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O conceito de responsabilidade em Iris Young

On Iris Young's concept of responsibility

Resumos

Iris Young, em trabalho publicado postumamente, trouxe importante contribuição para a teoria da justiça social a partir do conceito de responsabilidade e do que chamou de "modelo de conexão social", onde recupera o indivíduo e sua responsabilidade diante da injustiça ao analisar as diversas formas de relação do indivíduo com a estrutura social. O artigo em questão examinará os principais construtos teóricos de Iris Young, analisará as relações que a autora propõe entre sujeito e estrutura, o valor heurístico de suas teses e os limites por ela apresentados. Em seu decorrer, o artigo mostrará a distinção entre culpa e responsabilidade, discutirá a noção de responsabilidade vis-à-vis a estrutura social e descreverá o modelo de conexão social proposto por Iris Young.

Iris Young; Teoria Social; Responsabilidade; Justiça; Indivíduo


Iris Young, in a work published posthumously gave an important contribution to the theory of social justice based on the concept of responsibility and of what she called "model of social connection", which retrieves the individual and their responsibility as far as injustice is concerned, in order to analyze the various forms of the individual relationship to the social structure. The article in question will examine the main theoretical constructs of Iris Young, it will analyze the relationships that the author proposes between subject and structure, the heuristic value of their theses and their limits. The article initially show the distinction between guilt and responsibility, will pass to the discussion of the concept of responsibility vis-à-vis the social structure, and describe the social connection model proposed by Iris Young.

Iris Young; Social Theory; Responsability; Justice; Individual


O conceito de responsabilidade em Iris Young* * Este artigo é parte de um projeto de pesquisa em desenvolvimento, com bolsa do CNPq, que analisa um conjunto de teóricas do feminismo com o propósito de examinar como suas obras equacionam as questões de justiça social, liberdade, igualdade e radicalização da democracia.

On Iris Young's concept of responsibility

Céli Regina Jardim Pinto

Professora do Departamento de História da UFRGS

RESUMO

Iris Young, em trabalho publicado postumamente, trouxe importante contribuição para a teoria da justiça social a partir do conceito de responsabilidade e do que chamou de "modelo de conexão social", onde recupera o indivíduo e sua responsabilidade diante da injustiça ao analisar as diversas formas de relação do indivíduo com a estrutura social. O artigo em questão examinará os principais construtos teóricos de Iris Young, analisará as relações que a autora propõe entre sujeito e estrutura, o valor heurístico de suas teses e os limites por ela apresentados. Em seu decorrer, o artigo mostrará a distinção entre culpa e responsabilidade, discutirá a noção de responsabilidade vis-à-vis a estrutura social e descreverá o modelo de conexão social proposto por Iris Young.

Palavras-chave: Iris Young; Teoria Social; Responsabilidade; Justiça; Indivíduo.

ABSTRACT

Iris Young, in a work published posthumously gave an important contribution to the theory of social justice based on the concept of responsibility and of what she called "model of social connection", which retrieves the individual and their responsibility as far as injustice is concerned, in order to analyze the various forms of the individual relationship to the social structure. The article in question will examine the main theoretical constructs of Iris Young, it will analyze the relationships that the author proposes between subject and structure, the heuristic value of their theses and their limits. The article initially show the distinction between guilt and responsibility, will pass to the discussion of the concept of responsibility vis-à-vis the social structure, and describe the social connection model proposed by Iris Young.

Keywords: Iris Young; Social Theory; Responsability; Justice; Individual.

Não somos culpados da escravidão, nem tampouco, a maioria de nós, da corrupção. Não somos culpados pela pobreza, nem por crianças nas ruas, nem da epidemia de crack. Mas somos responsáveis.

Tal responsabilidade toma proporções quando são focalizadas regiões que vivem sob forte injustiça social e onde a consolidação e, mais do que isso, a radicalização da democracia necessitam enfrentar a superação das desigualdades. As questões que serão propostas neste artigo estão muito diretamente ligadas à problemática da injustiça social presente no mundo contemporâneo, que vem sendo discutida nos trabalhos teóricos de Spivak (2010), Spivak e Butler (2010), Young (2000, 2011), Mignolo (2010), Zizek (2003), Negri (2008), Laclau (2011), entre outros.

Tomarei como centro da análise o conceito de responsabilidade desenvolvido por Iris Young (2011) no livro Responsability for justice. Os argumentos examinados e discutidos neste artigo pretendem apontar para caminhos que permitam uma análise mais acurada do espaço do indivíduo na ação política. Penso, particularmente, nas manifestações acontecidas ao redor do mundo em 2011: como os indivíduos que foram para as praças chegaram até elas? Que caminhos de responsabilização política percorreram? Estas são apenas questões inspiradoras, pois o artigo tem natureza teórica e não pretende ir além de apresentar na sua conclusão um conjunto de questões um pouco mais elaboradas do que estas.

Considerando os campos de refugiados africanos, os trabalhadores têxteis semiescravizados no sul da Itália e do interior do Brasil, as populações abaixo da linha de pobreza na América Latina e os imigrantes ilegais ao redor do mundo, há uma boa parte da humanidade necessitando de justiça. Em contrapartida, em quaisquer dessas regiões, há elites econômicas e culturais que vivem mais ou menos da mesma forma, independentemente de onde habitam.

É nesse quadro que uma pergunta emerge: quem é responsável por tais situações? A resposta rápida - que é a estrutura posta pelo sistema capitalista - é consoladora mas pobre, não porque não possua um conteúdo de verdade, mas porque o sistema não contém toda a injustiça. Há injustiças muito anteriores a ele, ou injustiças que não têm no sistema a sua causa, ou que sobrevivem em experiências pós-capitalistas. Atribuir culpas exclusivamente ao sistema também empobrece a ação individual, pois torna o indivíduo um não agente, esteja ele do lado dos subalternos ou dos dominantes.

Recuperar esse indivíduo tem sido um trabalho árduo e contínuo na teoria social. A questão parece enfrentar uma dupla barreira: no indivíduo liberal e no coletivo da classe (burguesia, proletariado) ou das diversas identidades essencializadas (mulheres, negros, indígenas etc.). Este artigo não se interessa pela primeira barreira, mas pela segunda. Ele se ocupa do indivíduo escondido nesses coletivos, já que essencialmente esse indivíduo existe, quer o entendamos como um dado de realidade, quer como uma construção discursiva.

Iris Young, em trabalho publicado postumamente, trouxe importante contribuição para a teoria da justiça social a partir do conceito de responsabilidade e do que chamou de "modelo de conexão social", onde recupera o indivíduo e sua responsabilidade diante da injustiça ao analisar as diversas formas de relação do indivíduo com a estrutura social. Este artigo examinará os principais construtos teóricos dessa autora, analisará as relações que ela propõe entre sujeito e estrutura, o valor heurístico de suas teses e os limites por ela apresentados. Para tanto, inicialmente se fará a distinção entre culpa e responsabilidade, discutindo-se a seguir a noção de responsabilidade vis-à-vis a estrutura social; por fim, se descreverá o modelo de conexão social proposto por Iris Young.

Culpa versus responsabilidade

Estabelecer a distinção ente culpa e responsabilidade é fundamental para não culpar a todos. A culpa pode ser pensada a partir de três perspectivas: a psicanalítica; a estabelecida pelo sistema jurídico; a atribuída às relações de poder entre indivíduos, grupos, classes, que colocam indivíduos ou grupos em condições moralmente inaceitáveis para um ser humano, mesmo que dentro de um regramento jurídico.

A culpa tem espaço bem definido e é muito bem expressada por Hannah Arendt (1994, p. 48) quando, no livro Sobre a violência, afirma: "Onde todos são culpados ninguém o é; as confissões de culpa coletiva são a melhor salvaguarda possível contra a descoberta dos culpados, e a própria grandeza do crime, a melhor desculpa para não fazer nada." Quando examina o caso Eichmann, Arendt (1999) observa que ele cometeu um crime bárbaro contra o povo judeu e por este foi julgado e considerado culpado, como tantos outros. O povo alemão, todavia, não pode ser julgado culpado do genocídio, mesmo que tivesse ideia clara do que estava acontecendo e até pudesse ter vantagens com o extermínio e a com a guerra1 1 Ao longo do livro de Young, há constante diálogo com a obra de Hannah Arendt, ora incorporando sua distinção entre culpa e responsabilidade, ora se distanciando dela pela pouca importância que Arendt atribui à estrutura. .

Outras circunstâncias com a mesma dinâmica, mas não com a mesma dramaticidade, podem ser facilmente identificáveis durante as ditaduras militares na América Latina, ou mesmo na ação cotidiana de certos corpos policiais. O governador do estado determina que uma área seja limpa de traficantes e dependentes de droga, o comandante da polícia militar dá a ordem ao comandante do pelotão que, com seus comandados, vai à rua e atua com grande violência para desalojar o grupo, ferindo muitos indivíduos. Esses homens (governador, comandante, soldados) são culpados e, se estiveram em um país com instituições democráticas robustas, serão julgados e possivelmente condenados. Mas há policiais que não torturam, há policiais que não são corrompidos. Se afirmarmos que toda a polícia é corrupta e todo o policial é violento e venal, tais características serão naturalizadas e a ação corrupta e violenta da polícia passará a ser vista como normal, naturalizando-se a injustiça. Distinguir os atos e sujeitos da culpa de outras ações ou omissões que levam a prejuízo pessoal ou social permite redimensionar as relações entre os sujeitos. Entretanto, isso não é suficiente, porque os mesmos policiais que não torturam ou não são corruptíveis convivem e têm conhecimento do que acontece na corporação, o que tem efeitos definidos tanto para a corporação como para o conjunto dos cidadãos. Aos não culpados cabe a responsabilidade2 2 Cabe aqui esclarecer que a noção de culpa versus responsabilidade não está pressupondo que, tirando da instituição policial os culpados, ela se recuperará com os bons policiais. Há momentos de necessidade de novas instituições para reparar o ambiente de corrupção e malfeitos. A criação da New Scotland Yard, no início do século XIX na Inglaterra, é um bom exemplo. .

Em muitos contextos históricos, há pessoas culpadas e outras que não são culpadas por massacres, crimes e injustiças sociais. No Brasil colonial, os traficantes, os comerciantes e proprietários de escravos eram culpados pela escravatura, mas havia uma população de brancos pobres e de estratos médios urbanos que não possuíam nem negociavam escravos, embora vivessem naquela sociedade. Na grande maioria, eram coniventes, mas não eram culpados, mesmo que indiretamente tirassem proveito da existência da instituição. O sistema colonial pressupunha que houvesse escravos e sua comercialização, portanto não havia culpa legal, mas moral, uma vez que a escravidão atenta contra a dignidade do ser humano. O importante aqui é enfatizar que a lei não exime o sujeito da culpa. Há muitos momentos na história da humanidade (os regimes ditatoriais são bons exemplos) em que há culpa, mesmo com a lei sendo cumprida. As situações são muitas: torturas em Guantânamo; pena de morte para mulheres acusadas de adultério em certos países muçulmanos; prisão para dissidentes políticos na China; entre incontáveis outras. Portanto, se a culpa é facilmente identificada e sua punição depende das leis que regem os países ou, algumas vezes, da vontade política dos governantes, a responsabilidade atinge outra dimensão.

No mundo do trabalho livre, o empregador pode ser responsável pela condição de pobreza de seu empregado sem ser obrigatoriamente culpado por isso: o empregador X pode pagar o salário-mínimo legal e todas as despesas sociais para seu empregado doméstico Y, o que pode somar um valor bastante alto para o seu orçamento, mas seu empregado Y, recebendo o salário-mínimo legal, vive na pobreza, em habitação precária, sem disponibilidade de bens culturais ou lazer. X não tem culpa da situação de Y, o trabalho que lhe proporciona possivelmente o salve da fome. Se atribuíssemos culpa a todas as pessoas que empregam nessas condições, os resultados não contribuiriam para melhorar a vida dos empregados3 3 Um tema quase anedótico na história do feminismo é o da mulher burguesa ou de classe média que, não querendo explorar suas irmãs de gênero, demite a empregada doméstica, deixando-a sem como sustentar a família, mas se livra da culpa. . Se todos são culpados, pode-se culpar o "sistema", o que possibilitaria não culpabilizar aqueles que não cumprem as leis trabalhistas. Portanto, o pagamento de um salário-mínimo não compatível com as necessidades de sobrevivência digna de um indivíduo não é culpa de quem o paga, mas responsabilidade da sociedade que o adota.

Pensemos agora a questão da responsabilidade de forma diversa: duas adolescentes de quinze anos ficam grávidas de seus respectivos namorados e resolvem ter os filhos. Uma mora em uma favela, outra em um bairro de classe média alta. A vida da adolescente pobre muda completamente e ela acaba na prostituição; a vida da adolescente rica muda muito pouco, os pais tomam conta do filho e ela segue seus estudos na mesma escola. As duas jovens tiveram trajetórias comuns por certo período de suas vidas: namoraram, tiveram vida sexual ativa sem tomar cuidados contraceptivos, ficaram grávidas e tiveram os filhos. Isso nos leva a concluir que a adolescente pobre não é responsável por ter acabado na prostituição devido à sua trajetória de vida, que foi a mesma da adolescente rica. Essa não é uma questão de culpa individual, mas de injustiça social, em que as consequências de um mesmo ato são completamente diferentes, dependendo, nesse caso, da classe social do indivíduo. Há outro nível de responsabilidade que determina a desigualdade entre essas duas adolescentes, o da estrutura.

Dos exemplos acima, a questão da responsabilidade se associa ao policial que não mata, não tortura, mas tem conhecimento de que isso acontece dentro da instituição; do indivíduo que paga o salário-mínimo; da vida das duas adolescentes. Qual é a relação entre responsabilidade e a vida e ações desses indivíduos? A partir desta questão, introduzo a que baliza o livro de Young (2011, p. 15): "De que forma nós, como indivíduos, pensamos sobre nossa responsabilidade pessoal em relação à injustiça social?"4 4 Os fragmentos do livro de Iris Young citados são traduções minhas, para uso exclusivo neste artigo. .

Young quer contrapor-se ao individualismo que tem sido o carro-chefe do neoliberalismo, pois traz em si o pior dos dois mundos: culpa o fracasso como pessoal e desresponsabiliza os indivíduos bem-sucedidos de responsabilidade social. Não por coincidência, no primeiro grupo, encontram-se facilmente negros, idosos, mulheres, imigrantes, pessoas de pouca escolaridade; no segundo, predominam homens brancos adultos, com alta escolaridade. Dois dos exemplos anteriores ilustram bem o que diz Young: no caso dos indivíduos que ganham salário-mínimo, eles seriam responsáveis pela situação de pobreza; a adolescente pobre seria responsabilizada por ter acabado na prostituição. Nesse último exemplo, a responsabilidade individual admite direitos diferentes a cada uma delas: a gravidez da primeira garota não se constitui em um ato de irresponsabilidade, mas a da segunda sim.

Esse tipo de responsabilização acontece em um cenário adverso à questão de justiça social. É embalado pela ideologia neoliberal, que se expressa nas privatizações das propriedades estatais, no desmonte do Estado de bem-estar social, na alavancagem do terceiro setor e do voluntariado (ato de caridade individual clássico), na fragilidade dos partidos políticos como portadores de projetos e como pretendentes reais à representação, na crença das potencialidades da sociedade civil e de seus movimentos, declaradamente apolíticos, de darem conta dos grandes problemas sociais que compõem o quadro do capitalismo. Essa situação se estende além do chamado capitalismo ocidental, também está presente nas regiões emergentes, como nos países que formam o Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), e no mundo árabe, com sua complexidade de situações5 5 Em relação ao neoliberalismo e à responsabilização individual, Young faz duras críticas a autores como Mead (2006), Murray (1984) e Dworkin (2000), apontando diferenças entre os dois primeiros e o último. Assim sintetiza sua posição: "A proposta de Dworkin é articular princípios para justificar um sistema estatal compensatório. No lugar disto, a falta que eu encontro no aporte dele à justiça é que ele foca largamente nos atributos das pessoas e ignora ou rejeita um lugar teórico para dar visibilidade à estrutura. A filosofia de Dworkin é similar a que anima aqueles tais como Murray e Mead, que promovem a ideia da responsabilidade pessoal na política." (Young, 2011, p. 30). .

Contrapondo-se ao individualismo, Young (2011, p. 34) introduz o tema da injustiça como injustiça das estruturas sociais. Sua tese é colocada de forma muito clara já no primeiro capítulo da obra.

Injustiça é mais do que o simples fato de as pessoas sofrerem com um destino que não merecem. É o modo como regras institucionais e interações sociais conspiram para estreitar as opções que muitas pessoas têm. Em princípio, retificar a injustiça entendida dessa forma não implica compensar pessoas pelas desvantagens, engajando--as em políticas de redistribuição após os processos sociais terem forjado seus danos. Ao contrário, promover justiça na estrutura social e suas consequências implica reestruturar instituições e relações para prevenir essas ameaças ao bem- -estar básico das pessoas.

Uma questão levantada por Young merece ser tomada em consideração antes de avançarmos no argumento geral da autora sobre responsabilidade: trata-se de sua crítica às políticas de redistribuição. Young parece compartilhar do senso comum de que as políticas de redistribuição são sinônimas de políticas de redistribuição de renda, resumidas na mundialmente popular política de renda mínima, em suas diferentes versões. Entretanto, se políticas de redistribuição perderem o carimbo de políticas públicas e forem pensadas em termos de redistribuição de poder e riquezas, o quadro torna-se bastante distinto e pode levar exatamente ao que Young propõe6 6 Para a questão de distribuição, Nancy Fraser elabora um sofisticado aporte à questão; ver Fraser (2008a e 2008b) e Fraser e Honeth (2003). .

Feita a ressalva, retomemos os aspectos estruturais e as posições dos atores nesse cenário, questão fundamental para a teoria da autora sobre responsabilidade. Atores individuais, classes ou grupos sofrem injustiça, mas indivíduos, classes e grupos podem viver dentro da lei, serem, inclusive, moralmente intocáveis e, ao mesmo tempo, promoverem injustiça. As pessoas individualmente não são promotoras de injustiça, mas "indiretamente, coletivamente, e cumulativamente" são responsáveis por ela (Young, 2011, p. 87).

Para explicar a responsabilidade sem culpa, Young (2011, p. 88) recorre ao princípio que chama de "imperativo da responsabilidade política" dos indivíduos.

O imperativo da responsabilidade política consiste em observar estas instituições [instituições sociais e políticas] monitorando seus efeitos, para assegurar que elas não são grosseiramente prejudiciais e manter organizados os espaços públicos, onde o olhar e o monitoramento possam ocorrer e os cidadãos possam falar publicamente, apoiando-se um ao outro em seus esforços de prevenir o sofrimento.

O imperativo da responsabilidade política proposto por Young se distancia completamente do ideário liberal privatizante que tem dominado o mundo e que responsabiliza o indivíduo por suas condições de vida, independentemente das condições que o cercam. A responsabilidade aproxima-se aqui de uma perspectiva republicana de cidadania7 7 O imperativo de responsabilidade política é uma questão central, mas resolvida de forma muito precária por Young. Voltarei a esta questão na parte final do artigo. . É mister chamar a atenção como esse tema é pouco desenvolvido ao longo do argumento da autora8 8 Isso se torna ainda mais estranho na medida em que todo o seu argumento desemboca na ação coletiva, como veremos na parte final deste artigo. e não deriva necessariamente de uma fragilidade do texto, mas da própria dificuldade do aporte teórico para dar conta da questão, pois a autora não estabelece a relação entre o indivíduo e seu coletivo, ainda que reconheça a necessidade da ação coletiva. Mesmo assim, os avanços de Young são bastante merecedores de atenção e análise.

A reflexão presente no livro sobre o tema da responsabilidade abre caminhos muito interessantes para pensar a questão da ação do indivíduo vis-à-vis a injustiça social. Young segue bem de perto as reflexões de Hannah Arendt sobre responsabilidade e culpa.

Nós podemos propriamente dizer que a pessoa que planeja a construção de um campo que detém prisioneiros sem acusação formal é mais culpado de um crime contra a lei internacional do que aqueles que supervisionam os guardas. Mas ambos são culpados. Responsabilidade, como Arendt coloca, envolve pessoas que não cometeram malfeitos, mas que são, todavia, conectadas a eles. Nesse sentido, eu tenho a responsabilidade política em relação às atividades na Baia de Guantânamo e em campos de detenção extralegais similares (Young, 2011, p. 92).

O que chocou o mundo no relatório de Arendt sobre o julgamento de Eichmann foi a forma como humanizou o criminoso, como o aproximou de todos nós, pois é sempre mais tolerável vê-lo como um monstro, que se diferencia completamente das pessoas comuns. Mas há outra característica muito importante nesse relato, a qual é retomada por Young: não é por não havermos matado e torturado que podemos nos sentir tranquilos, sem responsabilidade. Young identifica três tipos de relação dos indivíduos com a responsabilidade.

A primeira delas, bastante abrangente, atinge os indivíduos que, sem terem participação em governos, partidos ou situações que infligem sofrimento e injustiça, têm conhecimento dos fatos e não se manifestam.

Grande parte da população alemã sabia o que estava se passando durante o regime de Hitler, a maioria, inclusive, possivelmente não participou de nenhum ato oficial, nem pertenceu ao partido, mas simplesmente viveu como se o que estava acontecendo não tivesse nada a ver consigo. Em Vichy, nem todos os franceses foram colaboradores (estes são os culpados), embora grande parte dos cidadãos soubesse o que estava acontecendo, mas não se importavam (Young, 2011, p. 87). Também as ditaduras latino-americanas oferecem bons exemplos desse tipo de relação do indivíduo com governos que torturaram e mataram.

Além desses exemplos, bastante óbvios, a noção de responsabilidade tem grande valor heurístico para analisar outros contextos históricos, onde a injustiça estrutural se constrói a partir de sucessivas situações em que grupos a reproduzem sem serem objetivamente culpados por ela.

A carência de educação no Brasil é um bom exemplo: o país é um dos mais elitistas do mundo no que se refere ao sistema educacional. Ainda não superou o analfabetismo e menos de 30% dos seus jovens entre 18 e 24 anos frequentam o ensino superior. Se as elites econômicas, sociais e culturais não são diretamente culpadas, são, entretanto, na acepção de Young, responsáveis, já que sempre se mantiveram à parte nas discussões sobre a democratização da educação em nome da ciência, da qualidade do ensino ou de estranhos princípios de justiça, o que justificava uma universidade excludente (para os pobres, uma educação técnica era suficiente, formava bons e disciplinados trabalhadores).

Nesse caso do sistema educacional, está a maioria dos indivíduos com vidas cotidianas, pagadores de impostos e cumpridores das leis. É oportuno fazer uma pequena digressão para caracterizar grandes parcelas da população que não se envolvem e se sentem desresponsabilizadas. Um princípio muito presente ordena tais indivíduos - a fantasia do mérito pessoal. Ele facilmente permite atribuir ao injustiçado a culpa por sua situação. Como no exemplo da adolescente grávida e pobre a que nos referimos antes, identificando-a como alguém que ganha o salário-mínimo, ou que não chega à universidade. A fantasia do mérito encobre uma responsabilidade difusa que atinge todos os indivíduos que vivenciam como natural contextos em que grupos, classes, etnias são alvo de discriminação e, muitas vezes, objeto de perseguição.

Um segundo caso de responsabilidade refere-se aos indivíduos que não se omitem completamente e tratam de prevenir que o mal atinja alguns, os mais próximos, os conhecidos, ou mesmo pessoas desconhecidas. Não se trata de ações públicas que provoquem reações, e muitas vezes cumprem seu papel exatamente por serem secretas. Por exemplo, durante a Segunda Guerra Mundial, alguns se empenharam em esconder judeus ou conseguir formas de fugas. Muitas pessoas na América Latina, durante as ditaduras militares, deram guarida a perseguidos políticos. Esse tipo de responsabilidade identificada por Young está muito próximo do princípio liberal de solidariedade e pressupõe questões morais que provocam ações de caridade, trabalho voluntário ou outras mais nobres, como proteger perseguidos em épocas excepcionais.

O terceiro caso a ser destacado refere-se àqueles que tomam responsabilidade coletiva, ou seja, assumem responsabilidade política. Citando diretamente Arendt, Young exemplifica com a responsabilidade política ocorrida durante a Segunda Guerra, como a conhecida ação coletiva dos dinamarqueses para encontrar todos os judeus no país e colocá-los a salvo, levando-os para a Suécia. No caso das ditaduras latino-americanas, há o movimento das "Mães da Praça de Maio", ou o "Movimento pela Anistia no Brasil", entre outros. A responsabilidade política, entretanto, não se limita a momentos excepcionais, nem tem como característica fundante a situação de perigo em que indivíduos são colocados. Nesse tipo de construto, é necessário ter cuidado para não colocar o indivíduo injustiçado como o não sujeito, que necessita da responsabilidade do outro para poder sair da situação em que se encontra. Há aqui uma questão bastante complexa, que é o encontro da responsabilidade coletiva e política com o injustiçado, que também pertence à mesma sociedade.

O princípio da responsabilidade parte da simples constatação de que uma sociedade é responsável pelas injustiças sociais e estruturais que produz, independentemente da culpa de seus membros individuais. Como todos são responsáveis, mas nem todos são culpados, os culpados não são absolvidos pela responsabilidade compartilhada. Portanto, o fato de uma sociedade ter se calado diante de uma ditadura militar não absolve os líderes - ditadores e mandantes de tortura e extermínio - de crime. O mesmo pode ser dito em relação à corrupção. De outra sorte, apontar os culpados não inocenta a sociedade de responsabilidade.

Uma questão que fica em aberto no aporte de Young e que permeia toda a sua proposta é: sobre quem recai a responsabilidade? Fica claro, tanto na famosa tese de Arendt retomada por Young, como no seu próprio texto, quem é o culpado, mas é difícil identificar os limites da responsabilidade. Não pode haver um quantum de responsabilidade distribuído de forma equânime na sociedade. Talvez coubesse aqui a pergunta: se todos são responsáveis, a quem responsabilizar? Poder-se-ia afirmar que homens e mulheres são responsáveis pela reprodução dos padrões sexistas, mas a responsabilidade entre eles têm pesos muito distintos. A essa questão soma-se outra, não menos importante: quem é o agente da transformação da condição de injustiça? Parece faltar um terceiro elemento na ação - o que sofre o efeito da irresponsabilidade ou da culpa -, o qual aparece no texto como efeito e como objeto de compensação.

Responsabilidade e estrutura social

Young coloca a estrutura em uma posição central em sua teoria de justiça e responsabilidade. Voltando ao exemplo das duas adolescentes, o que aconteceu com a adolescente pobre é o que ela chama de injustiça estrutural, diferente de situações advindas das interações pessoais e das que são atribuídas a políticas públicas específicas do Estado. No livro em pauta, Young aponta para a dificuldade de definir estrutura, mas outra obra sua aproxima-se de uma definição:

[...] estruturas denotam a confluência de regras institucionais e rotinas interativas, mobilização de recursos e estruturas físicas que constituem as condições historicamente dadas, em relação às quais são relativamente estáveis. Estruturas também conotam uma larga soma de resultados que são efeitos da confluência de muitas ações individuais dentro de dadas relações institucionais, cujas consequências coletivas frequentemente não têm a marca de nenhuma intenção de pessoa ou grupo (Young, 2005, p. 20).

Reconhecendo a dificuldade em definir estrutura, a autora trabalha com quatro situações que designa como "processos sociais estruturais", vividos pelos indivíduos como possibilidades ou barreiras.

O primeiro processo é constituído por "constrangimentos objetivos", que podem ser materiais ou dizerem respeito às regras sociais e institucionais. Há as de ordem material, que têm longa duração histórica ou podem ser consequência de fatos acontecidos há muitos anos: políticas de educação que excluem as camadas mais pobres da população das universidades podem se reproduzir por séculos, em diferentes leis e arranjos legais; também uma política levada a efeito há anos pode produzir consequências até o presente, como é o caso da escravidão. Quanto às regras sociais e institucionais, elas podem privilegiar ou prejudicar indivíduos, mesmo que, em princípio, sejam justas, ou, pelo menos, iguais para todos. As Constituições de países democráticos asseguram direitos iguais para todos os cidadãos, entretanto, minorias raciais, condição de gênero ou de orientação sexual podem colocar indivíduos em posições privilegiadas ou de injustiça. Young (2011, p. 56) deixa claro a ambiguidade dos constrangimentos da estrutura:

Dizer que as estruturas restringem não significa que elas eliminam a liberdade; ao contrário, processos socioestruturais produzem diferenças nas formas e na gama de opções que indivíduos têm para fazer suas escolhas. O tema da justiça social, levantado pela operação da estrutura social, é de que essas diferenças, em forma e gama de opções, postas à disposição dos indivíduos pela estrutura, sejam justas.

O segundo processo socioestrutural é chamado por Young de "considerando posição". Em suas palavras, "Quando consideramos membros da sociedade em termos de posições sociais, nos preocupamos menos com suas preferências individualizadas, habilidades e atributos e mais com as relações que eles estabelecem com outras pessoas" (p. 57; grifo no original).

A posição na estrutura não é uma escolha, nem se produz a partir de interações. No exemplo que estamos utilizando para ilustrar a questão, fica claro que as duas adolescentes grávidas tinham posições distintas de classe, e isso provocou consequências tanto quanto diferenciadas. O mesmo ocorre com grupos étnicos distintos, onde um sofreu ou sofre preconceito por sua cor ou origem social (escravos, imigrantes). O fato de ser mulher, negro, pertencer às classes populares coloca o indivíduo em uma posição nas interações em que esses atributos definem suas possibilidades. Citando Marx, Young (2011, p. 58) argumenta que a posição na estrutura de quem utiliza o dinheiro é que faz com que ele se transforme em capital.

O que faz do dinheiro capital, Marx demonstra, é o fato de que o dono do dinheiro está na posição de ter a matéria-prima e também as pessoas que vendem para ele sua força de trabalho. O processo de produzir coisas novas possibilita a ele recuperar mais do que investiu. As posições sociais do dono do capital e do dono de nada, mas de sua força de trabalho, são chaves para explicar os resultados desta série de trocas.

O terceiro processo é denominado "estruturas produzidas na ação". Usando os conceitos de recurso de Giddens e de habitus de Bourdieu, Young reafirma que as condições de injustiça inscritas nas estruturas se concretizam nos recursos ou no habitus que os indivíduos incorporam quando atuam no seu cotidiano a partir de suas preferências, produzindo estruturas. O que Young propõe dá elementos para explicar o constante estado de crise da escola pública no Brasil: à medida que crescem os setores médios no país, mais pessoas têm condições econômicas para decidir mandar seus filhos para escolas particulares, colaborando assim para o aprofundamento da crise nas escolas públicas, que se torna estrutural. A escola pública, então, fica responsável pelos filhos daqueles com menos poder aquisitivo, com menos recursos (poder, na terminologia de Giddens) e com habitus pouco associados à luta por direitos. Se, de forma distinta, o aumento da renda dos pais fosse elemento que tivesse presença dentro da escola pública, setores afluentes e, principalmente, os menos afluentes, teriam vantagens de uma escola em melhores condições. O que acontece, no entanto, provoca a reprodução das condições de dominação. Paradoxalmente, a melhoria de vida de significativa parcela da população aprofunda a crise estrutural em vez de criar condições para a sua superação.

O quarto processo refere-se às "consequências não intencionais". Esse é um processo importante porque está muito relacionado à questão da responsabilidade. A autora enfatiza que a "estrutura social, se refere a um acúmulo de resultados de ações de massa de indivíduos que levam a efeito seus próprios projetos, frequentemente sem coordenação com muitos outros" (Young, 2011, p. 62). Essas ações causam consequências não intencionadas. Vejamos um exemplo: no Brasil, as classes médias, preocupadas com o futuro de seus filhos, os colocam nas melhores e mais caras escolas privadas para que tenham condições de passar no vestibular das mais qualificadas universidades públicas. Isso retira dessas universidades as camadas mais pobres, que não podem pagar colégios caros. Ninguém pode culpar os indivíduos de desejarem um bom futuro para seus filhos; a intenção é apenas garantir vaga para o filho, não expulsar ninguém. Para transformar essa situação, do ponto de vista de Young, é necessária, algumas vezes, "uma agressiva intervenção regulatória" por parte do Estado. No caso específico, trata-se de um bem público quase totalmente usufruído por uma parte da população - a mais rica. É preciso, portanto, entregar ao conjunto da população, de forma justa, o bem público, no caso as universidades. Essa reversão de situação não é simples, pois os privilégios dados pela estrutura são vividos como direitos e não burlam nenhuma lei. Por isso, a questão da responsabilidade é fundamental para a discussão da justiça social. O fato de grande parte dos jovens brasileiros ficarem fora da universidade pública, entre eles os mais pobres, não é culpa dos indivíduos que promovem uma educação aprimorada aos seus filhos. Aqui a culpa é claramente das políticas de Estado de longa duração, que nunca colocaram a educação como prioridade. Entretanto, há uma responsabilidade coletiva, diria até geracional. Não da geração atual, especificamente, mas de sucessivas gerações de adultos que convivem com as más condições na educação pública como se elas fossem naturais.

Em suma, Young constrói um quadro muito sofisticado dos processos de injustiça provocados pela estrutura social, onde aparece a estrutura em movimento, criando e sendo criada pela agência dos indivíduos. Sua análise expõe determinantes e ações que permitem o avanço do conhecimento da capacidade de reprodução, mas também o das fissuras nas estruturas possíveis propulsoras de mudança.

Responsabilidade e o modelo de conexão social

Para construir o "modelo de conexão social", Young parte da seguinte premissa: independentemente da intenção, todos que contribuem com suas ações para reproduzir a injustiça são responsáveis por ela. Para fazer frente a essa situação, propõe o modelo que assim define:

O modelo de conexão social entende que todos os que contribuem com suas ações para processos estruturais com algum resultado injusto compartilham responsabilidade pela injustiça. Essa responsabilidade não é, primariamente, olhar para trás para atribuir culpa ou falta, mas olhar para frente. Ser responsável em relação à injustiça estrutural significa que um tem a obrigação de se juntar a outros, que compartilham a mesma responsabilidade, para transformar o processo estrutural e tornar seus resultados menos injustos (Young, 2011, p. 96).

Young avança na explicação de seu modelo apresentando seis características. A primeira refere-se ao fato de que não se pode deixar de responsabilizar aqueles aos quais não se pode imputar a culpa de crimes ou malfeitos. Trata-se de uma responsabilidade não individualizada, mas que, ao mesmo tempo, não torna o indivíduo irresponsável. Essa característica é chamada de "não isolamento" e retoma a problemática da culpa, enfatizando que a injustiça não se encerra na identificação e punição de agentes culpados, isto é, isolar na sociedade os culpados não é suficiente. Em um país onde haja alta ocorrência de corrupção, não se pode desculpar o malfeito a partir da suposição de senso comum de que todos, tendo oportunidade, seriam corruptos. Isso só perdoaria os que se corrompem. De outra sorte, uma população que tem pouca rigidez em julgar tanto pequenos como grandes atos de contravenção, ou que não se sente obrigada a cumprir leis, mesmo as mais simples leis de trânsito, tem responsabilidade em relação à corrupção. O caso do Brasil é exemplar: os atos de corrupção são partes constitutivas do desrespeito generalizado da sociedade com o bem público. Eles vão desde pequenos atos de desobediência até o desvio de vultosas somas de recursos públicos para as mãos de políticos ou de agentes privados. É, pois, um fenômeno muito mais amplo do que os escândalos de corrupção que ocupam quase diariamente a mídia. Apontar corruptos, julgar corruptos, fazê-los devolver os recursos ilicitamente tomados, condená-los à prisão são atos necessários e devem ser levados a efeito de forma justa. Mas, ao mesmo tempo, é preciso ter presente que eles são incapazes de reduzir a corrupção em níveis residuais, pois, além dos culpados, há uma sociedade responsável (Pinto, 2011).

A segunda característica do modelo diz respeito ao julgamento das condições passadas (background conditions) e refere-se a comportamentos e ações que reproduzimos sem nenhuma ilegalidade, sem mesmo refletir, mas que produzem injustiça.

Quando nós julgamos que existe uma injustiça estrutural, estamos dizendo precisamente que pelo menos algumas condições pressupostas para a ação não são moralmente aceitáveis. A maioria de nós contribui, em maior ou menor grau, para a produção e reprodução da injustiça estrutural, precisamente porque seguimos regras e convenções aceitas e esperadas pelas comunidades e instituições em que atuamos (Young, 2005, p. 107).

O sistema de impostos no Brasil é um bom exemplo dessa situação. Independentemente de pagarmos ou não os impostos - e a maioria de nós paga -, a distribuição desse pagamento entre a população é injusta com os mais pobres, que pagam impostos embutidos nos serviços e nas mercadorias. Partindo desse pressuposto, mesmo que a lei seja cumprida, estamos reproduzindo a injustiça e privilégios de uma legislação que beneficia elites agrárias, rentistas e profissionais liberais e tributa assalariados através do imposto de renda e a população pobre através da tributação direta sobre produtos e serviços. É central reter que a responsabilidade no modelo de Young ultrapassa os diretamente "responsáveis" ou culpados por ações que levam à injustiça. Isso tem relevância, por exemplo, na resistência das camadas médias no Brasil em aceitar cotas para negros nas universidades. O argumento da não responsabilidade pela escravidão tem sido muito corrente entre os opositores da medida. Não se trata de uma culpa ou responsabilidade em relação ao passado, e esse é um aspecto importante para entender a questão, mas de uma responsabilidade presente em relação aos descendentes de escravos.

A terceira característica do modelo de Young retoma a questão da relação passado-presente: "mais com um olhar para frente do que um olhar para trás". O olhar para frente não coloca no passado a construção da própria estrutura, mas presta atenção para sua reprodução e recriação no presente. Ou seja, não somos apenas resultado, somos agentes que produzem e reproduzem a estrutura injusta. O passado, segundo Young, deve funcionar para tornar possível a desnaturalização e o entendimento de injustiças. Ela utiliza um argumento muito perspicaz em relação ao passado:

Entender como os processos estruturais produzem e reproduzem injustiça social requer ter em conta como eles têm aparecido e operado desde o passado até o presente. Ter tal visão retroativa conta também para ajudar aqueles de nós que, por serem participantes desses processos, precisam entender o papel que desempenham neles. O propósito dessa visão retroativa, portanto, não é louvar ou culpar, mas ajudar a ver as relações entre ações particulares, práticas e políticas de um lado, e os resultados estruturais de outro (Young, 2005, p. 109).

Young aponta para uma questão fundamental na relação com o passado, quando o foco é a justiça e/ou a injustiça socioestrutural: a naturalização pelo desconhecimento (involuntário ou não). Não conhecer pode ser a forma de nos desresponsabilizar das injustiças, bem como do compartilhamento de responsabilidade. O conhecimento não pode ser um ato de escolha individual, mas uma exigência do princípio da justiça. Conhecer as conquistas ibéricas no continente americano, que desalojou civilizações e exterminou populações, muda a relação dos indivíduos que não foram partícipes diretos desses atos com as populações remanescentes. O mesmo acontece com os descendentes de africanos escravizados. No Brasil, os negros são os mais pobres e com menos anos de educação formal, os que morrem mais cedo, os mais assassinados por policiais ou gangues na juventude. Esses são efeitos da injustiça social estrutural, que permitiu que a desigualdade se reproduzisse. A população branca e mestiça brasileira que vive no século XXI não pode responder pela escravidão, não pode ser culpabilizada ou criminalizada por ela, mas tem responsabilidades para com as suas consequências, pois é partícipe dessa sociedade. É esclarecedor observar a distinção entre uma política de reconhecimento, que promova a efetiva inclusão desses setores injustiçados da população e uma política indenizatória, que pague os descendentes pelo sofrimento de seus tetravós. A responsabilidade vem pari passu com uma política de inclusão e reconhecimento; a culpa, com uma política indenizatória. Nem a população branca que vive no século XXI é culpada pela escravidão, nem os negros atualmente são escravizados, daí haver uma distinção muito clara entre as duas alternativas. A política indenizatória é paradoxal pois, ao estipular certo pagamento a um indivíduo pelo seu antepassado escravo, não reconhece a condição de exclusão do descendente (o indivíduo que está sendo pago). Ao mesmo tempo, a sociedade que paga pelo que fizeram os seus antepassados se desresponsabiliza pelas condições das populações descendentes.

A quarta característica refere-se à responsabilidade compartilhada, que traz para o centro da discussão o indivíduo responsabilizado, não no sentido de ser culpado, legal ou moralmente, de forma individualizada, mas de ser responsável. Young esclarece:

Cada um é pessoalmente responsável pelos resultados de forma parcial, na medida em que, ele ou ela sozinho não produz os resultados; a parte específica que cada um joga para produzir o resultado não pode ser isolada e identificada, daí a responsabilidade ser, essencialmente, compartilhada (Young, 2005, p. 110).

A responsabilidade compartilhada tem como foco os indivíduos de forma muito particular, pois, ao mesmo tempo que não são individualmente culpados ou responsáveis, compartilham a responsabilidade com o conjunto de indivíduos. Alguém que tenha trabalhado diretamente com a repressão é culpado, mas os que, sem terem ligação direta, estavam, por exemplo, dentro de uma universidade e ainda que não tenham perseguido ninguém, não se manifestaram contra a tortura e o extermínio, não são individualmente culpados do terror, mas compartilharam com os outros indivíduos a responsabilidade de terem ficado calados, daí poderem ser responsabilizados por isso.

O caráter compartilhado da responsabilidade a distingue ainda mais da culpa que, por sua natureza, não pode ser compartilhada no sentido que está sendo dado por Young. Muitos indivíduos podem ser culpados de um ato ilícito, mas cada um é independentemente culpado e assim pode ser julgado. Diferentemente, um único indivíduo não pode ser culpado pelos dados de carência da educação no Brasil.

A quinta característica do modelo de Young sintetiza as demais: só podemos nos responsabilizar através da ação coletiva ou, em outras palavras, através da atividade política. O conceito de responsabilidade política aqui é fundamental.

Portanto, nós podemos concordar com a ideia de Arendt de que isso é uma responsabilidade política específica, distinta da moral privada ou judicial. Tomar responsabilidade por injustiça estrutural, sob esse modelo, envolve unir-se a outros para organizar a ação coletiva para reformar as estruturas. Mais fundamentalmente o que eu entendo por "política" aqui é engajamento comunicativo público com outros, com o objetivo de organizar relações e coordenar ações de forma mais justa (Young, 2005, p. 112).

A sexta e última característica do modelo de conexão social de Young é exatamente a mais definitiva, mas - como já mencionamos antes neste artigo -, foi a menos desenvolvida. A autora advoga que, nessa ação coletiva, estariam juntos os responsáveis e os prejudicados em uma difícil química. Young (2005, p. 113) trata de resolver a questão da seguinte forma:

No modelo de conexão social, portanto, aqueles que podem propriamente argumentar sobre o fato de serem as vítimas da injustiça estrutural também podem ser chamados à responsabilidade que compartilham com outros, para engajarem-se na ação direita e transformar essas estruturas. De fato, em alguns temas, quem pode argumentar que está em posição de menor vantagem dentro da estrutura talvez devesse tomar a liderança de organizar e propor remédios para a injustiça, porque seus interesses estão mais agudamente sob ameaça. Suas posições sociais, além disso, oferecem às vítimas da injustiça um entendimento único da natureza dos problemas e dos prováveis efeitos de políticas e ações propostas por outros, que estão situados em posições mais poderosas e privilegiadas.

A longa citação justifica-se porque esclarece a postura da autora. Nela percebemos a ausência de embate político, de antagonismos e diferenças de interesses entre os agentes sociais. Ela deriva da "responsabilização dos responsáveis" para uma proposta conciliatória, sem responder como os responsáveis se reconhecem como tais e constroem a "vontade" de resolver injustiças, junto às "vítimas", que também deveriam passar pelo mesmo processo.

Em síntese, o modelo está organizado em torno de três pontos fundamentais: a responsabilidade individual; a necessária condição compartilhada dessa responsabilidade; e o caráter político do compartilhamento. Soma-se a isso uma complexa relação com o passado que, ao mesmo tempo que não serve de justificativa para a paralisia, necessita ser conhecido e refletido para permitir sua superação.

***

Gayatry Spivak (2006, p. 116), ao ser indagada sobre sua constante preocupação com a subjetividade, respondeu: "Eu, na verdade, estou falando sobre a formação do sujeito e produzindo as bases reflexivas para um agência social autoconsciente."

Young (2005, p. 121), ao concluir o capítulo de seu livro sobre o modelo de conexão social, afirma:

Responsabilidade é sempre pessoal, no sentido que cada um necessita responder por si. Portanto, o imperativo para responder por si presume uma estrutura mediada por si, isto é, eu me explico porque já sou consciente de mim e também da minha relação com outros, que chama por uma resposta minha.

Essas duas mulheres escrevem teoria, escrevem sobre injustiça e subalternos, são feministas e pensam o feminismo teoricamente. Mesmo desenvolvendo perspectivas teóricas muito distintas, ambas pensam sobre justiça social.

Por que trazer Spivak para concluir um artigo sobre Young? Porque é significativo que, com preocupações políticas próximas, mas teoricamente distanciadas, ambas cheguem ao indivíduo - o sujeito individual - como elemento necessário para pensar a justiça social.

Considerar o espaço do indivíduo na política é pensar o indivíduo politicamente responsável através da subjetificação, historicamente condicionada, efeito de estrutura, mas diferente dela por sua singular condição de indivíduo. Esse personagem não é o sujeito liberal, politicamente irresponsável quase por definição, nem o sujeito de classe, ou uma identidade preconstruída pelo movimento social. Portanto, o indivíduo que retorna agora em posição de destaque na ação política e na responsabilidade social não é o sujeito liberal, que deve dar conta de si, nem um sujeito subsumido pela condição de classe, ou de alguma outra identidade essencializada. É um indivíduo que tem classe, gênero, cor, história incorporada, que está inserido na estrutura e é efeito dela. Mas, antes de tudo, é um sujeito que internaliza, de diferentes formas, suas condições e se torna (consciente ou inconscientemente) responsável por sua relação como o outro e, consequentemente, por sua ação. A noção de responsabilidade compartilhada, proposta no modelo de Young, pressupõe um indivíduo que possua um espaço de liberdade para agir.

Dar destaque à responsabilidade do indivíduo, no enquadramento trazido por Young, representa avanço importante para a compreensão da ação coletiva e da ação especificamente política. Permite uma reflexão sobre os movimentos sociais, posturas indenitárias e políticas identitárias. Os limites do modelo, no entanto, percorrem todo o esquema teórico de Young e podem ser sumariados nas seguintes questões: que forças na sociedade são capazes de incorporar estas responsabilidades e transformá-las em ação (luta) política? Quem e por que faria isso? Seria, em última instância, uma luta entre culpados e responsáveis? O que, afinal, os responsáveis fazem com suas responsabilidades? Se partirmos da ideia de que há indivíduos que não são nem culpados nem responsáveis, quem são eles? Seriam os subalternos de Spivak? Como eles encontram seu lugar no modelo de conexão social?

Iris Young fica longe de resolver o dilema que ela própria criou. Mostrou a responsabilidade do indivíduo na sua relação com a estrutura. Advogou que a justiça social depende dessa ação responsável e compartilhada, mas não avançou no sentido de explicar como o responsável se sente responsável. Quando a posição de privilégio, que naturaliza posições de injustiça e torna o sujeito incapaz de reconhecer sua responsabilidade, se transforma? Talvez o limite maior de Young esteja na sua frágil noção de politização das responsabilidades e na análise de como essas responsabilidades e injustiças se distribuem entre classes, gêneros, raças, etnias.

Muito vagamente, a autora apontou políticas de Estado no sentido de construir a justiça social. Todavia, apesar de politizar a responsabilidade, não politiza o Estado, no sentido de destacar que o Estado pode ter projetos na direção da justiça social.

Se a presença do Estado não pode ser minimizada, mesmo nestes tempos de cosmopolitismo, faltou, no modelo de responsabilidade de Young, a presença da ação coletiva. Pensar a responsabilidade do indivíduo não pode levá-lo a um isolamento, mas a uma nova forma de pensar como os indivíduos se instituem como sujeitos responsáveis da ação no interior dos movimentos sociais e na ação coletiva em geral.

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  • *
    Este artigo é parte de um projeto de pesquisa em desenvolvimento, com bolsa do CNPq, que analisa um conjunto de teóricas do feminismo com o propósito de examinar como suas obras equacionam as questões de justiça social, liberdade, igualdade e radicalização da democracia.
  • 1
    Ao longo do livro de Young, há constante diálogo com a obra de Hannah Arendt, ora incorporando sua distinção entre culpa e responsabilidade, ora se distanciando dela pela pouca importância que Arendt atribui à estrutura.
  • 2
    Cabe aqui esclarecer que a noção de culpa
    versus responsabilidade não está pressupondo que, tirando da instituição policial os culpados, ela se recuperará com os bons policiais. Há momentos de necessidade de novas instituições para reparar o ambiente de corrupção e malfeitos. A criação da New Scotland Yard, no início do século XIX na Inglaterra, é um bom exemplo.
  • 3
    Um tema quase anedótico na história do feminismo é o da mulher burguesa ou de classe média que, não querendo explorar suas irmãs de gênero, demite a empregada doméstica, deixando-a sem como sustentar a família, mas se livra da culpa.
  • 4
    Os fragmentos do livro de Iris Young citados são traduções minhas, para uso exclusivo neste artigo.
  • 5
    Em relação ao neoliberalismo e à responsabilização individual, Young faz duras críticas a autores como Mead (2006), Murray (1984) e Dworkin (2000), apontando diferenças entre os dois primeiros e o último. Assim sintetiza sua posição: "A proposta de Dworkin é articular princípios para justificar um sistema estatal compensatório. No lugar disto, a falta que eu encontro no aporte dele à justiça é que ele foca largamente nos atributos das pessoas e ignora ou rejeita um lugar teórico para dar visibilidade à estrutura. A filosofia de Dworkin é similar a que anima aqueles tais como Murray e Mead, que promovem a ideia da responsabilidade pessoal na política." (Young, 2011, p. 30).
  • 6
    Para a questão de distribuição, Nancy Fraser elabora um sofisticado aporte à questão; ver Fraser (2008a e 2008b) e Fraser e Honeth (2003).
  • 7
    O imperativo de responsabilidade política é uma questão central, mas resolvida de forma muito precária por Young. Voltarei a esta questão na parte final do artigo.
  • 8
    Isso se torna ainda mais estranho na medida em que todo o seu argumento desemboca na ação coletiva, como veremos na parte final deste artigo.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Jun 2014
    • Data do Fascículo
      Abr 2014
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