Acessibilidade / Reportar erro

A questão agrária na literatura neorrealista portuguesa

The agrarian issue in Portuguese neorealist literature

Resumos

Os temas desenvolvidos pelos investigadores científicos e pelos políticos que se dedicaram à questão agrária portuguesa ao longo dos séculos estão presentes de forma clara na literatura sobre o mundo rural. No século XX a corrente que mais fortemente expressou as preocupações sociais da ruralidade foi o Neorrealismo, e esta incursão pelo seu universo de autores e temas teve como objetivo a síntese das imagens que se construíram sobre o Alentejo e que muito contribuíram para lançar as bases do movimento da reforma agrária que se realizou em 1975.

Neorrealismo; literatura; Alentejo; trabalhadores; latifundiários


The themes that were studied by scholars and politicians interested in the agrarian issue in Portugal throughout the centuries are also present in literature dealing with the agrarian world. During the 20th century, the literary current that most strongly expressed the social concerns of the rural world was Neorealism. This study of the universe of neorealist authors and themes has the purpose of synthesizing images that were constructed over the Alentejo region, in the southern part of Portugal, and which were important for the agrarian reform that took place in the Alentejo in 1975.

Neorealism; literature; Alentejo; rural workers; landowners


Les thèmes étudiés par les chercheurs et les politiciens qui ont écrit sur la question agraire portugaise au cours des siècles sont aussi présents dans la littérature sur le monde rural. Au long du XXème siècle, le courant qui a plus fortement exprimé les préoccupations sociales du monde rural a été le Néoréalisme. Cette incursion sur l'univers d'auteurs et de thèmes néoréalistes a l'objectif de faire la synthèse des images que ont été construits sur la région de l'Alentejo et qui ont contribué pour lancer les bases du mouvement de la reforme agraire qui a eu lieu en 1975.

Néoréalisme; littérature; Alentejo; travailleurs; propriétaires


ARTIGOS

A questão agrária na literatura neorrealista portuguesa

The agrarian issue in Portuguese neorealist literature

Maria Antónia Pires de Almeida

Maria Antónia Pires de Almeida é doutora em História Moderna e Contemporânea, membro do CIUHCT, FCT/UNL e do CIES (mafpa@iscte.pt)

RESUMO

Os temas desenvolvidos pelos investigadores científicos e pelos políticos que se dedicaram à questão agrária portuguesa ao longo dos séculos estão presentes de forma clara na literatura sobre o mundo rural. No século XX a corrente que mais fortemente expressou as preocupações sociais da ruralidade foi o Neorrealismo, e esta incursão pelo seu universo de autores e temas teve como objetivo a síntese das imagens que se construíram sobre o Alentejo e que muito contribuíram para lançar as bases do movimento da reforma agrária que se realizou em 1975.

Palavras-chave: Neorrealismo; literatura; Alentejo; trabalhadores; latifundiários.

ABSTRACT

The themes that were studied by scholars and politicians interested in the agrarian issue in Portugal throughout the centuries are also present in literature dealing with the agrarian world. During the 20th century, the literary current that most strongly expressed the social concerns of the rural world was Neorealism. This study of the universe of neorealist authors and themes has the purpose of synthesizing images that were constructed over the Alentejo region, in the southern part of Portugal, and which were important for the agrarian reform that took place in the Alentejo in 1975.

Key words: Neorealism; literature; Alentejo; rural workers; landowners.

RESUME

Les thèmes étudiés par les chercheurs et les politiciens qui ont écrit sur la question agraire portugaise au cours des siècles sont aussi présents dans la littérature sur le monde rural. Au long du XXème siècle, le courant qui a plus fortement exprimé les préoccupations sociales du monde rural a été le Néoréalisme. Cette incursion sur l'univers d'auteurs et de thèmes néoréalistes a l'objectif de faire la synthèse des images que ont été construits sur la région de l'Alentejo et qui ont contribué pour lancer les bases du mouvement de la reforme agraire qui a eu lieu en 1975.

Mots-clés: Néoréalisme ; littérature ; Alentejo ; travailleurs ; propriétaires.

Os assuntos, preocupações e conceitos desenvolvidos pelos autores que se dedicaram à questão agrária portuguesa são prevalecentes na literatura sobre o mundo rural. Os problemas do Alentejo como fonte de abastecimento alimentar, a sua deficiente produção cerealífera e as diversas causas sociais, econômicas e geomorfológicas para a baixa densidade populacional, assim como as respectivas propostas de solução ocuparam os eruditos ao longo dos séculos. As correntes fisiocráticas foram objeto de concretização em sucessivos movimentos legislativos. Na literatura, estas correntes tiveram a sua expressão no Neorrealismo. Neste movimento da literatura portuguesa do século XX os problemas das populações ligadas à atividade agrícola são expostos de forma diferente da erudita e legislativa, mas o seu conteúdo acaba por ser semelhante ao dos discursos, memórias e teses apresentadas pelos mais variados teóricos ao longo dos séculos (Almeida, 2006: 33-58). Os escritores de ficção sofreram influências fisiocráticas, quanto mais não seja pela sua experiência pessoal de contato direto com a terra e com as pessoas que desta vivem. As relações de amor ou de ódio pela propriedade, pelo trabalho do campo, pela agricultura em geral motivaram-nos a escrever, nalguns casos, verdadeiras sagas, com personagens que retratam os principais grupos sociais da ruralidade e os respectivos pontos de contato e afastamento, as tensões, sociabilidades e dramas que os envolvem.

Para se obter tal profundidade de abordagem é necessária uma vivência que estes autores possuíam, como é o caso de Alves Redol ou de Fernando Namora, expoentes do Neorrealismo português. Ambos viveram em íntimo contato com as populações que retrataram nas suas obras e testemunharam os comportamentos, o imaginário e as formas de ação dos grupos sociais mais desfavorecidos. Não foi por coincidência que os autores, só por terem vivido no meio retratado, selecionaram os temas e as personagens das suas obras. Apesar de estarem em posições diferentes na sua qualidade de observadores, Redol como investigador intencional para a recolha de materiais para as suas composições ficcionais, Namora como médico rural e recolector involuntário de experiências e personagens, foi a sua escolha intencional dos grupos de trabalhadores, ladrões ou pobres como protagonistas, descritos de forma tão minuciosa, que marcou ideologicamente um novo tipo de literatura.

Vários autores destacaram esta componente do Neorrealismo português, como foi o caso de Joaquim Namorado, o iniciador e teórico do movimento, e Garcez da Silva, que o descreve como "realismo socialista": segundo este companheiro do grupo de Alves Redol em Vila Franca de Xira, a designação foi "inventada para iludir a vigilância censória quanto ao verdadeiro sentido deste movimento artístico-literário, empenhado num projeto de sociedade socialista" (Silva, 1990: 28, 79), ou "foi uma máscara eufemística para ludibriar a censura ditatorial, pois a palavra 'socialismo' não podia ser impressa" (Torres, 1977: 14, Reis, 1981: 16). Em face das limitações da época no que diz respeito à liberdade de expressão, a literatura foi a "única expressão viável de aspectos da vida social que, noutras circunstâncias, teriam cabido ao jornalismo, à política e ao livro doutrinário" (Sacramento, 1985: 22). O próprio Alves Redol (1993) afirmou a intenção jornalística da sua obra ao escrever que os Gaibéus foram "um compromisso deliberado da reportagem com o romance". O aspecto panfletário e a forte componente pedagógica das primeiras obras não eram, porém, completamente disfarçados, como se pode ler num prefácio da obra Fanga, escrito depois da primeira edição de 1943, no qual Alves Redol deixou bem clara a sua intenção politicamente conotada: "este livro é um ato de acusação. Jurei pela minha honra dizer a verdade e só a verdade. Tenho-o feito lealmente, sem baixar os olhos" (Redol, [1943] 1995: 31).

Também Soeiro Pereira Gomes, que dedicou a sua obra Esteiros (1941) aos "filhos dos homens que nunca foram meninos", atreveu-se a publicá-la com um prefácio de Álvaro Cunhal, na época já bem conhecido das autoridades e assíduo frequentador das prisões políticas. Pouco tempo depois, em 1946, o mesmo autor escreveu Praça de jorna, um manual de instruções para os trabalhadores alentejanos, um "esboço sobre a maneira como utilizar as praças de jorna ou praças de trabalho no Movimento de Unidade Camponesa para o derrubamento do fascismo" (Gomes, [1946] 1976: 26). Os seus textos de doutrinação política circulavam impressos em papéis pardos nos meios operários e rurais e eram lidos à noite em reuniões secretas.

A leitura das obras da primeira fase da corrente, marcada pela ruralidade (Torres, 1983: 17-20), permite-nos uma síntese das imagens que se construíram sobre o Alentejo. Contudo, estas manifestações literárias não se limitaram ao mundo rural (Viçoso, 1984 e 2011). A leitura dos neorrealistas é uma escolha difícil pela intensidade dramática dos temas, pela crueza das descrições, pelo que é desagradável a consciência de que a realidade, sobretudo a do meio rural, podia ser horrível, contrariando a tendência para a apresentar de forma bucólica e paradisíaca. Com esta corrente entrou-se claramente em conflito aberto entre o ético e o estético, e esta dicotomia tornou-se o principal tema da discussão entre a corrente neorrealista (ética) e os autores da revista Presença (estética). Para Eugénio Lisboa os novos escritores descuidaram "os valores estéticos mais elementares". Nas suas palavras podemos encontrar alguma admiração, mas sobretudo uma violenta crítica à forma que este tipo de literatura assumiu, fiel ao seu projeto de valorizar o conteúdo em detrimento da arte (Lisboa, 1980: 92, 120), o que veio confirmar os comentários que foram feitos logo às primeiras obras, aos quais o próprio Alves Redol respondeu no prefácio da primeira edição de Gaibéus, em 1939, afirmando sem sombra de dúvida a sua vontade de fazer prevalecer a componente ética na sua obra - "Este Romance não pretende ficar na literatura como obra de arte. Quer ser, antes de tudo, um documentário humano" -, e acrescentando na edição de 1965 que estava a reagir contra "alguns (que) insistem em traçar limites para a literatura, entendendo que lhe está vedado exprimir, por exemplo, os dramas quotidianos de um povo (...) Tão aguerrida batalha pelo conteúdo em literatura parecia urgente a todos os jovens que ansiavam plantar os alicerces para um novo tipo de cultura extensiva às grandes massas" (Redol, [1939] 1993: 31 e 49-51). Estas declarações foram inspiradas no que Jorge Amado tinha escrito em 1933 sobre o seu romance Cacau: "Tentei contar neste livro, com um mínimo de literatura para um máximo de honestidade, a vida dos trabalhadores das fazendas de cacau do sul da Bahia. Será um romance proletário?" (Torres, 1983: 15).

Era arrojado o objetivo de chegar "às grandes massas", em face dos altos níveis de analfabetismo da época. Se de fato se assistiu a algum alargamento do público leitor, em paralelo com uma "democratização da atmosfera universitária", cujo universo começou a ter "uma forte representação das classes desfavorecidas" (Namora, 1991: 209), isto não significou que a literatura neorrealista tivesse alcançado grande divulgação. Para tanto contribuiu o fato de esta corrente sempre ter assumido uma conotação ideológica muito forte à qual muitos não se queriam associar: "As pessoas decentes não têm ideias. Quem tem ideias são os políticos, pagos para isso mesmo, e uns intelectuais 'possidónios' que não se sabem vestir e que escrevem para o povo, já que as pessoas decentes não leem livros escritos em português..." (Monteiro, 1961: 70).

O fato de os primeiros neorrealistas terem sido considerados pelos seus opositores um grupo de jovens "insensíveis aos valores estéticos" (Lisboa, 1980: 93) não diminui a perceção da sua qualidade literária ou até o prazer da sua leitura. Certamente a sua insensibilidade era intencional, pois o que eles queriam mostrar era a falta de qualquer beleza na vida do grupo social retratado. Ao denunciar as condições de vida do operariado rural e dos grupos desprivilegiados, estes autores revelaram uma beleza diferente, resultante do caráter quase épico que emergia da desgraça, onde o horror produzia o sublime. Além disso, "as primeiras obras neorrealistas não eram tão lineares e primárias como se tem pretendido: ainda hoje somos obrigados a reconhecer que algumas delas se contam entre as obras definitivas da nossa literatura contemporânea, continuando a impressionar-nos por certas virtudes, força, autenticidade, grandeza, que dificilmente se encontram nas mais recentes..." (Namora, 1961: 13).

Procurando as raízes

O Neorrealismo foi uma corrente que surgiu "por analogia e contraste com o realismo" (Rodrigues, 1981: 13) herdado de Camilo Castelo Branco e Júlio Dinis, expoentes da literatura romântica, mas cujas obras exibem traços acentuados do realismo, e de Eça de Queirós. Verificam-se caraterísticas de continuidade entre estas duas correntes, sobretudo no fato de o Neorrealismo ser "uma nova tomada de consciência da realidade portuguesa, de certo modo análoga à da geração de 70, mas que já conta com o interesse dos estratos sociais progressivamente amplos" (Saraiva e Lopes, 1955: 1108-1114). Pode-se mesmo afirmar a influência direta do Realismo sobre Alves Redol, especialmente nas várias coincidências encontradas n'A ilustre casa de Ramires de Eça de Queirós e no Barranco de cegos (Ferreira, 1992: 25-31, 37-41).

Como exemplo temos os pesadelos do Gonçalo da Ilustre casa... com os seus avós e os de Diogo Relvas, fechado no alto da sua torre, a dialogar com a sua vítima Zé Pedro Borda-d'Água, e a receber o consolo do seu pai e do seu avô Chicote, os quais não tinham, porém, origens tão heroicas, nem tão dignas... (Redol, [1962] 1998: 424-426). Mas as coincidências não ficam por aqui: enquanto a personagem de João Gouveia, o administrador do concelho, afirma que Gonçalo lhe lembra Portugal (Queirós, [1897] 1945: 456-457), também o percurso e o comportamento de Diogo Relvas pode ser visto como um retrato fiel da grande lavoura alentejana e ribatejana, e das resistências desta elite em face das transformações dos finais do século XIX, da modernização e da introdução da indústria. Urbano Tavares Rodrigues vai mais longe, comparando este protagonista a Salazar (Rodrigues, 1981: 33). Contudo, verifica-se que a personagem que reúne maior número de semelhanças com o presidente do Conselho é o neto preferido do patriarca, Rui Diogo, o que toma conta do seu império, o que preserva a memória do avô e o seu corpo embalsamado na torre muitas décadas para além da sua morte. O próprio Alves Redol, numa "Breve nota de culpa" (prefácio), afirmou que ia escrever a "história desse homem, meio Deus meio lavrador, cuja sombra ainda hoje se projecta na pausa absurda dos netos, que teimam em prolongá-lo. E que o conseguem, o que é mais absurdo, como se o patrão Diogo continuasse vivo" (Redol, [1962] 1998: 16). Isto pode ser visto como uma alegoria do império português que Salazar "teimou em prolongar" e pelo qual nunca desistiu de se bater, iniciando a Guerra Colonial no mesmo ano em que este romance estava a ser escrito.

Por outro lado, alguns especialistas do Neorrealismo salientam as divergências e a absoluta inovação desta corrente, sobretudo no que diz respeito aos protagonistas: das elites, com todas as suas fragilidades e grande parte das vezes em processo de decadência, passa-se ao retrato das "figuras populares". O povo transforma-se no herói, mas com caraterísticas que o desviam do herói tradicional, habitualmente retratado como valente, forte e empenhado em lutas solitárias. Agora as figuras mais miseráveis, os mais fracos e sobretudo os grupos, mais que os indivíduos, adquirem uma dignidade até então nunca reconhecida, "perdem-se na multidão anónima e tornam-se símbolos" (Andrade, 1955: 57). Os seus problemas havia séculos eram apontados nas obras dos teóricos ou dos políticos como Andrade Corvo e Casal Ribeiro em diversos projetos de lei. Porém estas referências encaravam os grupos populares de uma forma apenas utilitária: se descreviam as deficientes condições de vida, a má alimentação, as doenças, era simplesmente para justificar a baixa produtividade do trabalho e propor soluções para o aumento da produção de alimentos e da riqueza nacional, pois, se "um povo bem alimentado é um povo ativo, vigoroso", era necessário melhorar a alimentação das classes pobres (Ribeiro e Corvo, 1864: 17). Tratava-se, portanto, de algo a corrigir por razões puramente econômicas.

Esta visão redutora, que já foi revista posteriormente, provocou uma reação exagerada no início do movimento, que justifica a "monotonia de temas, de ambientes, de processos, como se apenas uma classe, a dos camponeses, e como se apenas um agregado humano, o povo, fossem merecedores da crónica realista (...) uma visão primária das contradições sociais, pela qual se dividiam os homens em oprimidos e opressores, uns dotados de todas as virtudes, outros simplesmente odiosos..." (Namora, 1961: 7).

Com Ferreira de Castro e a sua obra Emigrantes, publicada em 1928, assinala-se "o primeiro reconhecimento público de um realismo novo em Portugal" (Saraiva e Lopes, 1955: 1105), embora não fosse esta a primeira obra do movimento. O final dos anos 1920 trouxe grandes transformações ao nível mundial, os sistemas políticos e econômicos das maiores potências entraram em ruptura e todas essas convulsões tiveram reflexos na literatura. Para "um grupo de jovens ligados entre si por uma inquietação comum" (Silva, 1990: 27), ativos colaboradores na imprensa, os grandes acontecimentos dos anos 1930, sobretudo a Guerra Civil de Espanha, tiveram uma repercussão importantíssima nas suas vidas e carreiras literárias. A figura de proa do grupo foi sem dúvida Alves Redol, cuja geração foi influenciada por correntes literárias estrangeiras, especialmente o "realismo socialista divulgado pelas obras de Gorki, no romance americano da chamada 'geração perdida' (...) e sobretudo no romance brasileiro nordestino..." (Reis, 1981: 27). Além destes autores, Alves Redol leu a tradução castelhana de 1934 da obra de Plekhanov, um pensador marxista russo, assim como o romance Cimento de Fédor Gladkov, escrito em 1925, e toda a obra de Federico García Lorca (Silva, 1990: 84, Andrade, 1955: 53). Encontra-se em todos os autores uma filiação direta ao ideário comunista que torna inseparáveis a cultura e a política e que consagrou oficialmente o Realismo Socialista como doutrina estética oficial do seu movimento (Madeira, 1996: 277). Não podemos esquecer também o ambiente visual, tanto plástico como cinematográfico da época, nitidamente imbuído do mesmo estilo realista-socialista, cujo ponto alto se pode encontrar na Guernica de Picasso (1937). Na mesma linha, é de referir a pintura de Diego Rivera e Frida Khalo, e de Grant Wood nos Estados Unidos. Em Portugal salientam-se as obras plásticas de Almada Negreiros, Júlio Pomar e Fernando Lanhas, que também se articulam com o Neorrealismo nos seus objetivos propagandísticos e de divulgação, como se pode ver nas exposições do Museu do Neorrealismo em Vila Franca de Xira.

No que diz respeito ao cinema, alguns filmes foram fundamentais na exposição das ansiedades ligadas à modernização. É o caso de Metropolis, de Fritz Lang (1926), ou de Tempos modernos, de Chaplin (1936), e também da série B americana, com James Cagney e Humphrey Bogart, que retrata o submundo do crime, assim como do épico As vinhas da ira, realizado em 1940 a partir do romance de John Steinbeck. Um pouco mais tarde o cinema italiano iniciou a sua caminhada para o Neorrealismo com o filme O ladrão de bicicletas, de 1948. Em Portugal, os temas ligados ao mundo rural também fizeram parte do cinema produzido nos anos 1930, no qual se destacam Douro, Faina fluvial, de Manoel de Oliveira, de 1931, e Gado bravo, de António Lopes Ribeiro, de 1934. No entanto, a chancela do Estado Novo é muito forte nesta época, e as obras de maior destaque inserem-se numa corrente de propaganda cujo mais flagrante representante é o filme Revolução de Maio, de António Lopes Ribeiro, de 1937 (Fragoso e Fonseca, 1949: 692). As influências do Neorrealismo fizeram-se sentir no cinema timidamente, mas com enorme sensibilidade, com o filme Aniki Bóbó, de Manoel de Oliveira (1942).

Todo este ambiente intelectual, em conjunto com a consciência social adquirida pela experiência pessoal de Alves Redol, produziu o romance Gaibéus, "a primeira manifestação ficcionista de fôlego do movimento neorrealista" (Lopes, 1993: 7). A influência dos escritores brasileiros é, contudo, a mais nítida, revelando-se até em certos "brasileirismos vocabulares e sintáticos": os primeiros romances de Alves Redol tinham um "estilo que de início acusava demasiadamente, sobretudo nas tiradas líricas, a influência de Jorge Amado" (Saraiva e Lopes, 1955: 1105-1115; ver também Rodrigues, 1981: 13 e Andrade, 1955: 54). De fato, o autor baiano já em 1933 escrevia sobre a vida dos trabalhadores das fazendas no seu romance Cacau. O seu percursor, José Lins do Rego, tinha acabado de publicar as suas memórias de infância nas obras Menino de engenho e Doidinho (1932 e 1933), e sua perspectiva de menino rico, neto do dono do engenho de açúcar, não o impediu de tomar consciência da pobreza da população rural do Nordeste Brasileiro, onde as crianças que viviam no engenho do seu avô lembram a vida no Alentejo na mesma época, como se pode ler na coletânea de memórias publicada sobre o tema (Almeida, 2010). A autobiografia com uma forte componente de descrição da vida rural da Paraíba, desde o estudo das elites ao dos trabalhadores rurais, foi continuada no romance Usina, de 1936.

Depois dos trabalhadores rurais, Jorge Amado continuou a retratar os grupos mais desfavorecidos em Mar morto, de 1936, sobre os pescadores, e em 1937 publicou os Capitães da areia. Numa fase mais madura e elaborada surgiu em 1960 o épico sobre o caciquismo rural Gabriela, cravo e canela. Notam-se semelhanças nos percursos literários de Jorge Amado e de Alves Redol no estilo e nos temas abordados. Se o primeiro retratou os grupos populares que melhor conhecia pela sua vivência pessoal, também o segundo nos descreveu no início da sua carreira literária as vivências dos grupos mais miseráveis que se encontravam no meio rural português: os ranchos de trabalhadores migrantes que sazonalmente se deslocavam para as zonas de grande propriedade para realizar os trabalhos mais duros da ceifa do arroz, e atividades complementares, os quais necessitavam de grandes quantidades de mão de obra num período específico e curto. A natureza do trabalho obrigava a uma urgência só possível em empreitada, o que baixava os custos da mão de obra. Por isso mesmo os trabalhadores locais, geralmente insuficientes, ressentiam-se com os baixos salários pagos, era frequente a tensão entre os dois grupos e por vezes surgiam alguns conflitos declarados. Este tema é retomado por Manuel da Fonseca em Cerromaior (1943), por Fernando Namora em Casa da Malta (1945) e O trigo e o joio (1954) e mais tarde por Saramago em Levantado do chão (1980).

O rancho dos algarvios que se deslocava para Santiago do Cacém, cenário de Cerromaior, tem grandes semelhanças com os ranchos de gaibéus, vindos das Beiras e do Alto Alentejo para a Lezíria ao sul do Tejo. No fundo, ambas as classificações são sinônimas e surgiram como termos depreciativos da gíria popular criados nas diversas regiões, assim como os ratinhos (no Alentejo), os beirões, os bimbos (que iam para o Algarve), os caramelos (que iam para a região de Coimbra), os minhotos, os picamilhos, os saquenhos (apanhadores de azeitona que traziam num saco a sua refeição, correspondentes aos boias-frias no Brasil), os serranos (tosquiadores de ovelhas), e outras variantes. Os galegos, por outro lado, eram mais comuns nas cidades de Lisboa e Porto, onde adquiriam caraterísticas de maior permanência e realizavam trabalhos variados e não especializados, desde serviços domésticos até ao pequeno comércio ambulante. Também nas vinhas o trabalho dos galegos era bem aproveitado: grande parte dos socalcos do Douro foi construída no último quartel do século XIX por pedreiros da Galiza.

Fernando Namora revelou uma sensibilidade particular em relação aos ratinhos e ao modo como eram vistos pelos alentejanos nas referências que lhes faz. Todos os trabalhadores migrantes tinham em comum o fato de serem contratados por engajadores que os recrutavam no seu local de residência (onde habitualmente detinham uma pequena exploração agrícola ou artesanal) e negociavam os termos do contrato com os lavradores (v. Martins e Monteiro, "Ratinho", 2002). Chegados ao local da empreitada, os ranchos eram divididos em camaradas, cada uma dirigida por um manageiro ou capataz, figura odiosa que mereceu uma atenção especial por parte de Alves Redol. Numa das mais explícitas cenas dos Gaibéus um ceifeiro entra em delírio por causa da sede, imaginando a sua foice a degolar o capataz (Redol, [1939] 1993: 81-82). Também Manuel da Fonseca dedica uma atenção especial aos manageiros no conto "Noite de Natal" (Fonseca, [1951] 1981: 75). O drama deste grupo é contado com pormenores arrepiantes também encontrados no romance Esteiros de Soeiro Pereira Gomes, sobre a vida das crianças que apanhavam lama para fazer telhas e tijolos na margem do Tejo. As semelhanças desta obra com os Capitães da areia não se resumem ao fato de descreverem a vida miserável de grupos de crianças, nem à descrição da iniciação sexual precoce e com alguma componente de violência e desespero. Enquanto nos Esteiros o grupo é composto por "meninos iludidos, inexperientes e inocentes" (Torres, 1983: 89), na obra de Jorge Amado as crianças da rua rapidamente perdem toda a inocência, passando diretamente a uma carreira de roubo e de crime. Em ambas está presente este elemento de marginalidade e uma justificação do roubo como um direito adquirido.

O tema do roubo institucionalizado já se encontrava em textos teóricos, como por exemplo em Lino Netto, que, apesar de ser um proprietário de terras, defendeu o direito ao furto em face das injustiças do mundo rural (Netto, 1908: 211; Cutileiro, 1977: 96-98). O ponto culminante desta tendência encontra-se no romance Alcateia, de Carlos de Oliveira (1944), que retrata um grupo de ladrões como pessoas condenadas pela sociedade à marginalidade e à vida criminosa. Nos Capitães da areia o roubo é um fim em si e o trabalho é apresentado como uma solução pouco viável, apenas justificada como forma de luta social. Ao crescer, o protagonista Pedro Bala torna-se líder sindical, acabando preso e depois fugitivo da polícia. A grande diferença que se encontra entre esta obra e os Esteiros é o fato de esta última não glorificar a vadiagem e a vida dos meninos que andam em bando a roubar. Pelo contrário, em face da injustiça da impossibilidade de frequentar a escola, Soeiro Pereira Gomes apresenta o trabalho como algo positivo e que ainda o seria mais se não fosse desvirtuado pelos capatazes deliberadamente torturadores. Mesmo descrevendo o roubo como uma alternativa possível e não condenável, o autor acaba o livro e aquele ano de todas as tragédias com a prisão do Gineto, o líder do grupo. Este verdadeiro herói, que salvou o pai da morte por afogamento, nunca se conformou com o trabalho institucionalizado, preferindo a marginalidade, e por isso teve de ser castigado. Não perdeu, porém, a admiração dos colegas, sobretudo do Gaitinhas, que, ao partir com o Sagui a correr mundo, quando as possibilidades de emprego acabaram naquela região, promete libertá-lo com a ajuda do pai, personagem mítico, preso pelas suas ideias políticas e que nem se sabe se ainda está vivo.

Também em Aniki Bóbó o roubo, que tantos problemas de consciência provocou no seu autor, não chega a ser condenado. Carlitos, o protagonista que rouba uma boneca para oferecer à Teresinha, a quem ele quer para namorada, é descoberto, devolve o produto do roubo, mas acaba por ser perdoado pelo dono da loja, ao revelar-se "um bom menino". Para completar as referências comparativas à literatura brasileira, salienta-se José Mauro de Vasconcelos com a sua obra Longe da terra de 1949 e mais tarde Meu pé de laranja lima de 1967. Em vários destes dramas encontramos crimes cometidos por necessidade ou inocentes acusados injustamente. A fronteira entre o que é justo e o que não é fica muito tênue. Mas as vítimas são sempre as mesmas: os mais desprotegidos ou os alienados da sociedade, os indivíduos roubados a si mesmos, os que perdem a sua própria personalidade (Torres, 1983: 36-39).

Fernando Namora foi exímio na descrição da relação entre patrões e trabalhadores rurais, que iniciou com a Casa da malta de 1945, uma obra com um enredo minimalista, mas recheado de personagens de uma enorme riqueza. As suas qualidades literárias foram sublimadas com a obra Retalhos da vida de um médico, cujo primeiro volume foi publicado em 1949 e o segundo em 1963. Além de retratar o que de mais deprimente se podia encontrar no povo, com particular ênfase nos ciganos, sempre descritos de forma negativa, este conjunto de histórias revela as sutilezas das relações entre "uma aristocracia severa de senhores da terra", para quem "o mundo está feito para os servir", e todas as outras classes. Mesmo o médico, sobretudo um jovem vindo de fora, estava a uma distância abismal de qualquer "senhor Acácio" que o mandasse chamar ao meio da noite por um criado. O desagrado da personagem principal/narrador em relação aos ricos alentejanos não podia ser mais óbvio, chamando-lhes descaradamente "esses medievos"!

Fernando Namora, que mais tarde abandonou a carreira médica para se dedicar por inteiro à literatura, escreveu, entre outros, O trigo e o joio, um romance dedicado ao Alentejo, no qual a perspectiva do autor em relação aos grupos mais desprivilegiados difere substancialmente das anteriormente desenvolvidas por Alves Redol e Soeiro Pereira Gomes. Se já tínhamos percebido que o médico não gostou dos ricos, aqui ficamos com a certeza de que o seu apreço pelos pobres também não foi muito grande. Na sua descrição da vida de um maltês (Martins e Monteiro, 2002), já não encontramos a exaltação dos sentimentos puros dos alienados da vida, nem a justificação do roubo por causas nobres... Enquanto os homens com família para sustentar tinham de se sujeitar a qualquer serviço e humilhação, procurando por vezes trabalho fora de casa e mesmo no estrangeiro, o protagonista Barbaças, pelo contrário, na sua qualidade de solteiro e descomprometido, podia dar-se ao luxo de trabalhar quando lhe apetecia, preferindo claramente passar as tardes na taberna.

Mas a falta de integração na sociedade e a alienação destes desgraçados da vida não se esgota com esta personagem: também os pequenos proprietários das courelas nas bordas das grandes herdades são aqui descritos de uma forma violenta que retrata o fim de um grupo profissional que perdeu a sua razão de existir: os seareiros, que sofreram ao longo do século XX um processo de proletarização ou de substituição pela máquina, além da anexação das suas terras pelo latifúndio. Neste caso o coureleiro Loas e a sua mulher, a Ti Joana, são progressivamente reduzidos à miséria total, depois de uma série de trágicas decisões que revelam a incapacidade de adaptação a um mundo em mudança e um caminho inevitável para a demência.

Uma segunda fase

A lucidez de Fernando Namora na sua análise dos diferentes grupos sociais alentejanos é de uma importância fundamental, assim como o fato de o autor ter começado a individualizar e a diversificar os seus protagonistas, tal como Manuel da Fonseca também o fez. Agora já não se tratava de ceifeiros anônimos ou de ladrões indiferenciados: os grupos desmembraram-se. Os trabalhadores já não eram todos iguais. Entre eles existiam diferenças profundas que começaram a aflorar: os casados e os solteiros, os justos e os eventuais, os da terra e os de fora, os que trabalhavam e os preguiçosos. Encontramos mesmo entre os protagonistas alguns membros das elites fundiárias que já não têm apenas caraterísticas negativas: tornam-se mais humanos.

Manuel da Fonseca atreveu-se a elogiar um lavrador no conto "O último senhor de Albarrã", na mesma linha de Fernando Namora ao demonstrar o quanto a vida num ermo pode ser prejudicial para a sanidade mental de qualquer homem. Até o maior proprietário da região podia sucumbir a uma desilusão de amor e cometer atos de loucura. Mas este rico é assim descrito com a intenção de o destacar do seu grupo, que continua com a tradicional conotação negativa. Os tempos estavam a mudar e nada no presente se comparava com o passado mítico onde tudo era bom: "Gente daquela raça já não existe. Eram outros tempos, caramba!" (Fonseca, [1951] 1981: 123-124). Claro que na tradição da questão agrária a crítica direta aos latifundiários alentejanos continuava tão forte como antes. Nota-se, contudo, que é uma crítica mais elaborada e sutil.

Nas obras dos anos 1950 verifica-se uma tendência para o amadurecimento da corrente literária, a qual "atingiu a maioridade" (Namora, 1961: 3-4), o que não a impediu de se manter coerente com as suas raízes. Um dos pontos mais altos do movimento neorrealista foi atingido pelo mesmo autor que o iniciou: Alves Redol, com o Barranco de cegos, publicado em 1962 e classificado como "a obra-prima de Alves Redol (...) a cúpula do (seu) edifício narrativo" (Rodrigues, 1981: 33). A evolução do seu estilo e o aperfeiçoamento estético são nítidos nesta obra, onde as descrições do belo substituíram parte dos horrores explícitos das obras anteriores. Mas isto não impede que o horror continue presente e que os temas continuem fortes e violentos. Toda a prepotência dos ricos com os seus criados e com toda a população da região é aqui levada ao extremo em cenas como a da visita de Diogo Relvas a Aldebarã, onde por pouco não entra a cavalo em casa do "chefe jacobino da vila" e não o zurze com o cavalo-marinho, como teria feito anos antes (Redol, [1962] 1998: 52). Ou no episódio da manipulação das eleições locais, em que a ironia chega ao ponto de o lavrador dizer ao presidente da mesa que exagerou nos resultados falsificados. No entanto, é com a própria família e com os criados da casa que ele consegue ser mais cruel, arrependendo-se depois amargamente, sem nunca deixar de agir como ele considera necessário. Desde logo com Zé Segeiro, castigado como se fosse uma criança, apesar dos seus 50 anos, junto com os dois filhos de Diogo Relvas por terem partilhado uma gaibéua. Depois com o próprio filho António Lúcio, a quem toda a vida tratou como um fraco e só depois de o ver à morte admitiu que afinal tinha a valentia da família. E finalmente com a filha preferida, Maria do Pilar, que se apaixonou pelo domador de cavalos favorito do patrão. É precisamente por gostar tanto dos dois que não lhes perdoa a traição, mandando matar o criado e encerrando a filha num monte isolado. Arrependido, passou quatro anos sem sair da sua torre...

O protagonista deste romance foi inspirado no maior latifundiário da Lezíria do Ribatejo na época: José Maria dos Santos, o mesmo lavrador de Alcochete que distribuiu terras por colonos e que era considerado o "Rei dos vinhos" (Martins, 1992: 367). Diogo Relvas, por outro lado, era o "Rei do gado" e tinha origens familiares já na agricultura, enquanto a personagem real tinha ascendido socialmente pelo casamento com uma viúva rica. Este pormenor distinguia-os fundamentalmente: enquanto o primeiro pegou na fortuna da mulher e multiplicou-a, pondo em ação o seu "espírito empresarial moderno", a personagem ficcionada foi construída propositadamente pelo autor como um arquétipo de uma classe conservadora, ultramontana e resistente à inovação. Os seus bens foram herdados e preservados para transmissão aos herdeiros, como lhe cumpria na qualidade de grande proprietário: "Um homem nascia com a herança de uma terra e cumpria-lhe deixar o legado, íntegro, aos que viessem depois" (Namora, 1991: 38). E entre os símbolos introduzidos por Alves Redol não faltaram as caraterísticas tradicionalmente atribuídas aos latifundiários, como por exemplo a decadência dos herdeiros, que só gastam o dinheiro da lavoura em palácios e divertimentos em Cascais em vez de reinvestir na agricultura.

As divergências entre Diogo Relvas e José Maria dos Santos não impedem, no entanto, que outros pormenores nos revelem a inspiração do autor: também o avô Chicote, que tinha ascendido socialmente com o seu próprio trabalho e iniciativa, teve uma ação de colonização como a do personagem real, se bem que não tão elaborada. Apesar de o plano não ter sido de iniciativa direta do lavrador, os mesmos resultados positivos foram alcançados. No entanto, quando o patriarca Diogo Relvas finalmente se desfez em pó, a primeira resolução do neto Rui Diogo foi expulsar "essa malta".

O Neorrealismo não se esgotou com os seus últimos representantes oficiais, José Cardoso Pires e Urbano Tavares Rodrigues, este último já mais próximo de uma "nova ficção de inspiração existencialista" que ainda nos anos 1950 deu os seus primeiros passos e que pode considerar-se de continuidade neorrealista (Saraiva e Lopes, 1955: 1114). Também marcado por uma infância passada no Alentejo, Tavares Rodrigues escreveu As aves da madrugada, um conjunto de novelas publicadas em 1959, entre as quais se destaca "Margem esquerda".

Nestes anos é óbvio o afastamento dos temas rurais da literatura, apesar de n'O Delfim de Cardoso Pires ainda podermos assistir a um drama sobre o fim de uma casa agrícola: depois de onze gerações de lavradores cheios de virtudes, Tomás Manuel da Palma Bravo, o Infante, é o símbolo da decadência das elites rurais, descrito como uma pessoa cruel, esbanjadora e cheia de vícios, jogador profissional e amante da vida noturna. Engenheiro silvicultor com emprego numa fábrica, transformou a sua propriedade numa coutada de caça, "a derradeira produção de uma casa que deixara de ter lavoura" (Pires, 1968: 25, 201), reduzindo os seus criados ao mínimo, enquanto a antiga população que a casa empregava emigrou.

A maioria das obras contemporâneas passou a centrar-se em meios urbanos, acompanhando, aliás, a tendência demográfica em geral e o percurso geográfico dos autores, que residiam majoritariamente em Lisboa, perdendo um pouco o contato com as alterações que vão ocorrendo no mundo rural. O próprio José Cardoso Pires apresenta o seu narrador como um escritor que vai à aldeia apenas para caçar, portanto quase um turista, não um residente no mundo rural. Já Luís de Sttau Monteiro apresenta-nos, na sua Angústia para o jantar (de 1961) um drama urbano onde está presente a temática do conflito de classes. Nas suas personagens amargas, os ódios recíprocos e as ideias feitas reproduzem uma sociedade estática e sem grandes esperanças de mudança, onde se realizam "jogos que não levam a nada", mas que têm regras muito específicas que o autor vai enumerando. Com este autor assiste-se a uma continuidade dos temas do Neorrealismo transpostos para uma Lisboa decadente, onde se cruzam outros ricos (neste caso industriais, proprietários de prédios, diplomatas, enfim burgueses) com outros pobres (funcionários, operários), mas cujas relações não diferem muito das que os ricos e pobres dos meios rurais estabelecem entre si.

Também Vergílio Ferreira e Agustina Bessa-Luís tiveram um papel de relevo neste processo. No conjunto da produção literária mais recente surgem ainda algumas exceções que voltam aos temas rurais, se bem que com caraterísticas diferentes das obras anteriores. Enquanto os autores neorrealistas atrás descritos relataram o que viram e o que ainda era a verdade do seu tempo, alguns autores que escreveram logo a seguir ao 25 de Abril abordaram os mesmos temas com uma perspetiva de um passado congelado que é recuperado para vingar os oprimidos. Em consequência da revolução de 1974 os escritores permitem-se agora atribuir ao povo uma capacidade de ação que até então não lhe era reconhecida. O pobre trabalhador que amargava em silêncio numa vida estagnada e sem horizontes de mudança passa a ser um revoltado que quer agir para mudar o seu destino, e essa revolta torna-se possível.

No caso d' O pão não cai do céu, escrito em 1975 nos Estados Unidos (onde residia desde 1935) por José Rodrigues Miguéis, autor que não alinhou com o movimento neorrealista, essa possibilidade de luta é transplantada para o período dos anos 1930, quando ainda estava muito presente a tradição da resistência republicana contra a ditadura militar. Com o objetivo de mostrar a capacidade do povo para se unir e lutar pelos seus direitos, o autor descreveu-nos um Alentejo irreal de grandes movimentações sociais e debates políticos. Esta obra foi inspirada no mesmo incidente explorado por Manuel da Fonseca na Seara de vento, e evoca um Alentejo "algo abstrato" que Miguéis visitara muitos anos antes (Miguéis [1981] 1996: 271-273). No entanto, em vez de o protagonista ter um percurso completamente isolado de luta contra a injustiça que o estava a vitimar, neste caso o "Cigano" está envolvido num movimento revolucionário de grande envergadura que mobiliza uma multidão em Beja e que está ligado a uma tentativa de revolução ao nível nacional para derrubar o regime.

Na mesma onda de entusiasmo com a revolução, e sobretudo com a reforma agrária em curso no Alentejo, José Saramago instalou-se durante uns meses no Lavre, uma freguesia do concelho de Montemor-o-Novo, onde participou na vida dos trabalhadores da Cooperativa Boa Esperança e recolheu a memória oral que lhe serviu de suporte para o livro Levantado do chão. A obra de Saramago é a versão literária de qualquer tese acadêmica que se escreva sobre o Alentejo. Além de uma recolha etnográfica que incluiu a descrição das tarefas agrícolas e dos diversos trabalhadores que as executam, encontramos neste romance todos os componentes tradicionais da questão agrária e da literatura neorrealista: os patrões cruéis, agora absentistas; os feitores lacaios e os capatazes malvados; os trabalhadores oprimidos, os pobres a mandar os filhos pedir "ao prédio", apesar da vergonha, entre tantos exemplos que retratam à exaustão os gravíssimos problemas sociais de um Alentejo que não esquece a miséria por que passou sobretudo nos anos 30 e 40 do século XX. Mas outros temas surgem agora mais às claras, depois de apenas aflorados nas obras anteriores: por exemplo a resistência ao trabalho pesado nas condições mais duras, como era o caso do manuseamento da debulhadora fixa, ou os presos políticos, detidos injustamente e sem julgamento. Enquanto nos Esteiros encontramos apenas uma alusão remota ao pai do Gaitinhas, aqui a prisão de João Mau-Tempo é descrita com todo o pormenor em trinta páginas, onde não faltam as desventuras da mulher, Faustina, que se perde no caminho para a prisão de Caxias e chega já depois da hora da visita. A viagem desta mulher desde Monte Lavre a Lisboa, e depois pela estrada de alcatrão quente onde queima os pés e derrete as meias, e a decepção por não a deixarem ver o marido são de levar às lágrimas...

Também o tema dos trabalhadores que eram levados aos comícios de apoio ao regime já fora aflorado por Fernando Namora n'O trigo e o joio, mas numa perspetiva diferente. A ingenuidade dos anos 30 já não existe nos trabalhadores de Saramago, os quais, mesmo fazendo o que lhes mandam, revoltam-se contra a sua sorte. João Mau-Tempo vai a uma manifestação em Évora porque a tal é obrigado, pois tem família e não quer ficar marcado, não pode perder o trabalho, nem a jorna daquele dia: "A vontade é dizer não (...) o pior é depois, que este cachorro toda a gente conhece, é o Requinte, ouve e vai contar (...) sei lá se depois me vêm prender..." (Saramago, [1980] 1991: 90-91).

Os medos com que se vivia, o trabalho duro e incerto, a opressão, tudo é vingado com a revolução e a ocupação das terras. A reforma agrária de 1975 é evocada no último capítulo, que se desenrola num crescendo de emoção e no qual assistimos ao simbolismo dos mortos que se levantam do chão para assistir a esse movimento glorioso que vai resolver todos os problemas e injustiças que ao longo de tantos séculos caraterizaram o latifúndio. O mérito de Saramago como um dos melhores escritores contemporâneos foi reconhecido internacionalmente com a atribuição do Prêmio Nobel da Literatura de 1998. Contudo, esta obra em particular apresenta o grande problema das obras escritas nesse período "quente" da História de Portugal: se o livro Levantado do chão termina com um grito de esperança, os anos que se seguiram marcaram o absoluto insucesso de todo o processo da reforma agrária. De qualquer modo, se bem que apenas por alguns momentos, os mortos de Saramago tiveram o seu momento de glória, quanto mais não seja pelo fato de terem conseguido humilhar os proprietários que eles consideravam a causa de todas as suas misérias.

Conclusão

Verifica-se na literatura portuguesa do século XX a construção intencional de uma imagem do Alentejo na qual predomina a bipolarização social marcada pelos estereótipos do latifundiário, cidadão "de lavoura e cabaré" (Pires, 1968: 151), com uma conotação irremediavelmente negativa, e do trabalhador rural vitimado pelo próprio nascimento e pela condição de pobre, sem qualquer capacidade de escapar a um destino de servidão e de humilhação nas mãos da prepotência do patrão e dos seus representantes: feitores, capatazes... Toda esta construção literária encontra a sua correspondência teórica no retrato fiel e aprofundado que José Cutileiro fez dos Ricos e pobres no Alentejo (1977). No entanto, desde os levantamentos etnográficos de José da Silva Picão (1903) e de Leite de Vasconcelos (1933) um leitor mais atento terá tomado consciência da maior diversidade social que se pode encontrar nesta região e da enorme evolução que se verificou ao longo do século. Foi uma evolução marcada por oscilações, em consequência de fenômenos econômicos e políticos (influenciados muitas vezes pela conjuntura internacional) que desencadearam movimentos demográficos importantes. E se talvez alguns latifundiários alentejanos apresentassem de fato as caraterísticas que deram origem ao retrato do proprietário absentista e esbanjador, outros porém, como os que foram estudados por Conceição Andrade Martins (1992), tiveram comportamentos empresariais dinâmicos e capitalistas, modernizando as suas explorações e contribuindo para o desenvolvimento das suas regiões.

Igualmente, se muitos trabalhadores sofreram tantas ou mais humilhações como as que atrás se citaram, sobretudo na qualidade de eventuais, sem contrato ao ano e com maior incidência nos anos 1930 e 40, quando as Campanhas do Trigo promoveram a intensificação cultural e a diminuição dos salários na agricultura e a emigração esteve vedada devido à Segunda Guerra Mundial, por outro lado nos anos 1950 e 60, e com o auxílio da emigração, da nova legislação social e dos incentivos à mecanização da agricultura, alguns assalariados que ficaram na terra conseguiram ascender às categorias de seareiro ou mesmo de pequeno rendeiro, ao mesmo tempo que se criaram novos grupos profissionais como tratorista, alugador de máquinas (Martins e Monteiro, 2002) e outras especializações que muito contribuíram para uma melhoria da qualidade de vida do trabalhador rural alentejano.

São estas particularidades que não se podem esquecer quando se analisam movimentos como o da reforma agrária, no qual se mobilizou a população rural e se tentou a anulação dessa diversidade e a reconstrução de uma imagem dos trabalhadores como um grupo coeso e igualitário. Em 1975 assistiu-se a uma verdadeira luta para nivelar em termos de salário e horários trabalhadores tão diferentes como pastores e tratoristas, pessoal administrativo e mondadeiras. Para a geração que participou nas ocupações de terras, a memória de uma infância de privações e muito trabalho ainda estava muito presente, se bem que a fome e os longos períodos de desemprego já fizessem parte das recordações transmitidas pela geração anterior.

E se Saramago nos falou de António Mau-Tempo, que emigrava sazonalmente para a França, onde trocava "anos de vida por moeda forte", e o trabalho ao menos "era garantido e bem pago", apesar das péssimas condições da viagem, do trabalho duro e do racismo dos franceses (Saramago, 1991: 125, 287-290), falta agora alguém que escreva um romance no qual um antigo porqueiro consegue chegar a caseiro e encarregado geral de uma pequena lavoura, enquanto o seu filho é dono da drogaria da vila e a neta é médica. E tantas outras histórias sobre carpinteiros que emigraram para Lisboa e têm filhos engenheiros com bons empregos e que compram pequenas quintas onde recordam nos fins de semana a vida rural que os pais deixaram (Almeida, 2010). Felizmente não acabou tudo em tragédia, e é esta diversidade que ainda está por contar.

Artigo recebido em 18 de junho e aprovado para publicação em 28 de agosto de 2012.

  • ALMEIDA, Maria Antónia. A revolução no Alentejo. Memória e trauma da reforma agrária em Avis Lisboa: ICS, 2006.
  • _____. Memórias alentejanas do século XX Cascais: Princípia, 2010.
  • AMADO, Jorge. Capitães da areia [1937] Mem Martins: Europa-América, s. d.
  • ANDRADE, João Pedro. Ambições e limites do 'Neorrealismo' português. In: FRANÇA, J. (org.). Tetracórnio. Antologia de inéditos de autores portugueses contemporâneos, meio século XX de literatura portuguesa Lisboa: e. a., 1955.
  • CUTILEIRO, José. Ricos e pobres no Alentejo (uma sociedade rural portuguesa) Lisboa: Sá da Costa, 1977.
  • FERREIRA, Ana Paula. Alves Redol e o Neorrealismo português Lisboa: Caminho, 1992.
  • FONSECA, Manuel. Cerromaior [1943] 7ª ed. Lisboa: Caminho, 1997.
  • _____. O fogo e as cinzas [1951] 9ª ed. Lisboa: Caminho, 1981.
  • FRAGOSO, F. & FONSECA, R. F. A maravilhosa história da arte das imagens. 1895-1939. Lisboa: Aladino, 1949.
  • GOMES, Soeiro Pereira. Esteiros Lisboa: Sírius, 1941.
  • _____. Praça de jorna [1946] Lisboa: PCP, 1976.
  • LISBOA, Eugénio. Poesia portuguesa do «Orpheu» ao Neorrealismo. Amadora: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1980.
  • LOPES, Óscar. Gaibéus - uma leitura (uma lição) cinquentenária, prefácio da 17ª ed. In: REDOL, A. Gaibéus 18ª ed. Lisboa: Caminho, 1993.
  • MADEIRA, João. Os engenheiros de almas. O Partido Comunista e os intelectuais (dos anos trinta a inícios de sessenta). Lisboa: Estampa, 1996.
  • MARTINS, C. A. Opções económicas e influência política de uma família burguesa oitocentista: o caso de São Romão e José Maria dos Santos. Análise Social, vol. XXVII (116-117), 1992, p. 367-404.
  • _____ & MONTEIRO, N. (Org.). A agricultura: Dicionário das ocupações In: MADUREIRA, N. (coord.). História do trabalho e das ocupações, vol. III. Oeiras: Celta, 2002. Disponível em: http://repositorio-iul.iscte.pt/browse?type=author&order=ASC&rpp=20&value=Almeida%2C+Maria+Ant%C3%B3nia+Pires+de
  • MIGUÉIS, José Rodrigues. O pão não cai do céu [1981] 7ª ed. Lisboa: Estampa, 1996.
  • MONTEIRO, Luís de Sttau. Angústia para o jantar Lisboa: Ática, 1961.
  • NAMORA, Fernando. Casa da malta [1945] 15ª ed. Mem Martins: Europa-América, 1990.
  • _____. Retalhos da vida de um médico. Lisboa: Inquérito, 1949.
  • _____. A noite e a madrugada [1950] 12ª ed. Mem Martins: Europa-América, 1994.
  • _____. O trigo e o joio [1954] 22ª ed. Mem Martins: Europa-América, 1991.
  • _____. Esboço histórico do Neorrealismo Lisboa: Academia das Ciências, 1961.
  • _____. Retalhos da vida de um médico, vol. 2 [1963]. Lisboa: Círculo de Leitores, 1996.
  • _____. Em torno do Neorrealismo. In: NAMORA, F. Um sino na montanha. Cadernos de um escritor 6ª ed. Mem Martins: Europa-América, 1991.
  • NETTO, António Lino. A questão agrária Porto: Emp. Litteraria e Typographica, 1908.
  • OLIVEIRA, Carlos. Alcateia Coimbra: Coimbra Editora, 1944.
  • PICÃO, José da Silva. Através dos campos. Usos e costumes agrícolo-alentejanos (concelho de Elvas) [1903, reed. 1947] Lisboa: D. Quixote, 1983.
  • PIRES, José Cardoso. O Delfim Lisboa: Moraes, 1968.
  • QUEIRÓS, Eça de. A ilustre casa de Ramires [1897]. Porto: Lello & Irmão, 1945.
  • REDOL, Alves. Gaibéus [1939] 18ª ed. Lisboa: Caminho, 1993.
  • _____. Fanga [1943]. 11ª ed. Lisboa: Caminho, 1995.
  • _____. Barranco de cegos [1962] 11ª ed. Lisboa: Caminho, 1998.
  • _____. Breve memória para os que têm menos de 40 anos ou para quantos já esqueceram o que aconteceu em 1939. Prefácio à 6ª ed. dos Gaibéus, em 1965, incluído na 18ª ed. Lisboa: Caminho, 1993.
  • REGO, José Lins do. Menino de engenho - Doidinho Lisboa: Livros do Brasil, s. d.
  • REIS, Carlos. Textos teóricos do Neorrealismo português Lisboa: Seara Nova, 1981.
  • RIBEIRO, José Maria do Casal & CORVO, João de Andrade. Relatório e Projecto sobre o Comércio dos Cereaes, apresentados ao Conselho do Commercio, Industria e Agricultura pela Comissão nomeada em sessão de 25/2/1864 Lisboa: Imprensa Nacional, 1864.
  • RODRIGUES, Urbano Tavares. As aves da madrugada Lisboa: Bertrand, 1959.
  • _____. Um novo olhar sobre o Neorrealismo. Lisboa: Morais, 1981.
  • SACRAMENTO, Mário. Há uma estética Neorrealista? 2ª ed. Lisboa: Veja, 1985.
  • SARAIVA, António José & LOPES, Óscar. História da literatura portuguesa Porto: Porto Editora, 1955.
  • SARAMAGO, José. Levantados do chão 9ª ed. Lisboa: Caminho, 1991.
  • SILVA, Garcez da. Alves Redol e o grupo Neorrealista de Vila Franca. Lisboa: Caminho, 1990.
  • TORRES, Alexandre Pinheiro. O Neorrealismo literário português. Lisboa: Moraes, 1977.
  • _____. O movimento neorrealista em Portugal na sua primeira fase Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, 1983.
  • VASCONCELOS, J. L. Etnografia portuguesa. Tentame de sistematização [1933] 2ª ed. Lisboa: Imprensa Nacional, 1980, 9 vols.
  • VIÇOSO, Vítor. Estudo introdutório. In: BRANDÃO, R. Os pobres Lisboa: Comunicação, 1984.
  • _____. Narrativa no movimento neorrealista: as vozes sociais e os universos da ficção Lisboa: Colibri, 2011.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    10 Abr 2013
  • Data do Fascículo
    Dez 2012

Histórico

  • Recebido
    18 Jun 2012
  • Aceito
    28 Ago 2012
Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas Secretaria da Revista Estudos Históricos, Praia de Botafogo, 190, 14º andar, 22523-900 - Rio de Janeiro - RJ, Tel: (55 21) 3799-5676 / 5677 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: eh@fgv.br