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Design e crime

Design and Crime

Resumos

Neste artigo, Hal Foster nos narra o que ele chama da "vingança do capitalismo contra o pós-modernismo" por intermédio do design. Partindo do Art Nouveau, que nos anos 2000 voltou à moda como objeto de exposições e estudos, ele compara este estilo ao design total de nossos dias, tomando como exemplo principal o designer Bruce Mau. Do fordismo ao consumismo, as modulações que levaram à expansão de um tipo de design em detrimento da subjetividade são a base para a argumentação de Foster em favor das distinções que "dão margem de manobra à cultura".

design; Art Nouveau; capitalismo de consumo; pós-modernismo; Bruce Mau


In this paper, Hal Foster gives us an account of what he calls the "revenge of capitalism on postmodernism" through design. Beginning with the renewed interest of the years 2000 in Art Nouveau, which resulted in exhibitions and studies, he compares this style with the total design of our days, of which Bruce Mau is his main example. From Fordism to consumerism, the shifts that led to the expansion of a kind of design and to the loss of subjectivity underlie Foster's claim for distinctions that "provide culture with running-room".

design; Art Nouveau; consumer capitalism; postmodernism; Bruce Mau


TEXTOS / ENSAIOS

Design e crime

Design and Crime

Hal Foster

RESUMO

Neste artigo, Hal Foster nos narra o que ele chama da "vingança do capitalismo contra o pós-modernismo" por intermédio do design. Partindo do Art Nouveau, que nos anos 2000 voltou à moda como objeto de exposições e estudos, ele compara este estilo ao design total de nossos dias, tomando como exemplo principal o designer Bruce Mau. Do fordismo ao consumismo, as modulações que levaram à expansão de um tipo de design em detrimento da subjetividade são a base para a argumentação de Foster em favor das distinções que "dão margem de manobra à cultura".

Palavras-chave: design; Art Nouveau; capitalismo de consumo; pós-modernismo; Bruce Mau

ABSTRACT

In this paper, Hal Foster gives us an account of what he calls the "revenge of capitalism on postmodernism" through design. Beginning with the renewed interest of the years 2000 in Art Nouveau, which resulted in exhibitions and studies, he compares this style with the total design of our days, of which Bruce Mau is his main example. From Fordism to consumerism, the shifts that led to the expansion of a kind of design and to the loss of subjectivity underlie Foster's claim for distinctions that "provide culture with running-room".

Keywords: design; Art Nouveau; consumer capitalism; postmodernism; Bruce Mau

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Uma virada de século evoca outras viradas, e 2000 não foi exceção. Durante os últimos anos, o Estilo 1900 ou Art Nouveau voltou com força em exposições e livros acadêmicos. Parece tão antigo e tão distante, esse movimento pan-europeu comprometido com um Gesamtkunstwerk, ou "obra de arte total" de artes e ofícios, em que tudo, da arquitetura a cinzeiros, era coberto por um tipo de decoração floreada; em que o designer lutava para imprimir sua subjetividade a toda sorte de objeto através de uma linguagem vitalista - como se viver dentro da coisa dessa maneira artificiosa fosse resistir ao avanço da reificação industrial. Quando a estética da máquina tornou-se dominante nos anos 1920, o Art Nouveau não era mais nouveau, e, durante as décadas seguintes, lentamente passou de um estilo fora de moda a um estilo afetado, e tem se arrastado nesse limbo desde então. Entretanto, o que me chamou a atenção durante o recente desfile de manifestações Art Nouveau foi seu forte eco no presente - a intuição de que vivemos em uma outra era de disciplinas confundidas, de objetos tratados como mini-sujeitos, de design total, de um Estilo 2000.

Adolf Loos, o arquiteto vienense de fachadas austeras, era o grande crítico do hibridismo estético do Art Nouveau. Em seu meio, ele era para a arquitetura o que Schönberg foi para a música, Wittgenstein para a filosofia, ou Karl Kraus para o jornalismo - flagelo do que fosse impuro e supérfluo em sua disciplina. Neste sentido, Ornamento e Crime (1908) é sua polêmica mais feroz, pois ali associa o designer de Art Nouveau à criança que rabisca paredes e ao papua que faz tatuagens. Para Loos, o design ornamentado do Art Nouveau é erótico e degenerado, é uma reversão do caminho próprio da civilização, o de sublimar, distinguir e purificar: por isso sua fórmula notória - "a evolução cultural é proporcional ao afastamento do ornamento em relação ao utensílio doméstico"1 1 . N.T.: LOOS, Adolf. Ornamento e crime. Lisboa: Edições Cotovia, 2004, p. 224. - e sua associação infame de "ornamento e crime"2 2 . Idem. Ornament and Crime. In: Ulrich Conrads (ed.). Programs and Manifestoes on 20 th-Century Architecture. Cambridge: MIT Press, 1970, p. 20. . Esse ditame antidecorativo é um mantra modernista - se é que um dia já existiu algum -, e é pela propriedade puritana inscrita em tais palavras que os pós-modernistas por sua vez condenaram modernistas como Loos. Mas talvez os tempos tenham mudado de novo; talvez estejamos vivendo um momento em que distinções entre as práticas poderão ser reclamadas ou refeitas - sem a bagagem ideológica de pureza e propriedade.

Loos começou sua batalha contra o Art Nouveau uma década antes de Ornamento e Crime. Em 1900, um ataque agudo veio na forma de uma paródia alegórica sobre um "pobre pequeno homem rico" que encarrega um designer de Art Nouveau de colocar "Arte em todas as coisas":

Cada aposento formava uma sinfonia de cores, completa em si. Paredes, revestimentos de parede, móveis e materiais foram feitos para harmonizar das mais artificiosas maneiras. Cada objeto doméstico tinha seu lugar específico e integrava-se aos outros nas mais maravilhosas combinações. O arquiteto não tinha esquecido nada, absolutamente nada. Cinzeiros para charutos, talheres, interruptores - tudo, tudo fora feito por ele3 3 . Idem. The Poor Little Rich Man. In: Spoken into the Void: Collected Essays 1897-1900. Tradução de Jane O. Newman and John H. Smith. Cambridge: MIT Press, 1982, p. 125. Salvo se indicado, todas as citações são dessa fonte. .

Essa Gesamtkunstwerk faz mais do que combinar arquitetura, arte e ofício; mistura sujeito e objeto: "a individualidade do dono estava expressa em cada ornamento, cada forma, cada prego". Para o designer de Art Nouveau, isso é a perfeição: "Você está completo!" diz exultante ao dono. Mas o dono não tem tanta certeza: essa completude "sobrecarrega [seu] cérebro". Em vez de santuário contra o estresse moderno, seu interior Art Nouveau é uma nova expressão desse mesmo estresse: "O homem feliz de repente se sentiu profundamente, profundamente infeliz... Estava excluído de qualquer vida e esforço, desenvolvimento e desejo futuros. Ele pensou, isto é que é aprender a viver a vida com seu próprio cadáver. De fato. Ele está terminado. Ele está completo!".

Para o designer de Art Nouveau, essa completude reúne arte e vida, e bane todos os sinais da morte. Para Loos, por outro lado, essa triunfante superação dos limites é uma catastrófica perda de limites - a perda das restrições objetivas necessárias para definir qualquer "vida e esforço, desenvolvimento e desejo futuros". Longe de uma transcendência da morte, a perda da finitude é uma morte na vida, como figurada no tropo máximo da indistinção, viver "com seu próprio cadáver".

Tal é o mal-estar do "pobre pequeno homem rico": em vez de um homem de qualidades, ele é um homem sem elas (como outro flagelo vienense, o grande romancista Robert Musil, colocaria logo depois), pois o que lhe falta, justamente em sua completude, é diferença ou distinção. Em uma típica declaração incisiva, de 1912, Kraus chamaria essa falta de distinção, que exclui toda "vida e esforço futuros", de uma falta de "margem de manobra":

Adolf Loos e eu - ele literalmente e eu linguisticamente - nada mais fizemos além de mostrar que existe uma distinção entre uma urna funerária e um penico, e que é acima de tudo essa distinção que fornece uma margem de manobra [

Spielraum

] à cultura. Os outros, os positivos [aqueles que não fazem a distinção], estão divididos entre aqueles que usam a urna como um penico e aqueles que usam o penico como uma urna

4 4 . KRAUS, Karl. Die Frackel (Dez.1912, p. 37), reimpresso em Werke. v. 3. Munique: Kösel Verlag, 1952-1966, p. 341. Ver SCHORSKE, Carl. From Public Scene to Private Space: Architecture as Culture Criticism. In: Thinking with History. Princeton: Princeton University Press, 1998.

.

Aqui "aqueles que usam a urna como um penico" são designers de Art Nouveau que querem infundir arte (a urna) ao objeto utilitário (o penico). Aqueles que fazem o inverso são modernistas funcionalistas que querem elevar o objeto utilitário à arte. (Alguns anos depois, Marcel Duchamp enganaria ambos os lados com o seu urinol disfuncional, Fonte, que foi apresentado como arte, mas isso é uma outra história.) Para Kraus, os dois erros são simétricos - ambos confundem valor de uso e valor artístico - e ambos são perversos porquanto correm o risco de uma indistinção regressiva entre as coisas: eles não conseguem ver que limites objetivos são necessários para a "margem de manobra" que permite a formação de um tipo liberal de subjetividade e cultura. É por isso que Loos não se opõe apenas ao design total do Art Nouveau, mas também à sua subjetividade licenciosa ("individualidade expressa em cada prego"). Nem Loos nem Kraus falam de uma "essência" natural da arte, ou uma "autonomia" absoluta da cultura; o que está em jogo são "distinções" e "margem de manobra", diferenças propostas e espaços provisórios.

*

Esse velho debate ganha uma nova ressonância hoje, quando o estético e o utilitário não estão somente fundidos, mas quase totalmente subsumidos no comercial e tudo - não apenas projetos arquitetônicos e exposições de arte, mas tudo, de jeans a genes - parece ser considerado como design. Após o apogeu do designer de Art Nouveau, um herói do modernismo foi o engenheiro-artista ou o produtor-autor, mas essa figura, por sua vez, foi derrubada junto com o sistema industrial que a sustentava, e no nosso mundo consumista o designer domina novamente. No entanto, esse novo designer é muito diferente do velho: o designer de Art Nouveau resistia aos efeitos da indústria, embora também buscasse, nas palavras de Walter Benjamin, "recuperar [suas] formas" - concreto moderno, ferro fundido e afins - para a arquitetura e a arte5 5 . BENJAMIN, Walter. Paris, Capital of the Nineteenth Century. In: Reflections. Tradução de Edmind Jephcott. Nova Iorque: Harcourt Brace Jovanovich, 1978, p. 155. . Não há tal resistência no design contemporâneo: ele deleita-se com tecnologias pós-industriais e sacrifica de bom grado a semiautonomia da arquitetura e da arte às manipulações do design. Ademais, o domínio do designer é ainda mais extenso do que antes: alcança empreendimentos muito diferentes (de Martha Stewart a Microsoft) e penetra vários grupos sociais. Pois hoje você não precisa ser podre de rico para ser projetado não apenas como designer, mas também como designed [projetado]6 6 . N.T.: neste texto, designed será traduzido por "projetado" já que "desenhado" tem outro significado para nós. - qualquer que seja o produto em questão: sua casa ou seu negócio, seu rosto pelancudo (design de cirurgia plástica) ou sua personalidade retardada (design de drogas sintéticas), sua memória histórica (design de museus) ou o futuro de seu DNA (design de crianças). Este "sujeito desenhado" poderia ser a descendência não intencional do "sujeito construído" tão celebrado na cultura pós-moderna? Uma coisa parece clara: exatamente quando se pensava que o laço consumista não poderia ficar mais apertado em sua lógica narcísica, foi justamente o que aconteceu: o design favorece um ciclo de produção e consumo quase-perfeito, sem muita "margem de manobra" para qualquer outra coisa.

Alguns podem objetar que esse mundo do design total não é novo - que a fusão do estético e do utilitário no comercial remonta pelo menos ao programa de design da Bauhaus, nos anos 1920 - e teriam razão. Se a primeira Revolução Industrial preparou o campo da economia política, de uma teoria racional da produção material, conforme argumentou Jean Baudrillard há muito tempo, então a segunda Revolução Industrial, conforme desenhada pela Bauhaus, estendeu esse "sistema do valor de troca para todo o campo de signos, formas e objetos (...) em nome do design"7 7 . BAUDRILLARD, Jean. For a Critique of the Political Economy of the Sign. Tradução de Charles Levin. St. Louis: Telos Press, 1981, p. 186. . De acordo com Baudrillard, a Bauhaus significou um salto qualitativo de uma economia política do produto para uma "economia política do signo", em que as estruturas da mercadoria e do signo remodelavam uma à outra, de modo que as duas pudessem circular como uma coisa só, como imagem-produto com "valor de troca de signo", como acontece nos dias de hoje. É claro que não era isso que os mestres da Bauhaus, alguns dos quais marxistas, tinham em mente, mas tal é frequentemente "o pesadelo do modernismo" nas artimanhas da história (como T.J. Clark certa vez colocou). Cuidado com o que você deseja, diz uma máxima do modernismo conforme visto pelo presente, porque pode se tornar realidade - de forma perversa. Assim, para tomar apenas o exemplo principal, o velho projeto de conjugar Arte e Vida, endossado de maneiras diferentes pelo Art Nouveau, pela Bauhaus, e por muitos outros movimentos, foi finalmente realizado, mas de acordo com os ditames espetaculares da indústria cultural, e não as ambições libertadoras da vanguarda. E uma forma primordial dessa reconciliação perversa nos nossos dias é o design.

Então, sim, o mundo do design total não é nada novo - imaginado no Art Nouveau, foi readaptado pela Bauhaus, e espalhou-se por meio de clones institucionais e grandes liquidações desde então - mas só parece ter sido alcançado no nosso presente pan-capitalista. Algumas das razões para tanto não são difíceis de encontrar. Era uma vez a produção de massa; a mercadoria era sua ideologia e o Ford Modelo T era sua publicidade: seu principal atrativo era sua mesmice abundante. Em pouco tempo, isso não era mais o bastante: o consumidor tinha de ser atraído e o feedback tinha de ser incluído na produção (esse é um dos cenários de origem do design moderno). Com o crescimento da competição, seduções especiais tinham de ser inventadas, e a embalagem tornou-se quase tão importante quanto o produto. (A subjetivação da mercadoria já aparece no design aerodinâmico8 8 . N.T.: em inglês, streamlined design. e, daí em diante, torna-se cada vez mais surreal; de fato, a publicidade rapidamente se apropria do Surrealismo.) Nossa época é testemunha de um salto qualitativo nessa história: com a "especialização flexível" da produção pós-fordista, mercadorias podem ser continuamente modificadas e mercados podem ser constantemente divididos em nichos, de modo que um produto pode ser de massa na quantidade e ainda assim parecer atualizado, personalizado e preciso em seu direcionamento9 9 . Ver AMIM, Ash (ed.). Post-Fordism: A Reader. Oxford: Blackwell, 1994. . Hoje o desejo não está apenas inscrito nos produtos, está particularizado neles: uma autointerpelação que diz "ei, isso sou eu" saúda o consumidor em catálogos e on-line. Esse eterno traçar de perfis da mercadoria, do mini-eu, é um dos fatores que estimulam a inflação do design. No entanto, o que acontece quando essa máquina de mercadorias - agora convenientemente localizada fora da vista da maioria de nós - quebra, à medida que o meio ambiente se exaure, mercados caem e/ou trabalhadores explorados pelo mundo afora de alguma maneira se recusam a continuar?

O design também está inflacionado porquanto a embalagem quase substitui o produto. Que o objeto do design seja Young British Art ou um candidato a presidente, o valor da marca [brand equity] - o posicionamento do nome de um produto [branding] para um público que sofre de déficit de atenção - é fundamental para muitas esferas da sociedade, e portanto o design também o é. A atenção do consumidor e a fixação da imagem são ainda mais importantes quando o produto não é nenhum tipo de objeto. Isso ficou claro durante as grandes fusões dos anos Reagan-Thatcher quando as novas mega-corporações não pareciam promover quase nada além de seus novos acrônimos e logotipos. Em particular quando a economia estava em declínio, sob George I, esse branding era uma maneira de sustentar o valor das ações independentemente da realidade de produtividade e lucratividade. Mais recentemente, a internet deu um novo incentivo para a valorização do nome societário por si só. Para as "ponto.com", tal brand equity é necessário para a sobrevivência, e parte do recente expurgo dessas companhias virtuais provém de um darwinismo dos nomes na internet.

Uma terceira razão para a inflação do design é o aumento da centralidade das indústrias de mídia para a economia. Esse fator é óbvio, tão óbvio que pode obscurecer um desenvolvimento mais fundamental: a "midiatização"10 10 . N.T.: em inglês, mediation. Preferimos traduzir por "midiatização" do que por "mediação", já que Foster expõe o sentido que dá à palavra adiante. geral da economia. Com esse termo, quero dizer mais do que "a cultura do marketing" e "o marketing da cultura"; eu quero dizer um reequipamento da economia feito em torno de digitalização e informática, em que o produto não é mais pensado como um objeto a ser produzido mas como um dado a ser manipulado - ou seja, a ser projetado e projetado de novo, consumido e consumido de novo. Essa "midiatização" também inflaciona o design, a ponto de ele não poder mais ser considerado uma indústria secundária. Talvez devêssemos falar de "economia política do design".

*

Algumas dessas especulações podem ser testadas no livro Life Style, de Bruce Mau, um compêndio de projetos do designer canadense que ganhou importância com a Zone Magazine and Books no final dos anos 198011 11 . N.T.: ‹ www.zonebooks.org› Hal Foster é um dos editores da Zone books. Bruce Mau é um dos designers. . Com uma série ilustre de publicações de filosofia e história clássicas e de vanguarda, essa editora também é conhecida pelo "Bruce Mau Design", já que as capas luxuriosas com imagens suntuosas em cores saturadas e páginas grossas com fontes inventivas em sequências cinematográficas muito influenciaram as publicações norte-americanas. Às vezes Mau parece projetar as publicações para serem escaneadas e, apesar dos frequentes desmentidos12 12 . N.T.: em inglês, denial. , em Life Style ele tende a tratar o livro mais como uma construção do design do que como um veículo intelectual13 13 . MAU, Bruce et al. Life Style. Londres: Phaidon Press, 2000. Salvo se indicado, todas as citações são dessa fonte. .

Life Style segue a gigantesca monografia sobre projetos arquitetônicos de Rem Koolhaas, S, M, L, XL (1995), que Mau ajudou a projetar (esses não são livros que servem para enfeitar mesas de centro, são mesas de centro em si). Com sua habitual perspicácia, Koolhaas escolheu esse título para sinalizar não somente as várias escalas do seu trabalho - da doméstica à urbana - mas também para sinalizar que arquitetos badalados são hoje como designers badalados - têm de ter linhas de mercadoria adequadas a todos os consumidores (ver Capítulo 4)14 14 . N.T.: o capítulo 4 do livro Design and Crime: and other diatribes intitula-se "Architecture and Empire". Nele, Foster trata dos projetos e textos de Koolhaas. . Life Style aspira ser o S, M, L, XL do design, pois também traz um imenso manifesto-a-mim-mesmo, a história de um estúdio de design através de uma apresentação extravagante de seus projetos, acrescida de pequenos credos, breves histórias e estudos laboratoriais sobre design, junto com várias anedotas sobre "Master Builders"15 15 . N.T.: "Master Builder" é o título do capítulo 3 de Design and Crime, em que Foster discute o trabalho de Frank Gehry. É também o título em inglês de uma peça de Henrik Ibsen, O Construtor, citada adiante. como Koolhaas, Frank Gehry e Philip Johnson. Aqui também o título é um jogo de palavras: podemos ouvir life style [estilo de vida] conforme entendido por Martha Stewart, mas somos incitados a pensar life style conforme concebido por Nietzsche ou Michel Foucault - como uma ética de vida, não como um guia de decoração. Mas o mundo apresentado em Life Style sugere outra coisa - a subordinação da "vida examinada" à "vida projetada". O livro abre com uma fotografia da comunidade planejada da Disney, "Celebration", legendada assim: "a questão de 'life style', de escolher como viver, encontra o regime do logotipo e suas imagens". Esse encontro está longe de ser uma luta entre iguais e, embora Mau se identifique com o lado fraco, sua atividade de designer é paga pelo outro lado.

Pois Life Style é uma história de sucesso: clientes cada vez maiores - primeiro instituições acadêmicas e de arte, depois empresas de entretenimento e outras - vêm a Mau em busca de design de imagem, ou seja, de brand equity. Bruce Mau Design, ele declara candidamente, "ficou conhecido por produzir identidade" e "canalizar atenção" para o valor do negócio [business value]. É justo, afinal são negócios, mas Mau deveria ter ficado por aí. "Nesse ambiente", ele continua, "a única maneira de construir valor real é adicionando valor: embrulhando o produto em inteligência e cultura. O produto aparente, o objeto da transação, não é de maneira alguma o produto real. Este passou a ser cultura e inteligência". E estas são vistas como design. A história também: contratado para projetar um museu privado de memorabilia da Coca-Cola, Mau conclui, "Será que a América fez a Coca-Cola? Ou a Coca-Cola fez a América?" A vida biológica é vista nesses mesmos termos. "Como é que um ente declara-se dentro de um ambiente?" Você adivinhou: design.

A reconstituição do espaço à imagem da mercadoria é uma narrativa primordial da modernidade capitalista conforme contada por Georg Simmel, Siegfried Kracauer, Benjamin, os Situacionistas e geógrafos radicais desde então (como David Harvey e Saskia Sassen). Hoje atingiu um ponto em que não só mercadoria e signo aparecem como a mesma coisa, mas frequentemente mercadoria e espaço também: em shoppings reais e virtuais, os dois estão fundidos pelo design. Nisto Bruce Mau Design é vanguarda. Sobre um "programa de identidade" para uma rede de livrarias de Toronto, Mau descreve um "ambiente de varejo (...) em que identidade da marca, sistemas de sinalização, interiores e arquitetura seriam totalmente integrados". E sobre seu trabalho de assessoria gráfica para a nova biblioteca pública de Seattle, projetada por Koolhaas, ele diz: "A proposição central envolve o apagamento das fronteiras entre arquitetura e informação, o real e o virtual". Essa integração, esse apagamento, é uma desterritorialização da imagem e do espaço que depende da digitalização da fotografia, de ela se desvencilhar dos velhos laços referenciais (talvez o desenvolvimento do Photoshop seja um dia visto como um grande acontecimento na história mundial); e da informatização da arquitetura, de ela se desvencilhar dos velhos princípios estruturais (hoje em arquitetura quase tudo pode ser projetado porque quase tudo pode ser construído: daí todas as curvas arbitrárias e bolhas biomórficas desenhadas por Gehry e seguidores). Como Deleuze e Guattari, sem falar de Marx, nos ensinaram há muito tempo, essa desterritorialização é o caminho do capital16 16 . Muitos jovens artistas e arquitetos "deleuzianos" parecem não entender esse ponto básico, pois tomam uma posição "capitalógica" como se fosse uma posição crítica. .

Mau desenvolve os velhos insights de Marshall McLuhan sobre mídia, mas, como seu compatriota, parece confuso sobre seu próprio papel - ele é crítico cultural, guru futurista ou consultor corporativo? Em futurologia midiática, um termo crítico hoje pode virar uma frase de efeito amanhã, e um clichê (ou uma marca) no dia seguinte. Numa jogada maliciosa, Koolhaas agora registra os direitos autorais de suas frases de efeito, como se quisesse reconhecer no papel essa fixação comercial dos conceitos críticos. Apesar de todo o jargão situacionista de designers contemporâneos como Mau, eles não détournam17 17 . N.T.: em inglês, détourn, neologismo construído a partir do termo francês détournement, conforme utilizado pelos Situacionistas. Em português, détournement pode ser traduzido por "desvio". muito; mais do que críticos do espetáculo, são seus surfistas (e essa é justamente uma das figuras favoritas de seu discurso), com "o status do artista [e] o salário do empresário". "Então, onde se encaixa meu trabalho?" pergunta Mau. "Qual a relação entre mim e esse monstro feliz e sorridente? Onde está a liberdade desse regime? Devo seguir Timothy Leary e 'me ligar, me entregar e cair fora?'18 18 . N.T.: em inglês, Tune in, turn on and drop out, slogan cunhado por Timothy Leary, escritor e psicólogo americano. Que ações posso praticar que não podem ser absorvidas? Posso superar o sistema? Posso ganhar?". Ele só pode estar brincando!

*

O design contemporâneo faz parte de uma grande vingança do capitalismo contra o pós-modernismo - recuperação de seus cruzamentos de artes e disciplinas, rotinização de suas transgressões. A autonomia, e até mesmo a semiautonomia, pode ser uma ilusão, ou melhor, uma ficção; mas, em certos períodos, é útil e até necessária, como foi para Loos, Kraus e companhia há cem anos. Em certos períodos também, essa ficção pode tornar-se repressiva e até aniquiladora, como foi há trinta anos quando o pós-modernismo começou a ser apresentado como uma saída para um modernismo petrificado. Mas essa situação não é mais a nossa. Talvez seja hora de reencontrarmos o sentido da situabilidade política tanto da autonomia, quanto da sua transgressão, o sentido da dialética histórica da disciplinaridade e da sua contestação - para tentar novamente "fornecer uma margem de manobra à cultura".

Frequentemente nos dizem, como em Life Style, que o design pode dar "estilo" ao nosso "caráter" - que pode indicar o caminho para essa semiautonomia, essa margem de manobra - mas ele também é claramente um agente primordial que nos faz cair de volta no sistema quase absoluto do consumismo contemporâneo. Design é só sobre desejo, mas este desejo parece estranhamente quase sem sujeito, ou pelo menos sem carência; ou seja, o design parece propor um novo tipo de narcisismo que é todo imagem e nenhuma interioridade - uma apoteose do sujeito que ao mesmo tempo é sua desaparição potencial. Pobre pequeno homem rico: ele está "excluído de qualquer vida e esforço, desenvolvimento e desejo futuros" no mundo do neo-Art Nouveau, de design total e plenitude da internet.

"A transfiguração da alma solitária parece ser sua meta", Benjamin certa vez observou a respeito do Estilo 1900. "Individualismo é sua teoria (...) [mas] o verdadeiro sentido do Art Nouveau não está expresso nessa ideologia (...) o Art Nouveau está resumido em O Construtor [de Henrik Ibsen] - a tentativa do indivíduo de batalhar contra a tecnologia baseado na sua interioridade leva à sua queda"19 19 . BENJAMIN, Walter. Op. cit., p. 154-155. Eu quero que este tropo de master builder ressoe no capítulo 3. . E Musil escreveu como se fosse para completar esse pensamento em relação ao Estilo 2000:

Um mundo de qualidades sem homens surgiu de experiências sem a pessoa que as experimenta, e quase parece que a experiência idealmente privada é algo do passado, e que o amigável fardo da responsabilidade individual vai dissolver-se num sistema de fórmulas de sentidos possíveis. Provavelmente a dissolução do ponto de vista antropocêntrico, que durante tanto tempo considerou o homem como o centro do universo, mas que há séculos está se apagando, finalmente chegou no "eu" propriamente dito

20 20 . MUSIL, Robert Musil. The Man Without Qualities. v. 1. Tradução de Sophie Wilkins. Nova Iorque: Vintage, 1995, p. 158-59.

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Hal Foster é crítico e historiador da arte e coeditor da revista October. Entre suas publicações, destacam-se The Anti-Aesthetic: Essays on Postmodern Culture (1983), The Return of the Real: The Avant-Garde at the End of the Century (1996), Design and Crime And Other Diatribes (2002), Art Since 1900: Modernism, Anti-Modernism, Postmodernism (2005, junto com Rosalind Krauss, Yve-Alain Bois e Benjamin Buchloh).

Tradução de Tina Montenegro

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  • 1. N.T.: LOOS, Adolf. Ornamento e crime. Lisboa: Edições Cotovia, 2004, p. 224.
  • 2. Idem. Ornament and Crime. In: Ulrich Conrads (ed.). Programs and Manifestoes on 20th-Century Architecture. Cambridge: MIT Press, 1970, p. 20.
  • 3. Idem. The Poor Little Rich Man. In: Spoken into the Void: Collected Essays 1897-1900. Tradução de Jane O. Newman and John H. Smith. Cambridge: MIT Press, 1982, p. 125.
  • 4. KRAUS, Karl. Die Frackel (Dez.1912, p. 37), reimpresso em Werke. v. 3. Munique: Kösel Verlag, 1952-1966, p. 341.
  • Ver SCHORSKE, Carl. From Public Scene to Private Space: Architecture as Culture Criticism. In: Thinking with History Princeton: Princeton University Press, 1998.
  • 5. BENJAMIN, Walter. Paris, Capital of the Nineteenth Century. In: Reflections. Tradução de Edmind Jephcott. Nova Iorque: Harcourt Brace Jovanovich, 1978, p. 155.
  • 7. BAUDRILLARD, Jean. For a Critique of the Political Economy of the Sign. Tradução de Charles Levin. St. Louis: Telos Press, 1981, p. 186.
  • 9. Ver AMIM, Ash (ed.). Post-Fordism: A Reader. Oxford: Blackwell, 1994.
  • 13. MAU, Bruce et al. Life Style. Londres: Phaidon Press, 2000.
  • 20. MUSIL, Robert Musil. The Man Without Qualities. v. 1. Tradução de Sophie Wilkins. Nova Iorque: Vintage, 1995, p. 158-59.
  • 1
    . N.T.: LOOS, Adolf. Ornamento e crime. Lisboa: Edições Cotovia, 2004, p. 224.
  • 2
    . Idem.
    Ornament and Crime. In: Ulrich Conrads (ed.). Programs and Manifestoes on 20
    th-Century Architecture. Cambridge: MIT Press, 1970, p. 20.
  • 3
    . Idem. The Poor Little Rich Man. In:
    Spoken into the Void: Collected Essays 1897-1900. Tradução de Jane O. Newman and John H. Smith. Cambridge: MIT Press, 1982, p. 125. Salvo se indicado, todas as citações são dessa fonte.
  • 4
    . KRAUS, Karl. Die Frackel (Dez.1912, p. 37), reimpresso em
    Werke. v. 3. Munique: Kösel Verlag, 1952-1966, p. 341. Ver SCHORSKE, Carl. From Public Scene to Private Space: Architecture as Culture Criticism. In:
    Thinking with History. Princeton: Princeton University Press, 1998.
  • 5
    . BENJAMIN, Walter. Paris, Capital of the Nineteenth Century. In: Reflections. Tradução de Edmind Jephcott. Nova Iorque: Harcourt Brace Jovanovich, 1978, p. 155.
  • 6
    . N.T.: neste texto,
    designed será traduzido por "projetado" já que "desenhado" tem outro significado para nós.
  • 7
    . BAUDRILLARD, Jean.
    For a Critique of the Political Economy of the Sign. Tradução de Charles Levin. St. Louis: Telos Press, 1981, p. 186.
  • 8
    . N.T.: em inglês,
    streamlined design.
  • 9
    . Ver AMIM, Ash (ed.).
    Post-Fordism: A Reader. Oxford: Blackwell, 1994.
  • 10
    . N.T.: em inglês,
    mediation. Preferimos traduzir por "midiatização" do que por "mediação", já que Foster expõe o sentido que dá à palavra adiante.
  • 11
    . N.T.: ‹
    www.zonebooks.org› Hal Foster é um dos editores da
    Zone books. Bruce Mau é um dos designers.
  • 12
    . N.T.: em inglês,
    denial.
  • 13
    . MAU, Bruce et al.
    Life Style. Londres: Phaidon Press, 2000. Salvo se indicado, todas as citações são dessa fonte.
  • 14
    . N.T.: o capítulo 4 do livro
    Design and Crime: and other diatribes intitula-se "Architecture and Empire". Nele, Foster trata dos projetos e textos de Koolhaas.
  • 15
    . N.T.: "Master Builder" é o título do capítulo 3 de
    Design and Crime, em que Foster discute o trabalho de Frank Gehry. É também o título em inglês de uma peça de Henrik Ibsen,
    O Construtor, citada adiante.
  • 16
    . Muitos jovens artistas e arquitetos "deleuzianos" parecem não entender esse ponto básico, pois tomam uma posição "capitalógica" como se fosse uma posição crítica.
  • 17
    . N.T.: em inglês,
    détourn, neologismo construído a partir do termo francês
    détournement, conforme utilizado pelos Situacionistas. Em português,
    détournement pode ser traduzido por "desvio".
  • 18
    . N.T.: em inglês,
    Tune in, turn on and drop out, slogan cunhado por Timothy Leary, escritor e psicólogo americano.
  • 19
    . BENJAMIN, Walter. Op. cit., p. 154-155. Eu quero que este tropo de
    master builder ressoe no capítulo 3.
  • 20
    . MUSIL, Robert Musil.
    The Man Without Qualities. v. 1. Tradução de Sophie Wilkins. Nova Iorque: Vintage, 1995, p. 158-59.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      18 Dez 2012
    • Data do Fascículo
      2011
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