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IN MEMORIAM

A Neurologia brasileira perdeu no dia 14 de dezembro de 1995 um dos seus mais destacados vultos, Horacio Martins Canelas, Professor Titular Emérito de Neurologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Horacio Martins Canelas nasceu na cidade de São Paulo, a 30 de maio de 1919. Educou-se nessa mesma cidade, onde fez o curso secundário no Ginásio São Bento (1931-1935), o curso pré-médico (1936-1937) no Colégio Universitário da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e, nesta, o curso superior (1938-1943), graduando-se em Medicina.

Ainda doutorando de medicina, em 1943 ingressou como estudante adido na Clínica Neurológica da FMUSP (Serviço do Prof. Adherbal Tolosa). A esse Serviço e a essa especialidade dedicou-se sem desfalecimentos e percorreu todos os passos da carreira universitária, graças aos seus dotes intelectuais e às suas qualidades pessoais. De Assistente Voluntário (1943-1944) passou a 3o. Assistente Efetivo (1945-1959). Após submeter-se na Escola Paulista de Medicina a concurso para a Docência Livre de Clínica Neurológica (1958), no qual foi aprovado com distinção, passou a exercer seu cargo na FMUSP em regime de tempo integral e dedicação exclusiva (1959). Nesse regime percorreu a carreira universitária a partir de então. Em 1960, passou a lo. Assistente Efetivo e, em 1962, a Professor Assistente-Docente. Em 1965, por concurso, assumiu o cargo de Professor Associado, posteriormente denominado Professor Adjunto (1969). Quando da aposentadoria do Professor Catedrático Adherbal Tolosa, substituiu-o como Professor Regente. Após brilhante concurso (1971), foi nomeado Professor Titular de Clínica Neurológica do Departamento de Neuropsiquiatria da FMUSP. Ocupou por mais de uma vez a chefia desse departamento e, com a separação da Neurologia e da Psiquiatria em dois novos departamentos (1986), assumiu a chefia do Departamento de Neurologia. Foi nessa condição de Chefe do Departamento de Neurologia que se aposentou ao completar 70 anos, passando a Professor Titular Emérito de Neurologia da FMUSP.

Como Professor Titular, exerceu diversas funções da carreira universitária. Além de participar de bancas examinadoras de concursos para os diferentes graus da carreira, algumas outras merecem lembrança especial: por duas vezes foi Vice-Diretor da FMUSP, integrou a comissão da USP da qual resultou a instalação de seu Hospital Universitário, integrou e presidiu a Comissão de Pós Graduação da FMUSP. No Hospital das Clínicas da FMUSP, exerceu a direção da Divisão de Clínica Neurológica e acompanhou de perto a ampliação de seus quadros em função do aumento da carga assistencial do Hospital; de modo sempre arguto representou a Clínica junto aos órgãos diretores do Hospital, de cujo Conselho Deliberativo fez parte.

Sua atividade didática na Clínica Neurológica da FMUSP se iniciou em 1945, com aulas de anatomia e fisiologia do sistema nervoso e aulas práticas de propedêutica neurológica. Em 1948 passou também a ministrar aulas teóricas de neurologia no curso de graduação. Paulatinamente foi ampliada sua participação no curso, passando a ser o responsável pelo ensino da Neurologia na FMUSP a partir de 1970. Sempre com o apoio dos membros da Clínica, viu construido todo um sistema de ensino da matéria. Esse modelar sistema passou a ser cada vez mais procurado pelos que se especializavam nas diversas áreas do conhecimento neurológico, quer como estagiários ou residentes, quer como pós-graduandos. No curso de pós-graduação da área de Neurologia da FMUSP, foi o responsável pela Disciplina "Neuropatias dismetabólicas", que ministrou desde a instalação do curso (1973) até o final de sua carreira.

Incentivado pelo espírito científico de seus mestres Oswaldo Lange e Adherbal Tolosa, alicerçou desde os verdes anos de sua formação em neurociências a sua extensa e igualmente frutífera atividade de pesquisa, que se estendeu ao longo de sua carreira. Delas resultaram suas comunicações científicas em sociedades médicas e em congresssos neurológicos nacionais e internacionais. Delas igualmente resultaram suas publicações científicas, que somam mais de uma centena. Elas se iniciaram com registros de estudos sobre a neurossífilis (1945) e se estenderam a diversas áreas das neurociências. De seus estudos sobre a sensibilidade vibratória, cuja divulgação se iniciou em 1948, resultaram sua Tese de Docência Livre (1958) e a utilização da palestesiometria no exame neurológico. Aqueles sobre a síndrome nervosa da anemia perniciosa (1948) deram origem a toda uma linha de pesquisa sobre a mielose funicular e outras manifestações das neuropatias na deficiência de vitamina BI2. Seu interesse voltou-se também às malformações occípito-cervicais e às neuroinfecções. Neste campo destacam-se as contribuições sobre neuromicoses, neuroesquistossomose e neurocisticercose. Abriram novos campos de pesquisa, os estudos de metabolismo e de balanços metabólicos em neuropatias dismetabólicas. Entre eles se destacam pesquisas sobre a neuropatia diabética, a idiotia amaurótica familiar, a leucodistrofia metacromática e, particularmente, a degeneração hepatolenticular. O metabolismo do cobre e da ceruloplasmina na doença de Wilson foram exaustivamente investigados e as contribuições resultantes, registradas a partir de 1962, são internacionalmente reconhecidas.

Seus estudos de interesse ao ensino da neurologia se iniciaram com uma avaliação acerca da barreira hemoencefálica (1947), continuaram entre outros com aqueles sobre as ataxias e sobre a quantificação clínica da sintomatologia neurológica e culminaram em dois clássicos da literatura médica nacional: "Manual de Clínica Neurológica" (1967), de que foi o editor, e "Propedêutica Neurológica" (1969), editado por ele com Adherbal Tolosa, que foi reeditado (1971) e reimpresso (1975).

Viu laureada sua produção científica em diversas ocasiões. Com seus colaboradores conquistou prêmios de primeira grandeza, como o Prêmio Antonio Austregésilo da Academia Nacional de Medicina (1951) com estudo sobre as malformações occípito-cervicais, o Prêmio Enjolras Vampré da Associação Paulista de Medicina (1952) com estudo do efeito nas manifestações neurológicas da anemia perniciosa de Addison-Biermer, o Prêmio Paulino Watt Longo da Academia Brasileira de Neurologia (1964) com estudo sobre a leucodistrofia metacromática.

Prestigiou a Academia de Medicina de São Paulo, na qual ingressou como Membro Titular em 1960, passando a Membro Emérito em 1975. Como membro, participou das atividades do Departamento de Neurologia da Associação Paulista de Medicina. Foi Membro Fundador da Academia Brasileira de Neurologia, na qual ingressou em 1962. Nela foi Tesoureiro da Primeira Diretoria (1963-1964), membro de diversas comissões e, com sua participação, prestigiou os Congressos Brasileiros de Neurologia. Na Federação Mundial de Neurologia, foi Membro de Grupo de Pesquisa de Neurologia Tropical desde 1963.

Indubitavelmente, foi a atividade editorial outro ponto de relevo em sua carreira. A propósito, afirmou ele: "seguindo o exemplo de Oswaldo Lange, pioneiro entre nós nesse campo de atividades, esforçamo-nos para acompanhar-lhe os passos, procurando, através da às vezes exaustiva atividade redatorial, contribuir para o progresso material e principalmente científico da literatura médica em nosso país" (Canelas HM. Memorial. FMUSP, 1965). Exímio cultor das letras, nelas sempre encontrou subsídios para esse empenho. Dentro das muita atividades que desenvolveu na área, é de salientar algumas: aquela de Redator da Revista de Medicina, do Centro Acadêmico Oswaldo Cruz da FMUSP (1949-1953); a de Redator (1949-1953) e em seguida de Editor por quase cinco lustros da Revista Paulista de Medicina, da Associação Paulista de Medicina; e aquelas que desenvolveu neste periódico. De fato, foi em Arquivos de Neuro-Psiquiatria que publicou a maior parte de seus artigos científicos; foi Secretário Geral (1947-1969), Editor Associado (1970 a 1994) e Membro de Conselho Científico (1995).

Após a aposentadoria mudou-se para a cidade de São José dos Campos com sua esposa e companheira de todas as suas muitas lutas, Odete Pedroso Canelas. Lá faleceu, cercado do carinho da sua família. Lá, apesar de afastado dos atos da Clínica, manteve intocados o amor ao Serviço e a amizade de seus integrantes.

Todos os companheiros do Serviço sentimos a sua perda, mas temos a certeza de que, no exercício do cargo, Canelas buscou cumprir a promessa de Tolosa em relação à Clínica Neurológica da FMUSP, a promessa que nos une (In Canelas HM. In memoriam: Adherbal Tolosa. Arq Neuropsiquiatr 1973;21:228-230): "manter viva a chama e o calor da tocha que Vampré ateou e que, mercê de Deus, há de continuar acesa".

Antonio Spina França

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    07 Dez 2010
  • Data do Fascículo
    Mar 1996
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