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Contribuições da noção de pulsão invocante à clínica do autismo e da psicose*1 *1 Este artigo é baseado em dissertação de mestrado defendida em 2012 no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, sob o título Música e invocação: uma oficina terapêutica com crianças com transtornos de desenvolvimento.

Contributions of the notion of invocative drive to the clinic of autism and psychosis

Contributions de la notion de pulsion invocante à la clinique de l’autisme et de la psychose

Aportes de la noción de pulsión invocante a la práctica clínica del autismo y de la psicosis

Beiträge des Begriffs des Anrufungstriebs zur Klinik des Autismus und der Psychose

标题:念力的概念对临床治疗自闭症和精神病的贡献

Resumos

O trabalho investiga os efeitos de uma oficina de música em crianças com quadros de autismo e psicose. É feita uma revisão bibliográfica sobre os temas da voz, da musicalidade na relação da criança com o outro e da constituição subjetiva, em especial em torno da noção de pulsão invocante. Finalmente, a partir de registros e análise de dois excertos da oficina, é feita uma hipótese sobre como a atenção à dimensão da surpresa pode contribuir para a clínica do autismo e da psicose.

Voz; música; autismo; psicanálise


The paper examines the effects of a music workshop on autistic and psychotic children. A literature review is carried out around the topics of the voice, of musicality in the relationship established between children and others and on the establishment of subjectivity, especially around the notion of invocatory drive. Finally, through analysis of two cases from the workshop, a hypothesis is made about how the dimension of surprise may contribute to the treatment of autism and psychosis.

Voice; music; autism; psychoanalysis


L’article présent porte sur les effets d’un atelier de musique sur des enfants porteurs de symptômes d’autisme et de psychose. À cet effet, nous avons réalisé une révision bibliographique sur la voix, la musicalité présente dans le rapport de l’enfant avec l’autre et sur la constitution du sujet, notamment autour du concept de pulsion invocante. Finalement, à partir de l’analyse de deux cas vécus dans l’atelier, une hypothèse est formulée sur la façon comment l’attention à la dimension de la surprise peut contribuer à la clinique de l’autisme et de la psychose.

Voix; musique; autisme; psychanalyse


El trabajo investiga los efectos de un taller de música en niños con cuadros de autismo y psicosis. Se realiza una revisión bibliográfica sobre los temas de la voz, la musicalidad presente en la relación del niño con el otro y la constitución subjetiva, en especial, en lo relacionado a la pulsión invocante. Finalmente, a partir de registros y análisis de dos fragmentos del taller, se realiza una hipótesis sobre cómo la atención a la dimensión de la sorpresa puede ayudar en la práctica clínica del autismo y de la psicosis.

Voz; música; autismo; psicoanálisis


Der vorliegende Artikel untersucht die Wirkungen eines Musikworkshops auf autistische und psychotische Kinder. Dazu wurde eine bibliographische Recherche durchgeführt zu den Themen der Stimme, der Musikalität in der Beziehung des Kindes mit dem Anderen und der subjektiven Verfassung, im Besonderen zum Begriff des Anrufungstriebs. Abschliessend wurde anhand von Berichten und der Analyse zweier Auszüge des Workshops eine Hypothese darüber aufgestellt, wie die Einbeziehung der Dimension der Überraschung zur Klinik des Autismus und der Psychose beitragen kann.

Stimme; Musik; Autismus; Psychoanalyse


摘要:本文调查了音乐研讨会对患有自闭症和精神病儿童的影响。文献综述围绕的主题有声音,婴儿与外界建立的音乐联系,以及课程的设立-特别是围绕念力的概念。最后,通过来自音乐研讨会两个案例的分析,做出关于何种程度的惊吓有利于临床治疗自闭症和精神病的假设。

声音; 音乐; 自闭症; 精神病


O objetivo do presente trabalho foi o de investigar, a partir de uma discussão sobre a voz e sua relação com a pulsão na psicanálise, o modo como crianças com diagnóstico de autismo e quadros de psicose reagiam e se relacionavam com o som, a voz e a música no contexto de uma oficina de música

Diversas pesquisas constataram que há, na primeira infância, uma relação do bebê com o outro, cuidador, da qual é possível depreender certas qualidades musicais. Esses trabalhos mostram como o bebê, desde seu nascimento, demonstra uma preferência por se engajar num contato com o outro que tenha certas características melódicas, rítmicas e dialógicas. Tal engajamento forneceria ao bebê bases importantes sobre as quais se dará o desenvolvimento da linguagem e da fala. Malloch & Trevarthen (2002)Malloch, S., & Trevarthen, C. (2002). Musicality and music before three: Human vitality and invention shared with pride. Zero to Three, 23(1), 10-18. e Schlöger & Trevarthen (2007)Schögler, B., & Trevarthen, C. (2007). To sing and dance together – from infants to jazz, In S. Bråten (Ed.). On Being Moved: From Mirror Neurons to Empathy. Amsterdam/Philadelphia: John Benjamins Publishing Company., por exemplo, descrevem o estabelecimento por parte do bebê de uma protoconversação com seu cuidador muito antes da fala propriamente dita ser adquirida. A importância que a interação com o outro tem para o bebê nesse processo, é revelada por experimentos nos quais, por exemplo, pediu-se que mães ficassem durante um minuto na frente de seus bebês, em silêncio, com uma expressão impassível (Malloch, 1999)Malloch, S. (1999). Mothers and infants and communicative musicality. Musicae Scientiae, Special Issue, 1999-2000, 29-57.. Essa atitude produziu fortes protestos da parte do bebê. Noutro experimento, mãe e bebê interagiam um com o outro através de uma gravação da imagem e do som de cada um deles, a qual era transmitida ao outro, ao vivo, por um aparelho de televisão. A performance de cada um era gravada. Num segundo momento, colocava-se o bebê para interagir com a imagem e o som de sua mãe que haviam sido gravados. A dissincronia entre as ações da gravação e as suas próprias produzia sinais de protesto e de desligamento da atenção do bebê: “Um bebê procura não só sinais comunicativos encorajadores de sua mãe — estes sinais devem estar num tempo e entonação apropriados” (Malloch, 1999, pMalloch, S. (1999). Mothers and infants and communicative musicality. Musicae Scientiae, Special Issue, 1999-2000, 29-57., p. 31; tradução nossa).

Laznik (2004)Laznik, M. C. (2004). A voz da sereia. Salvador: Ágalma. desenvolveu a noção de “manhês” — a qual propôs inclusive que recebesse o nome de “parentês”, já que não importa se é a mãe ou qualquer outro cuidador que, nesse ponto, se dirige à criança. O manhês designa a maneira particular com que costumamos nos dirigir aos bebês, através de frases curtas e independentes, com utilização de palavras simplificadas do ponto de vista morfológico e, principalmente, com uma prosódia marcada por um tom de voz de registro mais agudo do que da fala comum, entonação exagerada e alongamento das vogais e curvas melódicas. Sobre o manhês, Catão (2009)Catão, I. (2009). O bebê nasce pela boca: voz, sujeito e clínica do autismo. São Paulo: Instituto Langage. afirma que ele “capta a atenção da criança, a motiva para o intercâmbio servindo como modelo verbal precoce que orienta o bebê na comunicação oral, além de facilitar a interpretação das emoções” (p. 165). Como se trata de uma comunicação muitas vezes desprovida de significado, o manhês confirma que a ênfase não está no que a mãe diz, mas na forma como o diz.

Uma primeira questão a ser levantada a partir dessas evidências é, portanto, em que medida esses elementos musicais presentes na relação mãe-bebê estão preservados em casos de distúrbios de desenvolvimento — como o autismo e quadros de psicose. Laznik, Maestro, Muratori e Parlato (2005)Laznik, M. C., Maestro, S., Muratori, F., & Parlato, E. (2005). Interações sonoras entre bebês que se tornaram autistas e seus pais. Colóquio franco-brasileiro sobre a clínica com bebês, Paris, França. Recuperado em 13 jan. 2012, de: <http://www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=MSC0000000072005000100004&lng=en&nrm=abn.
http://www.proceedings.scielo.br/scielo....
observaram em vídeos caseiros de bebês que viriam a ser diagnosticados com autismo, que mesmo crianças que desde cedo não respondiam à convocação dos pais ou cuidadores, eram capazes de responder a uma convocação que tivesse as características prosódicas do manhês. Lerner (2011)Lerner, R. (2011). Indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil – IRDI: verificação da capacidade discriminativa entre autismo, retardo mental e normalidade. (Tese de Livre-docência). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo. também não encontrou diferenças significativas entre a chance de um bebê com autismo e a de um bebê normal responderem ao manhês até 1 ano de idade.

Disso, segue-se como segunda pergunta: em casos como esses, a atenção à dimensão da musicalidade e mesmo uma intervenção pautada pela música poderia ter algum efeito na qualidade do laço que essas crianças estabelecem com o outro? Até que ponto a musicalidade e a voz têm aí um papel relevante? Em quadros como o autismo, em que medida as hipóteses etiológicas e terapêuticas se articulariam a uma proposta de intervenção apoiada na música? São perguntas como essas que nos levaram a uma exploração em torno da noção de pulsão invocante, cunhada pelo psicanalista Jacques Lacan, mas pouco desenvolvida por ele próprio, e do estatuto da voz para a teoria psicanalítica no que tange à constituição da subjetividade no infans.

Pulsão invocante e voz (ou daquilo da música que não concorre aos efeitos de significação)

Jacques-Alain Miller (1989)Miller, J.-A. (1989). Jacques Lacan et la voix. In La voix: actes du colloque d’Ivry. Paris: La lysimaque., em uma conferência intitulada “Jacques Lacan et la voix”, procura definir o estatuto do objeto voz na teoria lacaniana:

a voz como objeto a não pertence de modo algum ao registro sonoro [...]. Há aí um paradoxo, mas ele é relativo a isso que os objetos ditos a não se acordam ao sujeito do significante senão perdendo toda substancialidade, senão com a condição de serem centrados por um vazio que é aquele da castração. Enquanto eles são oral, anal, escópico, vocal, os objetos contornam um vazio, e é a esse título que eles encarnam diversamente, ou seja, que cada um desses objetos é sem dúvida especificado por uma certa matéria, mas ele é especificado por essa matéria enquanto ele a esvazia. (p. 3)

O autor baseia essa ideia principalmente em duas referências aos textos de Lacan. Uma é a elaboração feita no Seminário 11 (1964/1988), acerca da esquize do olhar, através da qual o autor estabelece que assim como há uma antinomia entre o olho e o olhar (antinomia entre a função da visão como órgão visual e a função do olhar, que inscreve o desejo do sujeito), poderíamos estabelecer uma antinomia análoga agora entre a orelha e a voz.

Já no grafo do desejo tal como trabalhado em “Subversão do sujeito...”, Lacan (1960/1998)Lacan, J. (1998). Subversão do sujeito e dialética do desejo no inconsciente freudiano. In Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Texto original publicado em 1960). estabelece um patamar do grafo no qual o vetor do significante é cruzado pelo vetor da significação em “A”, retroagindo sobre o primeiro vetor em s (A). A voz está localizada no grafo ao lado do Outro, como a saída do primeiro vetor, segundo Miller, como o que permanece como resto da operação de significação. Aquilo que o sujeito não pode assumir na sua fala, em um significado que foi enodado ao outro, permanece alheio a ele, do lado do Outro, como resto. É o que justifica que Miller diga que o estudo do olhar e da voz como objetos da pulsão foi motivado em Lacan pela evidência clínica da psicose: algo que resta inassimilável ao significante e que é foracluído no real e atribuído ao Outro, não pode ser assumido pelo sujeito.

Catão (2009)Catão, I. (2009). O bebê nasce pela boca: voz, sujeito e clínica do autismo. São Paulo: Instituto Langage. também parte da ideia de que a voz, enquanto objeto a, é objeto vazio, e que só pode ser contornado pela pulsão por esta sua condição de resto, de objeto que não produz imagem no espelho. Porém acrescenta que a faceta da voz materna enquanto musicalidade tem função na constituição do sujeito na forma da prosódia: “a voz não se confunde com o som, mas não o dispensa” (Catão, 2011Catão, I. (2011). (no prelo) Do real do barulho ao real da voz: a música do inconsciente e seus impasses. Insistance, França., p. 6). A autora responde à problemática trazida por Miller dividindo o valor que a voz tem para o bebê em dois momentos: num primeiro — que corresponde à operação de alienação — a voz tem valor como prosódia e musicalidade; num segundo momento, inaugurado pela operação de separação, a voz se constitui como objeto a da pulsão. Para que isso ocorra, “o infans deve poder ensurdecer para a dimensão sonora da voz como modo de aceder ao inaudito, isto é, à voz propriamente dita ou ao enigma da voz: ‘Che vuoi?’, ‘que queres?’. É o momento da separação” (p. 9).

Ou seja, para que o bebê constitua uma voz própria e o desejo fundador do inconsciente, é preciso que essa sincronia com o outro materno seja quebrada, produzindo um resto que permanece inassimilável e se apresenta como enigma do desejo do Outro. A ideia é a de que a passagem de um momento ao outro é possível pela constituição de um ponto surdo na voz materna (Vivès, 2009Vivès, J.-P. (2009, junho). Para introduzir a questão da pulsão invocante. Rev. Latinoam. Psicopat. Fund., São Paulo, 12(2), 329-341.), furo que permitirá que juntamente com essa voz materna seja transmitido um enigma em relação ao desejo que ela expressa. O sujeito, no entanto, para o qual não se estruturou esse ponto surdo, será invadido pela voz do Outro, não podendo fazê-la calar — como nas alucinações auditivas típicas da psicose.

Pulsão invocante e escansão (ou daquilo da música que concorre aos efeitos de significação)

Didier-Weill (1998)Didier-Weill, A. (1998). Lacan e a clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Contracapa. propôs que a operação da constituição subjetiva e da entrada do ser na linguagem se dá por meio de dois pactos entre o sujeito nascente e a estrutura simbólica, distribuídos cada qual em dois tempos lógicos distintos. O primeiro pacto constitui uma afirmação inicial do significante, por meio de uma marca — o traço unário — que cria uma distinção entre a presença e a ausência, afirmando sua presença: “há” significante. O segundo pacto viria quando, após o trauma do confronto com a ausência do significante (“não há”), o sujeito, por meio do recalque originário, faz uma aliança da presença na ausência, de forma metafórica. A música presente na voz da mãe faz um chamamento irresistível, uma pressão de aceitação, por parte da criança, desse significante, deixando esse traço onde, posteriormente, a palavra poderá germinar (Didier-Weill, 1997Didier-Weill, A. (1997). Os três tempos da lei: o mandamento siderante, a injunção do supereu e a invocação musical. Rio de Janeiro: Jorge Zahar.). Didier-Weill (1998)Didier-Weill, A. (1998). Lacan e a clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Contracapa. chega a denominar esse passo de foraclusão primordial do tempo musical.

Vorcaro (2002)Vorcaro, A. (2002). Linguagem maternante e linguagem materna: sobre o funcionamento lingüístico que precede a fala. In L. M. F. Bernardino, & C. M. Rohenkohl. O bebê e a modernidade: abordagens teórico-clínicas. São Paulo: Casa do Psicólogo., dirigindo seu olhar aos jogos de bebês, nota como fundamental nos jogos de esconde-aparece, assim como no de cantigas de embalar bebês, a dimensão da surpresa: “Em seu engajamento, experimenta a tensão da antecipação que a alternância do andamento lhes permite supor; passa a esperar a surpresa [...]. Afinal, a criança não sabe quando virá, mas sabe que virá” (p. 68). Essa temporalidade fornecida pelo Outro foi denominada de andamento, e refere-se ao tempo do outro que confronta os ritmos corporais do bebê, criando aí uma defasagem, um saldo de escansões temporais entre a necessidade e a satisfação, produzindo uma espera que, por fim, passará a ser antecipada pela criança. A espera da surpresa, portanto, confere um acréscimo de gozo ao jogo.1 1 Vorcaro (2002) também faz referência nesse contexto ao jogo do Fort-Da!, em que o neto de Freud jogava um carretel preso por uma linha para fora do berço e depois o puxava de volta. Nesse jogo, a criança podia operar uma alternância, experimentando “diferentes posições sintáticas da linguagem, que lhe permitiriam, assim, apreender as redes de sua língua materna” (p. 69).

Segundo Vorcaro (2002)Vorcaro, A. (2002). Linguagem maternante e linguagem materna: sobre o funcionamento lingüístico que precede a fala. In L. M. F. Bernardino, & C. M. Rohenkohl. O bebê e a modernidade: abordagens teórico-clínicas. São Paulo: Casa do Psicólogo., tal como a língua, a música também é composta de elementos discretos e tem uma significância. “Apesar dessa significância não estar organizada por um interdito, algo rege a sucessão que organiza a música. O que a rege é uma certa relação matematicamente estruturada de seus elementos discretos entre si” (p. 79). E que também a música inerente à fala, seria regida por essa relação matemática fixa, “que não chega a ter voz, mas que veicula um apelo, pela entonação (p. 80).2 2 Aulagnier (1978) também já havia feito uma divisão em três etapas do percurso do infans desde a percepção de uma sonoridade até a apropriação do campo semântico: a do prazer de ouvir, do desejo de escutar e da exigência de significação. Em sua teorização também, a entrada do Outro como presença não produz significação, mas já é entendida libidinalmente como desejo de prazer ou intenção persecutória. Isto é, essa oposição abre caminho para a etapa seguinte, onde o sentido passa a ser exigido.

Não seria a sucessão diacrônica que o e o não há nos faz ouvir pelo ritmo da música? Quando ouvimos música, seu ritmo nos diz alternadamente e não há. Há é o instante em que soa o som; não há, o intervalo vazio entre dois sons. Mas no momento do não há existe como que uma promessa: o som retornará”. (Didier-Weill, 1998Didier-Weill, A. (1998). Lacan e a clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Contracapa., p. 19)

A alternância de dois elementos na música (som e pausa, silêncio) seria, nesse sentido, capaz de produzir uma promessa de retorno tal qual a promessa de sentido do chiste.

Para Vorcaro (2002)Vorcaro, A. (2002). Linguagem maternante e linguagem materna: sobre o funcionamento lingüístico que precede a fala. In L. M. F. Bernardino, & C. M. Rohenkohl. O bebê e a modernidade: abordagens teórico-clínicas. São Paulo: Casa do Psicólogo., por meio dessa relação temporal, os cuidados maternantes que incidem no corpo do bebê articulam uma primeira matriz simbolizante, prévia à matriz propriamente simbólica, matriz esta

estruturada num cálculo temporal que imprime escansões no organismo, estabelecendo uma regularidade Outra que segmenta seu fluxo vital coagulando-o, definindo esperas, urgências, sobressaltos e síncopes que discretizam e organizam elementos de uma forma singular que engaja um gozo acéfalo e define uma superfície corporal. Desse lugar, antes que advenha um sujeito por efeito de um interdito que o coloca na ordem significante da língua e lhe oferece o abrigo de uma significância, um leito organiza-a, preparando segmentos em seguimentos. (p. 80)

O valor clínico da surpresa

A divisão que acabamos de fazer de duas faces da música baseia-se em uma hipótese de leitura desses autores. Se entendermos que a música pode desempenhar função similar a que a voz tem para Vivès, o som em seu aspecto de continuidade temporal é capaz de colocar o sujeito também em continuidade com o outro. Apesar de fundamental, trata-se de uma operação a qual, nesse sentido, não é suficiente para a simbolização. Do outro lado, poderíamos compreender que a escansão promovida pelo ritmo musical antecipa, em uma matriz simbolizante, certos elementos da estrutura simbólica e da escansão seguinte, a do significante siderante. Trata-se de uma divisão principalmente com fim a organizar a leitura, pois apesar de não se tratarem de ideias necessariamente inconciliáveis para cada um dos autores citados, por vezes torna menos evidente a formulação de uma questão, para nós fundamental: afinal, que papel a música desempenha ou poderia desempenhar no tratamento de crianças com distúrbios de desenvolvimento, como o autismo e a psicose? Ela favoreceria o circuito da pulsão invocante? Ou teria, inversamente, o efeito de reforçar uma relação da criança com o sonoro que apenas a afastaria mais da palavra?

No contexto dessas perguntas é que foi desenvolvida a oficina de música no Lugar de Vida. Esta é uma associação que funciona desde 1991, e inspirado em larga medida na experiência de Maud Manonni em Bonneuil (Kupfer, 2000Kupfer, M. C. (2000). Educação para o futuro: psicanálise e educação. São Paulo: Escuta.). Ali, o trabalho em ateliês tem um importante papel, à medida que procura tirar a ênfase da “interpretação da loucura” através da socialização de um discurso (Kupfer, 2000Kupfer, M. C. (2000). Educação para o futuro: psicanálise e educação. São Paulo: Escuta.). Esse projeto da oficina de música registrado por nós aconteceu em formatos que foram tendo algumas variações entre 2007 e 2010: inseria-se dentro do Grupo da Tarde e convivia com outras propostas terapêuticas.3 3 Em especial, a oficina surgiu dentro de uma proposta chamada de Grupo Portas Abertas (cf. Kupfer, Faria & Keiko, 2007) e, na sequência, também inseriu-se no contexto do Grupo Mix (cf. Pinto, 2009). Recebeu nesse período de 4 a 15 crianças entre 6 e 10 anos de idade e com uma heterogeneidade de quadros clínicos. Não obstante, teve durante toda sua duração algumas crianças com dificuldades severas no campo da fala, da linguagem e do laço com o outro.

Para continuar nossa discussão, apresentaremos dois excertos de casos trabalhados na oficina.

Heraldo

Heraldo 4 4 Os nomes das crianças são fictícios para manter a confidencialidade de suas identidades. era uma criança de 6 anos de idade. Apresentava um brincar estereotipado, ficando grande parte do tempo manipulando terra, água e folhas no jardim, ou fios e lápis, quando dentro da sala. Por vezes aparentava sentir perturbações no corpo e angústia, talvez por um extravasamento de libido ou confusão dos limites corporais com objetos exteriores. Apesar de não falar, vocalizava bastante, fazendo com a boca sons agudos, ora mais ríspidos, outras vezes mais relaxados. Era difícil atribuir sentido a seus estados de humor: não se sabia por que em certo dia estava mais contente, agitado, angustiado ou chorando.

Heraldo se mantinha geralmente alheio ao grupo, buscando muito ir para o quintal, onde, sempre que conseguia, abria uma torneira e ficava observando a água e molhando a mão, quando ninguém estava olhando. A água tinha um poderoso efeito de atração sobre ele e, frequentemente, conduzia à desorganização mental. Um dia, ele conseguira deixar a torneira aberta por tempo suficiente para que formasse uma grande poça no chão. Foi encontrado deitado em meio à poça, visivelmente angustiado.

Certo dia, chegou ao grupo muito agitado, chorando — a ponto de aventarmos a hipótese de que ele sentia alguma dor. Haviam-lhe sido dados, para distraí-lo, alguns pedaços de giz de lousa, que ele manipulava de forma estereotipada. Aproximo-me de Heraldo, pego alguns pedaços de giz e começo a bater uns nos outros, como pequenas clavas, e demonstro interesse por aquele som. Exploro as possibilidades, faço alguns sons com a boca e pequenas melodias. Heraldo acha graça e ri. Prossigo, agora fazendo um chocalho com os gizes entre as mãos, agitando-as num movimento ritmado enquanto cantarolo uma melodia. Heraldo começa ele próprio a emitir sons em alturas diferentes e começa a bater a palma da mão num banco, a toques secos. Começo agora a colocar algumas palavras na melodia, usando o nome de Heraldo, referindo-me às atividades que eles estavam fazendo àquela tarde. Heraldo sobe, então, nas minhas costas, apoiando-se. Os dois ficam balançando num pêndulo ritmado, enquanto o oficineiro canta: “Heraldo pra cá, Heraldo pra lá; Heraldo não sabe pra onde vai dá”. Depois de alguns segundos, ele desce e vai para o seu canto. Uma adulta que observava a cena me disse: “Foi só você reagir, desviando sua atenção para ele, que pronto: ele escapuliu”. De fato, quando tento retomar alguma atividade com ele, ele se recusa. Fica andando entre a torneira e um vaso com terra, fazendo lama da mistura deles.

Egberto

Egberto também tinha seis anos quando participou da oficina, período este que durou um ano. Suas brincadeiras não envolviam histórias nem desdobramentos, mas repetiam-se de maneira idêntica todos os dias. Tinha aparência frágil; o andar era inseguro, descoordenado; os gestos, típicos de crianças ainda menores. Sua fala era bastante pobre, recorria apenas a algumas poucas palavras, cujo significado, com o tempo, podia ser inferido — dizia “Pi” quando queria tocar piano ou “o-tá” para falar “tocar”, ou “tchau!” na hora de se separar de uma pessoa ou objeto. Tinha pouca tolerância à frustração, e se o outro não fazia o que ele queria (ou não entendia o que ele pedia), começava a gritar, chorar e batia na pessoa ou em si mesmo. Fosse em um ou outro, acompanhava o tapa com a exclamação: “Bateu!”.

Desde o início, Egberto sempre demonstrou uma vontade incontrolável de ficar tocando o piano do salão durante toda a duração do grupo. Mesmo quando era possível entretê-lo em outra atividade, bastava que o interesse por ela, ou a convocação vinda do outro, se enfraquecessem um pouco para que ele fosse novamente procurar o piano. A hora da separação do instrumento, também só poderia dar-se seguindo um ritual, que incluía “dar tchau” para o piano, acenando-lhe e mandando-lhe beijos.

Um jogo interessante se estabeleceu com ele, depois de dois meses de trabalho. Fizemos, três adultos junto com ele, um conjunto de livre improvisação, cada qual tocando um instrumento, cuja única regra a ser respeitada era a de que todos deveriam começar e terminar a música juntos. Como apoio para a tarefa, utilizou-se um signo que lhe era familiar, e ao qual ele próprio recorria no início de qualquer atividade: a contagem “um, dois, três e... já!”. O final da música era sempre marcado por uma pausa ou hesitação que precedia um gran finale, quando tocávamos todos da forma frenética, como ele gostava, e precisávamos então nos entreolhar para fazermos juntos um último toque forte que coroava o fim da música. Aplaudíamos ao final de cada performance. Mas Egberto nem sempre queria realizar todo esse processo em conjunto: ora antecipava logo o fim da música, intenso e performático, sua parte preferida, ora não parava de tocar entre um improviso e outro, não se contendo na espera para começar uma nova música. Disso foi feito um jogo, no qual exagerávamos a duração da contagem, tornando-a bem pausada; ameaçávamos tocar, mas segurávamos o gesto no último momento. Finalmente, fazíamos o “já!” de repente, num susto. Se Egberto começava a tocar antes, reagíamos tomando sua ação como brincadeira, dizendo-lhe “Ah! Você enganou a gente, Egberto?!”. E ele ria.

Certo dia, em uma festa de aniversário do grupo, observou-se sua reação quando outra criança pisou num balão de festa, estourando-o. Inicialmente, Egberto tomou um grande susto e não gostou, mas depois me pediu que repetisse aquele jogo. Conforme eu ia apertando lentamente o pé sobre o balão espremido no chão, Egberto levava as mãos ao ouvido, enquanto exibia no rosto uma expressão mista de prazer e angústia. Logo vinha o susto, seguido da risada. Mas Egberto, ele próprio, não tinha coragem de estourar um balão, pedindo sempre que o outro o fizesse.

O recorte desses casos da oficina de música leva-nos a pensar que o efeito que a convocação pela via da musicalidade produz na criança, dependendo do recurso que esta dispõe para responder a ela, pode fornecer uma indicação relevante a respeito da posição daquele sujeito na linguagem (Lima, 2012Lima, T. M. T. (2012). Música e invocação: uma oficina terapêutica com crianças com transtornos de desenvolvimento. (Dissertação de Mestrado), Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.). Mais especificamente, poderíamos pensar qual é a possibilidade de a criança ser afetada pela escansão do tempo do outro, criando um ritmo que, dependendo do caso, poderá ou não surpreendê-lo. A pergunta seguinte é se dessa surpresa, defasagem temporal que adia ou antecipa a presença do outro, a falta com que a criança se depara seria mobilizadora do circuito pulsional e da emersão de uma significação que o enlaça com o Outro.

De fato, notou-se na pesquisa que mesmo em casos com grave comprometimento no laço social, como o de Heraldo, a musicalidade era capaz de promover ou facilitar uma conexão, ainda que efêmera. Tal conexão, porém, nem sempre conduzia ao estabelecimento de um jogo no qual a surpresa desempenhasse um papel (Lima, 2012Lima, T. M. T. (2012). Música e invocação: uma oficina terapêutica com crianças com transtornos de desenvolvimento. (Dissertação de Mestrado), Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo.). Pelo contrário: percebeu-se que, em alguns casos, a tentativa de criar uma defasagem surpreendente na música justamente era o que desencadeava um retorno ao isolamento por parte da criança. No “balanço” com Heraldo, a mínima variação ou, talvez, transmissão a ele de algum tipo de demanda foi o suficiente para romper a dinâmica. Em outros casos, como o de Egberto, a dimensão da surpresa era fundamental no jogo musical que se estabelecia. Porém, passavam, por sua vez, a ser objeto de uma repetição infindável. Ou seja, não pareciam mobilizar na oposição dos termos presentes uma estrutura metafórica. Expliquemos melhor esta ideia.

Se retomarmos a noção de andamento cunhada por Vorcaro, a autora faz uma articulação dessa noção com a de linguagem maternante e lança uma hipótese acerca do papel da temporalidade imprimida pelo Outro na entrada do infans na linguagem:

Em seus efeitos sobre o organismo, a linguagem maternante fundaria uma matriz simbolizante, entendida como funcionamento significante mínimo implantado pelo organismo, fazendo o leito para o posterior funcionamento da língua por meio da relação temporal que pode ser chamada de embalar andante. Tal temporalidade é organizada, determinada e comemorada por meio da motricidade e da articulação fonemática.

Entretanto, o que essa hipótese visa ressaltar é a possibilidade de esse registro temporal, com função de escansão na cartografia corporal operada pelo cuidador da criança, ser eixo estruturante do campo simbólico. (p. 71)

Qualquer elemento simbólico se define pelas relações de vizinhança que estabelece com outros elementos. Lacan se aproveita dessa definição de Saussure para edificar sua teoria do significante e da estrutura simbólica (Vorcaro, 2002Vorcaro, A. (2002). Linguagem maternante e linguagem materna: sobre o funcionamento lingüístico que precede a fala. In L. M. F. Bernardino, & C. M. Rohenkohl. O bebê e a modernidade: abordagens teórico-clínicas. São Paulo: Casa do Psicólogo.). Vorcaro, por sua vez, alinha-se a essa concepção para desenvolver a noção de uma matriz simbólica, em que “o jogo operatório do significante age de maneira pré-subjetiva” (p. 71), antes que a esses significantes a criança associe uma significação. Lacan (1964/1988)Lacan, J. (1988). O seminário. Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. (Texto original publicado em 1964). já afirmara que a natureza fornece significantes, dispostos em oposição, de modo que se pode “depreender que é com a materialidade oferecida por sua própria condição biológica que o organismo sofre os efeitos da sua desnaturalização a partir do momento em que a ordem simbólica passa a regular a sua economia” (Vorcaro, 2002Vorcaro, A. (2002). Linguagem maternante e linguagem materna: sobre o funcionamento lingüístico que precede a fala. In L. M. F. Bernardino, & C. M. Rohenkohl. O bebê e a modernidade: abordagens teórico-clínicas. São Paulo: Casa do Psicólogo., p. 72).

A retomada dessas teorizações, aqui, pode nos auxiliar a estabelecer algumas distinções, para pensarmos tanto se a formação dessa oposição significante, em si, é suficiente ou não para a constituição subjetiva, como também como podemos identificar tais diferenças em termos psicopatológicos. Vimos que Egberto, diferentemente de Heraldo, tinha uma relação com a musicalidade em que as variações na interação com ele eram capazes de produzir uma surpresa que o satisfazia. Porém, se a defasagem no tempo da intervenção do outro é capaz de produzir, nos casos de neurose, uma associação a outro significante que represente essa falta radical, Egberto não chegou a fazer essa representação simbólica da falta. As construções significantes para lidar com a falta, no seu caso, eram modificadas lentamente e não pareciam dar um salto no sentido que elas tinham para ele. Exemplo disso é a contagem que ele fazia (“1, 2, 3 e já”) antes de qualquer atividade que lhe gerasse insegurança. O mesmo “1, 2, 3” que, curiosamente, lhe servia para pedir ou iniciar a música dos indiozinhos. Essa contagem não progredia nem podia ser substituída por outro significante, permanecendo como uma construção estática que ele usava para lidar com a falta e suas frustrações. Neste sentido é que dizemos que, em seu caso, a linguagem não assumia uma estrutura metafórica.

Alguns autores da psicanálise, de fato, definem as diferenças entre autis- mo, psicose e neurose, em termos que poderiam se articular com a compreen-são desses dois casos.

Catão (2009)Catão, I. (2009). O bebê nasce pela boca: voz, sujeito e clínica do autismo. São Paulo: Instituto Langage. faz a seguinte afirmação na conclusão de sua obra:

Concluímos que do som à música há um passo, assim como da música à voz há outro. Este seria um outro modo de abordar as operações constitutivas do sujeito: alienação e separação. Por outro lado, a voz resulta de uma operação de alienação que, como demonstram os casos de autismo, pode não se completar. Por essa razão, de acordo com muitos psicanalistas, o autismo decorre, em termos metapsicológicos, de uma falha na operação de alienação. (p. 225)

Isso leva a autora a compreender três destinos para a voz no processo de constituição subjetiva. A voz se constitui como enigma se há constituição do par significante que produz um ponto de basta ou de estofo (point de capiton). Nesse caso, estaríamos na neurose. Na psicose, “a voz se rompe, provocando como efeito a indistinção entre corpo (representante do lugar) e discurso (representante do saber)” (p. 206; grifo nosso). Nesse caso, o significante não retroage sobre a cadeia produzindo diacronicamente uma significação. O sujeito fica preso à voz do Outro, impossibilitado de atingir a dimensão do inaudito, responsável pela distinção radical entre simbólico e real (Didier-Weill, 1998Didier-Weill, A. (1998). Lacan e a clínica psicanalítica. Rio de Janeiro: Contracapa.). Por fim, no autismo, a voz não chegaria a se constituir, permanecendo como barulho.5 5 “A criança autista ouve, mas não escuta. Ela ouve ruídos no real. Um evitamento seletivo da voz, seja ele defensivo ou primário, faz com que a voz permaneça como massa sonora, ruído. A criança tapa os ouvidos ao barulho. No autismo, a voz não se constitui como enigma. Disso decorre a proposta de nomeá-la: voz inconstituída” (Catão, 2009, p, p. 225).

O posicionamento frente à questão da etiologia do autismo (ou ao que desse tema resiste à nossa compreensão) exige, por vezes, a revisão do valor de certo conceito dentro de determinado construto teórico. Assim, vimos que, para Miller (1989)Miller, J.-A. (1989). Jacques Lacan et la voix. In La voix: actes du colloque d’Ivry. Paris: La lysimaque., a voz como objeto a — portanto, aquela que impulsionaria a pulsão invocante — não guardaria relação alguma com o registro do sonoro, ocupando este, na teoria, exclusivamente o lugar de resto sintomático de uma não separação com o Outro na psicose. As descobertas em torno, primeiro, da sensibilidade precoce do bebê ao campo do sonoro e, segundo, da importância do manhês e da participação ativa do bebê no jogo que daí se desenvolve com o outro cuidador, pode ter mobilizado alguns autores a pensar na importância da interação mãe-bebê antes que o plano do sentido desempenhe seu papel.

Nesse sentido, a sugestão de Catão (2009)Catão, I. (2009). O bebê nasce pela boca: voz, sujeito e clínica do autismo. São Paulo: Instituto Langage. de tratarmos a voz concei-tualmente enquanto materialidade incorpórea é interessante. “Material” porque não é falta absoluta, contendo também a dimensão prosódica. Sobre esse aspecto, pode-se pensar inclusive na ação da prosódia materna mesmo na ausência de som, à medida que “entonação e acento, como dimensões da prosódia, podem se fazer presentes na ausência do som” (pp. 135-136). Ainda assim, quando o som pode agir sobre a criança, deixa suas marcas: “O ritmo da melopéia materna escande o real do som, estabelecendo os primórdios de uma alternância que dará início ao funcionamento significante do futuro ser falante” (p. 136). Além disso, a voz também é “incorpórea”, à medida que “o essencial na voz do Outro materno é o que assinala sua incompletude, isto é, o que a mãe não diz” (p. 136).

De modo que essa definição da voz parece dar conta teoricamente da dupla face da música que recortamos: uma dimensão sonora que nos remete à sincronia do ser (e que está presente na captura do sujeito pela voz do Outro na psicose) e uma dimensão da escansão que coloca o sujeito na diacronia da linguagem.

Assim, a pulsão invocante, como conceito dentro do arcabouço da teoria lacaniana, talvez se sustente à medida que fundado no paradoxo através do qual a negatividade contém o germe da presença. Quer dizer, isso quando a dimensão da metáfora pode se fazer presente! Nos casos em que isto não é possível, talvez a referência a essas duas faces da música possa auxiliar na compreensão desses casos e, quem sabe, na orientação da intervenção.

Agradecimentos

Agradecemos especialmente a toda a equipe do Lugar de Vida, juntamente com alunos e professores da USP associados à instituição, que contribuíram imensamente para a realização da oficina e reflexão constante sobre as questões que ela produzia.

Referências

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  • 1
    Vorcaro (2002)Vorcaro, A. (2002). Linguagem maternante e linguagem materna: sobre o funcionamento lingüístico que precede a fala. In L. M. F. Bernardino, & C. M. Rohenkohl. O bebê e a modernidade: abordagens teórico-clínicas. São Paulo: Casa do Psicólogo. também faz referência nesse contexto ao jogo do Fort-Da!, em que o neto de Freud jogava um carretel preso por uma linha para fora do berço e depois o puxava de volta. Nesse jogo, a criança podia operar uma alternância, experimentando “diferentes posições sintáticas da linguagem, que lhe permitiriam, assim, apreender as redes de sua língua materna” (p. 69).
  • 2
    Aulagnier (1978)Aulagnier, P. (1978). A violência da interpretação. Rio de Janeiro: Imago. também já havia feito uma divisão em três etapas do percurso do infans desde a percepção de uma sonoridade até a apropriação do campo semântico: a do prazer de ouvir, do desejo de escutar e da exigência de significação. Em sua teorização também, a entrada do Outro como presença não produz significação, mas já é entendida libidinalmente como desejo de prazer ou intenção persecutória. Isto é, essa oposição abre caminho para a etapa seguinte, onde o sentido passa a ser exigido.
  • 3
    Em especial, a oficina surgiu dentro de uma proposta chamada de Grupo Portas Abertas (cf. Kupfer, Faria & Keiko, 2007Kupfer, M. C. M., Faria, C., & Keiko, C. (2007). O tratamento institucional do Outro na psicose infantil e no autismo. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 59(2), 156--166.) e, na sequência, também inseriu-se no contexto do Grupo Mix (cf. Pinto, 2009)Pinto, F. S. C. N. (2009). Grupo Mix: um campo de linguagem para a circulação da heterogeneidade. (Dissertação de Mestrado). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo..
  • 4
    Os nomes das crianças são fictícios para manter a confidencialidade de suas identidades.
  • 5
    “A criança autista ouve, mas não escuta. Ela ouve ruídos no real. Um evitamento seletivo da voz, seja ele defensivo ou primário, faz com que a voz permaneça como massa sonora, ruído. A criança tapa os ouvidos ao barulho. No autismo, a voz não se constitui como enigma. Disso decorre a proposta de nomeá-la: voz inconstituída” (Catão, 2009, pCatão, I. (2009). O bebê nasce pela boca: voz, sujeito e clínica do autismo. São Paulo: Instituto Langage., p. 225).
  • Financiamento/Funding: Pesquisa financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq/ The research was funded by the Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq.

Editado por

Editores do artigo/Editors: Profa. Dra. Ana Maria Rudge e Profa. Dra. Sonia Leite.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2016

Histórico

  • Recebido
    8 Mar 2016
  • Aceito
    10 Maio 2016
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