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Atuação missionária jesuítica na América portuguesa: a peculiar via renascentista, sacramental e tridentina à salvação no(s) Novo(s) Mundo(s)

Jesuit missionary work in Portuguese America: the peculiar renaissance, sacramental and tridentine way to salvation in the New World(s)

L'action missionnaire des Jésuites dans l'Amérique portugaise: la voie singulière à la Renaissance, du sacrement et du tridentisme en vue du salut dans le(s) Nouveau(x) Monde(s)

Resumos

A Companhia de Jesus foi o emblema mais representativo da transformação e realização da nova prática da catequese na sua atuação missionária,durante a primeira Idade Moderna. A transformação vinha ocorrendo a partir da contraposição entre Reforma e Contrarreforma, no estabelecimento de analogias e diferenças da missão entre Europa, América e Ásia, e, finalmente, na esteira dos ecos das decisões conciliares de Trento em Lima. A partir dos tópicos que dividem o texto, o presente trabalho percorre - em uma síntese inevitavelmente esquemática, mas aberta à perspectiva de recentes investigações sobre o tema - essas problemáticas. Pensamos assim que elas possam ganhar clareza e coerência expositiva, mas, sobretudo, uma capacidade de inteligibilidade dos temas propostos, tendo em vista um resultado que não seja apenas uma aquisição (sempre parcial), mas, sobretudo, um novo ponto de partida para ulteriores investigações sobre as diretrizes apontadas.


The Society of Jesus was the most representative symbol of transformation and realization of the new practice of catechesis in its missionary work during the early modern age. The transformation was taking place within and from the contrast between Reform and Counter Reformation, establishing similarities and differences of mission between Europe, America and Asia, and finally, in the wake of the echoes of the conciliar decisions of Trent in Lima. From the topics that divide the text, this study retraces - a synthesis inevitably schematic, but open to the prospect of recent research on the subject - such issues: we think they can win expository clarity and consistency, but, above all, an ability of intelligibility of the proposed topics, with a view to a result that is not only an acquisition (always partial), but above all, a new starting point for further investigations on the guidelines outlined.


La Compagnie de Jésus fut l'emblème le plus représentatif de la transformation et de la réalisation de la nouvelle catéchèse pratiquée par les missionnaires au cours de la première partie de l'Époque moderne. La transformation s'est produite à l'intérieur et à partir de l'opposition entre Réforme et Contre-Réforme, par le biais d'analogies et de différences entre les missions en Europe, en Amérique et en Asie. Cette transformation s'inscrit finalement dans le sillage des échos, à Lima, des décisions prises au cours duConcile de Trente. À partir des topiques qui organisent le texte, cette étude parcourt ces problématiques - en une synthèse inévitablement schématique, mais ouverte à la perspective de recherches récentes sur ce thème : nous pensons donc qu'elles peuvent gagner en clarté et en cohérence, mais surtout que les thèmes proposés peuvent acquérir davantage d'intelligibilité, en visant un résultat qui ne soit pas seulement une acquisition (toujours partielle), mais surtout poser un nouveau point de départ pour de prochaines recherches sur les motifs mis en évidence.


DOSSIÊ

ORDENS E CONGREGAÇÕES RELIGIOSAS NO MUNDO IBERO-ATLÂNTICO

Atuação missionária jesuítica na América portuguesa: a peculiar via renascentista, sacramental e tridentina à salvação no(s) Novo(s) Mundo(s)

Jesuit missionary work in Portuguese America: the peculiar renaissance, sacramental and tridentine way to salvation in the New World(s)

L'action missionnaire des Jésuites dans l'Amérique portugaise: la voie singulière à la Renaissance, du sacrement et du tridentisme en vue du salut dans le(s) Nouveau(x) Monde(s)

Adone Agnolin

Professor doutor em História Moderna do Departamento de História da Universidade de São Paulo

RESUMO

durante a primeira Idade Moderna. A transformação vinha ocorrendo a partir da contraposição entre Reforma e Contrarreforma, no estabelecimento de analogias e diferenças da missão entre Europa, América e Ásia, e, finalmente, na esteira dos ecos das decisões conciliares de Trento em Lima. A partir dos tópicos que dividem o texto, o presente trabalho percorre - em uma síntese inevitavelmente esquemática, mas aberta à perspectiva de recentes investigações sobre o tema - essas problemáticas. Pensamos assim que elas possam ganhar clareza e coerência expositiva, mas, sobretudo, uma capacidade de inteligibilidade dos temas propostos, tendo em vista um resultado que não seja apenas uma aquisição (sempre parcial), mas, sobretudo, um novo ponto de partida para ulteriores investigações sobre as diretrizes apontadas.

ABSTRACT

The Society of Jesus was the most representative symbol of transformation and realization of the new practice of catechesis in its missionary work during the early modern age. The transformation was taking place within and from the contrast between Reform and Counter Reformation, establishing similarities and differences of mission between Europe, America and Asia, and finally, in the wake of the echoes of the conciliar decisions of Trent in Lima. From the topics that divide the text, this study retraces - a synthesis inevitably schematic, but open to the prospect of recent research on the subject - such issues: we think they can win expository clarity and consistency, but, above all, an ability of intelligibility of the proposed topics, with a view to a result that is not only an acquisition (always partial), but above all, a new starting point for further investigations on the guidelines outlined.

RÉSUMÉ

La Compagnie de Jésus fut l'emblème le plus représentatif de la transformation et de la réalisation de la nouvelle catéchèse pratiquée par les missionnaires au cours de la première partie de l'Époque moderne. La transformation s'est produite à l'intérieur et à partir de l'opposition entre Réforme et Contre-Réforme, par le biais d'analogies et de différences entre les missions en Europe, en Amérique et en Asie. Cette transformation s'inscrit finalement dans le sillage des échos, à Lima, des décisions prises au cours duConcile de Trente. À partir des topiques qui organisent le texte, cette étude parcourt ces problématiques - en une synthèse inévitablement schématique, mais ouverte à la perspective de recherches récentes sur ce thème : nous pensons donc qu'elles peuvent gagner en clarté et en cohérence, mais surtout que les thèmes proposés peuvent acquérir davantage d'intelligibilité, en visant un résultat qui ne soit pas seulement une acquisition (toujours partielle), mais surtout poser un nouveau point de départ pour de prochaines recherches sur les motifs mis en évidence.

1. Livre-arbítrio renascentista e perspectiva missionária americana

Na primeira Idade Moderna, a Companhia de Jesus foi, sem sombra de dúvidas, o emblema mais representativo da transformação e realização da nova prática da catequese na sua atuação missionária. Tudo isso vinha ocorrendo no interior da contraposição entre Reforma e Contrarreforma, no estabelecimento de analogias e diferenças da missão entre Europa e América (mas também da Ásia) e, finalmente, nos ecos das decisões conciliares de Trento em Lima. Tanto perante o contexto da Reforma quanto naquele da novidade americana ou em sua nova reestruturação conciliar limenha, uma característica comum emerge, em sua peculiaridade, na ação jesuítica. Trata-se da centralidade reservada ao livrearbítrio, que, não por acaso, encontramos exemplarmente sintetizada na obra de um jesuíta como Acosta: figura central no contexto do III Concílio de Lima e na interlocução entre os vários âmbitos missionários, para além de doutrinariamente atento às diferenças teológicas (e às suas bases filosóficas) entre o mundo protestante e aquele católico.

Em sua Historia natural y moral de las Indias, antes da novidade do tema americano, o próprio Acosta destaca, de fato, o caráter inovador de seu relato. Assim, mesmo que, pelo muito que se disse e se escreveu sobre ele, o Mundo Novo já não seja novo, mas velho em relação à sua obra, o autor evidencia:

todavía me parece que en alguna manera se podrá tener esta Historia por nueva, por ser juntamente historia y filosofía y por ser no solo de las obras de naturaleza, sino también de las del libre albedrío, que son los hechos y costumbres de hombres. Por donde me pareció dar el nombre de

Historia natural y moral de las Indias

, abrazando con este intento ambas cosas

.

1 1 ACOSTA, José de. Proêmio ao leitor. In: Historia natural y moral de las Indias. En que se tratan de las cosas notables del cielo, elementos, metales, plantas y animales dellas y los ritos, y ceremonias, leyes e gobierno de los indios. México: Fondo de Cultura Económica, 2006 [1962].

O destaque proposto por Acosta em relação ao "livre-arbítrio" apresenta por si só o dado fundamental da nova perspectiva antropológica, que se abre na primeira modernidade com a nova missão evangelizadora americana, sobretudo jesuítica. Uma perspectiva, se quisermos, realmente próxima àquela da problemática comparativa e disciplinar da História das Religiões contemporânea.2 2 Disciplina que analisa as "religiões" assentando-se em uma base propriamente histórico-comparativa e levando-as em consideração como produtos culturais: isto é, entendidos como construções arbitrárias, subtraídas a uma dimensão transcendente e objetivante e determinadas, pelo contrário, a partir de um contexto exclusivamente histórico e cultural. O que significa que parte, justamente, do pressuposto de um arbitrário que predetermina e rege, inclusive, esse contexto. A respeito da disciplina, cf., entre outras, as obras propostas em português: AGNOLIN, Adone (Org.). História das religiões. São Paulo: Hedra, 2005 [VV. AA. SCARPI, P.; FILORAMO, G.; RAVERI, M.; MASSENZIO, M. Manuale di storia delle religioni. Roma-Bari: Laterza, 1998. Edição brasileira em quatro volumes.]: SCARPI, Paolo. Politeísmos: as religiões do mundo antigo. v. I; FILORAMO, Giovanni. Monoteísmos e dualismos: as religiões de salvação. v. II; RAVERI, Massimo. Índia e Extremo Oriente: a via da libertação e da imortalidade. v. III; MASSENZIO, Marcello. A história das religiões na cultura moderna. v. IV. AGNOLIN, Adone. O debate entre história e religião em uma breve história da história das religiões: origens, endereço italiano e perspectivas de investigação. Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História, Departamento de História, PUC-SP, "História e religiões", n. 37, p. 13-39, dez. 2008. E, finalmente, sempre de nossa autoria, um trabalho de próxima publicação, História das religiões: prolegómenos à perspectiva histórico-comparativa do estudo das religiões. [no prelo].

As bases desse livre-arbítrio se assentam, enfim, na perspectiva de uma "construção da igualdade" entendida como uma das características principais do processo histórico-cultural que se realiza no Renascimento. Trata-se do processo de construção que está na base de uma humanidade3 3 Cuja conceituação, antes de se propor como dado, constituiu-se em resultado de um percurso histórico peculiar que, unicamente, permitiu sua "pensabilidade". finalmente única: apoiado em suas profundas bases humanistas, entre o fim da Idade Média e o Renascimento, esse percurso realiza o encontro emblemático entre uma alteridade histórica (os Antigos) e uma alteridade espacial (os selvagens), tornando o século XVI o momento mais significativo que constituiu os homens na base de uma mesma estrutura subjetiva e das mesmas representações. Com a novidade aberta por essa perspectiva, a cultura ocidental encaminhou-se em direção à construção de uma igualdade que permitiu a possibilidade inédita de comparação horizontal,4 4 Distinguindo-se de uma anterior definição de diversidade estabelecida por meio de uma hierarquização/verticalidade. Nessa transformação de perspectiva transformaram-se, evidente e progressivamente, os valores envolvidos nas representações das alteridades: passando-se de uma hierarquização vertical para uma comparação horizontal, verifica-se uma progressiva historicização das diferentes culturas humanas (dos mores étnicos) que vai subtraindo-as a uma valorização (exclusivamente) "moral" (em um sentido valorativo absoluto). com os consequentes efeitos de historicização das alteridades históricas e espaciais: a partir desses pressupostos, os homens, tanto do Velho quanto dos Novos Mundos, se constituíram, enfim, no Homem que compartilhava uma mesma estrutura subjetiva e as mesmas representações.

Resultado do cruzamento de duas viagens, duas confrontações, peculiares da Renascença - o renascimento da civilização antiga e o nascimento da nova -, a construção dessa "nova humanidade" encontra em Erasmo a síntese mais emblemática (e sua influência mais significativa no âmbito religioso) de uma cultura que obriga o novo a se relacionar com o antigo na determinação de limites necessários e sistemáticos da civilização: segunda importante etapa cultural do Ocidente que, depois e na esteira daquela do Direito, estabelece a constituição da humanidade que, na sua diversa mas única relação com os diferentes graus de civilização, permite realizar a comparação de humanidades colocadas nos distintos degraus desse único processo que se torna, finalmente, um "processo civilizador".5 5 Cf. ELIAS, Norbert. Über den Prozess der Zivilisation. Basileia: Haus zum Falken, 1939. v. 1. Edição brasileira: O processo civilizador. Uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. v. 1. E falar em "civilização" erasmiana significa, justamente, levá-la em consideração por se constituir na base de seu livre-arbítrio.6 6 Cf. também, a esse respeito, SABBATUCCI, Dario. As felizes culpas do Ocidente. Imaginário: Revista do Núcleo Interdisciplinar do Imaginário e Memória, São Paulo: Nime/USP, "Natureza", n. 3, p. 163-180, 1996. Originalmente publicado em SANTIEMMA, Adriano (Org.). L'emblema e la storia. Roma: La Goliardica, 1983.

Em relação a esse percurso renascentista e a seus pressupostos, a América acabará se configurando como laboratório da inédita possibilidade de comparação, finalmente horizontal, das humanidades, alimentando, com suas especificidades, uma verdadeira protoantropologia missionária. E os jesuítas representaram, nesse contexto, os primeiros exemplares etnológicos de campo.

Nas palavras de Acosta, são sintetizados, justamente, esses resultados: a novidade da perspectiva proposta por sua Historia se desprende "por ser juntamente história e filosofia", e não somente uma objetivação entendida como "obras de natureza"; a novidade da proposta do jesuíta, portanto, resulta no acréscimo de uma perspectiva "moral" àquela natural, em que se entendam como moralidade os fatos e os costumes humanos como resultado do livre-arbítrio. Nas diretrizes postas antes pela perspectiva erasmiana, torna-se plausível e possível, então, a mudança, imposta pela descoberta da América, de uma diversidade que não pode mais se configurar como totalmente explicável pelas categorias antigas. E isso porque, no interior de uma dupla objetivação relacional, o homem do Renascimento percebe sua alteridade em relação à Antiguidade, como moderno, e, em relação aos selvagens das "Novas Índias", como civil. É esse, no fundo, o duplo cruzamento de alteridades que se constitui em base daquela identidade cultural que reconhecemos como civilização moderna.

E a modernidade jesuítica nas Américas - exemplificada por Acosta - remete, assim como a revolução filológica humanista, a uma reinterpretação da Antiguidade também relativa à concepção da diversidade antropológica, partindo de (novas) diretrizes civilizacionais que já foram da Roma antiga: uma reinterpretação filológica da civitas à qual o "selvagem" da América portuguesa ofereceu sua grande contribuição.7 7 Cf., a esse respeito, a interpretação dos diferentes estágios civilizacionais proposta por Acosta. Entre outros trabalhos, ver: PAGDEN, Anthony. The fall of natural man: the American Indian and the origins of comparative ethnology. Cambridge: University Press, 1982. Sobretudo os respectivos capítulos VI, VII e VIII, que se referem à construção de "um programa de etnologia comparada" extendendo-se de Bartolomé de Las Casas até Joseph-François Lafitau, passando, justamente, por José de Acosta.

2. Disciplina, sacramentos e missão na primeira Idade Moderna

Por outro lado, falando em modernidade da missão jesuítica nas Américas, não podemos, contudo, perder de vista o prioritário objetivo operativo, missionário e evangelizador, no interior do qual se estrutura a abordagem à alteridade americana, mesmo partindo da concepção da diversidade antropológica segundo as diretrizes apontadas. Por isso, não podemos deixar de levar em consideração como o impulso catequético, mesmo em sua reformulação moderna, se desprende no interior dos pressupostos e da função que lhe é reservada na perspectiva revolucionária da revelação cristã, no interior de seus principais e característicos fundamentos doutrinais. Estes, de fato, teriam se tornado de extrema importância para fundamentar a "missão" e a consequente e necessária prática da catequese missionária como núcleo central da ação que, ao mesmo tempo, deriva e alimenta a força propulsora de seu característico universalismo.

Em estudo anterior, no qual já traçamos essa contextualização geral da catequese,8 8 Tratamos, em parte, de algumas dessas características em nosso Jesuítas e selvagens: a negociação da fé no encontro catequético-ritual americano-tupi (séc. XVI-XVII). São Paulo: Humanitas/Fapesp, 2007. Cf. Parte I ("Catequese e tradução"), itens 1 e 2. apontamos, portanto, para a necessidade de uma análise mais atenta da prática missionária catequética e sacramental do século XVI: tanto em suas profundas peculiaridades em face da nova situação histórica que se determinara na Europa, com a crise aprontada pela Reforma, quanto em relação à consequente reformulação da prática missionária, dentro e fora da Europa.9 9 Fizemos isso, em termos gerais - isto é, prescindindo da sucessiva e específica análise do contexto e das problemáticas americanas -, sobretudo na Parte II ("Catequese e tradição") do nosso trabalho citado.

A partir dessas problemáticas, tanto no contexto geral do universalismo missionário quanto naquele específico da catequese americana na primeira modernidade, não podemos perder de vista como os sacramentos vêm adquirindo um estatuto especial de "grelha jurídica", além daquela propriamente teológica, no interior da qual se realiza, de fato, a proposta de cristianizar o mundo. Proposta identificada com uma específica forma de "civilização", obviamente, isto é, aquela jurídica, civilizacional e antropológica construída no interior do Ocidente. De um lado, essa civilitas derivava, justamente, da civitas romana, que, em primeiro lugar, conseguiu construir o projeto (civilizacional) de um universalismo, ao mesmo tempo em que constituía a ideia de Estado como sua específica conquista cultural.10 10 Cf. SABBATUCCI, Dario. Lo stato com e conquista culturale: ricerca sulla religione romana. Roma: Bulzoni, 1984 [1975]. Por outro lado e não por último, a constituição da Igreja herda essa perspectiva e esse projeto por meio de sua praxe sacramental. Segundo a leitura de longa duração sugerida por Paolo Prodi, "a Igreja se substitui pouco a pouco ao Estado romano em vias de falecer e constitui cada vez mais o instrumento cultural para o ingresso das populações bárbaras na romanidade também como pertencimento e identidade coletiva, também com a praxe penitencial".11 11 PRODI, Paolo. L'istituto della penitenza: nodi storici. In: MEZZADRI, L.; TAGLIAFERRI, M.(Orgs.). La penitenza: dottrina, controversie e prassi tra medioevo ed età moderna. Bolonha, 22-23 set. 2009. Citado por Maria Teresa Fattori em sua "Introduzione. Politiche sacramentali tra vecchio e nuovi mondi", p. 300. Introdução à coletânea da revista Cristianesimo nella Storia, Bolonha: Dehoniane, v. 2, n. 31, 2010.

A cristianização realizou, enfim, a inserção das populações do mundo no interior de um sistema propriamente jurídico: foi somente depois disso que a proposta da religião cristã impôs e exigiu mudanças de vida que atingiram costumes, mentalidades e valores culturais.

A inserção da alteridade no interior desse sistema jurídico da tradição católica foi realizada, segundo a própria perspectiva religiosa, por uma mediação fundamental que se impôs, no plano ritual - tanto das culturas tradicionais, internas ou externas à Europa, quanto do catolicismo -, por meio do plano sacramental: em todo o seu processo histórico de encontro com o "outro", a tradição católica utilizou-se de uma importante função própria dos sacramentos que, mesmo se tendia a "fagocitar" ou a eliminar a alteridade, de qualquer maneira se colocava como intermediação fundamental para sua interpretação. Por outro lado, ao longo desse processo de "encontro" instaurava-se, necessariamente, um "confronto": os próprios sacramentos não podiam se subtrair aos efeitos de um processo histórico que colocava em discussão o ponto de vista cultural, teológico, jurídico e civilizacional que os constituíram em sua específica função. Podemos dizer que, nessa conjuntura histórica, na esteira do (e correlativamente ao) percurso filológico-humanista, os sacramentos também realizam uma leitura bastante inovadora da sua praxe com relação a outra Antiguidade: aquela tardia e cristã (Patrística) de sua afirmação. É nessa direção, em matéria de sacramentos, portanto, que ortodoxias e ortopraxes12 12 Em contraposição, mas também em correlação, àquele de ortodoxia, o conceito de "ortopraxe" é utilizado por Nicola Gasbarro para indicar o elemento prático e histórico essencial da missionação que realizam (encontram-se na necessidade de realizar) de forma necessariamente negociada as ortodoxias religiosas em concretos contextos histórico-culturais: nesse sentido, a ortopraxe seria a realização (prática e histórica) dos princípios da ortodoxia (teológica). Cf. GASBARRO, Nicola. Missões: a civilização cristã em ação. In: MONTERO, Paula (Org.). Deus na aldeia: missionários, índios e mediação cultural. São Paulo: Globo, 2006. p. 67-109. avançaram, paralelamente, entre a primeira onda de evangelização nas Américas do primeiro Quinhentos até o fim das experimentações rituais no Oriente Extremo da segunda metade do Setecentos. Esse avanço conjunto, que olhava a um tempo para seus fundamentos (ortodoxias) e para sua efetivação histórica (ortopraxe), acabou provocando, necessariamente, algumas mudanças que incidiram significativamente sobre alguns dos aspectos centrais da "matéria sacramental".

Junto e além da importante reflexão escolástica e de sua praxe medieval, no contexto de nosso estudo, a leitura do significado atribuído aos atos sacramentais deve levar em consideração como, em decorrência e por causa da contestação protestante, durante a Idade Moderna, os decretos tridentinos colocaram os sacramentos como garantes da ligação que unia a disciplina à doutrina.13 13 Conferir as etapas desse percurso delineadas no nosso trabalho, Jesuítas e selvagens..., já citado, principalmente na Parte II ("Catequese e tradição"). E conferir, sobretudo, a esse respeito, os trabalhos fundamentais de Adriano Prosperi e Paolo Prodi, dentre os quais destacamos, pelo menos, do primeiro: Il Concilio di Trento: una introduzione storica. Turim: Einaudi, 2001; e Tribunali della coscienza: Inquisitori, confessori, missionari. Turim: Einaudi, 1996 (este último, no prelo: São Paulo: Edusp); e, do segundo, Uma história da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2005. [Bolonha: Il Mulino, 2000.] Portanto, o processo de cristianização foi se constituindo em uma troca, mesmo que desigual, entre a intenção de quem propunha ou impunha o sacramento e a compreensão e a vontade de quem recebia ou pedia a sanção da própria conversão. A reflexão dos teólogos e as decisões conciliares tiveram de se confrontar com o acolhimento e a interpretação dada aos sacramentos por indivíduos que estavam fora dos limites da Igreja: o confronto tornou-se, enfim, constatação da distância entre o diferente significado adquirido por gestos, palavras e elementos materiais com relação àqueles que os impunham ou propunham e aqueles que os recebiam, voluntária ou coercitivamente. Foram, sobretudo, os atos simbólicos colocados em cena no contexto extraeuropeu que deixaram emergir progressiva e, às vezes, claramente a implícita diferença14 14 Quando não a constatação de que se tratava de sistemas de valores sociais diferentes. de significação com relação aos diferentes contextos.15 15 Em relação a esses aspectos, cf., também, Maria Teresa Fattori em sua "Introduzione...", Op. cit., p. 297.

3. Política linguística e encontros rituais: os jesuítas no contexto americano

No contexto americano, os missionários operaram de acordo e com o apoio do poder imperial. Mais raramente, mas, sobretudo, no contexto asiático, experimentaram e enfrentaram o desafio de uma proposta religiosa que não se tornou coercitiva pela força desse poder imperial.16 16 Quando, ao contrário, não se encontrou em posição de antagonismo com este último ou, no outro extremo, submetida a outros poderes imperiais, ou de senhores locais, ou de circuitos comerciais já solidamente constituídos na base de mediações desses poderes. É, sobretudo, mas não exclusivamente, nessas últimas circunstâncias que, para persuadir à conversão, os missionários podiam recorrer somente à liberdade dos indivíduos envolvidos no encontro e no processo. Isso significava que, sobretudo nesse caso, a utilização de argumentações racionais e compreensíveis aos seus interlocutores se tornava uma passagem necessária.

Para além das diferenças das ordens religiosas, suas nações de pertencimento (as "nacionalidades" dos missionários) tiveram relação direta com as práticas, as estratégias e as metodologias de evangelização adotadas. Duas foram, fundamentalmente, as tendências evangelizadoras que se contrapuseram: uma destinada a desenraizar e eliminar como supersticiosos os vestígios daquilo que era identificado como "religião" indígena, e outra disponível a assumir alguns aspectos das culturas a fim de selecionar e ressignificar alguns de seus elementos que, aproximados do cristianismo, pudessem favorecer sua compreensão e permitir, então, de algum modo, uma sua quanto mais estável assunção por parte dos indígenas.

Mas a persuasão - que de qualquer maneira manteve um papel importante, mesmo em um contexto como o americano, que oferecia o apoio do poder imperial ao empreendimento missionário - implicava a utilização da linguagem. Esta exigia a tradução da catequese, da evangelização, mas também do implícito processo de civilização (ocidental) segundo línguas e culturas tecidas de crenças e valores diferentes. No fim desse percurso, os sacramentos administrados e recebidos, constituídos de gestos e palavras, não podiam evidentemente ser exatamente os mesmos, independentemente de quem os recebesse, em relação aos pressupostos catequéticos iniciais. Não por último, traduzir o catecismo significava criar uma gramaticalização das línguas indígenas, um dicionário, uma seleção de significados, de fonemas etc. Todos mecanismos que tencionavam descrever, construir e comunicar (muitas vezes performativamente) a seus interlocutores a forma de civilização moralmente correta. Consequentemente, as relações, as ações, os costumes, que o missionário ocidental aceitava ou modificava na base da própria cultura e civilização. Trata-se daquela que, por isso, em nosso trabalho anterior, denominamos "gramática da evangelização".17 17 Analisada em seus mecanismos catequético-rituais em nosso, já citado, Jesuítas e selvagens, e sobre a qual nos debruçamos, novamente, no mais recente artigo: Grammatica dell'evangelizzazione e catechesi della lingua indigena - Mesoamerica e Brasile: XVI-XVII secolo. In: FATTORI, Maria Teresa (Org.). Politiche Sacramentali tra Vecchio e Nuovi Mondi. Coletânea da revista Cristianesimo nella Storia, Bolonha: Dehoniane, v. 2, n. 31, p. 681-742, 2010.

A relação entre "encontro sacramental" e a nova, fundamental, "gramática da evangelização" torna-se, sobretudo, exemplar no caso de um sacramento que ganha, finalmente, na experiência jesuítica missionária da América, uma inédita centralidade: trata-se da confissão. E essa nova relação no novo contexto levantava, também, um problema teológico inédito. Desde o começo de sua atuação missionária no Brasil, de fato, o superior da Companhia de Jesus no Brasil, Pe. Manuel da Nóbrega, colocara-se como defensor da prática da confissão por meio de intérprete a fim de realizar a conversão indígena. Isso porque, na nova concepção catequética jesuítica, o destaque dessa prática sacramental impunha-se, apesar das dificuldades linguísticas. E se essas dificuldades iniciais só podiam ser superadas com a instituição da confissão indígena realizada por intermédio dos intérpretes, a importância dessa prática sacramental justificava, aos olhos de Nóbrega, até mesmo a necessidade de enfrentar o conflito aberto com o bispo Sardinha, contrário, por motivos doutrinais ligados ao segredo da confissão, à intromissão dos intérpretes indígenas. O problema doutrinal era particularmente evidente, e, em 1552, Nóbrega escreveu para o Pe. Simon Rodriguez para consultá-lo em relação à disputa relativa a essa nova modalidade da confissão, cuja peculiaridade havia levantado consistentes problemas entre os "principais letrados da Universidade" de Coimbra, pois, observa Nóbrega, "parece cousa nova e não usada em a Christandade".18 18 NÓBREGA, Manuel da. Cartas do Brasil do padre Manoel da Nóbrega (1549-1560). Belo Horizonte: Itatiaia, 1988. p. 141.

Desde o começo da missão em terras americanas, a dificuldade da conversão (religiosa) cruzava-se com a dificuldade da tradução (linguística) e a novidade da alteridade indígena americana começou a tecer, então, algumas importantes novidades nas práticas missionárias. No entender de Nóbrega, a interposição dos intérpretes se impunha até que, pelo menos, se instalasse, de alguma forma, uma "performatividade" da prática confessional, isto é, algo que pudesse adquirir (ou, melhor, fundar ex nihilo) um significado aos olhos dos indígenas, pela própria repetição (encenação) da prática.

Essa problemática que se destaca desde o começo da missão jesuítica no Brasil torna evidente uma importante relação. A pragmática operativa da "literatura catequética" - e de suas problemáticas decorrentes - torna-se possível por uma tradução, aprioristicamente realizada, que se constitui na possibilidade de ler a alteridade sub specie religionis. Partindo desse pressuposto, por outro lado, a tradução (linguística, antes do que cultural) caracteriza-se por um aspecto que vai muito além de uma simples instrumentação funcional à primeira perspectiva. Dito de outra forma, se a dificuldade da conversão (religiosa) manifesta-se paralelamente à dificuldade da tradução (linguística), parece-nos de fundamental importância tentar propor uma análise correlativa entre uma leitura da alteridade sub specie religionis, de um lado, e sub specie grammaticae, de outro. E se, como já apontamos em nossa investigação,19 19 Tratamos dessa correlação, sobretudo na Parte IV ("Política linguística e evangelização") do nosso livro, Jesuítas e selvagens, op. cit., especificamente em seu item 4. na primeira perspectiva (aquela histórico-religiosa de nossos estudos) as práticas e as estratégias do encontro cultural adquirem seu significado peculiar, na segunda as práticas anexas de estratégias escriturais (da gramática, da tradução, da versificação, da escrita etc.) adquirem seu significado específico próprio.

A investigação correlativa dessas duas perspectivas, segundo as quais se constrói a missão, pode nos permitir averiguar, enfim, em que medida a conversão religiosa e a tradução linguística se estruturam, necessariamente, de forma paralela e correlata. Dessa maneira, uma adjetivação pode se substituir a outra, obtendo uma estrita relação entre conversão linguística e tradução religiosa que, em princípio, não muda o resultado.

Em todos os catecismos jesuíticos brasileiros, como verificamos, o sacramento da Penitência ganha um destaque bastante particular, tanto nos textos catequéticos gerais quanto nos específicos confessionários. Esse destaque revela a importância que esse sacramento assumia para os jesuítas, tanto em sua ação missionária (americana) quanto em relação à centralidade que, para eles próprios, antes, e para os catecúmenos, depois, adquiria o exame de consciência - analisado em seus detalhes nos, fundamentais, Exercícios espirituais, de Santo Inácio. Entrevemos, portanto, uma correlação significativa entre uma prática e outra, sobretudo em relação ao contexto missionário americano. O fato é que se nas primeiras confissões americanas, por interposto do intérprete, se impunha uma gramaticalização linguística - mas ao mesmo tempo, dos costumes (uma tradução cultural) - das culturas indígenas, por outro lado, um processo análogo de gramaticalização constituía-se fundamental nos exercícios espirituais inacianos: no primeiro caso, destacava-se a importante função mediadora do "língoa"; no segundo, emergia, com essa mesma importante função mediadora, aquela do "diretor" dos Exercícios.

Inserindo-o no contexto da nova centralidade da confissão e levando em consideração o respaldo desse sacramento no interior da própria Companhia, o exemplo pode apontar, também, como a função de todo ato religioso20 20 A partir, como ensina a História das Religiões, das categorias interpretativas religiosas (ocidentais), assim como, antes de tudo, do próprio conceito de "religioso". era ressemantizada e transformada em seu significado pela cultura de pertencimento do novo catecúmeno. Isso, mesmo que as experiências de encontro/choque cultural realizadas anteriormente na Península Ibérica tivessem fortemente condicionado o encontro com as populações americanas na (in)tenção de realizar uma societas christiana ibérica nos Novos Mundos.21 21 Entendida como, ao mesmo tempo, uma única dimensão de cristianização e civilização, de religião, política e costumes sociais. Por tudo isso, como já dissemos, a tradução dos sacramentos nos Novos Mundos significou, sobretudo, a fixação de "formas sintáticas e escolhas semânticas que veiculavam a materialidade e a memória da cultura europeia", realizando, de fato, "a dupla unidade colonizadora e evangelizadora".22 22 AGNOLIN, Adone. Jesuítas e selvagens... Op. cit., p. 420.

4. Trento e os Novos Mundos: sacramentos e atuação missionária jesuítica no Brasil

Trento retomou um arsenal de concepções e praxes erguidas antecipadamente à problemática americana, mas também antes da ruptura luterana, destinadas com as reuniões conciliares a tomar as distâncias das contestações protestantes e a reconduzir sob controle a crise decorrente. Mas essas orientações e seus dispositivos serão destinados, também, a imprimir nas sociedades dos Novos Mundos o sigilo do pertencimento à societas christiana. Por isso, a definição jurídica e escolástica dos sacramentos permaneceu uma grelha de referência para a ação pastoral e uma direção para o processo que devia chegar à domesticação e dissolução das práticas sociais dos costumes "deformados", seja na Europa, seja nos Novos Mundos. Tanto antes quanto a partir do século XVI, não se tratava de uma escolha das instituições eclesiásticas, mas essa se desdobrava, necessariamente, nos termos de uma escolha política. Isso, no fundo, esclarece por que, nos contextos coloniais, tanto americano quanto asiático, a normativa canônica foi antecipada por leis do Império português.23 23 Isso é evidente, por exemplo, na Índia com a associação que foi se estabelecendo entre conversão ao cristianismo e a consequente obtenção da plenitude dos "direitos" de subordinação por parte dos convertidos.

Nos primeiros séculos da conquista europeia, a atenção romana aos sacramentos para os Novos Mundos foi crescente. Foi respondendo, justamente, a essa necessidade que o papado utilizou, a respeito, instrumentos disciplinares com valor diferente em termos de qualificação teológica, para além do empenho jurídico do magistério. Paralelamente, pode-se até verificar como, ao longo do processo e em relação ao crescimento, cada vez mais expressivo, da atenção disciplinadora por parte do centro romano (tanto do papado quanto das congregações), a matéria dos sacramentos foi progressivamente subtraída à atividade legislativa dos sínodos e dos concílios episcopais, dos quais dependia anteriormente. Finalmente, com o ampliar-se do contexto e dos horizontes culturais da evangelização moderna, a obra de jurisdicização dos sacramentos se desenvolveu, de forma cada vez mais significativa, em paralelo à tentativa de quantificar o mínimo que os fiéis deviam saber para "realizar o ato de fé necessário para a eterna salvação" e, com este, ter direito à administração dos sacramentos. Foram, particularmente, o matrimônio e a confissão que se tornaram, para tanto, o lugar dessa verificação contábil e, sobretudo, os jesuítas seus incentivadores, novos contáveis e fiscalizadores.24 24 Ver, a esse respeito, os trabalhos fundamentais, alguns dos quais anteriormente já citados, de Adriano Prosperi e Paolo Prodi, além da síntese esboçada "Introduzione..." da obra organizada, e já citada, por Maria Teresa Fattori.

A operatividade em termos de jurisdição dos sacramentos na América hispânica e portuguesa não pode ser cindida, ainda, das condições políticas que fizeram da obra dos missionários o instrumento de enquadramento de uma população dominada, cujos sacramentos eram o correlativo religioso da submissão política ao poder imperial. Como atos obrigatórios por meio dos quais os indivíduos eram integrados à sociedade e à Igreja, segundo o sistema de poder cristão, os sacramentos representavam, portanto, um sistema dúplice e unitário que não previa liberdade de escolha, mesmo que o "livre-arbítrio" tivesse de ser a base fundamental de sua implementação.25 25 Isso, como já apontamos, diferentemente dos contextos chinês e japonês, nos quais a difusão do cristianismo não pôde se utilizar de um colateral poder político e teve de apelar, necessariamente, à liberdade dos indivíduos que, aceitando "conscientemente" o cristianismo, assumiam uma posição de ruptura com a tradição religiosa dominante naqueles contextos. A escolha de se converter no Japão e na China implicou, portanto, elementos de resistência política ao poder local e comportou implicações sociais e políticas opostas com relação às conversões forçadas do poder imperial espanhol ou português.

Como já acenamos, algumas reflexões sobre a confissão permitem enquadrar, exemplarmente, por meio da comparação, o impor-se da novidade da problemática americana, em termos diferenciais, com relação à Europa. Assim, na Europa, o sacramento penitencial veio progressivamente sofrendo, nessa época, um dúplice processo de jurisdicização, acentuando a exigência de máxima precisão na instrutória dos elementos da ação e de psicologização, até atingir o íntimo conflituoso do penitente, para analisar nos detalhes as dinâmicas por meio das quais se realizava a vontade.26 26 Além dos trabalhos, já citados, de P. Prodi e A. Prosperi, ver a respeito, também, o excelente trabalho de BOER, Wietse de. The conquest of the Soul: confession, discipline and public order in Counter-Reformation Milan. Leiden: Brill, 2001. Gregory, Brad Stephan. Diferentemente, o ritual de remissão dos pecados nas Américas - mas também, em termos gerais, em todas as terras de conquista e missão - é dominado, como apontamos, sobretudo pelo problema da linguagem e da tradução da mensagem evangélica e sacramental: enfim, de uma "religião" - da tradução no interior de uma perspectiva religiosa27 27 Cf., em relação a essa perspectiva no contexto americano, POMPA, Maria Cristina. Religião como tradução: missionários, tupi e "tapuia" no Brasil colonial. Bauru: Edusc, 2003. - entendida como conquista cultural propriamente ocidental.

A norma positiva (os costumes), gerada por uma cultura diferente daquela identificada com o catolicismo, podia ser contraposta à lei divina e à "ordem dos pecados"28 28 Isso pode ser verificado, por exemplo, em nosso trabalho, Jesuítas e selvagens, citado, no item em que tratamos de "Os sacramentos entre os tupi" (Parte III, item 2), estabelecendo-se entre a interpretação de uma "rede demoníaca" que, fundando-se na "bestialidade" da língua indígena, vem impondo a necessidade de uma catequização segundo o próprio vernáculo indígena que, evidentemente, deve por sua vez ser "catequizado": isto é, sujeito a um processo de gramaticalização (ocidental). que a lógica da confissão tendia a evidenciar entre concepção judiciária e caráter medicinal do sacramento.29 29 Estabelecendo, nessa interligação, um inédito equilíbrio na prática da confissão na América ibérica ou na Ásia. Por outro lado, emerge a diferença na relação estabelecida entre interioridade do penitente, da qual a Igreja era guardiã tutelando o segredo ou expondo ao risco da infâmia, e salvaguarda da ordem civil.30 30 Nesse caso, por exemplo, a confissão tornou-se, na China, um instrumento para introduzir mudanças na moralidade dos fiéis, uma resposta à necessidade espiritual e individual de ser libertados do pecado e do mal, em vista da salvação ultraterrena, um instrumento para construir as comunidades. De forma alternada e sujeita a interpretações controvertidas foi a discussão sobre o nível de consciência dos sujeitos que recebiam os sacramentos, e, por consequência, foi diferentemente organizada a pastoral: a ação dos missionários foi, em alguns casos, endereçada a favorecer a aquisição de noções; em outros, a permitir a interiorização dos conteúdos essenciais da fé e da "tradução moral" do cristianismo, sobretudo dos pecados ligados à vida conjugal. O mesmo foro interno tornou-se ocasião para interpelar e verificar a preparação cristã dos neófitos: a "ignorância" tornou-se um pecado a ser confessado! A operação de adaptação partiu de uma primeira abordagem que tendia a enumerar pecados "autóctones", para depois alcançar um primeiro esforço de interpretação das culturas, do significado do ato sexual, por exemplo, e da consequente ligação matrimonial etc.

A matéria dos sacramentos abriu a questão se todos os homens (também índios, escravos, infiéis, mestiços nos diferentes graus de sangue europeu) seriam "aptos" à conversão e até que ponto poderiam entrar em relação com o sagrado.31 31 Daqui a passagem do "convertido" ao "novamente convertido", da cristianização à recristianização que, na Índia, como nas terras mesoamericanas, se ergueu adiante da "recrudescência idolátrica". Sobretudo no contexto americano, desencadeava-se, a esse respeito, a reação jesuítica contra os batismos em massa, estratégia de cristianização perante a qual os missionários da Companhia propunham realizar, antes, uma mais adequada evangelização a partir do fundamental instrumento sacramental da catequese e da confissão.32 32 O sacramento penitencial envolvia, também, a discussão sobre a lei natural, lei humana e lei divina, colocando as distinções que permitiam classificar as uniões esponsais e os comportamentos que podiam ser legitimados: tratou-se, portanto, de um modo para classificar, antes, e construir, depois, a realidade em vista de uma sua adequação aos parâmetros cristãos.

A conversão era verificada, depois, por bispos, missionários e inquisidores,33 33 Combinando, sobretudo, duas diretrizes: a avaliação dos costumes sexuais e a adequação ao modelo matrimonial católico. prestando-se uma constante atenção à indagação sobre as recrudescências idolátricas e supersticiosas, evidenciadas por eventuais afeições a "ritos" e a cerimônias pré-cristãs. As práticas missionárias da moderna missão jesuítica encontraramse na necessidade de adotar, portanto, uma abordagem flexível em relação aos sacramentos a fim de evitar que produzissem os efeitos contrários aos pressupostos evangelizadores. A flexibilidade devia evitar que eles se tornassem estorvos e permitir, ao contrário, que se transformassem realmente em meios para difundir o Evangelho. É por isso que a teologia da salvação decorrente das práticas de conversão realizadas pelos missionários - sobretudo pelos "flexíveis" jesuítas - acabou gerando censuras, conflitos e reações romanas que nunca deixaram de conectar os eventos da Velha Europa com os Novos Mundos e de espelhar as soluções adotadas em uma área do mundo com as praxes de outra área.

Já individuados como preciosos instrumentos para alcançar a unidade religiosa na Península Ibérica, os sacramentos se tornam, perante as culturas dos Novos Mundos, sobretudo nas mãos de alguns jesuítas portugueses e espanhóis, a estratégia privilegiada para tentar estabelecer uma nova ordem que replicasse nos trópicos os principais traços da sociedade ibérica. Outros missionários, no entanto,34 34 Entre os quais jesuítas de origem hebraica e, sobretudo no contexto asiático, jesuítas italianos. plasmaram suas categorias culturais para se adequar à realidade encontrada. O confronto/choque entre famílias religiosas ou o debate interno às ordens missionárias ou à Companhia representam, enfim, um território fértil para colher diversidades de impostação e orientações teológicas que laceraram no interior o catolicismo da Contrarreforma. Vale destacar, todavia, como também os jesuítas mais "accomodantes" não deixaram de compartilhar, no fundo, sem reservas e com plena consciência, a ortodoxia do catolicismo tridentino. Mesmo em um debate que, muitas vezes, se tornou disputa áspera, na medida em que se construía na base de novos desafios e velhas modalidades de censuras, tanto as congregações do centro romano quanto os missionários das periferias dos Novos Mundos compartilhavam, portanto, a via tridentina à salvação que fazia dos sacramentos o instrumento de salvação pro bono animarum.

5. A Companhia de Jesus entre Europa e Novos Mundos: nova espiritualidade e nova missão jesuítica na América portuguesa

Se, no princípio, a reforma tridentina tinha tido seu núcleo inspirador na moderna "cura das almas", exercida por um clero secular preparado e residente, a amplitude dos problemas da Igreja católica e, em particular, do papado, na Europa dos Quinhentos tardios, conferiu ao modelo representado pelas ordens religiosas enquanto instrumento privilegiado de intervenção. Alguns séculos antes, a ocasião foi de franciscanos e dominicanos. Agora, a partir de meado do século XVI, foi a Companhia de Jesus a estrutura capaz de deixar sua marca na Igreja inteira. Elevada preparação cultural, formação segundo um modelo único, dedicação e espírito missionário, capacidade de penetração nos níveis altos da sociedade e, sobretudo, plena e total disponibilidade às ordens do Papa foram as características sobre as quais se constituiu seu sucesso.

Levando em consideração essas características, talvez possamos definir a função e a finalidade da ação missionária moderna, em geral, e jesuítica, especificamente, com a rica e bela definição que o historiador Adriano Prosperi nos propõe para a "figura' do missionário jesuíta:

A questão da propaganda com suas infinitas complicações - a arte da dissimulação, a capacidade de "acomodar-se" instrumentalmente ao interlocutor, o uso da força e da astúcia - tinha-se colocado com dramática modernidade no contexto dos dilaceramentos religiosos europeus. Nasceu, assim, sob a antiga veste do pregador apostólico, um novo personagem, carregado de futuro, das muitas faces - um intelectual das muitas habilidades, especialista na arte da comunicação (visual, oral, por meio da imprensa), profeta, etnólogo, conspirador, espião, subvertedor da ordem constituída, mestre na arte de se apropriar das consciências e de dirigi-las para seus fins - que não eram os fins de um sucesso pessoal egoísta, mas aqueles do triunfo do reino de Deus, portanto capazes de justificar qualquer meio. Este homem, que possuía a verdade e tinha um mandato divino para difundi-la - o "homem apostólico", como foi definido habitualmente -, tinha a função de se apropriar do coração e dos pensamentos de uma população inteira, trazendo-a na frente do tribunal da confissão para realizar uma lavagem geral de suas próprias culpas e implantar, com a ajuda dela, o projeto de uma vida nova. Devia ser, portanto, não uma presença habitual, como aquela do pároco, mas uma passagem providencial, dramática e excepcional, imitação e pré-anúncio da vinda de Cristo: o missionário devia chegar inadvertido para ir-se embora, no fim, carregando consigo todas as culpas da comunidade. Disso [deriva], inevitável, a institucionalização em ordens apropriadas, em tempos preordenados, em rituais fixos, daquilo que, por sua natureza, devia aparecer (senão, ser) uma passagem meteórica.

35 35 PROSPERI, Adriano. Il missionario. In: VILLARI, Rosario (Org.). L'uomo barocco. Roma-Bari: Laterza, 1991. p. 217-218.

Mas a modernidade da ação missionária jesuítica se enraíza, antes de mais nada, em sua nova e característica espiritualidade. A esse respeito, vale evidenciar, antes de tudo, a centralidade dos Exercícios inacianos e, neles, a específica função que se destaca da ideia jesuítica do pecado. Imagens particularmente interessantes se encontram em algumas de suas edições. Elas adquirem sua centralidade, sobretudo, na finalidade de representar a relação do homem com o mal.36 36 Cf., por exemplo, LOYOLA, Inácio de. Esercitii spirituali. Roma: Nella Stamperia del Varese, MDCLXIII; e ver quanto sublinhado, em relação a essas ilustrações, por FÜLÖP-MILLER, R. Il segreto della potenza dei gesuiti. Milão: Mondadori, 1931, e por PALUMBO, Genoveffa. Speculum peccatorum: frammenti di storia nello specchio delle immagini tra Cinque e Seicento. Nápoles: Liguori, 1990. p. 223-236. O sentido das associações dessas imagens encontra-se, sem dúvida, na vontade de representar vivamente a dor que o homem devia provar para com os próprios pecados, por meio da meditação sobre a morte.

Tratava-se, portanto, de efetivar, com o exame de consciência e com um julgamento severo sobre o homem, o Contemptus mundi.37 37 Veja-se, a esse respeito, o importantíssimo trabalho de DELUMEAU, J. Le péché et la peur: la culpabilisation en Occident (XIII-XVIII siècles). Paris: Fayard, 1983, sobretudo o cap. I (O desprezo do homem e do mundo). Por outro lado, não podemos deixar de levar em consideração como os Exercícios espirituais de Inácio de Loyola (compostos ao redor de 1522) se inscrevem na tradição da Devotio moderna.38 38 Aquela mesma tradição que produziu a Imitação de Cristo como obra de grande alcance público. Isso quer dizer que, apesar de inscrita em uma tradição que via o mundo constituído como objeto de condenação, a espiritualidade jesuítica representa, também uma nova valorização do mundo como instrumento de redenção. Inácio não despreza as coisas da Terra, tendo sido criadas para o homem, mas este deve utilizá-las para sua própria salvação. Com essa peculiaridade, os Exercícios de Inácio privilegiam, portanto, a segunda representação da doutrina, aquela da redenção, e isso, significativamente, na medida em que a teologia protestante privilegiava o primeiro aspecto, aquele da condenação, abrindo espaço, dessa forma, à doutrina da "justificação pela fé e à inevitabilidade do desespero".39 39 Título da última parte do primeiro capítulo de DELUMEAU, J. Le péché et la peur... Op. cit., capítulo importante para analisar e confrontar a história dessa doutrina do Contemptus mundi.

Outro importante e consequente aspecto: na ótica dos Exercícios, a natureza sentimental-afetiva da dor se constitui, portanto, em uma experiência existencial fundamental que não só deve ser suportada como também ativamente procurada pelo recurso à memória. E, de fato, os Exercícios se constituem em verdadeiro e próprio exercício de mnemotécnica, configurando os lugares que ajudam a relembrar os pecados de toda a vida a serem representados como os espaços íntimos da própria casa. É a partir desse ponto de vista que a obra inaciana liga-se, forte e efetivamente, à "arte da memória" que, no contexto histórico do século XVI, tanto nas obras dos jesuítas quanto na cultura barroca do século seguinte, alcança uma profunda transfiguração relativa à sua longa, precedente tradição. Essa transfiguração, enfim, se dá como resultado do processo de aculturação que se constitui em uma contínua dialética entre uma "adequação intelectual às coisas" (adaequatio intellectus ad rem), permitindo, por consequência, uma abertura às diversidades culturais, e uma "adequação das coisas ao intelecto" (adaequatio rei ad intellectum), que se oferece, portanto, como possibilidade e necessidade de inseri-las em um sistema filosófico e teológico que define a essência "moral" da humanidade.40 40 Vale lembrar, a esse respeito, as próprias considerações de José de Acosta citadas no começo do artigo e que se referem à Historia natural y moral de las Indias. A abertura ao globus mundi, ao mundo externo, que se desprende dessa transfiguração da antiga "arte da memória", vai permitir, enfim, a colheita e a classificação de objetos, plantas, animais..., até os "costumes" (mores) dos novos mundos oceânicos. Por outro lado e paralelamente, a dialética entre os dois momentos ecoa profundamente na estrutura do próprio exame de consciência jesuítico, que vai exigir uma catalogação completa de ações, pensamentos, intenções que necessitam de um duro esforço da "memória visual" ("ver con la vista de la imaginación") depois de ter criado a composição visual do lugar ("composiciòn viendo el lugar"). A construção da intensidade das imagens - a ponto de chegarem a ser percebidas com todos os (cinco) sentidos - será o objetivo prioritário dos Exercícios espirituais de Inácio.

Finalmente, essa "vista imaginativa" derivada de uma longa tradição,41 41 Rigorosamente teorizada por Cícero, Quintiliano, Alberto Magno, Tomás de Aquino..., até Leibniz. conforme já ensinara Gregório Magno, vem apontando significativamente, na cultura da segunda metade do século XVI, para o valor de "escrita viva" que as imagens assumem e representam: outro alfabeto para os analfabetos. Em relação aos simples, enfim, as imagens propunham-se como as notae rerum que vinham a significar as coisas sem a ajuda e a intermediação das palavras.

Na sociedade colonial - mas também nas novas Índias internas à Europa -, a imagem tornava-se, ao mesmo tempo, precioso instrumento de evangelização e de integração.42 42 Uma verdadeira "colonização do imaginário", segundo a feliz expressão de Serge Gruzinski e Carmen Bernand. La colonisation de l'imaginaire: sociétés indigènes et occidentalisation dans le Mexique espagnol (XVIe.-XVIIIe. siècle). México: Fondo de Cultura Económica, 1992 [ed. original francesa: Paris: Gallimard, 1988]. Nessa direção, emergem, então, a importância e a centralidade de um mundo (colonial) constituído pelo transbordamento de imagens (bem perceptíveis pelos sentidos), como se verifica, por exemplo, com a poesia, as cartas, os sermões, a doutrina e o teatro anchietano, para não falar das exuberantes imagens barrocas dos sermões de Pe. Vieira. Adaequatio intellectus ad rem e adaequa tio rei ad intellectum: a imagem torna-se, finalmente, instrumento de mediação fundamental, significando as coisas através dessa "escrita viva" que serve para fundar, no caso específico, uma nova memória interpretativa das tradições indígenas.

E, nos Exercícios espirituais, essa escrita viva servia, sobretudo, para construir a associação entre pecado e bestialidade. O tópos predicatório ao qual se liga essa imagem é aquele do homem que abdica de sua humanidade por culpa dos pecados. Nessa perspectiva, a vontade jesuítica de expressar de forma mais completa possível o que é o pecado para o homem tende a mostrar este último subjugado pelo demônio em todos os aspectos de sua pessoa: intelecto, razão, vontade, senso e corpo. Mas, além dessa exigência expressiva, essas imagens servem, ao mesmo tempo, para fazer com que se compreenda (se imponha) a função, importantíssima, que a memória exerce na reconstrução da ideia do mal e do pecado, a fim de realizar um exaustivo exame de consciência e de ajudar o penitente no esforço de relembrar seus pecados.43 43 A bibliografia e a análise mais detalhada da síntese aqui proposta se encontram na Parte II do nosso trabalho citado ("Catequese e tradição"): no item 2 ("Problemáticas históricas modernas da catequese"), e no item 2.4 ("As riquezas do inimigo: exegese clássica e mediação cultural").

Além desses aspectos, a dialética entre os Exercícios inacianos e o constituir-se da nova prática missionária torna esta última, também, um training de iniciação que passa por uma temível experiência de perda da cultura nativa (dos missionários) para se chegar, finalmente, a uma universal identidade cristã.44 44 É nessa direção que devemos apontar para uma atividade apostólica que, no interior dos Exercícios espirituais, se constitui ao redor da meditação sobre a morte. Ver, a esse respeito, além da obra de Delumeau, o De arte bene moriendi, de 1620, do cardeal Roberto Bellarmino ( L'arte di ben morire. Alessandria: Piemme, 1998), obra que, pertencente ao gênero literário da Ars moriendi - que teve tanta fortuna na época renascentista -, encontra-se centrada prevalentemente na grande tradição jesuítica e, particularmente, nos Exercícios espirituais de Inácio de Loyola. No que diz respeito ao gênero da Ars moriendi, cf. TENENTI, Alberto. Il senso della morte e l'amore della vita nel Rinascimento (Francia e Italia). Turim: Einaudi, 1989; RUDOLF, R. Ars moriendi: von der Kunst des heilsamen Leben und Sterben. Köln, 1957; O'CONNOR, M. C. The art of dying well: the development of the Ars moriendi. Nova Iorque, 1966. Partindo desses pressupostos, a própria missão jesuítica se propõe, no seu mais alto grau, também como atividade contemplativa.45 45 Os Exercícios inacianos se propõem, a esse respeito, por suas características ao mesmo tempo mental e discursiva - isto é, de intelecto e vontade - e contemplativas - isto é, em contraposição ao raciocínio, constituídas pela simples intuição da verdade, já possuída a priori e por um constante amor no qual se fundamenta a vontade. A revolução espiritual inaciana fundamenta-se, essencialmente, nesse "ao mesmo tempo". E o que permite a realização dessa revolução é, justamente, seu conceito de imaginação, constituído por meio dos sentidos mentais: trata-se, enfim, de concentrar-se em um objeto sensorial, mas, ao mesmo tempo, imaginado. É assim que, por meio dos Exercícios, devem surgir "moções espirituais, quais consolações e desolações" (Ex. n. 6) e, paralelamente, se exerce através deles um controle em relação aos pensamentos e à sua fonte ambivalente, tanto interna quanto externa (Ex. 176). Nessa direção, todavia, reconstrói-se um passado pessoal próprio que se apoia não mais em uma dimensão individual, mas em uma dimensão finalmente universal, estruturada na base da história de Cristo: esta última, centrada em particular na encarnação, torna-se a base modelar da história de cada indivíduo. A estrutura do colóquio (consigo mesmo) perpassa todos os Exercícios (ver, por exemplo, o Exercício 126) e, dentro dela, o jesuíta constrói uma cena na qual ele entra como ator. Nessa cena, ele faz experiência do "sentir profunda cognição" dos próprios impulsos e paixões, mas esse colóquio não serve para dizer a Deus o próprio desejo, mas serve, ao contrário, sobretudo, para verbalizar esse desejo, tanto para si quanto para o próprio diretor espiritual (Ex. 148). Por consequência, os Exercícios se constituem em processo de imaginação que conduz à emergência de desejos latentes ou de outros aspectos do si próprio, a fim de que possam ser controlados ou pelo próprio "exercitante", ou pelo próprio diretor espiritual (cf., a esse respeito, ENDEAN, Ph. The ignatian prayer and the senses. The Heythrop Journal, v. XXXI, p. 405, 1990).

Na esteira dos Exercícios inacianos, tanto Pe. Polanco (propondo motivos inspirados em Tomás de Aquino) quanto Pe. Suarez (que definiu a Companhia de Jesus como "religio mixta"46 46 Na qual o aspecto contemplativo devia ser funcional àquele prático: " ad actionem ipsam perfect e agendam". ) apontavam para um percurso diferente daquele que se identificava como meramente religioso e contemplativo, assim como daquele identificado como secular. Mas foi, sobretudo, Pe. Nadal quem aprofundou a novidade da espiritualidade jesuítica em uma relação significativa com o apostolado. Para ele, de fato, o jesuíta constituía-se "simul et in actione contemplativus".47 47 Cf. NADAL, J. In examen adnotationes (1557), IV, 2. Monumenta Historiae Societatis Jesu (MHSI), v. IV, p. 163. No que diz respeito a Nadal, cf. NICOLAU, M. J. Nadal S.J. (1507-1580). Sus obras y doctrinas espirituales. Madri: Instituto Francisco Suarez, 1949; além da voz Nadal do Dictionnaire de spiritualité, v. XI, p. 3-15, assim como CORETH, R. Contemplative in action. In: GLEASON, R. W. (Org.). Contemporary spirituality. Nova Iorque: Macmillan Company, 1968. O fato é que Nadal unia as duas atividades (apostólica e de apostolado) a fim de delinear um novo tipo de vida religiosa. Fora da relação de subordinação, apontada por Suarez, para Nadal, a contemplação se oferecia como forma de presença perante Deus que se efetivava na ação de apostolado. Nessa direção, a doutrina cristã se entende não somente quando se lê ou se prega, mas, sobretudo, quando se prega "a los rudes llanamente, accomodandose a la disposición de los que no la sabien".48 48 NADAL, J. Exortationes complutenses. Monumenta Historiae Societatis Jesu (MHSI), v. V, p. 343. Para Nadal, portanto, toda a vida torna-se espiritual, não podendo dominar nela nem o exclusivo intelecto nem exclusivamente, também, a vontade. Significativa a esse respeito a definição peremptória que responde ao quesito do jesuíta: "Un hombre con solo el entendimiento, que sería sin voluntad? Monstro."49 49 Ibid., p. 228.

Se essa interpenetração de entendimento e vontade torna-se evidente desde a vida de Inácio, por outro lado, é justamente a identificação com Cristo, realizada nos Exercícios, que funda, necessariamente, a atividade missionária. Nessa perspectiva, todavia - como se pode verificar a respeito da utilização instrumental dos textos catequéticos na ótica propriamente missionária -, para todo missionário impunha-se um afastamento inicial da possibilidade de colher uma ótica indígena diferente: do ponto de vista missionário, dava-se por pressuposto certa "fé na (eficácia da) fé".50 50 Segundo o primeiro capítulo de La prospettiva storico-religiosa: fede, religione e cultura, de Dario Sabbatucci (Milão: Il Saggiatore, 1990. p. 5-18). Foi esse pressuposto que alimentou alguns equívocos importantes na ação missionária e civilizadora dos missionários: no embate entre Velho e Novo Mundo, a pretensa (fideística) missionária e os choques dela decorrentes se encontraram na base da obra e dos equívocos da catequização que, em princípio, pressupunham ter de, "simplesmente", resolver os problemas da forma e da língua (tradução) dos textos a serem utilizados.

Ora, todavia, partindo do conceito de "crença"51 51 Analisado por BRELICH, Angelo. Introduzione alla storia delle religioni. Roma: Ed. dell'Ateneo, 1965. p. 6-7. e aprofundando-o com a análise proposta por Sabbatucci, do ponto de vista propriamente histórico-religioso, verificamos que é a fé por si mesma que caracteriza a religião cristã e, dessa forma, condiciona o nosso conceito de religião. Se, em decorrência disso, nós somos acostumados a conceber a própria religião, qualquer que seja, como um comportamento baseado na fé, do ponto de vista histórico-religioso, não é correto falar de religiões de outros ignorando esse condicionamento.52 52 SABBATUCCI, Dario. Op. cit., p. 5. Por consequência, destacamos como o "fideísmo" cristão tem marcado toda a cultura ocidental. Por isso que o primeiro passo para uma historicização da fé deveria ter como objetivo a verificação da contingência histórica e da necessidade teórica, que tornaram fundamental, para o cristianismo, a profissão de fé.53 53 Ibid., p. 7-8.

Em decorrência de tudo isso, do ponto de vista missionário, para realizar (converter) o homem como tal, tornava-se fundamental transmitir-lhe a "fé na fé". Por isso, entre os "rudes" da América e da Europa, o problema missionário (jesuítico) por excelência foi - no século XVI como, sucessivamente, no século XVII - o problema da ignorância. E, justamente em relação a esse problema, a necessidade e a prioridade da missão foram se impondo juntamente com o objetivo da instrução. Essa instrução fundamental já tinha levantado, na Europa pósconciliar, um debate e uma disputa importantes entre os que insistiam na prioridade da fides implicita e os que pregavam a imprescindibilidade da fides explicita. É desse ponto de vista que, contra a difusa opinião de que a complexidade do saber teológico traria como resultado o fato de que somente um exíguo número de cristãos podia adentrar os mistérios da fé, a importante experiência americana aponta para mais uma mudança significativa. No seu tratado De procuranda Indorum salute, o próprio Acosta dedicou um capítulo vigoroso à polêmica contra aqueles que supunham que aos cristãos "mais rudes" bastasse a fides implicita e que, por consequência, não fosse necessário, para eles, crer explicitamente em Cristo. Dessa maneira, claramente definidas as funções da ação missionária, elas se resumiam em dois eixos fundamentais: comover o coração do pecador até trazê-lo à penitência e educar sua mente mediante os conceitos do catecismo.

A posição de Acosta, enfim, dava conta da posição característica dos jesuítas, os quais, antes de Pascal (e de forma diferente da sua), afirmavam não ser possível viver sem uma crença. Eles acreditavam que não fosse possível que existissem povos e indivíduos sem uma forma de crença qualquer. Mesmo que se pudesse admitir que alguns povos podiam ter "poca notitia de Dios" (como escreve, do Brasil, o irmão Correia em 1551), para os jesuítas era impossível considerá-los ateus, pelo fato de se encontrar entre eles "superstitione, cioè superflua religione, dove non ce n'era nessuna".54 54 CORREIA. Mon. bras. In: MHSI, v. I, p. 231; citado por BRESSANI, F. G. Breve relazione d'alcune missioni dei P. della Compagnia di Gesù nella Nuova Francia. Macerata, 1653, p. 20. Ou, nas palavras de Tournemine, "eram, é verdade, nossos bárbaros sem religião, isto é, sem culto regulamentado e ordenado da divindade que conheciam de forma confusa", mas, porque "acreditavam nos Espíritos bons ou ruins..., não eram ateus".55 55 Conclusão que se encontra em TOURNEMINE, J. R. Réflexions sur l'athéisme attribué à quelques peuples par les premiers missionnaires qui leur ont amené l'Evangile. Mémoires pour l'histoire de sciences et des beaux arts, Trevoux, janvier 1717, art. VI.

A esse respeito, enfim, é importante observar que o efeito da estratégia missionária jesuíta - que levou os missionários a entrarem no interior das sociedades nativas a fim de poder transformá-las - havia deslocado o "discurso religioso" de sua dimensão acerca do homem e do mundo para uma dimensão propriamente civilizadora, antes do que evangelizadora. Dimensão que devia levar em conta, sobretudo, e consequentemente, a dimensão social dos nativos. Nessa direção, se só a totalidade social e cultural dessas sociedades podia permitir uma compreensão de suas práticas e crenças, os missionários se deram finalmente conta de que somente uma continuidade que perpassava seus diversos sistemas de crenças podia criar a condição da compreensão e da atividade missionária de apostolado: tratava-se, enfim, da conversão como "ajuda" ao próximo.

Nas palavras de Imbruglia:

Não a interior consciência de eleição e, portanto, de responsabilidade, propugnada por Calvino, quiseram então os jesuítas, mas uma adesão emotiva à hierarquia comunitária que se apoiava numa reencontrada veia afetiva. Esta era a consolação que os Exercícios (Ex. 316, por exemplo) procuravam para o indivíduo, e este era o conforto que os jesuítas queriam oferecer como aos não crentes em seu Deus, assim aos moribundos e aos pecadores. Justamente a enraizada convicção de que um elemento emotivo estivesse no fundo de qualquer crença por um lado explica em que sentido os jesuítas acreditassem [sic] que mudando ou corrigindo esta se ajudasse o indivíduo a viver, se não bem, pelo menos melhor; por outro lado explica por que, para a Companhia, a obra de evangelização foi sempre direcionada, não a conquistar massas amorfas, como para os franciscanos do 500, ou somente posições de preeminência, mas para descer sempre até o indivíduo particular cuja vida ia, "spiritu, corde et practice", direcionada para a verdade cristã. Sobre aquelas vidas se exercia o poder espiritual.56 56 IMBRUGLIA, G. Op. cit., p. 304-305.

Em contraposição ao ideal apostólico (ligado à escolha da pobreza evangélica) dos franciscanos, a peculiaridade da espiritualidade inaciana - sintetizada na ideia de Nadal da missão como peregrinatio - tornava a missão, contemporaneamente, atividade de conquista e de conforto, imbuída da consciência do risco de vida.

Na direção dessa nova espiritualidade, fundamentada na universalidade da palavra, torna-se significativo o fato de que, para o jesuíta, o "selvagem" não representa mais um estágio da humanidade a ser negado, para impor a própria realidade de homem europeu. Ao contrário, renunciando à própria língua e à própria personalidade, o jesuíta pretendia ensinar e aprender a "lei da natureza" na qual o selvagem encontrava-se inserido. Essa certeza e essa consciência da primeira lei podiam e deviam justificar a evangelização jesuítica.57 57 Ver, a esse respeito, o capítulo III do trabalho de EISEMBERG, José. As missões jesuíticas e o pensamento político moderno: encontros culturais, aventuras teóricas. Belo Horizonte: UFMG, 2000. Que mostra, aliás, como, no consequente Plano civilizador do Pe. Nóbrega, o medo e o consentimento se encontravam enraizados no próprio estado da natureza. Daí o fato de que a reforma proposta por Nóbrega se constituiu em uma "estratégia para proteger e converter os índios, baseada na construção de seu consentimento que seria obtido através da aceitação da autoridade dos padres e das normas da sociedade política cristã" (p. 116). Todo o capítulo III desse livro mereceria uma análise mais detalhada das problemáticas da catequese - apontadas pelo Diálogo sobre a conversão do gentio - em sua estrita relação com o plano político - o Plano civilizador -, na qual, necessariamente, a conversão deveria ser inserida.

6. Missão jesuítica na América portuguesa na Contrarreforma

O mundo da Contrarreforma foi caracterizado por um grande impulso missionário que surgiu como resposta aos urgentes problemas enfrentados pela Europa dentro das próprias fronteiras culturais. Três termos sintetizam exemplarmente a base desse novo impulso da missão. O termo reconquista, antes referido ao território hispânico, adquire agora um novo significado em virtude de o alarmante subtrair-se de novos territórios europeus em favor da Reforma. Um mais firme controle dos territórios, agora ameaçados pela circulação das ideias reformistas e heréticas, se impõe, também, para subtraí-los à fácil presa na ignorância das doutrinas afinadas pelos teólogos, e que pareciam demasiadamente longínquos do cristianismo. Final e consequentemente, o termo missão, que se transformava profundamente em sua expressão semântica e em sua atuação, de um verbo que remete ao envio dos missionários para a obra de evangelização, para a missão entendida como lugar "estancial" onde realizar, ao mesmo tempo, um novo processo de civilização e de catequese.58 58 Como veremos, novamente, logo a seguir, com os aldeamentos jesuíticos no contexto da América portuguesa. Esses foram os termos mais significativamente presentes nas discussões conciliares. Mas, a essas expressões estava prestes a juntar-se outra realidade que, ao longo do Concílio, estava batendo à porta: a Conquista. Essas realidades, novas ou em transformação, em seu conjunto, dominaram também a obra e as preocupações das novas ordens religiosas.

Por longo tempo, o problema da "reconquista" havia imposto uma elaboração simbólica e um controle dos processos de conquista ao mundo ibérico. A nova situação histórica, no decorrer do Quinhentos, apresenta uma centralidade cada vez mais importante de Roma. Foi ao papa Paulo III que se viu confiada a incumbência de afirmar com clareza, em um documento oficial (Altitudo divini consilii, 1º de junho de 1537), a plena dignidade humana das populações do Novo Mundo americano: é com esse "reconhecimento", impulsionado pela ordem dos dominicanos, que se abriu um espaço fundamental e fundador para a necessidade de empreender a obra de evangelização nos novos territórios. Mas, também, as decisões do Concílio não podiam deixar de influir na "experiência religiosa" que resultou do encontro com os povos americanos. Eis que, do outro lado do Atlântico, no Concílio de Lima, a questão tridentina dos sacramentos e, de forma particular, a da penitência mantiveram-se dominantes e centrais para os sucessivos concílios provinciais americanos. Finalmente, sobretudo, por dentro e para além das normativas conciliares ou das diretrizes da Santa Sé, as forças decisivas para a penetração do cristianismo tridentino entre as populações "idólatras" foram expressas pelas ordens religiosas e, de forma especial, pelos missionários da Companhia de Jesus. Se, de fato, nas reuniões conciliares, a "extirpação da idolatria" foi uma função entregue aos inquisidores e aos bispos, por outro lado, foi graças aos missionários, atraídos pelo modelo apostólico de pregação, que o cristianismo penetrou em profundidade.

No interior dessas perspectivas e guiada, substancialmente, pelas diretrizes apontadas, destaca-se a peculiaridade da missão jesuítica e, sobretudo, de sua atuação missionária na América portuguesa. A grande herança da Companhia que decorre desse específico contexto se tornará, enfim, modelar para todo o moderno esforço missionário realizado no contexto americano. Aqui, de fato, desde os primeiros anos da atuação do esforço evangelizador, a missão vem sofrendo a mais significativa alteração operativa (e de seus pressupostos) da modernidade. Além de submetê-la a uma fundamental transformação, como apontamos, de uma ação evangelizadora itinerante para uma nova dimensão "estancial" que realiza, ao mesmo tempo, um novo processo de civilização e de catequese,59 59 Com uma progressiva e substancial prioridade do primeiro processo sobre o segundo, enquanto irá se revelar como mecanismo indispensável para combater, de qualquer forma, a "inconstância da alma selvagem". é sempre na América portuguesa que se desprende a decorrente política missionária dos "aldeamentos".

A esse respeito, enfim, precisamos prestar atenção aos dados seguintes: o instituto da reducción, propriamente dita, constituiu uma componente fundamental da mais ampla reforma introduzida pelo vice-rei Toledo, no Peru, a partir de 1570: é dessa reforma que decorre a sucessiva experiência platina, como instituto posterior à data de 1610. Mas, se a reforma manifesta sua dimensão de uma "política colonial" a partir do contexto do vice-reino peruano, é importante destacar que a transformação da missão como lugar se constituiu in primis, desde 1560, justamente nos aldeamentos missionários do litoral brasileiro. Nessa direção, a missão jesuítica americana se ergueu em contraposição ao modelo "mediterrâneo", isto é, em contraposição ao modelo da pregação apostólica - que, todavia, continuará a ser praticado, no primeiro período missionário, nas etnograficamente ricas "missões volantes" -, e acabará se impondo como missão por redução.

Finalmente, já com a política de aldeamentos no Rio de Janeiro, que começa a ser delineada desde o final dos anos 50 do século XVI, assim como nas reducciones instituídas, entre 1610 e 1768, entre o sul do Brasil, o Paraguai e o Norte da Argentina, a missão jesuítica pretende construir uma conversão religiosa que mire para um novo paradigma de vida indígena. Resta, todavia, o fato de que essa mudança de paradigmas não se constituía - não podia se constituir - de forma unívoca. Para poder realizar-se, de algum modo, o processo de encontro cultural (religioso), fazia-se necessário, por parte missionária, introduzir elementos novos em paradigmas (indígenas) antigos, assim como, com maior dificuldade, tentavase introduzir novos paradigmas culturais (religiosos), utilizando velhos elementos culturais indígenas. Fica evidente que a tentativa dessa evangelização por redução acabava frequentemente, do lado indígena, por fomentar a produção de um peculiar universo cultural do qual os missionários, inicialmente, não podiam suspeitar a originalidade e nem a força: a "re-dução" por eles imposta acabava se constituindo em uma forma peculiar de "pro-dução" (ou, talvez melhor, de "reprodução") da nova cultura aldeada/reduzida.

E, na medida em que se preparava a institucionalização dos famosos modelos alternativos de organização social que levam esse nome, a operação de "redução" das culturas indígenas se constituiu em prática necessária de seu fundamental reconhecimento. Os primeiros reconhecimentos nos pareceram delinear-se, decididamente, em forma de excessos, por um lado, e de ausências, por outro. Em um primeiro tempo, os excessos foram sendo identificados com os costumes, e as ausências, com as crenças; e, no imperativo de cristianizar os indígenas, os primeiros parecem, em princípio, ter preocupado mais do que as últimas.60 60 Tratamos dessas problemáticas em nosso trabalho, já citado, na Parte III ("Doutrina e sacramentos"), item 2 ("Os sacramentos entre os tupi"). Os excessos indígenas identificavam-se, sobretudo, com o conjunto de "costumes abomináveis" ou "maus costumes" que conotava um estágio (de aristotélica memória) inferior de humanidade revelador de uma profunda desordem social e que dificultava, ao mesmo tempo, o processo de civilização, fundamento irrenunciável para a (sucessiva) obra de cristianização.

Nesse sentido, na base do processo de catequização, impunha-se o trabalho como instrumento de civilização. Por isso, significativamente, tanto a aldeia quanto as "reducciones" constituem-se em lugares de trabalho que, como tais, eram destinados à civilização do indígena americano: estabilidade, regularidade, hierarquia tornaram-se instrumentos de uma administração de diferentes temporalidades que encontravam um de seus mais significativos desafios no controle e na ordenação temporal de uma sexualidade indígena que os jesuítas consideravam, mais uma vez, como desordenada e excessiva; ordenamento que devia aviar a modificação e o policiamento (dos excessos) dos costumes indígenas.

7. Breves considerações finais

Com esses resultados, decorrentes dos pressupostos e do percurso delineado, partindo justamente da América portuguesa, a missão jesuítica deixara sua marca profunda no processo peculiar da Contrarreforma, que, em termos de "disciplinarização" da sociedade cristã, realizara um processo antes, necessariamente, civilizador, e só depois, consequentemente, missionário. O resultado dessa "disciplinarização" era, sem dúvida, social e teologicamente orientado, mas, em sua moderna base operativa missionária, partia antes da ressemantização "religiosa" de uma subjetividade humana renascentista que, ao mesmo tempo, fundava a e era fundada pela nova concepção do livre-arbítrio.61 61 Esse religioso ressemantizado em termos individuais e subjetivos, partindo de uma nova concepção do livre-arbítrio, é, justamente, aquele que se afirma com a Devotio moderna. Este último permitia repensar, enfim, um novo paradigma das culturas62 62 Pensadas necessariamente, na época, em termos de "civilizações": que remetem, ao mesmo tempo, ao universalismo republicano da civilitas (da Antiguidade romana) e ao universalismo religioso da civitas Dei de Santo Agostinho. no qual se podiam inserir, finalmente e de algum modo, também nos contextos americanos, tanto a função do processo de individualização,63 63 ELIAS, Norbert. A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. Ed. orig.: Die Gesellschaft der Individuen, 1987. quanto seu eco na nova atuação missionária jesuítica,64 64 Por isso, José de Acosta pôde pensar uma Historia natural y moral de las Indias, na qual se destaca, sobretudo, a grande novidade de sua interpretação "moral", isto é, o que diz respeito ao novo tratamento reservado - e apontado pela segunda parte do subtítulo da obra - aos "... ritos, y ceremonias, leyes e gobierno de los índios". Op. cit. sobretudo exercendo o controle das consciências (individuais) por meio do sacramento da penitência (que criava a individualidade da nova concepção de "pecado" indígena). Do processo civilizador (social) que vinha se impondo pela nova disciplina (individual), emergia a novidade de uma relação que se estabelecia entre sociedade e indivíduo. Nessa direção, a missão civilizadora e evangelizadora jesuítica fundava uma "protoantropologia" - ainda missionária e "religiosa", evidentemente - que estava prestes a se tornar "social"; uma verdadeira sociologia aberta à nova e iminente dimensão do "político".65 65 Interpretação em termos "políticos", também, das sociedades indígenas americanas, mesmo que fosse para sublinhar "ausências" de caracteres políticos, de fato: de qualquer maneira, tratou-se sempre de uma referencialidade interpretativa que passou de uma caracterização "religiosa" para aquela "política".

Esse percurso encontra sua primeira formação modelar nas reduções jesuíticas da América portuguesa, que se tornam, também e portanto, a manifestação mais significativa, no começo da Idade Moderna, do novo domínio do "político" no contexto americano: sua aurora tem de ser procurada, enfim, no aviamento de um novo processo de policiamento (civil) realizado em um contexto "religioso" e de atuação missionária, enraizado, sobretudo, na peculiaridade da nova missio jesuítica e ligado, prioritariamente, ao contexto da América portuguesa.

Artigo recebido em 10/6/2011 e aprovado em 14/9/2011

  • 1
    ACOSTA, José de. Proêmio ao leitor. In:
    Historia natural y moral de las Indias. En que se tratan de las cosas notables del cielo, elementos, metales, plantas y animales dellas y los ritos, y ceremonias, leyes e gobierno de los indios. México: Fondo de Cultura Económica, 2006 [1962].
  • 2
    Disciplina que analisa as "religiões" assentando-se em uma base propriamente histórico-comparativa e levando-as em consideração como produtos culturais: isto é, entendidos como construções arbitrárias, subtraídas a uma dimensão transcendente e objetivante e determinadas, pelo contrário, a partir de um contexto exclusivamente histórico e cultural. O que significa que parte, justamente, do pressuposto de um arbitrário que predetermina e rege, inclusive, esse contexto. A respeito da disciplina, cf., entre outras, as obras propostas em português: AGNOLIN, Adone (Org.).
    História das religiões. São Paulo: Hedra, 2005 [VV. AA. SCARPI, P.; FILORAMO, G.; RAVERI, M.; MASSENZIO, M.
    Manuale di storia delle religioni. Roma-Bari: Laterza, 1998. Edição brasileira em quatro volumes.]: SCARPI, Paolo.
    Politeísmos: as religiões do mundo antigo. v. I; FILORAMO, Giovanni.
    Monoteísmos e dualismos: as religiões de salvação. v. II; RAVERI, Massimo.
    Índia e Extremo Oriente: a via da libertação e da imortalidade. v. III; MASSENZIO, Marcello.
    A história das religiões na cultura moderna. v. IV. AGNOLIN, Adone. O debate entre história e religião em uma breve história da história das religiões: origens, endereço italiano e perspectivas de investigação.
    Projeto História: Revista do Programa de Estudos Pós-Graduados em História, Departamento de História, PUC-SP, "História e religiões", n. 37, p. 13-39, dez. 2008. E, finalmente, sempre de nossa autoria, um trabalho de próxima publicação,
    História das religiões: prolegómenos à perspectiva histórico-comparativa do estudo das religiões. [no prelo].
  • 3
    Cuja conceituação, antes de se propor como dado, constituiu-se em resultado de um percurso histórico peculiar que, unicamente, permitiu sua "pensabilidade".
  • 4
    Distinguindo-se de uma anterior definição de diversidade estabelecida por meio de uma hierarquização/verticalidade. Nessa transformação de perspectiva transformaram-se, evidente e progressivamente, os valores envolvidos nas representações das alteridades: passando-se de uma hierarquização vertical para uma comparação horizontal, verifica-se uma progressiva historicização das diferentes culturas humanas (dos
    mores étnicos) que vai subtraindo-as a uma valorização (exclusivamente) "moral" (em um sentido valorativo absoluto).
  • 5
    Cf. ELIAS, Norbert.
    Über den Prozess der Zivilisation. Basileia: Haus zum Falken, 1939. v. 1. Edição brasileira:
    O processo civilizador.
    Uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. v. 1.
  • 6
    Cf. também, a esse respeito, SABBATUCCI, Dario. As felizes culpas do Ocidente.
    Imaginário: Revista do Núcleo Interdisciplinar do Imaginário e Memória, São Paulo: Nime/USP, "Natureza", n. 3, p. 163-180, 1996. Originalmente publicado em SANTIEMMA, Adriano (Org.).
    L'emblema e la storia. Roma: La Goliardica, 1983.
  • 7
    Cf., a esse respeito, a interpretação dos diferentes estágios civilizacionais proposta por Acosta. Entre outros trabalhos, ver: PAGDEN, Anthony.
    The fall of natural man: the American Indian and the origins of comparative ethnology. Cambridge: University Press, 1982. Sobretudo os respectivos capítulos VI, VII e VIII, que se referem à construção de "um programa de etnologia comparada" extendendo-se de Bartolomé de Las Casas até Joseph-François Lafitau, passando, justamente, por José de Acosta.
  • 8
    Tratamos, em parte, de algumas dessas características em nosso
    Jesuítas e selvagens: a negociação da fé no encontro catequético-ritual americano-tupi (séc. XVI-XVII). São Paulo: Humanitas/Fapesp, 2007. Cf. Parte I ("Catequese e tradução"), itens 1 e 2.
  • 9
    Fizemos isso, em termos gerais - isto é, prescindindo da sucessiva e específica análise do contexto e das problemáticas americanas -, sobretudo na Parte II ("Catequese e tradição") do nosso trabalho citado.
  • 10
    Cf. SABBATUCCI, Dario.
    Lo stato com e conquista culturale: ricerca sulla religione romana. Roma: Bulzoni, 1984 [1975].
  • 11
    PRODI, Paolo. L'istituto della penitenza: nodi storici. In: MEZZADRI, L.; TAGLIAFERRI, M.(Orgs.). La penitenza: dottrina, controversie e prassi tra medioevo ed età moderna. Bolonha, 22-23 set. 2009. Citado por Maria Teresa Fattori em sua "Introduzione. Politiche sacramentali tra vecchio e nuovi mondi", p. 300. Introdução à coletânea da revista Cristianesimo nella Storia, Bolonha: Dehoniane, v. 2, n. 31, 2010.
  • 12
    Em contraposição, mas também em correlação, àquele de ortodoxia, o conceito de "ortopraxe" é utilizado por Nicola Gasbarro para indicar o elemento prático e histórico essencial da missionação que realizam (encontram-se na necessidade de realizar) de forma necessariamente negociada as ortodoxias religiosas em concretos contextos histórico-culturais: nesse sentido, a ortopraxe seria a realização (prática e histórica) dos princípios da ortodoxia (teológica). Cf. GASBARRO, Nicola. Missões: a civilização cristã em ação. In: MONTERO, Paula (Org.).
    Deus na aldeia: missionários, índios e mediação cultural. São Paulo: Globo, 2006. p. 67-109.
  • 13
    Conferir as etapas desse percurso delineadas no nosso trabalho,
    Jesuítas e selvagens..., já citado, principalmente na Parte II ("Catequese e tradição"). E conferir, sobretudo, a esse respeito, os trabalhos fundamentais de Adriano Prosperi e Paolo Prodi, dentre os quais destacamos, pelo menos, do primeiro:
    Il Concilio di Trento: una introduzione storica. Turim: Einaudi, 2001; e
    Tribunali della coscienza: Inquisitori, confessori, missionari. Turim: Einaudi, 1996 (este último, no prelo: São Paulo: Edusp); e, do segundo,
    Uma história da justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2005. [Bolonha: Il Mulino, 2000.]
  • 14
    Quando não a constatação de que se tratava de sistemas de valores sociais diferentes.
  • 15
    Em relação a esses aspectos, cf., também, Maria Teresa Fattori em sua "Introduzione...", Op. cit., p. 297.
  • 16
    Quando, ao contrário, não se encontrou em posição de antagonismo com este último ou, no outro extremo, submetida a outros poderes imperiais, ou de senhores locais, ou de circuitos comerciais já solidamente constituídos na base de mediações desses poderes.
  • 17
    Analisada em seus mecanismos catequético-rituais em nosso, já citado,
    Jesuítas e selvagens, e sobre a qual nos debruçamos, novamente, no mais recente artigo: Grammatica dell'evangelizzazione e catechesi della lingua indigena - Mesoamerica e Brasile: XVI-XVII secolo. In: FATTORI, Maria Teresa (Org.).
    Politiche Sacramentali tra Vecchio e Nuovi Mondi. Coletânea da revista
    Cristianesimo nella Storia, Bolonha: Dehoniane, v. 2, n. 31, p. 681-742, 2010.
  • 18
    NÓBREGA, Manuel da.
    Cartas do Brasil do padre Manoel da Nóbrega (1549-1560). Belo Horizonte: Itatiaia, 1988. p. 141.
  • 19
    Tratamos dessa correlação, sobretudo na Parte IV ("Política linguística e evangelização") do nosso livro,
    Jesuítas e selvagens, op. cit., especificamente em seu item 4.
  • 20
    A partir, como ensina a História das Religiões, das categorias interpretativas religiosas (ocidentais), assim como, antes de tudo, do próprio conceito de "religioso".
  • 21
    Entendida como, ao mesmo tempo, uma única dimensão de cristianização e civilização, de religião, política e costumes sociais.
  • 22
    AGNOLIN, Adone.
    Jesuítas e selvagens... Op. cit., p. 420.
  • 23
    Isso é evidente, por exemplo, na Índia com a associação que foi se estabelecendo entre conversão ao cristianismo e a consequente obtenção da plenitude dos "direitos" de subordinação por parte dos convertidos.
  • 24
    Ver, a esse respeito, os trabalhos fundamentais, alguns dos quais anteriormente já citados, de Adriano Prosperi e Paolo Prodi, além da síntese esboçada "Introduzione..." da obra organizada, e já citada, por Maria Teresa Fattori.
  • 25
    Isso, como já apontamos, diferentemente dos contextos chinês e japonês, nos quais a difusão do cristianismo não pôde se utilizar de um colateral poder político e teve de apelar, necessariamente, à liberdade dos indivíduos que, aceitando "conscientemente" o cristianismo, assumiam uma posição de ruptura com a tradição religiosa dominante naqueles contextos. A escolha de se converter no Japão e na China implicou, portanto, elementos de resistência política ao poder local e comportou implicações sociais e políticas opostas com relação às conversões forçadas do poder imperial espanhol ou português.
  • 26
    Além dos trabalhos, já citados, de P. Prodi e A. Prosperi, ver a respeito, também, o excelente trabalho de BOER, Wietse de.
    The conquest of the Soul: confession, discipline and public order in Counter-Reformation Milan. Leiden: Brill, 2001. Gregory, Brad Stephan.
  • 27
    Cf., em relação a essa perspectiva no contexto americano, POMPA, Maria Cristina.
    Religião como tradução: missionários, tupi e "tapuia" no Brasil colonial. Bauru: Edusc, 2003.
  • 28
    Isso pode ser verificado, por exemplo, em nosso trabalho,
    Jesuítas e selvagens, citado, no item em que tratamos de "Os sacramentos entre os tupi" (Parte III, item 2), estabelecendo-se entre a interpretação de uma "rede demoníaca" que, fundando-se na "bestialidade" da língua indígena, vem impondo a necessidade de uma catequização segundo o próprio vernáculo indígena que, evidentemente, deve por sua vez ser "catequizado": isto é, sujeito a um processo de gramaticalização (ocidental).
  • 29
    Estabelecendo, nessa interligação, um inédito equilíbrio na prática da confissão na América ibérica ou na Ásia.
  • 30
    Nesse caso, por exemplo, a confissão tornou-se, na China, um instrumento para introduzir mudanças na moralidade dos fiéis, uma resposta à necessidade espiritual e individual de ser libertados do pecado e do mal, em vista da salvação ultraterrena, um instrumento para construir as comunidades. De forma alternada e sujeita a interpretações controvertidas foi a discussão sobre o nível de consciência dos sujeitos que recebiam os sacramentos, e, por consequência, foi diferentemente organizada a pastoral: a ação dos missionários foi, em alguns casos, endereçada a favorecer a aquisição de noções; em outros, a permitir a interiorização dos conteúdos essenciais da fé e da "tradução moral" do cristianismo, sobretudo dos pecados ligados à vida conjugal. O mesmo foro interno tornou-se ocasião para interpelar e verificar a preparação cristã dos neófitos: a "ignorância" tornou-se um pecado a ser confessado! A operação de adaptação partiu de uma primeira abordagem que tendia a enumerar pecados "autóctones", para depois alcançar um primeiro esforço de interpretação das culturas, do significado do ato sexual, por exemplo, e da consequente ligação matrimonial etc.
  • 31
    Daqui a passagem do "convertido" ao "novamente convertido", da cristianização à recristianização que, na Índia, como nas terras mesoamericanas, se ergueu adiante da "recrudescência idolátrica".
  • 32
    O sacramento penitencial envolvia, também, a discussão sobre a lei natural, lei humana e lei divina, colocando as distinções que permitiam classificar as uniões esponsais e os comportamentos que podiam ser legitimados: tratou-se, portanto, de um modo para classificar, antes, e construir, depois, a realidade em vista de uma sua adequação aos parâmetros cristãos.
  • 33
    Combinando, sobretudo, duas diretrizes: a avaliação dos costumes sexuais e a adequação ao modelo matrimonial católico.
  • 34
    Entre os quais jesuítas de origem hebraica e, sobretudo no contexto asiático, jesuítas italianos.
  • 35
    PROSPERI, Adriano. Il missionario. In: VILLARI, Rosario (Org.).
    L'uomo barocco. Roma-Bari: Laterza, 1991. p. 217-218.
  • 36
    Cf., por exemplo, LOYOLA, Inácio de.
    Esercitii spirituali. Roma: Nella Stamperia del Varese, MDCLXIII; e ver quanto sublinhado, em relação a essas ilustrações, por FÜLÖP-MILLER, R.
    Il segreto della potenza dei gesuiti. Milão: Mondadori, 1931, e por PALUMBO, Genoveffa.
    Speculum peccatorum: frammenti di storia nello specchio delle immagini tra Cinque e Seicento. Nápoles: Liguori, 1990. p. 223-236.
  • 37
    Veja-se, a esse respeito, o importantíssimo trabalho de DELUMEAU, J.
    Le péché et la peur: la culpabilisation en Occident (XIII-XVIII siècles). Paris: Fayard, 1983, sobretudo o cap. I (O desprezo do homem e do mundo).
  • 38
    Aquela mesma tradição que produziu a
    Imitação de Cristo como obra de grande alcance público.
  • 39
    Título da última parte do primeiro capítulo de DELUMEAU, J.
    Le péché et la peur... Op. cit., capítulo importante para analisar e confrontar a história dessa doutrina do
    Contemptus mundi.
  • 40
    Vale lembrar, a esse respeito, as próprias considerações de José de Acosta citadas no começo do artigo e que se referem à
    Historia natural y moral de las Indias.
  • 41
    Rigorosamente teorizada por Cícero, Quintiliano, Alberto Magno, Tomás de Aquino..., até Leibniz.
  • 42
    Uma verdadeira "colonização do imaginário", segundo a feliz expressão de Serge Gruzinski e Carmen Bernand.
    La colonisation de l'imaginaire: sociétés indigènes et occidentalisation dans le Mexique espagnol (XVIe.-XVIIIe. siècle). México: Fondo de Cultura Económica, 1992 [ed. original francesa: Paris: Gallimard, 1988].
  • 43
    A bibliografia e a análise mais detalhada da síntese aqui proposta se encontram na Parte II do nosso trabalho citado ("Catequese e tradição"): no item 2 ("Problemáticas históricas modernas da catequese"), e no item 2.4 ("As riquezas do inimigo: exegese clássica e mediação cultural").
  • 44
    É nessa direção que devemos apontar para uma atividade apostólica que, no interior dos
    Exercícios espirituais, se constitui ao redor da meditação sobre a morte. Ver, a esse respeito, além da obra de Delumeau, o
    De arte bene moriendi, de 1620, do cardeal Roberto Bellarmino (
    L'arte di ben morire. Alessandria: Piemme, 1998), obra que, pertencente ao gênero literário da
    Ars moriendi - que teve tanta fortuna na época renascentista -, encontra-se centrada prevalentemente na grande tradição jesuítica e, particularmente, nos
    Exercícios espirituais de Inácio de Loyola. No que diz respeito ao gênero da
    Ars moriendi, cf. TENENTI, Alberto.
    Il senso della morte e l'amore della vita nel Rinascimento (Francia e Italia). Turim: Einaudi, 1989; RUDOLF, R.
    Ars moriendi: von der Kunst des heilsamen Leben und Sterben. Köln, 1957; O'CONNOR, M. C.
    The art of dying well: the development of the Ars moriendi. Nova Iorque, 1966.
  • 45
    Os
    Exercícios inacianos se propõem, a esse respeito, por suas características
    ao mesmo tempo mental e discursiva - isto é, de intelecto e vontade - e contemplativas - isto é, em contraposição ao raciocínio, constituídas pela simples intuição da verdade, já possuída
    a priori e por um constante amor no qual se fundamenta a vontade. A revolução espiritual inaciana fundamenta-se, essencialmente, nesse "ao mesmo tempo". E o que permite a realização dessa revolução é, justamente, seu conceito de imaginação, constituído por meio dos sentidos mentais: trata-se, enfim, de concentrar-se em um objeto sensorial, mas, ao mesmo tempo, imaginado. É assim que, por meio dos
    Exercícios, devem surgir "moções espirituais, quais consolações e desolações" (Ex. n. 6) e, paralelamente, se exerce através deles um controle em relação aos pensamentos e à sua fonte ambivalente, tanto interna quanto externa (Ex. 176). Nessa direção, todavia, reconstrói-se um passado pessoal próprio que se apoia não mais em uma dimensão individual, mas em uma dimensão finalmente universal, estruturada na base da história de Cristo: esta última, centrada em particular na encarnação, torna-se a base modelar da história de cada indivíduo. A estrutura do colóquio (consigo mesmo) perpassa todos os
    Exercícios (ver, por exemplo, o Exercício 126) e, dentro dela, o jesuíta constrói uma cena na qual ele entra como ator. Nessa cena, ele faz experiência do "sentir profunda cognição" dos próprios impulsos e paixões, mas esse colóquio não serve para dizer a Deus o próprio desejo, mas serve, ao contrário, sobretudo, para verbalizar esse desejo, tanto para si quanto para o próprio diretor espiritual (Ex. 148). Por consequência, os
    Exercícios se constituem em processo de imaginação que conduz à emergência de desejos latentes ou de outros aspectos do si próprio, a fim de que possam ser controlados ou pelo próprio "exercitante", ou pelo próprio diretor espiritual (cf., a esse respeito, ENDEAN, Ph. The ignatian prayer and the senses.
    The Heythrop Journal, v. XXXI, p. 405, 1990).
  • 46
    Na qual o aspecto contemplativo devia ser funcional àquele prático: "
    ad actionem ipsam perfect e agendam".
  • 47
    Cf. NADAL, J. In examen adnotationes (1557), IV, 2.
    Monumenta Historiae Societatis Jesu (MHSI), v. IV, p. 163. No que diz respeito a Nadal, cf. NICOLAU, M.
    J. Nadal S.J. (1507-1580). Sus obras y doctrinas espirituales. Madri: Instituto Francisco Suarez, 1949; além da voz
    Nadal do
    Dictionnaire de spiritualité, v. XI, p. 3-15, assim como CORETH, R. Contemplative in action. In: GLEASON, R. W. (Org.).
    Contemporary spirituality. Nova Iorque: Macmillan Company, 1968.
  • 48
    NADAL, J. Exortationes complutenses.
    Monumenta Historiae Societatis Jesu (MHSI), v. V, p. 343.
  • 49
    Ibid., p. 228.
  • 50
    Segundo o primeiro capítulo de
    La prospettiva storico-religiosa: fede, religione e cultura, de Dario Sabbatucci (Milão: Il Saggiatore, 1990. p. 5-18).
  • 51
    Analisado por BRELICH, Angelo.
    Introduzione alla storia delle religioni. Roma: Ed. dell'Ateneo, 1965. p. 6-7.
  • 52
    SABBATUCCI, Dario. Op. cit., p. 5.
  • 53
    Ibid., p. 7-8.
  • 54
    CORREIA. Mon. bras. In:
    MHSI, v. I, p. 231; citado por BRESSANI, F. G.
    Breve relazione d'alcune missioni dei P. della Compagnia di Gesù nella Nuova Francia. Macerata, 1653, p. 20.
  • 55
    Conclusão que se encontra em TOURNEMINE, J. R. Réflexions sur l'athéisme attribué à quelques peuples par les premiers missionnaires qui leur ont amené l'Evangile.
    Mémoires pour l'histoire de sciences et des beaux arts, Trevoux, janvier 1717, art. VI.
  • 56
    IMBRUGLIA, G. Op. cit., p. 304-305.
  • 57
    Ver, a esse respeito, o capítulo III do trabalho de EISEMBERG, José.
    As missões jesuíticas e o pensamento político moderno: encontros culturais, aventuras teóricas. Belo Horizonte: UFMG, 2000. Que mostra, aliás, como, no consequente
    Plano civilizador do Pe. Nóbrega, o medo e o consentimento se encontravam enraizados no próprio estado da natureza. Daí o fato de que a reforma proposta por Nóbrega se constituiu em uma "estratégia para proteger e converter os índios, baseada na construção de seu consentimento que seria obtido através da aceitação da autoridade dos padres e das normas da sociedade política cristã" (p. 116). Todo o capítulo III desse livro mereceria uma análise mais detalhada das problemáticas da catequese - apontadas pelo
    Diálogo sobre a conversão do gentio - em sua estrita relação com o plano político - o
    Plano civilizador -, na qual, necessariamente, a conversão deveria ser inserida.
  • 58
    Como veremos, novamente, logo a seguir, com os aldeamentos jesuíticos no contexto da América portuguesa.
  • 59
    Com uma progressiva e substancial prioridade do primeiro processo sobre o segundo, enquanto irá se revelar como mecanismo indispensável para combater, de qualquer forma, a "inconstância da alma selvagem".
  • 60
    Tratamos dessas problemáticas em nosso trabalho, já citado, na Parte III ("Doutrina e sacramentos"), item 2 ("Os sacramentos entre os tupi").
  • 61
    Esse religioso ressemantizado em termos individuais e subjetivos, partindo de uma nova concepção do livre-arbítrio, é, justamente, aquele que se afirma com a
    Devotio moderna.
  • 62
    Pensadas necessariamente, na época, em termos de "civilizações": que remetem, ao mesmo tempo, ao universalismo republicano da
    civilitas (da Antiguidade romana) e ao universalismo religioso da
    civitas Dei de Santo Agostinho.
  • 63
    ELIAS, Norbert.
    A sociedade dos indivíduos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. Ed. orig.:
    Die Gesellschaft der Individuen, 1987.
  • 64
    Por isso, José de Acosta pôde pensar uma
    Historia natural y moral de las Indias, na qual se destaca, sobretudo, a grande novidade de sua interpretação "moral", isto é, o que diz respeito ao novo tratamento reservado - e apontado pela segunda parte do subtítulo da obra - aos "...
    ritos, y ceremonias, leyes e gobierno de los índios". Op. cit.
  • 65
    Interpretação em termos "políticos", também, das sociedades indígenas americanas, mesmo que fosse para sublinhar "ausências" de caracteres políticos, de fato: de qualquer maneira, tratou-se sempre de uma referencialidade interpretativa que passou de uma caracterização "religiosa" para aquela "política".
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Jul 2012
    • Data do Fascículo
      2012
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