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DOSSIÊ - O PCH, Programa de Cidades Históricas: um balanço após 40 anos - Introdução

Introdução

Em 1937, um grupo de intelectuais modernistas, mormente arquitetos, ligados ao Ministro Gustavo Capanema, criou o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Sphan) com uma articulação discursiva para a proteção legal de bens culturais sobretudo do período colonial. O Sphan ancorava-se na intenção de localizar e valorizar os suportes da nacionalidade, seja por meio de tombamentos, seja por diversas intervenções de conservação e restauro. Objetivando sobretudo um viés contemplativo e celebrativo dos bens protegidos, as ações federais são a própria sinonímia do Sphan ao longo de décadas, e chamaram a atenção de várias gerações de pesquisadores desde os anos 1980 quando foram defendidas as primeiras teses e dissertações que as analisaram.

No começo da década de 1970, estruturaram-se políticas de preservação do patrimônio cultural em âmbito federal que recolocaram de maneira significativa os conceitos, as estratégias e os atores sociais historicamente envolvidos em sua atuação. As transformações na forma de atuação e, sobretudo, na inserção política da preservação nos anos 1970 e seus desdobramentos no período da redemocratização, têm sido pouco estudadas e compreendidas pela historiografia nacional voltada à problematização das políticas patrimoniais. Apesar do crescimento expressivo de pesquisa nessa temática na última década, há ainda um grande vácuo crítico sobre o lugar da preservação nas políticas de Estado durante a ditadura civil-militar.

Sabe-se que os Encontros de Governadores de 1970 e 1972 foram momentos fundamentais de reorganização do aparato estatal na criação de um sistema nacional de patrimônio cultural envolvendo a União, os estados e municípios, e entidades públicas e privadas, como as universidades. A Diretoria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (DPHAN) foi transformada em instituto, tendo suas atribuições reforçadas e modificadas.

O esgotamento da eficácia das práticas do órgão nos anos 1960 já levara à aproximação com a Unesco, à sedução pelo turismo e ao interesse pelo planejamento urbano, orientações que serão em boa parte absorvidas pelos projetos governamentais de preservação do patrimônio cultural consubstanciados pelo "Programa de Reconstrução das Cidades Históricas do Nordeste para fins turísticos", mais conhecido por Programa de Cidades Históricas (PCH), de 1973 em diante. A partir da gestão de Jarbas Passarinho no Ministério da Educação e Cultura, entre 1969 e 1974, as práticas federais de preservação se aproximaram dos temas da chamada "herança histórica". O projeto de "modernização conservadora autoritária" dos governos militares dos anos 1960 e 1970 incluiu os temas da educação e do patrimônio cultural, revalidando identidades criadas na era Vargas.

As ações do PCH, e o próprio campo disciplinar da preservação, serão imersas no referido projeto de modernização conservadora, levada a termo pelo regime militar como parte da estratégia mais ampla pelo Ministério do Planejamento. O PCH foi organizado a partir do final de 1972 como ação interministerial do Planejamento e da Educação e Cultura com vistas a realizar projetos de restauração em monumentos tombados nas cidades históricas do Nordeste. Gestado e gerido fora da área central do Iphan entre 1973 e 1979, o PCH foi um programa de governo para a preservação de cidades históricas no Brasil em que se buscou romper com as rotinas e as práticas históricas do patrimônio cultural de fiscalização de bens privados nas cidades tombadas (garantindo a preservação de certos critérios estético-estilísticos) e de restauração de monumentos considerados excepcionais.

Com objetivo de recuperar cidades históricas da região Nordeste, o Programa viabilizou-se sob argumentos, então em voga, do aproveitamento turístico e econômico das áreas urbanas preservadas. Estimulando a descentralização das ações do patrimônio, valeu-se dos órgãos estaduais de preservação recém-criados para os contratos, obras de restauração e apoio técnico. As universidades foram envolvidas por meio do oferecimento de cursos de restauração, que contaram com a coordenação técnica do Iphan, ao longo de toda a década de 1970.

Conhecer e problematizar as realizações, ideias, os conceitos e práticas desses anos motivaram a organização do dossiê temático "O PCH, Programa de Cidades Históricas: um balanço após 40 anos" dos Anais do Museu Paulista, ancorados na dupla inquietação em relação à pequena reflexão acadêmica sobre o PCH e a profusão de estudos sobre a ditadura civil-militar. Se a ocasião dos 50 anos do Golpe Militar de 1964 redundou recentemente em inúmeras pesquisas e publicações, para o campo das políticas de preservação o período tem passado praticamente incólume, como de resto nas interpretações sobre o lugar da arquitetura e do urbanismo brasileiros no período pós-Brasília. A proposta do dossiê é colocar em debate por meio dos artigos aqui reunidos, as múltiplas ações estabelecidas pelo PCH de maneira direta e indireta.

Em novembro de 2015, foi realizado um seminário de mesmo nome que este dossiê na Universidade de São Paulo, viabilizado pela parceria entre algumas de suas unidades (Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, Centro de Preservação Cultural e Museu Paulista) e o Iphan, em que se pôde colocar em discussão a temática aqui abordada. A partir da única pesquisa então realizada especificamente sobre o PCH - o mestrado da arquiteta do Iphan Sandra Corrêa - foi estabelecida uma parceria muito frutífera e produtiva com essa autora e com o Iphan, que viabilizou ampliar as perspectivas de compreensão do programa. O evento reuniu a comunidade acadêmica interessada e agentes públicos da área de preservação de estados, prefeituras e do governo federal, fomentando o diálogo a respeito das políticas de preservação na contemporaneidade, a partir de um balanço crítico do legado das experiências de preservação daquele período autoritário. Tais experiências lograram deslocar, pela primeira vez, os artefatos patrimoniais de sua condição inicial de suporte e evidência identitária para novas camadas semânticas, pautadas pelas inquietações ligadas às dimensões de uso e à potencialidade de serem convertidas, em grande medida, a mercadorias ofertáveis ao consumo turístico.

Os artigos aqui apresentados foram, assim, reunidos com o objetivo de problematizar a experiência de preservação nos anos 1960 e 1970, tendo o PCH como mote. Embora as ações do programa tenham se estendido pela década de 1980, trabalhamos prioritariamente com a periodização proposta por Sandra Corrêa, autora do artigo que abre este dossiê e que preconiza que, após 1979, com a absorção do programa pelo sistema Sphan/pró-Memória, o programa muda de concepção e distancia-se dos contornos conceituais e práticos do projeto inicial. Ademais, o cenário político da redemocratização recoloca as políticas da modernização conservadora dos anos anteriores, cujos desdobramentos práticos ainda precisam ser estudados. No entanto, não nos restringimos exatamente aos anos de funcionamento dessa primeira fase do programa, visto que alguns artigos recuaram nos anos 1960 e outros chegam até a contemporaneidade, avaliando os desdobramentos e lições quanto ao programa.

O dossiê organiza os artigos em quatro blocos temáticos. Abrem o conjunto de textos três artigos que interpretam o programa de maneira mais geral, permitindo uma compreensão das realizações e dos debates acerca do PCH nas suas relações com o campo político e cultural do período, de autoria de Sandra Correa, Márcia Sant'Anna, Márcia Chuva e Laís Lavinas.

O segundo grupo de artigos trata do contexto mais ampliado dos temas de preservação nas décadas de 1960 e 1970 como a política de aproximação com a Unesco, o interesse pelo patrimônio natural e arqueológico, objeto do artigo de Cláudia Leal. Leila Aguiar analisa a estrutura turística organizada no período militar e sua relação com as cidades históricas e sua fundamental articulação com o PCH. O historicamente importante lugar da fotografia e do Arquivo do Iphan é tratado no artigo de Eduardo Costa, em face do quadro de mudanças institucionais em curso.

O terceiro bloco de artigos verticaliza as abordagens em experiências concretas realizadas no âmbito do programa. Uma das mais emblemáticas restaurações promovidas pelo PCH - a da Sé de Olinda -, é abordada por Renata Cabral. Os seminais cursos de especialização em restauração e conservação de monumentos realizados por universidades em parceria com o Iphan, são analisados por Flávia Brito do Nascimento. Paulo Ormindo de Azevedo finaliza o dossiê com um artigo que se concentra na figura instigante de Renato Soeiro, propondo novos entendimentos para sua gestão, ainda pouco compreendida em suas ações e implicações.

O olhar ao PCH valeu-se, portanto, de lentes variadas. Da escala ampliada das políticas e dos resultados mais gerais do programa até o olhar a um caso de restauração, esforçamo-nos por compreender as suas temporalidades e experiências diversas, apresentando aos leitores perspectivas, interpretações e inquietações variadas. Buscou-se contemplar temas que fossem essenciais à compreensão e à crítica da experiência do PCH como turismo, políticas culturais, ensino, restauração, além de perspectivas mais globais sobre o funcionamento do programa. Outras inquietações igualmente estimulantes estão sugeridas nos métodos de aproximação utilizados pelos autores, como o questionamento de periodizações, novas propostas de interpretação de personagens e agentes da preservação, além da relação do patrimônio cultural com o Estado autoritário, que ajudam a reconfigurar o PCH num quadro mais ampliado da historiografia corrente. Desse modo, vislumbramos novas possibilidades para pensar criticamente a história do patrimônio cultural no Brasil, que esperamos que sirvam também como convite a novos e necessários estudos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jan-Apr 2016
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