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César Ades (08.I.1943 - 14.III.2012)

OBITUARY

Post-doctorate, Departamento de Zoologia, Universidade Federal do Paraná. Caixa Postal 19020, 81531-980 Curitiba, PR, Brazil. E-mail: eduramires@yahoo.com

Escrever sobre uma pessoa de personalidade tão carismática, de vida tão rica em experiências, e de trajetória tão profícua como o César não é fácil. Seu caminho profissional ao longo de 47 anos explica em boa parte o desenvolvimento dos estudos e a formação de profissionais atuantes na área de comportamento animal no Brasil. Nos conhecemos em 1993, e a partir de 1994 iniciei o Doutorado sob sua orientação, no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). Acho que uma relação passional com a indagação define em parte sua trajetória, que envolveu investigação e orientação de trabalhos sobre quase 60 espécies de insetos, aranhas, mamíferos (Homo sapiens incluso!). Dentre suas variadas publicações, encontram-se "A dog at the keyboard: using arbitrary signs to communicate requests" (2008), "O morcego, outros bichos e a questão da consciência animal" (1997), "Experimental studies of elementary reasoning: evolutionary, physiological and genetic aspects of behavior" (1992), "O que aprendem e de que se lembram as aranhas" (1989) e "Entre Eidilos e Xenidrins: experiência e pré-programas no comportamento humano" (1986). Dizia por vezes "minha linha de pesquisa é a curiosidade", quando lhe indagavam sobre o currículo tão eclético. Orientou 34 projetos de Mestrado e 22 de Doutorado, 15 Trabalhos de Conclusão de Graduação, 72 Iniciações Científicas. Seus orientandos tinham diversas formações profissionais. Segundo César, "beneficiei-me muito em conviver com biólogos, veterinários e zootecnistas, antropólogos e psicólogos, para a construção do conhecimento a respeito do comportamento. O surgimento da Etologia no Brasil se caracteriza como um empreendimento a várias mãos" (KINOUCHI & RAMOS 2011: Scientiae Studia 9 (1): 189-203). Foi professor titular do Instituto de Psicologia da USP (1994), vice-diretor (1998-2000) e depois diretor (2000-2004) dessa mesma unidade; diretor do Instituto de Estudos Avançados da USP (2008-2012), entre vários outros cargos administrativos e consultivos na USP e em outras várias instituições.

Um quinhão do que relato aqui são memórias de nossas conversas e convivência, em uma relação de orientação de doutorado que se estendeu para amizade. Apresento também excertos de seu pensamento, retirados de uma entrevista recente (KINOUCHI & RAMOS 2011). César Ades, um dos filhos de Céline e Tewfik, nasceu em oito de janeiro de 1943 no Cairo e viveu no Egito com sua irmã Mireille e seu irmão Alberto até 1958, estudando em escolas francesas no Egito e no Liceu Pasteur, no Brasil. César relatava seu grande interesse pela natureza desde sempre, acampando e fazendo trilhas, várias vezes acompanhado pelo primo Sezar Sasson, que se tornou biólogo pela USP, coautor de vários livros amplamente adotados de Biologia para Ensino Médio, e professor e autor de material didático no Anglo Vestibulares de São Paulo (onde fui seu aluno em 1986). Sasson relatou que César lia desde criança no Egito com muito interesse a coleção de livros do naturalista francês Jean-Henri Fabre, "Souvenirs entomologiques". Aluno brilhante de Psicologia, ainda nos tempos da USP Maria Antônia com laboratórios em porões do prédio antigo, iniciou seu trabalho de pesquisa, publicando seu primeiro artigo no final da graduacão (1965). No mesmo ano iniciou suas atividades docentes; contava que chegou a ministrar aulas a alunos desperiodizados de sua turma de graduação. Realizou seu Mestrado (1969) sob a orientação de Dora Selma Fix Ventura, depois sua colega na USP, sobre comportamento de ratos de laboratório. Seu Doutorado (1973), orientado pelo pioneiro da Etologia no Brasil, Walter Hugo de Andrade Cunha, versou sobre a teia e a caça da aranha Argiope argentata (Fabricius, 1775). Sobre o Doutorado, escreveu César: "Um dia Walter Cunha me trouxe, numa caixa de sapatos, uma belíssima aranha de teia que, em consulta ao pessoal do Butantã, soube tratar-se de Argiope argentata. Esta aranha trazia de volta minha primeira experiência como naturalista amador. Com 13 anos de idade, em um jardim de Alexandria, inspirado na leitura do livro La vie des araignées de Jean-Henri Fabre [...] eu ia vendo como uma aranha orbitela caçava os insetos que eu depositava na teia e como se livrava de folhas ou gravetos". Sobre o orientador: "Walter foi um interlocutor essencial. Vali-me especialmente de sua abordagem do comportamento animal, ao mesmo tempo rigorosa e detalhista, e também aberta para a dimensão crítica, teórica". César interagiu com grandes expoentes do behaviorismo, mas como me disse, várias indagações ficavam sem resposta, e sua empatia "etológica" com os animais a campo lhe fazia ver que muito mais havia a explorar. Essa inquietação estava presente desde cedo: "É significativo que meu contato com o comportamento animal, na graduação, tivesse se dado tanto pelo aspecto da aprendizagem e da cognição quanto pelo dos mecanismos instintivos. A possibilidade de que ambos pudessem ser integrados em uma concepção unificada a respeito do comportamento já constituía motivo de reflexão [...] Mantive sempre o fascínio pela capacidade que animais (e seres humanos) têm de fazer o que fazem, ajustando-se ao contexto. Aristóteles se encantava com a capacidade de a aranha construir a sua teia, sinto o mesmo encanto".

Assim, sua trajetória na Etologia explica em boa parte o desenrolar desse ramo do conhecimento no Brasil, sendo seu grande catalizador e fulcro, sem dúvida. Na Sociedade Brasileira de Etologia (SBEt) foi fundador, depois presidente por duas vezes (1994-1996 e 1996-1998) e participante em vários cargos da diretoria em diferentes gestões. A SBEt promove o Encontro Anual de Etologia, que em 2012 chega às sua trigésima edição, sempre com muitos participantes. César sempre estava presente e atuante nesses encontros. Foi membro do International Council of Ethologists e da International Society of Comparative Psychology. Em 2003, coordenou a 28th International Ethological Conference, da International Society of Comparative Psychology. Editor desde 1999 e um dos fundadores da Revista de Etologia e membro do conselho editorial dos periódicos Behavior and Philosophy e Acta Ethologica. O entusiasmo contagiante do César, seu bom humor, suas palestras memoráveis e seu apoio a tudo que envolvesse a Etologia eram patentes. Com interesses variados, sólida cultura clássica e mente inquiridora afiada, uma conversa sobre ciência com ele era sempre um aprendizado. Segundo Sasson, "Uma característica marcante da personalidade do César era a "generosidade intelectual", que definiria a disposição a ouvir, a compreender a opinião e a posição do outro. Outra característica marcante, a meu ver, era sua constante disposição em ajudar as pessoas, conversando, sugerindo [...]. Pessoalmente, me ajudou muito em decisões difíceis, que de certa forma definiram vários de meus rumos como pessoa e como profissional".

Escreveu César: "A interdisciplinaridade [...] contribui para a criatividade e a flexibilidade da construção do conhecimento. No contexto da descoberta, no dia a dia da pesquisa, vale a tentativa de ir além dos métodos e das teorias (sem deixar de segui-los), recorrendo a táticas que instauram propositadamente variação. A variação envolve algum desvio em relação à prática estabelecida". Como escreveu Francisco Dyonisio C. Mendes, professor da Universidade de Brasília e meu contemporâneo no Doutorado (MENDES 2012: http://scienceblogs.com.br/socialmente/2012/03/uma-homenagem-ao-mestre-cesar-ades): "quase causava estranheza como dominava tantos assuntos com tanta facilidade". César para mim representava o verdadeiro sentido da palavra PhD: se não era um doutor em filosofia, era um doutor com bagagem filosófica e não viciada em apenas um viés interpretativo, algo difícil de se encontrar atualmente. Ficava bravo quando dizíamos brincando que se a Etologia fosse o SBT, ele seria o Sílvio Santos. Era presença constante na mídia, quando o tema era comportamento animal. Tinha fluência no inglês e espanhol, também no árabe e no francês, além de "arranhar" em várias outras línguas. Gostava muito de música, e compartilhávamos nosso errático empenho e parco sucesso no domínio da gaita diatônica. Adorava gravuras, pintura, teatro e fotografia. Um dia encontrou meu irmão que é engenheiro civil, e conversaram com entusiasmo sobre a urbanização de São Paulo. Sempre me pedia para encontrá-lo de novo, pois o tema lhe interessava muito. Uma visita à sua casa mostrava o quanto a pesquisa, a cultura, os livros, lhe eram caros. Muitas estantes repletas de centenas, arrisco milhares de livros sobre variadíssimos temas, teses, revistas, manuscritos... Por outro lado sua frugalidade sempre me impressionou. Pessoa refinada em termos de educação, de fala, de modos, de senso estético, mas muito informal e "básico" em hábitos de consumo. Não dirigia automóveis, e quando lhe perguntei o porquê, sua resposta deixou antever que preferia investir na família e cultura ao invés de automóveis... Sua relação com as duas filhas Lia e Tatiana era muito estreita, carinhosa, e de corujice explícita. As poucas vezes que o vi emocionado ao falar foram após visitas à sua mãe, acometida pelo Mal de Alzheimer.

César prezava muitíssimo a atividade de ensino. Segundo Vera Bussab, colega de departamento "Ades era uma pessoa cativante, envolvente. Sempre acolhia com entusiasmo as novas questões e tinha diversos ângulos para retratar e olhar os temas em estudo. Raramente se vê um professor com capacidade de envolvimento, buscando sempre fomentar a curiosidade do aprendiz" (LEÃO 2012: http://espaber.uspnet.usp.br/jorusp/?p=21123). Seus cursos e palestras ficaram famosos pela primorosa preparação, simpatia, bom humor e pelos textos de apoio, em sua maioria de autoria própria. Sua presença nos Encontros de Etologia, no contato caloroso com estudantes, fazia toda a diferença. Sua receptividade às novas idéias, vindas de estudantes ou colegas, e ao mesmo tempo sua análise crítica profunda mas polida, eram um grande estímulo ao debate. Milhares de páginas de textos acadêmicos foram produzidas por César ao longo de sua vida, basta mencionar seus 123 artigos científicos, quatro livros, 25 capítulos de livros entre muitos outros textos. No entanto, ele não tinha uma obsessão do tipo "publish or perish" e sobre esse tema, escreveu: "Há aspectos positivos e aspectos negativos da corrida às publicações. Positiva é a necessidade de colocar os resultados de pesquisa num foro amplo, à disposição de quem quiser se interessar, seguindo as regras que regem esse tipo de comunicação. A pressão para publicar corrige uma certa acomodação docente a níveis restritos de divulgação. Por que não um público mais vasto e leitores mais exigentes? A ciência se configura cada vez mais como empreendimento internacional, desenvolve exigências de publicação pronta e frequente e isso vale para a produção científica brasileira [...] Negativos são os efeitos colaterais: uma quantificação exclusiva, ou quase, do mérito por número de publicações, estratégias de multiplicação de trabalhos e autorias, critérios afunilados de progressão horizontal na carreira, um espírito de competição e produtividade capaz de prejudicar a curiosidade solta, a busca da relevância e originalidade conceitual, a tomada de riscos que leva à inovação. Alguma margem para a pesquisa e a reflexão despreocupadas tem que existir na universidade, às vezes penso que este é um dos papéis de um Instituto de Estudos Avançados." Sobre seu incansável entusiasmo pela pesquisa: "Entrar em contato com algo que a gente não conhece, algo que ocorre de forma autônoma e que segue princípios próprios, é o primeiro gosto (quase metafísico) que a pesquisa proporciona [...] No caso da etologia, observar bastante e pacientemente faz com que a gente entenda o 'jeito' próprio do animal em relação ao seu ambiente próprio, ao seu Umwelt. Não se trata de interpretá-lo como igual à gente, mas de ir em direção a ele [...] O segundo prazer da pesquisa tem a ver com a representação abstrata, teórica, que a gente constrói e que passa a ser um guia, e nos leva além da pura descrição. O tempo todo, estamos rastreando e cercando idéias, construindo modelos, imaginando o real a partir dele próprio. É um vai-e-vem entre a informação coletada e a hipótese, sobressaltos ocorrem quando vemos desmentida uma idéia, euforia quando a idéia é confirmada ou quando, desistindo dela, aventamos outra maneira de dar conta das coisas [...] Esta excitação de descobrir tem me acompanhado ao longo de uma longa carreira, nunca deixo de me surpreender com resultados obtidos em meu laboratório ou com a informação que eu obtenho todos os dias nas bases bibliográficas da Internet."

Citando MENDES (2012): "César viveu por 69 anos como quis: intensamente e produzindo conhecimento! [...] Não é exagero dizer que a Etologia brasileira foi em grande parte construída por ele, dentro do Departamento de Psicologia Experimental da USP. Foi ali que ele formou a maioria dos etólogos e psicólogos evolucionistas que atuam hoje no Brasil, que mostrou para biólogos a importância de entender o comportamento dos animais, e para psicólogos a relevância da teoria evolutiva para a compreensão do comportamento humano [...] César deixou não só seus planos, mas um legado de alunos e admiradores que levarão adiante seus ensinamentos. Obrigado, César, por sua contribuição para a Etologia e Psicologia brasileira... e muito obrigado por ter ensinado a tanta gente como viver com ética, curiosidade, alegria e paixão pela vida."

Pela minha parte, muitas saudades e um profundo agradecimento ao mestre e amigo.

  • César Ades (08.I.1943 - 14.III.2012)

    Eduardo Novaes Ramires
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      12 Jul 2012
    • Data do Fascículo
      Jun 2012
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