Resumo:
Levando em consideração as interrelações dos diversos agentes do fenômeno do turismo, presenciamos o espaço marcado pelas multiterritorialidades, resultado da sobreposição de diferentes territórios no espaço, incluindo aqueles gerados por seus trabalhadores. Neste contexto, este artigo busca compreender a multiterritorialidade dos trabalhadores do turismo de Arraial do Cabo (RJ), especificamente dos trabalhadores da hotelaria, tendo em vista seus espaços de trabalho, lazer e moradia, e aspectos funcionais e simbólicos. A pesquisa de campo, de caráter qualitativo, consistiu na realização de entrevistas com auxílio de formulários semiestruturados, com base nas orientações teórico-metodológicas de Baptista (2014). A análise dos resultados nos permitiu observar que as mobilidades dos trabalhadores do turismo que moram em Arraial do Cabo se demonstram ainda restritas pelo nível da possibilidade (Lévy, 2001), uma vez que a oferta de lazer para esse grupo é escassa, limitando suas articulações e mobilidades, sendo enfraquecida em seu sentido simbólico.
Palavras-chave:
território; mobilidade; trabalho no turismo
Abstract:
Considering the interrelations of the tourism phenomenon various agents, we recognize a space marked by multiterritorialities, which is resulted by the different territories superposition in space, including that worker's territories. In this context, this article seeks to understand the multiterritoriality of the Arraial do Cabo (RJ) tourism workers, specifically the hotel workers, taking account of their work, leisure, and housing spaces, and functional and symbolic aspects. The field research, configured as qualitative nature, consisted of interviews with the semi-structured forms support, based on Baptista's (2014) theoretical-methodological guidelines. The analysis of the results allowed us to observe that the mobilities of tourism workers who live in Arraial do Cabo are still restricted by the level of possibility (Lévy, 2001), since the offer of leisure for this group is scarce, limiting their articulations and mobility, also being weakened in its symbolic aspect.
Keywords:
territory; mobility; tourism work
Resumen:
Teniendo en cuenta las interrelaciones de los distintos agentes del fenómeno del turismo, asistimos a un espacio marcado por la multiterritorialidad, resultado de la superposición de diferentes territorios en el espacio, incluyendo el generado por los trabajadores. En este contexto, o artículo busca entender la multiterritorialidad de los trabajadores del turismo de Arraial do Cabo (RJ), específicamente los trabajadores del hotel, en vista de sus espacios de trabajo, de ocio y de vivenda, incluyendo sus aspectos funcionales y simbólicos. La investigación de campo, de carácter cualitativo, consistió en la realización de entrevistas con apoyo de formas semiestructuradas, basadas en las directrices teórico-metodológicas de Baptista (2014). El análisis de los resultados permitió observar que las movilidades de los trabajadores do turismo que viven en Arraial do Cabo siguen siendo restringidas por el nivel de posibilidad (Lévy, 2001), ya que la oferta de ocio para este grupo es escasa, limitando sus articulaciones y movilidad, siendo debilitada en su sentido simbólico.
Palabras clave:
territorio; movilidad; trabajo turístico
INTRODUÇÃO
O fenômeno do turismo, a partir de seus agentes sociais (turistas, trade turístico, poder público, população residente e trabalhadores diretos e indiretos), (re)produz e consume o espaço por eles apropriado, refuncionalizando-o como territórios turísticos (Fratucci, 2008Fratucci, A. C. (2008). A dimensão espacial nas políticas públicas brasileiras de turismo: as possibilidades das redes regionais de turismo. [Tese de Doutorado, Universidade Federal Fluminense].). Este se apresenta como resultado da prática turística que, ao mesmo tempo em que a concretiza, é transformado por ela, em um processo dialético de des/reterritorialização (Rodrigues, 2006Rodrigues, A. B. (2006). Turismo e territorialidades plurais: lógicas excludentes ou solidariedade organizacional. In A. I. G. de Lemos, M. Arroyo & M. L. Silveira (Orgs.), América Latina: cidade, campo e turismo. CLACSO, Diciembre. ). Ao considerarmos as interrelações dos agentes do fenômeno do turismo, presenciamos o espaço marcado pelas multiterritorialidades geradoras de uma rede complexa de relações (Fratucci, 2014), ocasionada pelos territórios sobrepostos (Haesbaert, 2004Haesbaert, R. (2004). O Mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. Bertrand Brasil.). Assim, o fenômeno deve ser observado para além das ações dos turistas, incluindo, portanto, seus trabalhadores.
Os trabalhadores do turismo, à primeira vista, relacionam-se com o espaço urbano como mão de obra da atividade econômica. No entanto, isso não impede a consideração de outras variáveis da realidade, como o meio onde estão inseridos. Ao assumir que os trabalhadores também contribuem para a produção do espaço apropriado pelo e para o turismo, seus estudos também abrangem o fenômeno do turismo, não apenas da atividade econômica (Costa, 2018Costa, J. C. (2018). A multiterritorialidade dos trabalhadores do turismo de Arraial do Cabo (RJ). [Dissertação de Mestrado, Universidade Federal Fluminense]. ). Dada a importância de reconhecer que, atualmente, o espaço se apresenta multiterritorial, analisar os processos de territorialização dos trabalhadores do turismo torna-se fundamental, apesar de os trabalhadores não terem papel central nas discussões de políticas públicas de turismo no Brasil ou nas pesquisas científicas.
O pensamento complexo auxilia no reconhecimento das incertezas e desordens (Morin, 2005Morin, E. (2005.) Ciência com consciência. 8ª Ed. Bertrand Brasil.) da multiterritorialidade contemporânea articulada reticularmente ou em territórios-rede (Haesbaert, 2014Haesbaert, R. (2014). Viver no limite: território e multi/transterritorialidade em tempos de insegurança e contenção. Bertrand.). A partir desse ponto de vista, o fenômeno do turismo desempenha papel central nas (re)configurações espaciais nas escalas local e global (Fratucci, 2008Fratucci, A. C. (2008). A dimensão espacial nas políticas públicas brasileiras de turismo: as possibilidades das redes regionais de turismo. [Tese de Doutorado, Universidade Federal Fluminense].), e sua análise crítica contribui para o entendimento do objeto em si e de sua episteme (Moesch, 2004Moesch, M. M. (2004). Epistemologia Social do Turismo. [Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo].).
Ainda que a abordagem da multiterritorialidade do turismo seja relevante, ao realizarmos uma revisão de literatura sobre o tema, detectamos que poucos pesquisadores tratam desta interseção no Brasil (Rodrigues, 2006Rodrigues, A. B. (2006). Turismo e territorialidades plurais: lógicas excludentes ou solidariedade organizacional. In A. I. G. de Lemos, M. Arroyo & M. L. Silveira (Orgs.), América Latina: cidade, campo e turismo. CLACSO, Diciembre. ; Costa, 2018Costa, J. C. (2018). A multiterritorialidade dos trabalhadores do turismo de Arraial do Cabo (RJ). [Dissertação de Mestrado, Universidade Federal Fluminense]. ; Carneiro & Fratucci, 2019Carneiro, J., & Fratucci, A. C. (2019). Reflexões sobre a multiterritorialidade e o fenômeno do turismo. In A. P. Portuguez, R. Lanzarini & R. J. Santos (Orgs.), Territorialidades do Turismo (pp. 10 - 41). Barlavento.; Calvente, 2013Calvente, M. del C. M. H. (2013). Turismo e território-rede: o problema da multiterritorialidade restrita das populações tradicionais. Caderno Virtual de Turismo, 13(1), abril.; Assis, 2012Assis, L. F. de. (2012). Entre o turismo e o imobiliário: velhos e novos usos das segundas residências sob o enfoque da multiterritorialidade - Camocim/CE. [Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo]. ; Gomes & Vargas, 2009Gomes, R. C. S., & Vargas, M. A. M. (2009). Relações sócio-espaciais entre nativos e veranistas no litoral sul de Sergipe. Ateliê Geográfico, 3(3), dez.) e no exterior (Fernandes, 2013Fernandes, J. L. J. (2013). Soundscapes and territory: World music in territorial marketing. Geojournal of Tourism and Geosites, 11(1).). Vale destacar que todos os artigos analisados, em revisão de literatura sobre os temas referentes à (multi)territorialidade e turismo, possuem em comum a base teórica das obras de Rogério Haesbaert, caminho também adotado neste trabalho.
Partindo dessa problemática, considerando a urgência dos estudos sobre os trabalhadores do turismo e seus processos de territorialização no fenômeno do turismo, atrelada à ponderação de Lévy (2001Lévy, J. (2001). Os novos espaços da mobilidade. Revista GEOgraphia , 3(6). , p. 6) sobre “como o espaço da mobilidade se estrutura nas práticas e representações, usos e apropriações” dos trabalhadores do turismo tendo em vista o espaço turístico, nosso objetivo geral é compreender a multiterritorialidade dos trabalhadores do turismo de Arraial do Cabo (RJ), especificamente dos trabalhadores da hotelaria, tendo em vista seus espaços de trabalho, lazer e moradia, expressos em aspectos funcionais e simbólicos.
MULTITERRITORIALIDADE DO FENÔMENO DO TURISMO
O território deve ser observado na multiplicidade de suas manifestações e na multiplicidade de poderes, nele incorporado através dos sujeitos envolvidos, por isso os processos de territorialização carregaram consigo as dimensões funcionais e simbólicas. O território é funcional pelo seu papel como recurso natural e substrato material. Pela ótica simbólica, ele está relacionado com a identidade, a partir do espaço vivido (Lefebvre, 1986Lefebvre, H. (1986). La Production de l’Espace. Anthropos.). Tais dimensões nunca se manifestam em estado puro, uma vez que todo território funcional tem sempre alguma carga simbólica, e todo território simbólico sempre inclui algum caráter funcional (Haesbaert, 2004Haesbaert, R. (2004). O Mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. Bertrand Brasil., 2007).
O conceito de território também abrange discussões sobre duas lógicas básicas de territorialização: zonal e reticular. A primeira privilegia a homogeneidade e exclusividade pelo controle de áreas e limites ou fronteiras de maneira contínua (território-zona). A segunda evidencia a heterogeneidade e a multiplicidade, inclusive no sentido de admitir sobreposições espaço-temporais, por meio do controle de fluxos e polos de conexões ou redes, de maneira descontínua e móvel (território-rede). Importante salientar que as duas lógicas não devem ser observadas de forma isolada, uma vez que são complementares e concorrentes no espaço (Haesbaert, 2014Haesbaert, R. (2014). Viver no limite: território e multi/transterritorialidade em tempos de insegurança e contenção. Bertrand.).
A realização espaço-temporal da sociedade atual é marcada por múltiplas formas de organização territorial, e sua intensificação leva Haesbaert (2004Haesbaert, R. (2004). O Mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. Bertrand Brasil.) a denominá-la de multiterritorialidade, entendida como a ocorrência de diversos territórios sobrepostos no espaço. Para análise da multiterritorialidade, Haesbaert (2007) propõe distinguir alguns pontos: 1. os agentes que promovem a multiterritorialização e as profundas distinções em termos de objetivos, estratégias e escalas; 2. o caráter mais simbólico ou mais funcional da multiterritorialidade; 3. os níveis de compressão espaço-tempo nela incorporados, ou seja, as múltiplas "geometrias de poder" dessa compressão, bem como o sentido potencial ou efetivo de sua realização; 4. o caráter contínuo ou descontínuo da multiterritorialidade, entendendo até que ponto ela ocorre pela justaposição de múltiplos territórios, ou corresponde à conexão de múltiplos territórios em rede (distinção entre territórios-zona e territórios-rede); 5. a combinação de "tempos espaciais" incorporada à multiterritorialidade, analisando as implicações das múltiplas territorialidades acumuladas desigualmente ao longo do tempo (Santos, 2008Santos, M. (2008). Espaço e Método. 5ª ed. Editora USP.) na construção da multiterritorialidade.
Um possível desdobramento da multiterritorialidade é a transterritorialidade, entendida como uma “manifestação de uma multiterritorialidade em que a ênfase se dá no estar-entre, no efetivamente híbrido, produzido através dessas distintas territorialidades” (Haesbaert, 2014Haesbaert, R. (2014). Viver no limite: território e multi/transterritorialidade em tempos de insegurança e contenção. Bertrand., p. 285). Enquanto a multiterritorialidade pode implicar a passagem de um território (ou territorialidade) para outro, a transterritorialidade vai além, envolvendo não apenas o trânsito ou a passagem de um território para outro, mas a transformação efetiva dessa alternância em uma situação nova, muito mais híbrida com a vivência concomitante de múltiplos territórios, articulados e sobrepostos (Haesbaert & Mondardo, 2010).
Ao entender que o turismo é uma das variáveis que compõe a configuração territorial, a partir de seu uso, Telles e Valduga (2015Telles, D. H. Q., & Valduga, V. (2015). O “espaço turístico” a partir da multiescalaridade territorial: Complexidade e sistematização conceitual. ABET , 5(3), set./dez., p. 8) propõem entender o fenômeno do turismo “não somente como uma camada técnica sobreposta ao espaço, mas como abertura interpretativa de uma realidade”. O espaço turístico não se encerra em si, ele é o espaço receptor e, ao mesmo tempo, o espaço emissor, não se limitando à ideia de destino e de espaço de oferta e demanda. É o espaço da desterritorialização e da reterritorialização (incluímos a multiterritorialidade), do nomadismo e do sedentarismo (i-mobilidade), formado pelas redes técnicas, que podem ser imperfeitas e que permitem os fluxos (Valduga, 2012Valduga, V. (2012). Sujeito turístico e espaço turístico: Possibilidades teórico-metodológicas para os estudos do turismo. Revista Turismo e Desenvolvimento , 17/18.).
Sobre um mesmo trecho de espaço ocorrem diversos processos de territorialização que se superpõem e compõem o território do turismo, composto pelos territórios produzidos por cada um dos agentes sociais responsáveis pelo acontecer do fenômeno turístico, a saber, territórios dos turistas, dos agentes do mercado, do poder público, dos trabalhadores da atividade (diretos e indiretos) e da população local (Fratucci, 2014Fratucci, A. C. (2014). Turismo e território: relações e complexidades. Caderno Virtual de Turismo . Edição Especial: Hospitalidade e políticas públicas em turismo, 1(14), 87-96.).
Tal ocorrência de diversos territórios dos agentes sociais do turismo sobrepostos, simultaneamente, no mesmo espaço, pode ser analisada pela ótica da multiterritorialidade (Haesbaert, 2004Haesbaert, R. (2004). O Mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. Bertrand Brasil.). Por ser uma prática social marcada pelo hibridismo territorial, tais territórios do turismo se sobrepõem subjugados às novas temporalidades e o resultado é que nada será como antes, considerando-se que a dinâmica territorial é sempre um processo contínuo de criação e recriação de territorialidades (Rodrigues, 2006Rodrigues, A. B. (2006). Turismo e territorialidades plurais: lógicas excludentes ou solidariedade organizacional. In A. I. G. de Lemos, M. Arroyo & M. L. Silveira (Orgs.), América Latina: cidade, campo e turismo. CLACSO, Diciembre. ).
No âmbito dos estudos do Turismo, torna-se essencial o interesse dos pesquisadores ao estudar a geografia de uma localidade, em qualquer escala. Entender o espaço urbano apenas como palco ou como mero pano de fundo para os acontecimentos não é suficiente, o que leva a compreender a cidade como um espaço vivido (Lefebvre, 1986Lefebvre, H. (1986). La Production de l’Espace. Anthropos.) grande propulsor e fomentador para os acontecimentos de ordem política, econômica e cultural no desenvolvimento das cidades, a partir de relações de poder exercidas pelo uso dos territórios (Haesbaert, 2007Haesbaert, R. (2007). Território e Multiterritorialidade: um debate. Revista GEOgraphia , IX(17).; Souza, 2013Souza, M. L. de. (2013). Os conceitos fundamentais da pesquisa sócio-espacial. Bertrand Brasil.).
Segundo Lévy (2001Lévy, J. (2001). Os novos espaços da mobilidade. Revista GEOgraphia , 3(6). ), há uma infinidade de cidades numa cidade, uma multidão de micro acontecimentos que (re)produzem o espaço a partir do indivíduo. No interior deste conjunto, cada um pode inventar a sua cidade, escolhendo os lugares que lhe interessam e eliminando outros. O que não significa que o capital espacial seja o mesmo para todos, uma vez que as desigualdades são latentes.
E, nesses processos dinâmicos de des/reterritorialização, “territorializar-se significa também, [atualmente], construir e/ou controlar fluxos/redes e criar referenciais simbólicos num espaço em movimento, no e pelo movimento” (Haesbaert, 2004Haesbaert, R. (2004). O Mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. Bertrand Brasil., p. 279). Tal movimento é dotado de significado e de expressividade para quem o constrói e/ou para quem dele usufrui, por isso é urgente entender “como o espaço da mobilidade se estrutura nas práticas e representações, usos e apropriações” (Lévy, 2001Lévy, J. (2001). Os novos espaços da mobilidade. Revista GEOgraphia , 3(6). , p. 6) de todos os agentes sociais produtores do fenômeno turismo.
O turismo implica diversas formas de viagens que perpassam pela movimentação (ou imobilização). Mais do que movimentar pessoas entre polos geradores e destinos turísticos, observamos o movimento de “ideias e modelos de sociedade, capitais, trabalhadores, rejeitos (inclusive poluição ambiental), quase sempre sem uma divisão clara entre um ou outro” (Allis, 2016Allis, T. (2016). Em busca das mobilidades turísticas. PLURAL, Revista do Programa de Pós‑Graduação em Sociologia da USP, 23(2)., p. 103). Nesse sentido, a mobilidade é tão espacial quanto geográfica e, ao mesmo tempo, também é tão central para a experiência humana do mundo quanto para o lugar (escala reduzida). É praticada, experimentada, incorporada, representada pela interface entre os corpos físicos móveis e pelas mobilidades representadas. Faz parte do processo de produção social do tempo e do espaço, em que pessoas móveis nunca são simplesmente pessoas, são um modo de ser/estar no mundo (Cresswell, 2006Cresswell, T. (2006). On the Move: Mobility in the Modern Wetern World. Routledge.).
Ponderações sobre mobilidades contemporâneas parecem explicar, direta ou indiretamente, muito do fenômeno turístico, mas nem sempre suas especificidades são levadas em consideração pelos estudiosos do tema. Isso porque, quase sempre, o turismo é estudado de maneira limitada, com maiores atenções para sua vertente econômica ou operacional, como os estudos dos transportes, exclusivamente (Allis, 2016Allis, T. (2016). Em busca das mobilidades turísticas. PLURAL, Revista do Programa de Pós‑Graduação em Sociologia da USP, 23(2).). Além disso, não se deve limitar o debate das mobilidades aos turistas, pois o acontecer turístico é apenas uma forma de mobilidade temporária e, por isso, é relacionado também a outras formas de movimento (Hall, 2008 como citado em Allis, 2016), como dos outros agentes sociais produtores do turismo. Tal questão é reforçada por Fratucci (2014), quando afirma que o espaço apropriado para o turismo é maior que o território do turista, uma vez que é resultado dos somatórios dos territórios sobrepostos de todos os seus agentes sociais produtores.
Esse exercício de ampliação do olhar permite-nos reconhecer e valorizar todos os agentes sociais envolvidos no acontecer do turismo, não só no fazer turístico e não somente à prática da atividade econômica. Todavia, dado o fenômeno do turismo depender majoritariamente dos processos de apropriação e descolamentos do turista, outros processos de territorialização e deslocamentos não têm sido estudados mais a fundo, especialmente aqueles dos trabalhadores do turismo.
Trabalho e os trabalhadores no/do turismo
O trabalho no turismo, a princípio, pode ser caracterizado pelas operações realizadas na prestação de serviços de apoio aos turistas, como o agenciamento de viagens, transportes, alojamento, alimentação e entretenimento. No entanto, observa-se uma dificuldade para a análise dos empregos em atividades especificamente turísticas pois, de um modo geral, seus produtos e serviços não são oferecidos exclusivamente aos turistas (Melliani & Gomes, 2010Melliani, P. F., & Gomes, E. T. A. (2010.) Contradições entre a importância do trabalhador e a precarização das relações de trabalho no turismo: notas primeiras de uma pesquisa de tese para doutoramento. Revista Turismo e Desenvolvimento, 3, 255-264.).
A geração de empregos é um dos impactos positivos do turismo mais reconhecido e amplamente utilizado para justificar determinadas ações públicas e privadas. Na Política Nacional de Turismo, os trabalhadores aparecem apenas indiretamente no contexto da geração de emprego, quase sempre como um objetivo a ser alcançado, como no Artigo 5º, inciso II, ao esclarecer que um dos objetivos da política é a redução das disparidades sociais e econômicas de ordem regional, com a promoção da inclusão social pelo crescimento da oferta de trabalho e melhor distribuição de renda (Brasil, 2008Brasil, Lei Nº 11.771, de 17 de setembro de 2008. Presidência da República, Casa Civil, Subchefia para Assuntos Jurídicos. (2008). http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11771.htm.).
No âmbito acadêmico, as pesquisas realizadas sobre o trabalho no turismo podem ser divididas em cinco temas: perspectiva da gestão; acumulação do capital humano; valor econômico do trabalho no turismo; mobilidade do trabalho; e, por último, o mais recente, que trata sobre turismo e gênero. Há três perspectivas de indivíduos relacionados com o trabalho do turismo: trabalhador do turismo, empregador do turismo e o pesquisador do turismo. De modo geral, os estudos sobre o trabalho do turismo devem ser construídos pela combinação de diferentes pontos de vista e abordagens, essencial para descobrir as complexidades do assunto através de abordagens multidisciplinares (Ladkin, 2011Ladkin, A. (2011). Exploring tourism labor. Annals of Tourism Research, 38(3).).
Fratucci (2008Fratucci, A. C. (2008). A dimensão espacial nas políticas públicas brasileiras de turismo: as possibilidades das redes regionais de turismo. [Tese de Doutorado, Universidade Federal Fluminense].), ao definir os agentes sociais produtores do turismo (a saber, os turistas, o mercado turístico, o poder público, a população residente e trabalhadores), propõe que os trabalhadores possam ser diretos e indiretos. Os trabalhadores diretos são o grupo de agentes sociais que têm no turismo o meio principal de obtenção de renda para sua sobrevivência, podendo ser informais e formais. Os trabalhadores indiretos têm importante função no turismo de um destino, pois graças à complexidade da cadeia produtiva do turismo, os efeitos multiplicadores da atividade geram grande número de empregos e ocupações indiretas.
A abordagem focada no indivíduo - o trabalhador do turismo - é fundamental para que a análise sobre o trabalho no turismo se torne mais completa, visto que são os indivíduos que agem e produzem o fenômeno turístico em sua essência. Segundo Melliani e Gomes (2010Melliani, P. F., & Gomes, E. T. A. (2010.) Contradições entre a importância do trabalhador e a precarização das relações de trabalho no turismo: notas primeiras de uma pesquisa de tese para doutoramento. Revista Turismo e Desenvolvimento, 3, 255-264.), mais do que o responsável pela prestação do serviço, o trabalhador do turismo é o representante da empresa e da cultura local.
Considerando que o olhar do turista é estruturado por noções culturalmente específicas do que é extraordinário, os serviços prestados devem assumir uma forma que não enfraqueça a “qualidade” do olhar. Portanto, as empresas atuam no sentido de assegurar que o serviço prestado pelos trabalhadores, muitas vezes mal remunerados, seja apropriado à qualidade quase sagrada do olhar dos visitantes (Urry & Larsen, 2011Urry, J., & Larsen, J. (2011). The Tourist Gaze 3.0. Sage.).
Observar as rotinas dos trabalhadores do turismo, conduzidas discretamente ou nos bastidores, pode revelar que o hotel ou passeio é um local de trabalho repetitivo, dissipando a ilusão de uma experiência turística única. Contudo, os lugares turísticos também são lugares onde as pessoas trabalham, vivem e operam de forma íntima com o espaço e com outras pessoas, formando rotinas e construindo suas identidades no espaço, compondo multiterritorialidades. Não são apenas não-lugares genéricos e homogêneos, são espaços específicos onde as rotinas de trabalhadores e turistas se cruzam no contexto dos lugares turísticos (Edensor, 2007Edensor, T. (2007). Mundane mobilities, performances and spaces of tourism. Social & Cultural Geography, 8(2), April.).
Os trabalhadores do turismo e seus processos de territorialização
Ao se apreender a mobilidade dos turistas no cotidiano das grandes cidades ou de pequenos territórios turísticos, captam-se deslocamentos diários de trabalhadores para os locais que prestam serviços (Coriolano & Fernandes, 2014Coriolano, L. N. M. T., & Fernandes, L. M. (2014). Da mobilidade do trabalho à mobilidade no turismo. ABET, 4(1), jan/abr. ). Portanto, não se deve negligenciar o papel dos novos fluxos da população residente que demandam aos territórios turísticos com fins de trabalho, tanto no âmbito formal quanto informal (Rodrigues, 2006Rodrigues, A. B. (2006). Turismo e territorialidades plurais: lógicas excludentes ou solidariedade organizacional. In A. I. G. de Lemos, M. Arroyo & M. L. Silveira (Orgs.), América Latina: cidade, campo e turismo. CLACSO, Diciembre. ). Partindo da problemática central deste estudo (compreender os processos territoriais dos trabalhadores do turismo), três pontos-chaves de análise surgem a partir das proposições de Haesbaert (2007Haesbaert, R. (2007). Território e Multiterritorialidade: um debate. Revista GEOgraphia , IX(17).) atrelados às discussões até aqui realizadas:
a) Mobilidade e territorialidade, tanto funcional quanto simbólica, inserindo também a transterritorialidade, a transição por distintos territórios, ao permitir que o trabalhador seja observado também em seus outros papéis no espaço. Incluem-se os movimentos pendulares, migratórios sazonais ou permanentes, perpassando pelas discussões sobre imobilidades, mobilidade restrita/reduzida e pelos territórios reticulares e zonais. Observar as infraestruturas que possibilitam seus fluxos nas e pelas redes. A partir de seus processos de apropriação do espaço urbano, seus fluxos e movimentos pendulares, os trabalhadores podem possuir territórios-rede discrepantes com os territórios-zona, revelando-nos a dimensão regional de análise, dado que tais fluxos podem não se manter dentro dos limites político-administrativos (Haesbaert, 2007Haesbaert, R. (2007). Território e Multiterritorialidade: um debate. Revista GEOgraphia , IX(17).).
Além disso, os trabalhadores são quase sempre vistos como um mal necessário, sendo a eles imputadas todas as mazelas dos territórios rápida e densamente turistificados (Rodrigues, 2006Rodrigues, A. B. (2006). Turismo e territorialidades plurais: lógicas excludentes ou solidariedade organizacional. In A. I. G. de Lemos, M. Arroyo & M. L. Silveira (Orgs.), América Latina: cidade, campo e turismo. CLACSO, Diciembre. ). Por isso, entendendo que o território traz com ele questões sobre poder, tendo em vista tal sobreposição espacial do trabalhador com os demais agentes, cabe a pergunta “Quem domina ou influencia e como domina ou influencia esse espaço?” (Souza, 2013Souza, M. L. de. (2013). Os conceitos fundamentais da pesquisa sócio-espacial. Bertrand Brasil., p. 79).
b) Tempo de lazer e de trabalho. As discussões de tempo de não trabalho, trabalho e lazer para o turista e para o trabalhador do turismo precisam estar juntas para entendermos como as dimensões do trabalho e do turismo interferem e são interferidos nas estruturas de poder na sociedade “pós-moderna”.
Melliani e Gomes (2010Melliani, P. F., & Gomes, E. T. A. (2010.) Contradições entre a importância do trabalhador e a precarização das relações de trabalho no turismo: notas primeiras de uma pesquisa de tese para doutoramento. Revista Turismo e Desenvolvimento, 3, 255-264.), ao tratarem sobre a alienação do trabalho, afirmam que essa relação de poder vai além do estranhamento do trabalhador com seu objeto de trabalho, dado que existe também estranhamento entre o trabalhador e o turista, entre o indivíduo que trabalha e aquele que usufrui do ócio e do lazer. Portanto, a multiterritorialidade do turismo também pode ser vista a partir do encontro do trabalhador com o turista, por conta desse encontro de alteridades. Levar em consideração a distinção entre a vivência de múltiplos territórios e a efetiva multiterritorialidade articulada em territórios flexíveis pode ser uma maneira de analisar essa aparente dicotomia entre esses dois agentes sociais do turismo.
Por outro lado, ao analisarmos o espaço turístico com foco nos trabalhadores, devemos fugir da unilateralidade ao afirmar que um local é estritamente turístico ou marcado pela mobilidade de uns, apresentando-se como um território fraco em sentido simbólico para o morador e para o trabalhador. Há que se destacar sobre as diversas relações sociais que convivem além do olhar do turista. Os trabalhadores que estão presentes nessas localidades fazem delas, muitas vezes, seu lugar, seu espaço vivido (Lefebvre, 1986Lefebvre, H. (1986). La Production de l’Espace. Anthropos.; Edensor, 2007Edensor, T. (2007). Mundane mobilities, performances and spaces of tourism. Social & Cultural Geography, 8(2), April.). Ainda que seu processo de territorialização seja predominantemente funcional (pelo exercício de sua atividade laboral), também possui dimensões simbólicas significativas. Esse indivíduo passa muitas horas do dia em seu local de trabalho, desenvolve relações afetivas com amigos/colegas de trabalho, além de interagir com os turistas para quem presta serviços.
A presença do trabalhador no lugar turístico, considerando suas representações espaciais subjetivas e expressões do tempo e espaço vivido, pode se figurar como uma resistência simbólica em relação ao seu território apropriado (Haesbaert, 2014Haesbaert, R. (2014). Viver no limite: território e multi/transterritorialidade em tempos de insegurança e contenção. Bertrand.) e não somente como alienação pelo trabalho, ainda que de maneira sutil e/ou não intencional. As consequências das práticas turísticas nas localidades têm ligação direta com os usos e apropriações dos territórios dos próprios trabalhadores. Ao mesmo tempo em que seus territórios afetam o espaço turístico, ele é afetado de volta, em uma relação recursiva (Morin, 2005Morin, E. (2005.) Ciência com consciência. 8ª Ed. Bertrand Brasil.) e complementar, no âmbito do espaço turístico. Tais usos na realidade, por vezes, podem se confundir, tornando seus processos de apropriação mais complexos, uma vez que não temos a clara divisão de quando e onde começa e termina determinada prática social de cada território.
O próprio trabalhador possui identidades múltiplas ou sincréticas, ao exercer diversos papéis sucessivamente e, até certa maneira, simultaneamente, ou seja, transterritorializado. O trabalhador, ao desempenhar uma função laboral, está relacionado com o trabalho no turismo. Ao sair de seu trabalho, seu território funcional, passa para seu papel de morador local (caso more na localidade), acarretando uma mudança na territorialização em seu sentido simbólico. Nesse sentido, transita também por outros territórios ao observar sua dinâmica para o lazer. Tudo isso inserido também em uma dinâmica o espaço turístico.
c) A prática de suas funções e atividades, destacando os cargos, horas trabalhadas, remuneração, formação profissional, condições de trabalho, qualificação, atuação formal/informal, raça, etnia e gênero. Ao estudar sobre os trabalhadores do turismo, é preciso estar atento acerca de algumas características e peculiaridades que esse agente social pode apresentar, para então alinhar as pesquisas sobre o tema. O trabalhador do turismo sofre com os efeitos da sazonalidade, da informalidade, da terceirização, da precarização e da heterogeneidade como coletivo, tanto em suas funções e cargos quanto sobre os setores dentro da atividade turística (Cañada, 2020Cañada, E. (2020). Trabalho turístico e precariedade. Turismo: Estudos & Práticas. (Dossiê Temático Seminário Virtual Perspectivas Críticas sobre o Trabalho no Turismo).).
CAMINHOS DA PESQUISA
A complexidade dos estudos do Turismo exige posturas metodológicas mais atentas, que não neguem as contradições e incertezas da sua realidade. Neste sentido, o paradigma da complexidade (Morin, 2005Morin, E. (2005.) Ciência com consciência. 8ª Ed. Bertrand Brasil.) nos auxilia na compreensão do fenômeno do turismo, indicando que a metodologia “deixa de ser uma engrenagem dura e rígida, definida a priori, e passa a ser construída no processo, a partir de sinalizadores” (Baptista, 2014Baptista, M. L. C. (2014). Cartografia de Saberes na Pesquisa em Turismo: Proposições Metodológicas para uma Ciência em Mutação. Revista Rosa dos Ventos, 6(3) jul/set., p. 345). Tal abordagem segue a lógica do fazer fazendo, orientando-se por decisões que emergem do campo, formando a “trilha da viagem”, constituída pelos saberes pessoais, saberes teóricos e laboratório de pesquisa (Baptista, 2014), uma vez que estas etapas estão alinhadas com as perspectivas do paradigma da complexidade.
Em linhas gerais, este trabalho resulta de uma pesquisa empírica exploratória, de caráter qualitativo, dividida em três momentos sincrônicos com as trilhas de pesquisa, permitindo compor a totalidade (mesmo que em parte, sempre incompleta) (Baptista 2014Baptista, M. L. C. (2014). Cartografia de Saberes na Pesquisa em Turismo: Proposições Metodológicas para uma Ciência em Mutação. Revista Rosa dos Ventos, 6(3) jul/set.). Em nossa primeira trilha, onde os saberes pessoais foram recuperados e revisitados, definimos os grandes objetos/conceitos que gostaríamos de estudar: os trabalhadores do turismo e Arraial do Cabo, a partir de uma visão espacial. Ao buscarmos os saberes teóricos que poderiam nortear nossas reflexões (segunda trilha), percebemos que pouco se estudou sobre os trabalhadores do turismo e o território, sobretudo tendo Arraial do Cabo como objeto. A partir disso, muitas indagações foram levantadas: Quem seriam os trabalhadores do turismo? Arraial do Cabo seria um “bom” campo de pesquisa para esse objetivo? Como ir a campo e levantar discussões teóricas sobre os estudos do Turismo? Foi decidido, portanto, realizar entrevistas com os trabalhadores dos empreendimentos hoteleiros com objetivo de mapear seus territórios em consonância com as considerações apontadas sobre os trabalhadores esclarecidas na seção anterior, sendo pautados em seus espaços de trabalho, lazer e moradia e aspectos funcionais e simbólicos (Haesbaert, 2007Haesbaert, R. (2007). Território e Multiterritorialidade: um debate. Revista GEOgraphia , IX(17).).
Na terceira trilha, o laboratório de pesquisa, vivenciamos dois momentos: O primeiro momento do campo esteve relacionado com o mapeamento da hotelaria de Arraial do Cabo, RJ. Foram identificados 120 meios de hospedagem a partir da pesquisa do Inventário Turístico do estado do Rio de Janeiro (base Arraial do Cabo), sendo reforçado por buscas online em anúncios da oferta hoteleira e confirmação presencial no município. Posteriormente, entramos em contato com cada estabelecimento, durante o mês de dezembro de 2017, a fim de identificarem-se o número de unidades habitacionais (UHs) e leitos disponíveis. Chegamos ao número de 102 meios de hospedagem, após a exclusão dos estabelecimentos com os quais não conseguimos contato e os que se enquadravam como hospedarias familiares que oferecem apenas dois ou três quartos para aluguel de temporada. Ao analisar a organização territorial destes estabelecimentos, dividimos a área do distrito-sede de Arraial do Cabo em sete áreas de estudo (Figura 1).
Posteriormente, os meios de hospedagem foram mapeados seguindo as áreas propostas na Figura 1: Canaã (11), Praia dos Anjos (32), Centro (14), Monte Alto/Figueira (3), Praia Grande (25), Pontal do Atalaia (3) e Prainha (14) - (Figura 2).
Imagem da organização espacial hoteleira do distrito-sede de Arraial do Cabo, RJ (dividida pelas áreas)
O segundo momento consistiu na pesquisa de campo, com a realização das entrevistas semiestruturadas com os trabalhadores dos meios de hospedagem identificados. As amostras dos meios de hospedagem e dos trabalhadores caracterizou-se como não-probabilística, por permitir acesso a um conhecimento detalhado e circunstancial da vida social (Deslauires & Kérisit, 2008Deslauires, J., & Kérisit, M. (2008). O delineamento da pesquisa qualitativa. In Poupart, J. et al. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos (pp. 127 - 153). Vozes. ).
A amostra dos meios de hospedagem selecionada foi proporcional à quantidade de estabelecimentos que cada área possuía; quanto maior o número de meios de hospedagem verificados a partir do universo (Figura 2), maior o número de estabelecimentos selecionados, a fim de evitar enviesamento amostral (Figura 3). Em áreas com números de meios de hospedagem com até 15 estabelecimentos, foram selecionados em torno de 3; e acima de 15, foram selecionados 6. Além disso, foram escolhidos meios de hospedagem com maior número de unidades habitacionais, visto que, a princípio, possuem mais funcionários, otimizando a coleta de dados. A distribuição espacial por bairros também levou em consideração os tipos de meios de hospedagem, como pousadas, albergues e hotéis. Como último critério, escolhemos os meios de hospedagem mais antigos.
A coleta de dados do campo foi realizada em cinco dias do mês de janeiro de 2018: 24/01 (quarta-feira), 25/01 (quinta-feira), 26/01 (sexta-feira), 29/01 (segunda-feira) e 30/01 (terça-feira). Todos os meios de hospedagem selecionados foram visitados e a abordagem com os respondentes foi simples e direta. Dirigimo-nos aos hotéis sem realizar contato prévio e, em geral, os funcionários da recepção eram abordados. Ao explicar sobre a pesquisa, solicitávamos a participação deles e de outros funcionários. Por vezes era necessária uma explicação também para o gerente. Em praticamente todos os estabelecimentos, conseguimos entrevistar uma ou duas pessoas da recepção, uma da cozinha ou limpeza e, por vezes, o gerente ou dono do estabelecimento. Obtivemos entre dois e três entrevistados por meio de hospedagem, distribuídos em 21 estabelecimentos, totalizando 52 respostas completas. O processo de construção do formulário nos permitiu manter o rigor científico pretendido, uma vez que ele foi construído a partir das propostas de análise sobre multiterritorialidade proposta por Haesbaert (2007Haesbaert, R. (2007). Território e Multiterritorialidade: um debate. Revista GEOgraphia , IX(17).).
Arraial do Cabo foi escolhido para a pesquisa dada sua importância no turismo no estado do Rio de Janeiro, pela sua dimensão territorial reduzida (o que facilitou a aplicação da metodologia exploratória) e pelo interesse pessoal dos autores. O município pertence à região turística da Costa do Sol, limitando-se ao norte com Cabo Frio, a leste e a sul com o Oceano Atlântico e a oeste com Araruama (Figura 4). Sua área terrestre é de 160,287 km², onde vivem cerca de 30.500 habitantes (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE], 2021Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. (2021, março 15). Cidades e Estados, Arraial do Cabo. https://www.ibge.gov.br/cidades-e-estados/rj/arraial-do-cabo.html.
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).
Arraial do Cabo tem sua história composta por três períodos socioeconômicos distintos que se confundem, tornando sua realidade complexa. Até meados da década de 1950, a pesca era a principal fonte de renda e reprodução social da população cabista. Com a instalação da Companhia Nacional de Álcalis, a mineração passou a ser a principal atividade econômica, juntamente com a pesca. Com o encerramento da operação da empresa em 2006, muitos ex-funcionários voltaram-se inteiramente para a pesca, que já se encontrava em declínio, e para o turismo, que está presente no município mais intensamente a partir da construção da Ponte Rio-Niterói (década de 1970). Com a rápida dinamização do turismo nesta época, a demanda por residências para veraneio aumentou, estimulando também a hotelaria local (Fratucci, 2001Fratucci, A. C. (2001). O ordenamento territorial da atividade turística no Estado do Rio de Janeiro: processos de inserção dos lugares turísticos nas redes do turismo. [Dissertação de Mestrado, Universidade Federal Fluminense].; Santiago & Deslandes, 2011Santiago, R. B., & Deslandes, R. (2011). Políticas públicas e ordenamento territorial em áreas de preservação ambiental na Região dos Lagos, Rio de Janeiro. Revista Geográfica de América Central, 2, julio/diciembre.).
DISCUSSÃO DOS RESULTADOS
A apresentação e discussão dos resultados se dará em duas partes. A primeira, são abordados os movimentos pendulares diários (de trabalho), incluímos também os deslocamentos para o lazer desses grupos (em parte, mais descritiva), entendidos à luz da dinâmica multiterritorial pautada em territórios e redes e suas lógicas funcionais e simbólicas. Posteriormente, pontuaremos discussões a partir de suas especificidades como foco na ocorrência de processos de transterritorialidades e suas mobilidades.
Movimentos pendulares diários, de lazer e sazonais dos trabalhadores do turismo de Arraial do Cabo (RJ)
À luz da teoria discutida anteriormente, sabendo que a multiterritorialidade atualmente se mostra complexa pela possibilidade de experimentarmos “vários territórios ao mesmo tempo e de, a partir daí, formular uma territorialização efetivamente múltipla” (Haesbaert, 2004Haesbaert, R. (2004). O Mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. Bertrand Brasil., p. 344), um mesmo indivíduo carrega consigo diversas territorialidades e características inerentes a ele, e por isso cada indivíduo ou grupo se mostra de uma forma específica.
Portanto, para entender como esse grupo se apresenta, no primeiro momento, eles podem ser divididos entre dois subgrupos: trabalhadores-moradores (42 entrevistados) (moradores nativos e migrantes) e trabalhadores-não moradores (10 entrevistados) (indivíduos que trabalham na localidade e realizam migração pendular diária - regional; e migração sazonal - nacional e internacional).
Nos movimentos intramunicipais dos trabalhadores-moradores, não percebemos um padrão que se destaca sobre as áreas em que residem e em que trabalham, uma vez que o tempo médio de deslocamento para chegar ao trabalho informado pelos entrevistados é de cerca de 10 minutos, em sua maioria percorridos a pé.
Os locais de lazer destes trabalhadores-moradores se estendem, sobretudo, aos municípios de Cabo Frio e Arraial do Cabo, incluindo praticamente os mesmos lugares e abrangendo um número reduzido de locais. À primeira vista, podemos supor que, ainda que esses indivíduos transitem por territórios por eles escolhidos, seus deslocamentos se encontram articulados em rede, dentro de um tipo de bolha onde mantêm (todas) suas necessidades básicas (e suas práticas culturais) garantidas, em uma multiterritorialidade fraca em seu sentido simbólico (Haesbaert, 2014Haesbaert, R. (2014). Viver no limite: território e multi/transterritorialidade em tempos de insegurança e contenção. Bertrand.) que, de alguma forma, podem ser consequência ou causa (dialogicamente) de uma possível restrição de suas mobilidades.
Sobre os trabalhadores-não moradores, seus movimentos pendulares são realizados a partir dos municípios de Cabo Frio ou São Pedro d´Aldeia e demoram em média, 45 minutos; metade dos entrevistados informou utilizar ônibus e outra metade, veículo próprio. No geral, trabalham em estabelecimentos hoteleiros maiores (em número de unidades habitacionais), e possuem ensino superior completo. Desse grupo, ninguém nasceu em Arraial do Cabo, e a metade é advinda de fora da região e do próprio estado do Rio de Janeiro.
Sobre seus locais de lazer, percebemos que os trabalhadores-não moradores possuem relação com o município de Arraial do Cabo predominantemente pelo trabalho, pois informaram não o frequentar a lazer e pouco discorrerem nas perguntas mais específicas sobre o turismo no município. Somado a isso, interessante apontar que frequentam, em Cabo Frio, os mesmos locais de lazer que os trabalhadores-moradores de Arraial do Cabo indicaram.
A partir dessas informações, podemos afirmar que os territórios-rede dos trabalhadores-não moradores são mais densos pelo caráter funcional, tanto em seus deslocamentos quanto no nó receptor (Arraial do Cabo). Exercem movimentos diários pendulares que são pouco territorializadores e possuem fraca expressão simbólica com o território, se caracterizando mais pela lógica funcional, de ir e voltar do trabalho para a residência (Haesbaert, 2014Haesbaert, R. (2014). Viver no limite: território e multi/transterritorialidade em tempos de insegurança e contenção. Bertrand.). Desse modo, Arraial do Cabo se configura estritamente como um nó que se manifesta para esses indivíduos a partir de relações de trabalho, uma vez que em seus processos de reterritorialização se mostram pouco fortalecidos simbolicamente.
Nesse sentido, corroboramos com a Fratucci (2008Fratucci, A. C. (2008). A dimensão espacial nas políticas públicas brasileiras de turismo: as possibilidades das redes regionais de turismo. [Tese de Doutorado, Universidade Federal Fluminense].), ao afirmar que, no jogo complexo de territorialização, os trabalhadores do setor turístico ora se apropriam do espaço de forma zonal, misturando seu lugar de vida com o seu espaço de trabalho (no caso dos trabalhadores moradores), ora se apropriam apenas reticularmente, vislumbrando o destino turístico apenas como espaço de trabalho (trabalhadores não moradores do município).
O número de pessoas “de fora” se mostrou muito expressivo (32 indivíduos), e por isso, cabe um breve panorama sobre os fluxos dos trabalhadores para além de seus movimentos diários, uma vez que as mobilidades precisam ser examinadas ao longo da duração do ciclo de vida, de modo que as ligações e relações entre as diferentes formas de mobilidades "temporárias" e "permanentes", particularmente o turismo e a migração de conveniência possam ser devidamente apreendidos (Hall, 2005Hall, M. (2005). Reconsidering the Geography of Tourism and Contemporary Mobility. Geographical Research, 43(2).).
Podemos distinguir as motivações que levaram os entrevistados não naturais da região a saírem de suas cidades de origem e escolher Arraial do Cabo em três grandes eixos: caos urbano, questões familiares e emprego. Ao falarmos de caos urbano, estamos nos referindo à agitação, desordem, violência e poluição das grandes cidades onde esses indivíduos moravam. São advindos em sua maioria do Rio de Janeiro e Niterói e escolheram Arraial do Cabo por conta de sua tranquilidade e segurança. A maioria dos entrevistados afirmou que o motivo maior que os fizeram se mudar para Arraial do Cabo, ou municípios próximos, tem relação com questões familiares, como o intuito de ficarem mais próximos de um parente, ou pelo então futuro cônjuge morar na região. São advindos basicamente de outras cidades do próprio estado do Rio de Janeiro e de outros estados brasileiros, configurando um território-rede mais amplo que do primeiro grupo.
As migrações motivadas pela busca de emprego podem ser analisadas na dimensão da mobilidade do trabalho, mudança de residência motivada pelo trabalho (Coriolano & Fernandes, 2014Coriolano, L. N. M. T., & Fernandes, L. M. (2014). Da mobilidade do trabalho à mobilidade no turismo. ABET, 4(1), jan/abr. ). Os locais de origem destes indivíduos entrevistados se mostraram diversos, advindos de outros estados e de outros países, como Argentina, geralmente com o objetivo de empreender ao abrir o próprio negócio.
Em linhas gerais, existe (relativa) concordância de que as apropriações do espaço de trabalho têm como predominância o caráter funcional e, no espaço doméstico, o caráter simbólico. No entanto, ao refletirmos sobre os trabalhadores que moram nos locais onde exercem sua atividade laboral, acreditamos que tais indivíduos possuem distintos graus de apropriações simbólica e funcional. Nesses casos não existe mobilidade física, mas sim territórios de caráter subjetivo mais flexíveis que permeiam as lógicas territoriais. Estão em processo de transterritorialização nos espaços sem que seus sujeitos, obrigatoriamente, transitem fisicamente por múltiplos territórios.
Os trabalhadores que moram nos meios de hospedagem podem ser divididos entre: os donos do estabelecimento (pousadas familiares e albergues) e funcionários temporários, que trabalham em alta temporada (voluntários ou remunerados). O fato de os indivíduos morarem nos locais onde trabalham faz com que sua relação com o espaço apropriado seja complexa. A ausência de uma definição clara sobre tempo de trabalho e de não trabalho pode ser vista pelas respostas de perguntas como ‘quantas horas trabalha no estabelecimento?’, ‘qual o cargo que ocupa?’. Não sabiam quantas horas ao certo passam trabalhando, já que a qualquer momento do dia podem exercer alguma atividade relativa ao meio de hospedagem. Inclusive, essas atividades podem variar também, uma vez que não estão sempre enquadrados em uma função de um cargo específico.
As mesmas instalações são, para esses indivíduos, território de trabalho e de moradia, e essa realidade dual (quase) concomitante pode fazer com que um território interfira no outro recursivamente, de maneira explícita ou tênue. Por essa diferença entre os usos territoriais dos distintos indivíduos, destacamos que é de grande importância relativizar e não generalizar os cargos, funções e posições dos trabalhadores a partir seus processos de apropriação espacial. Mas sim, observar de forma singular e atenta cada realidade.
Os trabalhadores que moram no local de trabalho temporariamente exercem uma migração sazonal, de forma recorrente ou não. Observamos que a prática do lazer é adicionada aos territórios desses trabalhadores mais nitidamente, os quais já possuem interrelações com as práticas de trabalho e de moradia (ainda que temporária). Seus processos de territorialização são mais intensos em um curto espaço de tempo, por ser sazonal (cerca de três meses) e circular (ida e volta), além disso, seus territórios-rede são abrangentes (originários de outros estados e países).
Ao olharmos as primeiras ponderações até aqui, propomos fornecer uma visão mais “organizada”/recortada para os deslocamentos e processos de territorialização dos trabalhadores pautados por seus territórios-rede. Todavia, temos a consciência de que a distinção entre mobilidade cotidiana/residencial e mobilidade sazonal se torna cada vez mais difícil. As rotinas totalmente repetitivas se tornam raras, enquanto as mobilidades profissionais ou de lazer ocupam quase todas as situações intermediárias entre a reprodução espacial (Lévy, 2001Lévy, J. (2001). Os novos espaços da mobilidade. Revista GEOgraphia , 3(6). ).
Nesse sentido, colocamos uma lente na tríade territórios de trabalho, residência e lazer dos entrevistados a partir das discussões da multiterritorialidade, reconhecemos que a realidade posta não se mostra tão delimitada e cristalizada por esses três momentos. Por isso, é necessário nos desvencilharmos dessas binaridades clássicas para apreender a nervura própria do campo social, a partir de indagações “sobre os campos de experiência em suas novas configurações, não mais as relações de classe de antes”, incluindo também as “miríades de outras situações de trabalho que hoje compõem o mundo urbano” (Telles, 2006Telles, V. da S. (2006). Mutações do trabalho e experiência urbana. Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, 18(1). , p. 192).
Multi/Transterritorialidade e mobilidade dos trabalhadores
Ampliando o olhar para todos os trabalhadores do turismo, moradores ou não de Arraial do Cabo, cabe pontuar discussões a partir de suas especificidades com o foco nos processos de multi/transterritorialidade e mobilidade desses trabalhadores.
Ao longo das entrevistas e em conversas informais posteriores, alguns comentários indicando a insatisfação sobre oferta de lazer em Arraial do Cabo foram recorrentes. Alguns trabalhadores disseram não possuir tempo destinado para o lazer e que “Arraial não tem nada para fazer”, “Morava em Arraial, mas não tinha nada para fazer”, “Arraial é uma roça”, “Arraial é muito vazio, o restante do ano não tem nada”.
De modo geral, a oferta turística e de lazer de Arraial do Cabo nos parece ser suficiente para a demanda atual de turismo (sol e praia e turismo náutico) no município, uma vez que o fluxo de turistas ao longo do ano é bastante expressivo, atraindo demanda regional, nacional e internacional. No entanto, para a população, a oferta de muitos serviços ainda é insuficiente, principalmente a cultural e de lazer. Alguns moradores comentam que em alta temporada existem algumas atrações, direcionadas para o turista, que eles também usufruem. O comentário de um recepcionista resume bem a percepção dos entrevistados: “Quando os turistas vêm tem mais coisa para fazer na cidade. Ainda é pouco, mas a cidade fica movimentada”.
Tais declarações nos direcionam às discussões sobre mobilidade de Lévy (2001Lévy, J. (2001). Os novos espaços da mobilidade. Revista GEOgraphia , 3(6). ), quando afirma que devemos considerar a mobilidade como um sistema de movimentos potenciais (virtualidades), classificadas em três categorias: mobilidade como possibilidade, mobilidade como competência e mobilidade como capital.
Primeiro, segundo Lévy (2001Lévy, J. (2001). Os novos espaços da mobilidade. Revista GEOgraphia , 3(6). ), a mobilidade torna-se possível porque existe uma oferta de mobilidade pela acessibilidade aos transportes e pela variedade de escolha entre os bens ou serviços e, com isso, a possibilidade de escolher entre os lugares para acessar a partir do deslocamento revela-se decisiva. O que importa, definitivamente, é a relação triangular entre o desejado, o possível e o realizado, uma relação em que cada polo exerce influência sobre os outros.
Em seguida, a mobilidade é efetiva, porque os seus operadores possuem uma competência de mobilidade caracterizada pela relação entre o espaço virtual das mobilidades oferecidas e o espaço das mobilidades realizadas. Já a mobilidade como capital social seria o conjunto constituído pela possibilidade, pela competência e pelas arbitragens que a segunda permite sobre a primeira, possibilitando ao indivíduo desdobrar melhor a sua estratégia no interior da sociedade (Lévy, 2001Lévy, J. (2001). Os novos espaços da mobilidade. Revista GEOgraphia , 3(6). ).
Dito isso, a partir destes apontamentos, os resultados da pesquisa nos permitem afirmar que os trabalhadores do turismo de Arraial do Cabo possuem restrições sobre suas mobilidades, por não possuírem uma oferta de atividades e equipamentos de lazer satisfatórios, a mobilidade como possibilidade não se desenvolve, fazendo com que as suas mobilidades como competência e capital não sejam despertadas.
Reflexões anteriores sobre seus fluxos de trabalho e lazer realizados em rede, inseridos em um tipo de bolha (onde os lugares de lazer eram muito similares e reduzidos quantitativamente), sendo caracterizados por uma multiterritorialidade fraca em sua dimensão simbólica, confirmam-se, uma vez que o engessamento da mobilidade desses indivíduos também é restringido pela oferta de lazer (in)disponível.
Neste âmbito do estudo do espaço turístico, é inevitável contrapor a oferta de lazer que satisfaz aos turistas e aos trabalhadores. Tal abordagem também está ancorada na diferenciação entre seus usos territoriais como um todo, isso porque a multiterritorialidade também pode ser vista a partir do encontro do trabalhador com o turista.
À primeira vista, a diferença entre seus usos territoriais recai sobre a distinção entre a vivência de múltiplos territórios (trabalhador) e a efetiva multiterritorialidade articulada em territórios flexíveis (turista), traduzidos, respectivamente, pela imobilidade do trabalhador diante da mobilidade do turista. Tal realidade está pautada em mobilidades diferenciadas entre esses dois agentes, resultado da nuance irônica das mobilidades turísticas: para que uns exerçam suas mobilidades, outros permanecem imobilizados. Insere-se, portanto, discussões sobre as relações de poder que os agentes sociais do turismo afetam e são afetados (Souza, 2013Souza, M. L. de. (2013). Os conceitos fundamentais da pesquisa sócio-espacial. Bertrand Brasil.).
Diante de tal mobilidade diferencial, a compressão espaço-tempo e o controle de alguns grupos podem enfraquecer de forma ativa o poder de outras pessoas (Massey, 1993 como citado em Haesbaert, 2004Haesbaert, R. (2004). O Mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multiterritorialidade. Bertrand Brasil.). Por outro lado, saindo de uma visão de diferenciação entre esses dois agentes sociais, ao resgatarmos discussões sobre a transterritorialidade, podemos afirmar que, ao passo da ocorrência do encontro com o turista, o trabalhador pode transitar por outras territorialidades, basicamente simbólicas, a partir das trocas culturais e, por isso, este indivíduo “está-entre” territórios, ocasionando uma situação muito mais híbrida e nova (Haesbaert & Mondardo, 2010).
No caso de Arraial do Cabo e dos entrevistados, ao levarmos em consideração esses encontros, percebemos que, de modo geral, suas territorialidades podem se apresentar mais estáveis do que instáveis, não ocorrendo mudanças atenuantes em longo prazo entre os dois elementos (Raffestin, 1993Raffestin, C. (1993). Por uma Geografia do Poder. Ática.). Tal elucidação foi baseada nas percepções dos trabalhadores sobre não haver locais destinados exclusivamente aos visitantes e aos moradores, entendendo essa “mistura” como um fator positivo. Muitos completavam a resposta afirmando que “os turistas só frequentam os lugares porque nós levamos” ou “a gente leva os turistas quando não está trabalhando”. Essa ideia mostra que o trabalhador morador se vê dono, pertencente ao lugar, e recepciona o visitante, acreditando que os turistas só frequentam os mesmos espaços quando o ele leva. O encontro “amigável” entre turistas e trabalhadores pode ser reforçado pelo comentário de um gerente ao afirmar que “o morador tem curiosidade de saber mais sobre o turista, já o turista se sente mais acolhido, conhecedor da cidade”.
Outra questão que reforça a realidade do município sobre a coexistência do trabalhador-morador com o turista está relacionada com a grande quantidade de casas de segunda residência, onde a mistura entre os moradores permanentes com os temporários é potencializada. Essa mescla é percebida na paisagem e nas relações vividas, uma vez que casas e apartamentos vazios em grande parte do ano sobressaem aos olhos. Em relação ao vivido, ao dia a dia, a fala de uma trabalhadora explica bem tal realidade: “Não conseguimos mais saber quem é cabista e quem não é. Todos andam pelos mesmos lugares e fazem as mesmas coisas”.
Ainda que não haja uma segregação espacial urbana nítida e recortada em relação ao território do turista, a partir do momento que a oferta de atividades de lazer e cultura não contempla os moradores, existe uma exclusão simbólica e sutil relacionada à mobilidade desigual, como afirmamos anteriormente.
Outro aspecto interessante percebido no campo foi de que, ao longo das entrevistas, muitos transitavam entre discurso de “morador” e de “trabalhador”. Na prática diária desses indivíduos, pouco importa a definição exata de seus “momentos”, mas para entender as dinâmicas territoriais dos trabalhadores é importante destacarmos esse trânsito entre territorialidades. A transição de papéis de um indivíduo dentre as classificações dos agentes sociais é recorrente: trabalhador ora fala como morador, ora como trabalhador, demonstrando que “está-entre” essas territorialidades (Haesbaert & Mondardo, 2010Haesbaert, R., & Mondardo, M. (2010). Transterritorialidade e antropofagia: territorialidades de trânsito numa perspectiva brasileiro-latino-americana. Revista GEOgraphia, 12(24).), configurando processos de transterritorialidade.
Isso porque, enquanto a multiterritorialidade pode implicar a passagem de um território para outro, assumindo novas condições em momentos diferentes de um mesmo processo, como os territórios de trabalho, domicílio e lazer claramente delimitados, a transterritorialidade vai além (Haesbaert & Mondardo, 2010Haesbaert, R., & Mondardo, M. (2010). Transterritorialidade e antropofagia: territorialidades de trânsito numa perspectiva brasileiro-latino-americana. Revista GEOgraphia, 12(24).).
Ao observar uma indefinição sobre qual lugar de onde fala o entrevistado, a seguinte indagação nos ocorreu: os proprietários dos meios de hospedagem poderiam ser incluídos no grupo dos trabalhadores do turismo?
Por um lado, acreditamos que sim, pois não são todos os proprietários que exercem um tipo de multiterritorialidade flexível. Em uma escala mais reduzida, existem muitos empreendimentos de pequeno porte com poucos funcionários e um dono, sendo que eles praticamente compartilham as mesmas funções. No entanto, em um hotel de maior porte conseguimos ver nitidamente aqueles que consideramos trabalhadores e os agentes de mercado, caracterizado pelo proprietário.
O empresário local, quase sempre de menor porte, adota a lógica zonal, mais permanente, tendo em vista sua relação com aquele território, abrangendo suas relações pessoais e de vida. Já o empresário exógeno, normalmente representado por grandes empresas e empreendimentos, tende a adotar uma lógica mais reticular, flexível (Fratucci, 2008Fratucci, A. C. (2008). A dimensão espacial nas políticas públicas brasileiras de turismo: as possibilidades das redes regionais de turismo. [Tese de Doutorado, Universidade Federal Fluminense].). Contudo, delimitar esse recorte sempre que analisarmos os trabalhadores do turismo nos parece leviano. As relações de poder presentes em relações hierarquizadas nos cargos e funções no trabalho do turismo não podem ser negadas. A condição desfavorável de um empregado tem relação direta com a posição de seu empregador.
Pela ótica marxista, os proprietários não poderiam ser incluídos como trabalhadores, uma vez que são donos de um meio de produção, e não somente oferecem sua força de trabalho. Paiva e Vargas (2010Paiva, R. A., & Vargas, H. C. (2010). Os agentes produtores e consumidores do "Espaço Turístico". In Anais. São Paulo: FAUUSP/LABCOM.) destacam que o proprietário dos meios de produção e consumo, agentes articulados com atividades relacionadas ao comércio e serviços e a terra urbana, cumpre um duplo papel: suporte físico e expressão dos requisitos locacionais da atividade (fator que os diferenciam dos trabalhadores).
Neste sentido, ainda que pese contradições ou questões trazidas nestas discussões (ainda) inconclusivas, destacamos a importância a questões e categoriais de análises acerca dos trabalhadores do turismo apontadas, tendo em vista seus territórios inseridos na dinâmica do turismo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A escolha metodológica de considerar os territórios de lazer, moradia e trabalho dos trabalhadores em questão forneceu a oportunidade de análise mais ampla da realidade e, com isso, estar aberto às questões relevantes do campo. Os fluxos dos trabalhadores do turismo não se restringem somente aos movimentos pendulares diários, mas a todos os tipos de mobilidades, uma vez que nossas próprias identificações e referências espaço-simbólicas são feitas não apenas no enraizamento, no fixo, mas também na mobilidade.
O território possui caráter problematizador, uma vez que os conceitos, de um modo geral, não devem ser vistos como resposta, mas sim como questões postas à realidade. Dado isso, o caráter abrangente e rico da multiterritorialidade nos permitiu observar o fenômeno do turismo a partir dos fluxos, mobilidades e processos de apropriação espacial desse agente territorializador, o trabalhador, alcançando, assim, o objetivo central do trabalho. Além disso, alinhada com o caráter exploratório da pesquisa, apresentamos diversos resultados que emergiram do campo, auxiliando assim análises mais pontuais. Por isso, neste momento cabe destacar alguns “achados” que o campo nos permitiu observar à luz da teoria: a importância dos territórios de lazer e o protagonismo para o olhar do trabalhador.
Os locais que os trabalhadores do turismo deste município frequentam a lazer são muito similares, resultado de deslocamentos articulados em rede, porém dentro de um tipo de bolha onde têm (todas) suas necessidades básicas (e suas práticas culturais) garantidas, em uma multiterritorialidade fraca no sentido simbólico. Somando-se à carência da oferta de lazer e cultura do município, limitando as articulações da maioria dos trabalhadores, percebemos que suas mobilidades se apresentam restritas, basicamente em sua condição da possibilidade. Por isso, é inevitável a correlação entre a vivência de múltiplos territórios, zona do trabalhador e a efetiva multiterritorialidade articulada em territórios flexíveis, reticular do turista, acarretando a imobilidade do trabalhador e mobilidade nítida do turista.
Se nos atentarmos por esta ótica, seria fantasioso afirmar que o aumento do fluxo de turistas estimularia o investimento e crescimento da cidade (discurso amplamente proferido para justificar certas ações políticas). Portanto, há que se ponderar se existe o interesse do poder público de estimular uma maior oferta de lazer e cultura em Arraial do Cabo, se o fluxo de turistas que vai à cidade está procurando seus recursos naturais, e não estruturas de lazer e cultura que já possuem em seus territórios de origem.
O espaço urbano de Arraial do Cabo não é, de certa forma, segregado fisicamente, por não existirem lugares destinados especificamente para o turista ou para o morador. Porém, ao passo que a oferta de atividades de lazer não contempla os moradores, existe uma exclusão simbólica do espaço, resultado da preferência da manutenção de infraestruturas turísticas, visando mais especificamente os turistas do que uma efetiva ação para a população.
Tais possibilidades de análise direcionam o foco também para o estudo das interações estabelecidas entre os agentes sociais do turismo e com os outros sistemas que formam o meta-sistema onde se inserem, ou seja, um olhar mais abrangente pelo espaço turístico, tópico que carece maior aprofundamento. Além disso, ao olharmos o trabalhador do turismo a partir de um diálogo entre teoria e prática, precisamos avançar na epistemologia do turismo, mais especificamente sobre os agentes sociais do turismo que agem e são afetados por esse fenômeno, sobretudo os trabalhadores do turismo.
AGRADECIMENTOS
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES), sendo resultado da dissertação de mestrado da autora Juliana Carneiro (Costa, 2018) no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Turismo da Universidade Federal Fluminense, sob orientação do professor doutor Aguinaldo Cesar Fratucci.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
25 Out 2021 -
Data do Fascículo
Sep-Dec 2021
Histórico
-
Recebido
24 Abr 2020 -
Aceito
04 Mar 2021