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Introdução a "Ideias imperativas"

CLÁSSICOS DA PSICOPATOLOGIA

ARTIGO

Introdução a "Ideias imperativas"

German E. Berrios

Correspondence Correspondence: German E. Berrios Médico e filósofo pela Universidad Nacional de San Marcos, Lima, Peru; Psiquiatra; Neurologista; Psicólogo; Filósofo; Historiador e Filósofo da ciência (Oxford University, England); Professor de Neuropsiquiatria e de Epistemologia da Psiquiatria (University of Cambridge, England), desde 1976; Neuropsiquiatra e Chefe do Departamento de Neuropsiquiatria do Hospital Addenbrooke, University of Cambridge, por 32 anos; Coordenador do Comitê de Ética em Pesquisa com Humanos na mesma universidade, por vinte anos; Editor Responsável de History of Psychiatry; Autor de 14 livros, incluindo The History of Mental Symptoms, Descriptive Psychopathology since 19th Century (Prêmio Nacional BMA, 1997), A History of Clinical Psychiatry (com Roy Porter), e Delirio (com F. Fuentenebro) e mais de 400 artigos e capítulos de livros; Membro do Royal College of Psychiatrists; da Associação Britânica de Psicologia e da Academia Britânica de Ciências Médicas; Membro Vitalício do Robinson College, Cambridge; doutor Honoris Causa da Universidade de Heidelberg (Alemanha), da Universidade Nacional Mayor de San Marcos (Peru) e da Universidad Autónoma de Barcelona (Espanha); Grão Oficial da Ordem del Sol (Condecoração do Governo Peruano, 2007); prêmio Ramon y Cajal 2008 concedido pela Asociación Internacional de Neuropsiquiatria. University of Cambridge Box 189, Hills Road Cambridge UK CB2 2QQ e-mail: geb11@cam.ac.uk

O artigo de Tuke sobre 'ideias imperativas' é parte importante da contribuição da psiquiatria inglesa do século XIX para a construção dos conceitos de obsessão e de transtorno obsessivo (Berrios, 1996). De modo geral, os grandes debates sobre estes fenômenos clínicos eram realizados pela psiquiatria francesa e alemã e os médicos ingleses limitavam-se a comentar os debates continentais. Por exemplo, Ireland (1885) forneceu uma revisão dessas ideias e Julius Mickle (1896) dedicou seu discurso presidencial aos 'Assédios Mentais', que definiu como 'o estado no qual a mente é afetada por algum tipo de pensamento compulsivo ou por um medo irracional e, com frequência, progressivo, conjugado ou não com um impulso que é, ou tende a tornar-se, irresistível. É também uma forma de abulia' (p. 692). Sob o termo assédio, Mickle incluiu a agorafobia e outros estados fóbicos, tiques, síndrome do salto (Jumping disease), Myriachit e Latah. O termo assédio mental nunca foi amplamente utilizado e alguns anos depois Shaw (1904) escreveu um artigo intitulado, sensatamente, 'Obsessões'. Assim, o debate mais interessante sobre obsessões ocorrido durante esse período é inequivocamente o intercâmbio de ideias entre Tuke e Jackson referente ao mecanismo das ideias imperativas (Berrios, 1977).

Tuke (1827-1895)

O debate teve início com um artigo sobre 'Ideias imperativas' lido por Daniel Hack Tuke (1894) perante a Sociedade Neurológica de Londres no dia 1º de março de 1894. Ele lamentou o fato de que as ideias imperativas tendiam a ser mencionadas apenas quando complicadas por depressão ou delírios e citou Jackson em sua convicção de que pequenos desvios de saúde mental eram tão importantes quanto os mais graves encontrados nos sanatórios (p. 179). Tuke fez ainda objeção à palavra 'francesa' 'obsessão', devido às associações demoníacas que evocariam na mente dos pacientes. Em sua perspectiva, o TOC incluía emoções ou impulsos e os sintomas, embora assoberbantes em intensidade, não eram delirantes por natureza (ao menos não nos estágios iniciais). Ele apontou que um histórico familiar de epilepsia era frequente em casos de TOC, e que para a lei inglesa o atenuante das ideias imperativas tinha pouca efetividade (p. 191).

Em relação à etiologia, Tuke afirmou que embora lesões corticais não houvessem sido encontradas, era possível entender a impulsividade do TOC nos termos da "doutrina do reflexo ou função automática do córtex cerebral, de Laycock" (p. 192). Em seguida, fez um resumo das ideias de Jackson e sugeriu que as obsessões poderiam ser concebidas como formas exageradas de comportamento 'liberadas' pelo enfraquecimento do poder mental (isto é, sintomas positivos resultantes de uma abolição ou sintoma negativo): "No que se refere a casos em que há um mórbido pavor de sujeira, não sei o que podemos acrescentar em diversos exemplos, além de observar que há um exagero da limpeza escrupulosa que marcadamente caracteriza certas pessoas em perfeita saúde, mas a origem da ideia imperativa pode ocasionalmente ser atribuída a alguma afecção da pele que necessitou que a atenção fosse atraída para ela, induzindo um estado mórbido da mente, não de introspecção, mas de "extro-specção". Em caso de redução do poder mental geral ou da existência de uma predisposição hereditária, esta tendência a se ocupar do estado da pele torna--se uma paixão" (p. 195). 'Ideias imperativas' foi o artigo de despedida de Tuke - ele faleceu de hemorragia cerebral cinco dias após sua apresentação.

Jackson (1835-1911)

Embora não estivesse presente na reunião da Sociedade Neurológica, John Hughlings Jackson (1895) empenhou-se em responder ao artigo afirmando que embora houvesse observado casos de ideias imperativas, não lhes dera muita atenção. Entretanto, fez a importante ressalva de que as visões expressas em seu artigo de Leeds (o qual Tuke citou) (Jackson, 1889) não se aplicavam 'de modo irrestrito' à noção de ideias imperativas: "alguns delírios bastante absurdos e persistentes devem-se à fixação em fantasias ou sonhos grotescos nos casos em que uma mudança mórbida no cérebro ocorre durante o sono" (p. 355). Nos casos de ideias imperativas, "certos pensamentos intrusivos que poderiam ser transitórios ficam fixados, tornam-se 'ideias imperativas', como consequência de alguma pequena mudança mórbida no cérebro ocorrida durante o sono" (Jackson, 1895, p. 318).

Jackson (1895) parecia estar sugerindo que a diferença entre delírio e ideia imperativa concernia somente à gravidade da mudança mórbida: leve no segundo caso, pronunciada no primeiro. Jackson também acreditava que os alienistas deveriam "levar em consideração a existência desses estados quase parasitários em casos em que o poder mental geral é apenas ligeiramente diminuído" (p. 319).

Além da resposta de Jackson ao artigo de Tuke, houve também respostas de George Savage, Charles Mercier e Milne Bramwell. Savage (1895) criticou o uso do termo 'imperativo', já que "as ideias não são sempre a fonte de ação"; Mercier (1895), tipicamente, afirmou: "o que mais me impressionou foi a completa aceitação de Tuke de uma doutrina na qual acredito e que há muito tempo defendo (...)" (p. 348). Bramwell (1984) incluiu um longo resumo das visões dos países continentais europeus sobre as obsessões e relatou 18 casos: "em quase todos os meus casos a condição parece ter tido uma origem emocional" (p. 348). Ele também confrontou a opinião de Tuke de que as obsessões seriam um fenômeno automático: "Serão esses atos automáticos? Um ato automático é simplesmente um ato habitual voluntário realizado distraidamente ou inconscientemente; os assim chamados atos automáticos das pessoas que sofrem de ideias imperativas, contudo, são realizados em oposição a esta volição e frequentemente associados a uma intensa e dolorosa consciência. Possivelmente eles poderiam ser chamados, com justiça, de reflexo, uma vez que são respostas fatais não escolhidas à estimulação" (p. 347-348).

Defluências

Ao debate sobre se as obsessões eram uma expressão da neurose ou da psicose, e se eram relacionadas a automatismos do cérebro e a mecanismos de liberação do cérebro, Freud e Janet trariam suas próprias contribuições, que mudariam a percepção destes fenômenos por um longo tempo por vir.

Freud (1896/1924) escreveu: "Fui obrigado a começar meu trabalho com uma inovação nosográfica. Julguei razoável dispor a histeria ao lado da neurose obsessiva, como distúrbio autossuficiente e independente (...) Por meu lado, examinando o mecanismo psíquico das obsessões, eu havia aprendido que elas estão mais estreitamente ligadas à histeria do que se poderia supor (...)" (p. 142).

Janet (1903), por sua vez, escreveu: "La psychasthénie est une psycho-névrose dépressive, caractérisée par la diminution des fonctions qui permettent d'agir sur la réalité et de percevoir le réel, par la substitution d'opérations mentales inférieures et exagérées sous la forme de doutes, d'agitations et d'angoisses, et par des idées obsédantes qui expriment les troubles précédents et qui présentent elles-mêmes les memes caractères"* Correspondence: German E. Berrios Médico e filósofo pela Universidad Nacional de San Marcos, Lima, Peru; Psiquiatra; Neurologista; Psicólogo; Filósofo; Historiador e Filósofo da ciência (Oxford University, England); Professor de Neuropsiquiatria e de Epistemologia da Psiquiatria (University of Cambridge, England), desde 1976; Neuropsiquiatra e Chefe do Departamento de Neuropsiquiatria do Hospital Addenbrooke, University of Cambridge, por 32 anos; Coordenador do Comitê de Ética em Pesquisa com Humanos na mesma universidade, por vinte anos; Editor Responsável de History of Psychiatry; Autor de 14 livros, incluindo The History of Mental Symptoms, Descriptive Psychopathology since 19th Century (Prêmio Nacional BMA, 1997), A History of Clinical Psychiatry (com Roy Porter), e Delirio (com F. Fuentenebro) e mais de 400 artigos e capítulos de livros; Membro do Royal College of Psychiatrists; da Associação Britânica de Psicologia e da Academia Britânica de Ciências Médicas; Membro Vitalício do Robinson College, Cambridge; doutor Honoris Causa da Universidade de Heidelberg (Alemanha), da Universidade Nacional Mayor de San Marcos (Peru) e da Universidad Autónoma de Barcelona (Espanha); Grão Oficial da Ordem del Sol (Condecoração do Governo Peruano, 2007); prêmio Ramon y Cajal 2008 concedido pela Asociación Internacional de Neuropsiquiatria. University of Cambridge Box 189, Hills Road Cambridge UK CB2 2QQ e-mail: geb11@cam.ac.uk (Janet, 1919, p. 756).

Estas foram importantes palavras de dois grandes autores clínicos. Com eles a reflexão sobre obsessões atingiu um novo patamar de profundidade. O que ocorreu mais tarde, particularmente após as terríveis simplificações trazidas pelo sistema americano do DSM, é lamentável: a superficialidade clínica que as descrições do DSM introduziram na prática clínica fez regredir a reflexão sobre esses fenômenos a um ponto do qual ela ainda não se recuperou (Berrios & Kan Chung Sing, 1994).

Referências

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Berrios G.E. & Kan Chung Sing (1994). The neurobiology of obsessive compulsive disorder. Neurology, Psychiatry and Brain Sciences 2, 210-220.

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Bramwell J.M. (1894). On imperative ideas. Brain 17, 331-351.

Freud S. (1896/1924). Heredity and the aetiology of the neuroses. In Collected Papers, (Vol. I, pp. 138-154). Edited by Ernest Jones. London: The Hogarth Press.

Ireland, W.W. (1895). On fixed ideas. In The Blot upon the Brain: Studies in History and Psychology. Edinburgh: Bell and Bradfute.

Jackson J.H. (1889). On the comparative study of diseases of the Nervous System. British Medical Journal ii, 355-364.

Jackson J.H. (1895). On imperative ideas. Brain 18, 318-322.

Janet P. (1919). Les Obsessions et la Psychasthénie. Troisième Edition (Vol. 1). Paris: Alcan (First edition 1903).

Laycock T. (1845). On the reflex function of the Brain. British and Foreign Medico-Chirurgical Review, 19, 298 - 311.

Mickle J. (1896). Mental besetments. Journal of Mental Science 42, 691-719.

Savage G.H. (1895). On imperative ideas. Brain 18, 322-328.

Shaw J. (1904). Obsessions. Journal of Mental Science 50, 234-249.

Tuke D.H. (1894). Imperative ideas. Brain 17, 179-197.

Recebido/Received: 5.10.2013/ 10.5.2013

Aceito/Accepted: 30.10.2013 / 10.30.2013

Financiamento/Funding: O autor declara não ter sido financiado ou apoiado / The author has no support or funding to report.

Citação/Citation: Berrios, G. E. (2013, dezembro). Introdução a Ìdeias imperativas". Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 16(4), 610-614.

Editor do artigo/Editor: Prof. Dr. German E. Berrios

Copyright: © 2009 Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental/University Association for Research in Fundamental Psychopathology. Este é um artigo de livre acesso, que permite uso irrestrito, distribuição e reprodução em qualquer meio, desde que o autor e a fonte sejam citados / This is an open-access article, which permits unrestricted use, distribution, and reproduction in any medium, provided the original author and source are credited.

Conflito de interesses/Conflict of interest: O autor declara que não há conflito de interesses / The author declares that has no conflict of interest.

* "A psicastenia é uma psiconeurose depressiva caracterizada pela diminuição das funções que permitem agir sobre a realidade e perceber o real, pela substituição de operações mentais inferiores e exageradas sob a forma de dúvidas, agitações e angústias, e por ideias obsessivas que exprimem os problemas precedentes e que apresentam, elas próprias, as mesmas características". (N. da T.)

  • Berrios G.E. (1977). Henri Ey, Jackson, et les idées obsédantes. L'Evolution Psychiatrique 42, 687-699.
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  • Correspondence:
    German E. Berrios
    Médico e filósofo pela Universidad Nacional de San Marcos, Lima, Peru; Psiquiatra; Neurologista; Psicólogo; Filósofo; Historiador e Filósofo da ciência (Oxford University, England); Professor de Neuropsiquiatria e de Epistemologia da Psiquiatria (University of Cambridge, England), desde 1976; Neuropsiquiatra e Chefe do Departamento de Neuropsiquiatria do Hospital Addenbrooke, University of Cambridge, por 32 anos; Coordenador do Comitê de Ética em Pesquisa com Humanos na mesma universidade, por vinte anos; Editor Responsável de History of Psychiatry; Autor de 14 livros, incluindo The History of Mental Symptoms, Descriptive Psychopathology since 19th Century (Prêmio Nacional BMA, 1997), A History of Clinical Psychiatry (com Roy Porter), e Delirio (com F. Fuentenebro) e mais de 400 artigos e capítulos de livros; Membro do Royal College of Psychiatrists; da Associação Britânica de Psicologia e da Academia Britânica de Ciências Médicas; Membro Vitalício do Robinson College, Cambridge; doutor Honoris Causa da Universidade de Heidelberg (Alemanha), da Universidade Nacional Mayor de San Marcos (Peru) e da Universidad Autónoma de Barcelona (Espanha); Grão Oficial da Ordem del Sol (Condecoração do Governo Peruano, 2007); prêmio Ramon y Cajal 2008 concedido pela Asociación Internacional de Neuropsiquiatria.
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Fev 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 2013
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