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Penicilinoterapia intra-raquídia: Reações imediatas e tardias

SIMPÓSIO - PENICILINOTERAPIA NA NEUROSSÍFILIS

Penicilinoterapia intra-raquídia. Reações imediatas e tardias

J. M. Taques Bittencourt; J. A. Caetano da Silva Jr. e Horacio Martins Canelas

Assistentes de Neurologia na Fac. Med. Univ. São Paulo

Os autores americanos têm assinalado, constantemente, a existência de reações, por vezes graves, no decurso da penicilinoterapia intra-raquídia da neurolues. Stokes e col.1 1 . Stokes, J. H., Sternberg, T. H., Schwartz, W. H., Mahoney, J. F., Moore, J. E. e Wood. W. B. - The action of penicillin in late syphilis. J. A. M. A., 126: 73 (9 setembro) 1944. , em trabalho fundamental, observaram, em 24% de 182 casos, reação de Herxheimer ou choque terapêutico, sendo representado por hipertermia, em 13%; Goldman2 2 . Goldman, D. - Penicillin for neurosyphilis. J. A. M. A., 128: 274 (26 maio) 1945. notou febre em 55% dos casos, mas em todos a temperatura voltou à normalidade antes de terminado o tratamento; este autor atribui a hipertermia ao choque terapêutico, e não à ação da penicilina. Neymann e col.3 3 . Neymann, C. A., Heilbrunn, G. e Youmans. G. P. - Treatment of dementia paralytica with penicillin. J. A. M. A., 128: 433 (9 junho) 1945. verificaram aparecimento de cefaléia após diversas injeções diárias. Em um paciente em que fôra administrada a dose de 100.000 U.Ox. por via suboccipital, Neymann observou, três horas depois, um estado de tensão nervosa, ao qual se seguiram tremores generalizados e, finalmente, convulsões contínuas com cianose; estes fenômenos foram combatidos pelo uso de sedativos, drenagem espinhal e oxigenioterapia; entretanto, assinala o autor que tais reações podem ser observadas também quando se empregam doses de 50.000 ou 40.000 U.Ox. Este mesmo tipo de reação foi encontrado por Stokes em um caso. Tais tremores e convulsões se assemelham aos observados experimentalmente em gatos por Johnson e col.4 4 . Johnson, H. C, Walker, E. e Case, T. J. - Effects of penicillin on the central nervous system. Lido perante a Chicago Neurological Society em 4 novembro 1944. Ref. por Neymann 3. . Neymann registra como efeitos crônicos da droga, sintomas de irritação meníngea, com rigidez de nuca e sinais de Kernig e Brudzinski; estes sinais surgiam, seja após as convulsões, seja após tratamento muito prolongado. Stokes refere, ainda, as seguintes reações à penicilinoterapia: exacerbação de dores fulgurantes, mania, alucinações, fenômenos alérgicos, graves reações gastrointestinais e sinais de mielite transversa. Só no trabalho de Neymann encontramos referência ao aparecimento de estados comatosos em consequência do tratamento penicilínico; este autor assinala que dois doentes entraram em coma e faleceram dez dias após a última injeção intracisternal, tendo sido diagnosticado encefalopatia penicilínica crônica; infelizmente, não é feita referência a exame anátomo-patológico destes casos.

Fizemos o tratamento pela penicilina em 17 luéticos, sendo 11 paralíticos gerais, 2 tabéticos, 2 casos de neurite óptica, 1 de meningorradiculite luética e 1 de osteíte luética. Utilizamos a via suboccipital em 14 casos, e a via lombar em 3, de acordo com a localização do processo neurossifilítico. Foram feitas injeções intratecais diárias, iniciando-se o tratamento pela dose de 20.000 U.Ox. e aumentando, segundo as reações do paciente, 10.000 U.Ox. por vez, até ser atingida a dose de 100.000 U.Ox. A dose total intra-raqueana variou entre 250.000 e 700.000. Foram feitas de 8 a 11 administrações intratecais. geralmente. As injeções obedeceram à seguinte técnica: retirada de 15 a 20 cc. de líquor, para exame; aspiração de liquor na seringa contendo a penicilina, de modo a reduzir sua concentração pelo menos à metade; injeção lenta, repetindo-se algumas vezes a aspiração de liquor. Terminada a aplicação, todos os doentes eram colocados em posição de Trendelenburgo durante 1 a 4 horas.

As reações observadas foram semelhantes às assinaladas pelos autores americanos. Classificamos êsses fenômenos consequentes à penicilinoterapia intra-raquídia em imediatos e tardios; os primeiros surgiam logo em seguida à injeção, para desaparecer alguns minutos após, no máximo 1 hora; os segundos são constituídos pelas reações observadas, seja decorrida mais de 1 hora da injeção, seja as que persistiam por mais de 60 minutos após a injeção.

Verificamos as seguintes reações imediatas, por ordem de freqüência: 1. Sensação de calor ou, mais raramente, frio, na região parietotemporofrontal, em 100% dos casos em que foi empregada a via suboccipital; 2. Cefaléia fugaz, geralmente frontal, em 100% dos casos em que foi feita injeção suboccipital; 3. Vômitos logo após terminada a injeção, em jacto, com mal-estar e náuseas violentas, em 35% dos casos.

As reações tardias observadas foram as seguintes: 1. Dores lombares e radiculares nos membros inferiores, perdurando algumas horas após a injeção, em 100% dos casos em que foi utilizada a via lombar; 2. Cefaléia, geralmente frontal, persistindo por mais de 4 horas, em 30% dos casos; 3. Hipertermia até 38°C, algumas horas após a injeção, em 12%.

Entre as reações tardias, mais raramente observadas, merecem destaque: 1. Os estados lipotímicos, com suores frios, calefrios, alterações do pulso, perturbações visuais, alheamento, torpor ou mesmo perda da consciência, observados em 3 doentes (18%); 2. Em 2 casos (12%), observamos aparecimento de tremores finos, generalizados a todo o corpo, porém mais nítidos nos membros superiores e face, os quais duravam de meia a uma hora; 3. Em 1 caso (6%) de neurite óptica luética, foram observados distúrbios da percepção, apresentando o doente alucinações visuais, delírio, e agitação motora; 4. Em 1 caso (6%), foram verificados sinais de comprometimento da cauda eqüina. Tratava-se de um portador de tabes oligossintomática, para o qual foi instituída a penicilinoterapia por via lombar. Iniciamos o tratamento pela injeção de 20.000 U.Ox.; as doses subsequentes foram de 30, 40, 60 e 80 mil U.Ox. O paciente vinha suportando perfeitamente o tratamento, apenas se queixando de dores lombares e radiculares nos membros inferiores. Ao atingirmos 100.000 U.Ox., manifestaram-se tremores generalizados durante cerca de uma hora; tratava-se, entretanto, de doente muito nervoso e impressionável, motivo que nos levou a prosseguir com a mesma dose, nos dois dias seguintes. Entretanto, no último dia, o paciente passou a apresentar distúrbios esfinctéricos (retenção de urina e de fezes), adormecimento na região glútea e dor nos calcanhares; examinado, foi verificada uma zona de anestesia superficial na região glútea e do perineo, com abolição dos reflexos glúteo e anal; a cistometria revelou perda da capacidade de contração do detrusor vesical. Estes sintomas esfinctéricos e sensitivos mostraram-se rebeldes a toda a terapêutica, persistindo até hoje, decorrido mais de um mês de terminado o tratamento.

Comparando nossas observações com as dos autores americanos, pode-se notar que foi muito menor, entre nós, a percentagem de casos em que houve reações hiperpiréticas; quanto às manifestações alérgicas, não as verificamos em qualquer caso.

Queremos tornar claro que estes números são dados em relação ao total de doentes, e não que esta ou aquela reação tenha sido, por exemplo, encontrada em 100% das administrações intratecais. Ao fazermos a estatística acima, levamos em conta as reações apresentadas pelos pacientes, em qualquer das injeções, mesmo que o fenômeno tenha ocorrido apenas uma vez durante o tratamento.

Podemos relacionar essas reações com vários fatores: 1. Tipo de penicilina - Utilizamos as seguintes marcas comerciais de penicilina: Squibb (8 doentes), Parke-Davis (8 doentes), C. S. C. (4 doentes), Merck, Lederle e Heyden (cada marca em 1 doente). Desprezando as reações apresentadas por estas três últimas marcas, pois o número de casos é insuficiente para se tirar conclusões, queremos assinalar que verificamos reações tais como lipotimia, tremores generalizados, alucinações, distúrbios sensitivos ou perturbações esfinctéricas em 75% das vezes em que foi usada a marca C. S. C. e em 25% dos casos, em relação às penicilinas Squibb e Parke-Davis. 2. Duração do tratamento - Não existe relação direta entre o aparecimento de reações e a duração da penicilinoterapia intra-raquídia. Assim, entre as reações mais graves, pudemos observar, em diversos doentes: a) vômitos, indiferentemente após a 1.a, 2.a, 3.a, 4.a, 6.a e 8.a injeções; b) cefaléia prolongada após a 1.a, 5.a, 6.a, 7.a e 8.a administração; c) lipotimia após a 2.a, 4.a e 8.a injeções; d) tremores generalizados surgiram também sem conexão direta com o número de injeções, pois foram notados seja na 4.a, 5.a, 6.a ou 7.a administração intratecal. Assinalamos, contudo, que os sinais de lesão da cauda equina e as alucinações visuais e perturbações da consciência só ocorreram nas últimas injeções (respectivamente 8.a e 10.a) e com doses de 100.000 U.Ox. 3. Dose - Em geral, as reações mais graves surgiram quando as doses ultrapassavam 50.000 U.Ox. Note-se, contudo, que verificamos lipotimia ao fazermos uma injeção de 30.000 U.Ox. e, por outro lado, nenhuma reação produziu a administração de 4 doses seguidas de 100.000 U.Ox. em um doente. 4. Concentração da solução injetada - Empregamos soluções a 5.000 ou 10.000 U.Ox./cc, que foram sistematicamente diluídas, no momento da injeção, em liquor, de forma a nunca ser administrada penicilina em concentração superior a 5.000 U.Ox./cc. Em geral, as reações mais graves surgiram quando a concentração sobrepujava 2.000 U.Ox./cc. 5. Velocidade da injeção - Fizemos as injeções em velocidade nunca superior a 20 cc. por minuto. Goldmann aconselha a fazer ainda mais lentamente as injeções, devendo cada uma demorar 5 minutos. 6. Temperatura da solução - Verificamos que, quanto menor a temperatura da solução empregada, maior e mais graves as reações. Assim, a penicilina retirada da geladeira e injetada imediatamente, sempre causava mais reações que as administrações feitas quando a solução estava à temperatura ambiente. 7. Via utilizada para a punção - Observamos o aparecimento de tremores generalizados em 1 caso de administração intracisternal e 1 de lombar. Estados lipotímicos, distúrbios da percepção, cefaléia prolongada e vômitos somente ocorreram nos casos em que fôra utilizada a via suboccipital. Por outro lado, notamos aparecimento de dôres radiculares nos membros inferiores, distúrbios sensitivos da região glútea e do períneo, alterações esfinctéricas apenas nos casos de emprêgo da via lombar. Estes fatos parecem indicar a ação tóxica local da penicilina. Contudo, Rammelkamp e Keefer5 5 . Rammelkamp, C. H. e Keefer, C. S. - The absorption, excretion and toxicity of penicillin administered by intrathecal injection. Am. J. Med. Sc., 205: 342 (março) 1943. observaram grande aumento da pressão liquórica provocado por doses de 10.000 U.Ox.; é lícito admitir que os vômitos, náuseas e cefaléia decorram de uma hipertensão intracraniana conseqüente à administração da penicilina. Neymann considera perigosa a via intracisternal, se forem injetadas mais de 30.000 U.Ox.

Devemos concluir, portanto, que os fatores dose, concentração da solução, velocidade da injeção, temperatura da solução e via utilizada para a punção têm grande importância em relação ao aparecimento de reações no decurso do tratamento penicilínico por via intra-raqueana. Apesar do valor desses elementos, cremos que o papel principal relativamente às reações é desempenhado pela percentagem de impurezas da penicilina, a qual nós não conseguimos apurar quanto aos preparados comerciais utilizados. Vale referir aqui que a penicilina da marca C. S. C. cujo prazo de utilização expirava em 1946 produziu, no mesmo doente, reações mais graves que a mesma penicilina cujo prazo terminava em 1947; para estudar a questão, alternamos um tipo com outro, obtendo sempre reações graves com a penicilina mais antiga, o que levou a reservá-la exclusivamente para as injeções intramusculares. Sabe-se que a penicilina é tóxica quando entra em contacto direto com a substância nervosa (Johnson e col.); esta toxidez deve ser atribuída às impurezas; as drogas comerciais existentes apresentam de 60 a 75% de impurezas: Neymann e Johnson verificaram que aquelas parecem ser menos tóxicas.

Cumpre salientar, ainda, a decisiva importância que tem certamente o fator individual e a variação que sofre, de um caso para outro, a suscetibilidade particular dos tecidos à ação nociva de corpos estranhos.

  • 1 Stokes, J. H., Sternberg, T. H., Schwartz, W. H., Mahoney, J. F., Moore, J. E. e Wood. W. B. - The action of penicillin in late syphilis. J. A. M. A., 126: 73 (9 setembro) 1944.
  • 2. Goldman, D. - Penicillin for neurosyphilis. J. A. M. A., 128: 274 (26 maio) 1945.
  • 3. Neymann, C. A., Heilbrunn, G. e Youmans. G. P. - Treatment of dementia paralytica with penicillin. J. A. M. A., 128: 433 (9 junho) 1945.
  • 4. Johnson, H. C, Walker, E. e Case, T. J. - Effects of penicillin on the central nervous system.
  • 5. Rammelkamp, C. H. e Keefer, C. S. - The absorption, excretion and toxicity of penicillin administered by intrathecal injection. Am. J. Med. Sc., 205: 342 (março) 1943.
  • 1
    . Stokes, J. H., Sternberg, T. H., Schwartz, W. H., Mahoney, J. F., Moore, J. E. e Wood. W. B. - The action of penicillin in late syphilis. J. A. M. A.,
    126: 73 (9 setembro) 1944.
  • 2
    . Goldman, D. - Penicillin for neurosyphilis. J. A. M. A.,
    128: 274 (26 maio) 1945.
  • 3
    . Neymann, C. A., Heilbrunn, G. e Youmans. G. P. - Treatment of dementia paralytica with penicillin. J. A. M. A.,
    128: 433 (9 junho) 1945.
  • 4
    . Johnson, H. C, Walker, E. e Case, T. J. - Effects of penicillin on the central nervous system. Lido perante a Chicago Neurological Society em 4 novembro 1944. Ref. por Neymann
    3.
  • 5
    . Rammelkamp, C. H. e Keefer, C. S. - The absorption, excretion and toxicity of penicillin administered by intrathecal injection. Am. J. Med. Sc.,
    205: 342 (março) 1943.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      25 Fev 2015
    • Data do Fascículo
      Mar 1946
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