizado e com perda total de sentido, tanto para a comunidade local quanto para seus visitantes.

Percebe-se o sentimento de revolta constante entre os moradores do bairro Dom Bosco que perderam sua importante e única área de convivência e lazer, mas ao mesmo tempo, a alienação dessas pessoas em relação aos processos que se estendem por mais de dez anos na localidade. Embora o bairro possua uma Sociedade Pró-melhoramentos e também haja moradores que sejam extremamente engajados nos meios de asseguramento dos direitos, a ponte que se tenta criar entre a prefeitura é muito estreita e fraca, uma vez que, aquela que deveria garantir os direitos urbanos para os cidadãos, acaba, muitas vezes, por negligenciar a participação da população, não cumprindo seu papel de mediação de interesses entre os diferentes agentes produtores do espaço urbano.

A expectativa pelo potencial do shopping sempre foi muito grande, tanto para o atendimento à população juiz-forana, quanto à população do entorno da cidade. Fato é, o pensar regional, acabou trazendo impactos negativos diretamente para o espaço local. Conforme já elucidado por Bizzoto, Nascimento e Gonçalves (2014Bizzoto, Luciana; Nascimento, Júlia; Gonçalves, Raquel. (2014). O Espaço e o Poder: por uma práxis no planejamento urbano autônomo. Revista Paranaense de Desenvolvimento, Curitiba, v.35, n.126, p.131-145, jan./jun.), pensamentos e ações de cunho local e participativo são essenciais para a conformação de um planejamento urbano que intervenha na cidade, porém de forma mais positiva para o cidadão, possibilitando uma contextualização que abarque questões que atendam a região, mas também direcionadas para o público local que mais sofre os impactos, principalmente segregacionistas e de perda de direitos como o caso aqui trabalhado.

Pensar também em um planejamento de via urbanística, promovendo a requalificação e revitalização dos espaços enquanto locais de contemplação e entretenimento, é pensar em ações que atendam também outros tipos de público, como o turístico, por exemplo. O turismo como sendo um elemento de grande influência nos processos citadinos, possibilita que os espaços sejam apropriados e (re)produzidos insistentemente e continuamente, como o caso da Curva do Lacet, ainda que de forma indireta. Via de regra, a estrutura do Independência Shopping acaba criando formas de controle seletivo do público, acirrando os processos de exclusão socioespaciais e, ao mesmo tempo, impedindo o processo então histórico de apropriação sociocultural da Curva do Lacet, que atualmente, se transformou em um vazio urbano, inclusive com a topografia irregular, com ondulações, provavelmente intencionais, para impedir novos usos, principalmente aqueles do bairro Dom Bosco que são vistos como marginalizados.

Os turistas, por sua vez, aqueles que utilizam o atual espaço, resultado de um processo de (re)produção de uma outra cultura citadina, se veem pouco preocupados ou indiferentes com tais questões. Dessa forma, mesmo os discursos dos entrevistados (moradores e turistas) atingirem pontos de divergência no que se refere à importância da Curva do Lacet para eles, a grande maioria considerou que a manutenção do campo de futebol e, assim, o lugar de lazer e de encontro de bairros vizinhos constituiria sim em um atrativo cultural da cidade, podendo dessa forma, se bem cuidado, revitalizado e com promoção de eventos, atrair um contingente de pessoas significativo para o incremento da atividade turística na cidade. A conciliação desses dois espaços de lazer (Campo e Shopping) possibilitaria que o aproveitamento do espaço urbano se constituísse plenamente, sem prejuízos de ordem maior para todos os interessados presentes no espaço, com o engendramento, por consequência, de uma demanda turística potencial para a cidade de Juiz de Fora.

A constituição de lugares turísticos a partir da valorização da vida cotidiana nos espaços permite, sobremaneira, que esses locais se transformem em ambientes propícios para uma experiência turística de contato e conhecimento da cultura, história e saberes daquela localidade. É possível também compreender que esses espaços de trocas citadinas criam possibilidades do turismo se instaurar de forma a contribuir, sobretudo, na maneira como as pessoas se interagem com o espaço e criem dessa forma, sentimentos de pertencimentos com tais práticas culturais, numa contínua reprodução da vida em sociedade.

Os debates e mobilização a respeito da Curva do Lacet são muitos e estão longe de acabar. O espaço urbano público se suscitou em uma das preocupações urbanas mais acentuadas da cidade de Juiz de Fora. Debater e discutir ações na direção do planejamento urbano e do turismo na conformação do meio citadino gera conhecimentos e questionamentos que perpassam pelos direitos reservados aos cidadãos em relação ao uso dos espaços, à supremacia incontestável dos agentes hegemônicos presentes nos territórios, aos processos segregacionistas oriundos da falta de preparo do poder público nas mediações dos enclaves urbanos, entre outros. Destarte, não se consegue, dessa maneira, a harmonização dos interesses que compõe o espaço, e suas (re)produções se transformam em prejuízos categóricos sem precedentes para populações inteiras. Cabe à sociedade continuar lutando por seus direitos, ainda que muitas vezes sem resultado aparente e cabe ao poder público, por sua vez, zelar pela inclusão social e assegurar direitos perdidos, sendo menos subserviente às demandas do mercado e mais comprometido com as execuções das leis. Só assim conseguiremos vislumbrar uma cidade que seja justa para todos, apontando como fator determinante à consecução de um planejamento urbano que vise a participação popular e tenha ações que agreguem e não segreguem o espaço na urbe, utilizando o fenômeno turístico como fator determinante e de influência positiva nos processos.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    24 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020

Histórico

  • Recebido
    18 Abr 2019
  • Aceito
    03 Out 2019
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