RESUMO
Na Lógica da filosofia de Eric Weil, a obra aparece como ruptura com o absoluto, atitude da violência pura, cuja oposição se realiza pelo agir, portanto, é muda. E mesmo assim, essa atitude possui uma linguagem. Nosso objetivo é compreender como essa contradição é possível, caracterizando a linguagem da qual a obra faz uso. Para tanto, propomos uma pesquisa dividida em três seções. Na primeira, apresentamos a distinção entre linguagem e discurso conforme entendido por Weil. Assim surge o recurso por meio do qual se entende o empréstimo de um discurso à violência, o que permite acessar sua linguagem. Na segunda seção propomos uma divisão da linguagem da obra em três níveis: do fenômeno, da formalidade e da forma. Nessa seção também discutimos um exemplo da formalidade com a categoria da condição. Na terceira seção, propomos seis traços que constituem o terceiro nível da linguagem da obra: mito, metáfora, sentimento, serventia, proposição e imperativo. Finalizamos com uma revisão dos aspectos trabalhados à luz da mentira e com a proposta de um imperativo que se opõe ao imperativo da obra, portanto, à sua linguagem.
Palavras-chave:
Obra; Linguagem; Violência; Eric Weil
ABSTRACT
In Eric Weil’s Logic of Philosophy, the work appears as a rupture with the absolute, an attitude of pure violence, whose opposition is realized by acting, therefore, it is mute. And yet, this attitude has a language. This paper seeks to understand how this contradiction is possible, characterizing the language that the work makes use of. To this end, we have divided this paper into three sections. In the first section, we present the distinction between language and discourse as understood by Weil. Thus arises the resource through which the loan of a discourse to violence is understood, which allows access to its language. In the second section we propose a division of the language of the work into three levels: phenomenon, formality and form. In this section we also discuss an example of the formality with the condition category. In the last section, we propose six features that constitute the third level of the language of the work: myth, metaphor, feeling, usefulness, proposition and imperative. The paper concludes with a review of the aspects worked in the light of the lie and with the proposal of an imperative that is opposed to the imperative of the work, therefore, to its language.
Keywords:
Work; Language; Violence; Eric Weil
Introdução
A categoria1 1 Na sua obra principal, Lógica da filosofia, Weil apresenta 18 possibilidades para o discurso filosófico: as categorias. Uma atitude é uma forma de viver e estar no mundo. Nem toda atitude gera uma categoria. Apenas quando essa forma atitude reflete sobre seu essencial a atitude se torna uma categoria. É o conjunto das categorias que permite a ideia de uma lógica da filosofia enquanto sucessão dos discursos nos quais o ser humano compreendeu as suas realizações e se compreendeu nas suas realizações. A passagem de uma atitude para uma categoria mostra como o discurso se forma na história a partir de uma atitude que não se é obrigado a deixar; de como aquilo que é implicitamente reconhecido pela atitude chega a sua consciência. A lógica da filosofia enquanto compreensão compreensiva (Perine, 1987, pp. 136-138). da obra2 2 O tripé obra, finito e ação marca o segundo movimento da Lógica, com o qual surge a primeira ruptura irreparável do discurso, a tentativa de reconhecer no discurso uma atitude que é a do homem violento (Perine, 1987, p. 150). A obra é categoria da revolta (Perine, 1987, p. 169). “Para Weil, a violência é o outro irredutível da razão, ela não é um não-ainda-tornado-razão. Ela é a recusa sempre definitiva e inapelável a toda autoridade da razão, não a sua arma ou o instrumento da sua astúcia” (Perine, 1987, p. 169). A violência encontrada na obra é aquilo que é incompreensível para a categoria do absoluto, categoria que assinala a possibilidade filosófica do discurso absolutamente coerente. Se a pretensão é refutar o absoluto, só é possível fazê-lo no seu próprio campo. Entretanto, a obra não pretende refutar o absoluto. Indo mais longe, a obra pergunta se é preciso pensar. Além disso, a obra apresenta como característica da sua atitude a preponderância do sentimento de si sobre o falar: o homem da obra separa-se do discurso, deixa de ocupar-se com o discurso para ser (Perine, 1987, pp. 169-170). se caracteriza pelo mutismo. O paradoxo da violência é que seu acesso à palavra, no sentido da compreensão no discurso, a levaria à dissolução. Ainda assim, a violência fala. Como isso é possível? A filosofia não pode a conhecer se não obliquamente, indiretamente. Paradoxalmente, a revolta pura da obra pressupõe um discurso filosófico contra o qual se revoltar (o absoluto) e um discurso filosófico que a reconhece (o sentido, ou a lógica da filosofia) (Kirscher, 1992, p. 148KIRSCHER, G. “Figures de la violence et de la modernité: Essais sur la philosophie d’Eric Weil”. Lille: Presses Universitaires de Lille, 1992.). O ato de recusar o discurso é um “não” que a obra lhe dirige ao se afirmar absolutamente (Kirscher, 1992, p. 151KIRSCHER, G. “Figures de la violence et de la modernité: Essais sur la philosophie d’Eric Weil”. Lille: Presses Universitaires de Lille, 1992.). Esse “não”, portanto, é de onde a filosofia extrai e destila a compreensão da linguagem da obra. A seguir, procuramos compreender como se dá essa linguagem na categoria da obra. Inicialmente é importante tanto diferenciar linguagem e discurso3 3 Sobre uma forma de ver a relação entre linguagem e discurso em Weil a partir de uma interpretação hermenêutica do autor, ver BERNARDO, L. M. A. V. “Linguagem e discurso: uma hipótese hermenêutica sobre a filosofia de Eric Weil”. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2003. como estabelecer o recurso que permite dar à violência esse discurso. Assim compreende-se como a atitude da obra faz uso de uma linguagem. Em seguida, definimos quais são os seus níveis. Propomos três níveis para essa linguagem: o do fenômeno, o da formalidade e o da forma, apresentando um exemplo para a melhor definição do segundo nível. Feito isso, a proposta seguinte traz seis traços do último nível da linguagem da obra e cujo conjunto compõe sua forma. Finalizamos com um conjunto de imperativos linguísticos que fazem uma oposição ao uso violento da linguagem.
1. Discurso e linguagem da violência
Em uma análise da linguagem política, Ricoeur lembra que é necessário um indivíduo que maneje a fala para criar as sentenças que mobilizem o ódio, que cimentem a sociedade do crime e que convoquem para o sacrifício e à morte, para dar voz à violência, uma voz que é significante e semântica (1995, pp. 62-63). “Ainda hoje, sobretudo hoje, Hitler passa por Goebbels” (Ricoeur, 1995, p. 62RICOEUR, P. “Violência e linguagem”. In: Leituras 1: Em torno ao político. Tradução M. Perine. São Paulo: Edições Loyola, 1995.). Nosso propósito é tratar sobre o tipo de linguagem violenta que torna possível compreender um Hitler (Weil, 2012, p. 501, nota 2WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.).
Comecemos pelo modo como a atitude da violência pura encara a linguagem do absoluto, a categoria do discurso absolutamente coerente: como uma riqueza que não alimenta, “visto que a linguagem se transformou naquela riqueza estéril do discurso” (Weil, 2012, p. 495WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.). Para o absoluto, a refutação do discurso se faz falando, ou seja, aderindo ao discurso. Para aquele que vive na atitude da obra, entretanto, trata-se de ser a despeito do discurso. Isso porque linguagem e ser humano são um só apenas para aquele que se contenta com a linguagem. A atitude da obra sabe que declarar ser outra coisa que não a linguagem significa submeter-se à linguagem e lhe atribuir um valor, de modo que não há qualquer preocupação nesse sentido. O indivíduo que é diferente da linguagem a emprega como um instrumento, inaugurando com ela uma relação de serventia, o que abre o estado de alteridade entre ambos. Weil utiliza como exemplo a situação do indivíduo que usa uma ferramenta ou um animal doméstico, sem com isso confundir-se com ambos. Isso porque a linguagem não é o essencial para essa atitude (2012, p. 496).
O essencial para a atitude será o sentimento da sua obra, e o que lhe interessa é apenas criar por criar. A rejeição do universal pela obra se mostra também na linguagem, pois uma linguagem preocupada com a resolução dos seus próprios conflitos desembocaria no universal (Weil, 2012, pp. 497-498WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.). “Mas o universal é também o comum, a coisa pública que não pertence a ninguém, porque pertence a todos” (Weil, 2012, p. 498WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.). A obra, por sua vez, é imediata para o seu criador, e essa imediaticidade garante que ela não seja de mais ninguém. Diante disso, aparece de maneira candente o porquê de a linguagem ser instrumento: o que está excluído da imediaticidade é outro, podendo ser matéria-prima, colaborador ou adversário, mas ainda assim outro. Entretanto, Weil pondera que ao mencionarmos a matéria-prima, o instrumento, não se deve com isso concluir que o homem da obra esteja preocupado em oferecer uma interpretação do seu empreendimento quando ele faz uso dessa linguagem.
Quem quer a obra não deve se preocupar e não se preocupa com a interpretação de sua empreitada. Sabe que as palavras são impotentes, essas palavras do raciocínio cuja totalidade é a Razão, e que a obra tenha um sentido ou não, a seu ver, é uma questão a um só tempo pedante e pueril (Weil, 2012, p. 498WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.).
Ele pode falar de violência, assim como pode falar de tudo, porque falar de certas coisas de certa maneira pode servir à obra; mas a linguagem que ele emprega jamais é a sua linguagem; é a linguagem dos outros, aos quais ele menos se dirige do que deles se serve (Weil, 2012, p. 499WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.).
A obra pode ser descrita como uma atitude muda que leva ao paroxismo o elemento constituinte da violência.4 4 A violência é o silêncio, silêncio inicial, anterior à reflexão, silêncio do bruto. A consciência da violência que quer ser violência conduz ao silêncio da brutalidade humana (Weil, 2011, p. 231). A obra é o caso mais exacerbado de uma atitude que se recusa a ser categoria, rejeitando a coerência. Isso é o que significa dizer que ela é antifilosófica: a obra é atitude que deseja permanecer como tal, privada de todo discurso, manifestando-se no seu silêncio (Kirscher, 1989, p. 304-305). Assim, seria contraditório tentar determinar uma linguagem da qual ela faça uso. Apenas por essa contradição, não haveria prejuízo para a sua compreensão, pois ela é contraditória do ponto de vista do pensamento. Não obstante, apontando o que significa essa mudez da atitude, desanuvia-se o horizonte para entender o papel desempenhado pela linguagem. Essa mudez é o vazio que a atitude sente diante da categoria que é recusada, o absoluto, de modo que falar significaria perfilar-se com aquilo que é recusado. Ora, para a obra, o absoluto é apenas um ‘aquilo’, uma coisa qualquer, assim como toda linguagem. Para o discurso coerente, os problemas da linguagem são solucionados no universal (Perine, 1987, pp. 169-170PERINE, M. “Filosofia e violência: sentido e intenção da filosofia de Éric Weil”. São Paulo:Edições Loyola, 1987.).
A linguagem da obra fala do projeto da criação impossível em direção ao nada. Para a atitude, a linguagem é ferramenta. Mas para a categoria, ou seja, do ponto de vista do discurso, ela se mostra importante por constituir o fundo da própria obra (Kirscher, 1989, p. 313KIRSCHER, G. “La philosophie d’Eric Weil”. Paris: Presses Universitaires de France, 1989.). Essa contradição exemplifica uma dificuldade ao se trabalhar com a obra. Como é possível, então, falar de uma linguagem para essa atitude? Em primeiro lugar, tratemos da distinção entre discurso e linguagem, para em seguida compreendermos como a filosofia empresta um discurso à violência.
A linguagem é fundo e fundamento do discurso, no qual se desenham todos os problemas (Quillien, 1981, p. 1224QUILLIEN, J. “De la sagesse comme fin de la Logique de la Philosophie: Sens etprésence, poésie et philosophie”. Annali della Scuola Normale Superiore di Pisa, Vol. XI, Nr. 3, pp. 1223-1242, 1981.). Dito isso podemos entender que o sentido é o que cruza de parte a parte o discurso. Se a filosofia é ciência formal do sentido, é a linguagem que cria os sentidos concretos. A forma do sentido é o infinito da filosofia (Quillien, 1981, pp. 1232-1234QUILLIEN, J. “De la sagesse comme fin de la Logique de la Philosophie: Sens etprésence, poésie et philosophie”. Annali della Scuola Normale Superiore di Pisa, Vol. XI, Nr. 3, pp. 1223-1242, 1981.). O sentido perpassa o discurso que se mostra na categoria. A linguagem oferece ao sentido uma forma concreta. Como esse esquema pode ser aplicado à obra?
Kirscher chama a atenção para uma distinção crucial: a linguagem da obra é diferente do discurso da Lógica da filosofia sobre a obra. Um discurso da categoria sobre a atitude seria considerado a traição mais prejudicial à obra do seu próprio ponto de vista. A tentativa de compreender a obra como categoria, portanto, se diferencia de sua atitude, por isso Kirscher exorta diferenciar metodicamente entre a doutrina e a explicação nas categorias. O discurso sobre a obra é um discurso virtual, já que a atitude é eminentemente fazer (1989, pp. 307-308). Mas se a linguagem é parte da categoria da obra, como explicar que ela esteja disponível para a atitude? De acordo com Kirscher, a categoria está presente na atitude porque a atitude emprega a linguagem da obra. E é nesse sentido que podemos compreender a afirmação do autor de que a categoria importa pouco à atitude (1989, p. 308). A linguagem é a obra na medida em que tudo que serve para a obra o é, mas ela é um instrumento, que, à semelhança de qualquer outro – como os seus colaboradores –, só tem existência na obra à medida que serve para a realização do seu projeto.
O discurso sobre a categoria da obra situa-se no plano de uma lógica da filosofia. Duas são as demandas reunidas nesse discurso. De um lado, a exigência filosófica de compreender e de se compreender em um discurso coerente. De outro, a demanda irredutivelmente antifilosófica da atitude desinteressada em toda compreensão, a quem interessa apenas criar. Essa junção é estranha, os elementos condenados a permanecer separados, incapazes de se refletir um no outro (Kirscher, 1989, p. 309KIRSCHER, G. “La philosophie d’Eric Weil”. Paris: Presses Universitaires de France, 1989.). A linguagem está presente para a atitude enquanto ferramenta, mas o discurso da categoria só existe para o lógico da filosofia. Feita essa primeira distinção, podemos agora passar ao modo como esse discurso é elaborado. Isso ocorre porque, mesmo no interior dos discursos filosóficos, o violento não tem um discurso próprio. O filósofo lhe empresta um discurso que ele não tem, mas que teria caso discorresse a respeito de sua recusa do discurso (Kirscher, 1992, p. 36KIRSCHER, G. “Figures de la violence et de la modernité: Essais sur la philosophie d’Eric Weil”. Lille: Presses Universitaires de Lille, 1992.). É por um artifício de prosopopeia que o lógico da filosofia faz aparecer o discurso da violência (Perine, 1987, p. 176PERINE, M. “Filosofia e violência: sentido e intenção da filosofia de Éric Weil”. São Paulo:Edições Loyola, 1987.).
Aparece aqui, em termos de linguagem, algo essencialmente diferente do que se via até então nos discursos das categorias anteriores. O ser humano deixa de ser linguagem para ter uma linguagem da qual apenas se serve. Mesmo que tal instrumento seja imprescindível, ele está apenas submetido à criação. Apartada do universal e da coerência, essa linguagem não tem qualquer valor enquanto tal, importando apenas na medida em que serve e sua serventia é medida apenas segundo sua eficácia sobre as massas.5 5 Sobre o conceito de massas em Weil, ver 1991, pp. 255-294. Trata-se de uma linguagem do sentimento e da violência que se proclama conscientemente, linguagem mítica, do mito que se sabe mito (Quillien, 1970, p. 419QUILLIEN, J. “Discours et langage ou ‘Logique de la philosophie’”. Archives de Philosophie, Nr. 33, pp. 401-438. Paris: Beauchesne, 1970.). A obra suscita uma linguagem, porém, essa linguagem não se depura em um discurso coerente: ela é apenas um instrumento a serviço da força. Seu objetivo não é a reconciliação com os interlocutores, mas sua manipulação. A linguagem da obra desdenha da afirmação de igualdade entre as comunidades humanas e entre os indivíduos. Isso porque a sobrevivência de um tipo de ser humano autoriza a destruição de outros (Savadogo, 2016, pp. 199-200SAVADOGO, M. “O sentido da oposição entre razão e violência segundo Eric Weil”. In:PERINE, M., COSTESKI, E. (eds.). Violência, educação e globalização: compreender o nosso tempo com Eric Weil. São Paulo: Edições Loyola, 2016.).
2. Os três níveis da linguagem da obra
Para a presente seção, é imprescindível a distinção que Weil estabelece entre a atitude/categoria e sua fenomenologia, ou seja, a doutrina exposta na Lógica e os fenômenos históricos que podem ser compreendidos por essas doutrinas. A compreensão simples se dá na história e a compreensão compreendida na lógica da filosofia.6 6 Conferir a esse respeito Weil (2012, pp. 160-161, pp. 242) e Perine (1987, pp. 140-141). Estribados nessa premissa, para nosso propósito diferenciaremos três níveis da linguagem da obra.
O primeiro nível é o da fenomenologia, que diz respeito às manifestações históricas dos usos da linguagem da obra. Esse nível pode ser encontrado sobejamente tanto na Alemanha nazista7 7 Como exemplo, podemos indicar as regras de linguagem (Sprachregelung) a respeito da solução final discutidas por Arendt (1999, pp. 100-101). e na Itália fascista8 8 Um exemplo é o uso do mito nos discursos de Mussolini (Stanley, 2019, p. 21). quanto em fenômenos contemporâneos.9 9 Como exemplo, indicamos o excelente trabalho de Bignotto (2022, pp. 120-174). Agradecemos a gentil indicação de Marcelo Perine. O segundo nível refere-se à formalidade, o que traduz a linguagem da categoria empregada como instrumento para a realização do propósito da obra. Na presente investigação, seguiremos a indicação de Weil de que a condição desempenha essa incumbência da melhor maneira, sem perder de vista que outras categorias podem ser utilizadas quando necessário, como a certeza.10 10 Registramos nossos agradecimentos à sugestão generosa de Francisco Valdério, dada no contexto dos encontros do Núcleo de Estudos Avançados de Filosofia (NEAFILOS) da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA). Adiantamos que o único critério para essa escolha é a serventia. O terceiro nível é a forma da linguagem presente na categoria, portanto, no seu discurso. Para determinar essa forma, proporemos seis traços essenciais que a caracterizam. Na atual seção, trataremos do segundo nível e, na seção seguinte, apresentaremos os seis traços que compõem a forma. Não discutiremos aqui o primeiro nível, para além dos exemplos já apontados.
A formalidade varia conforme a categoria utilizada. A condição é escolhida apenas por desempenhar com maior eficácia essa função no interior de um mundo marcado pelo trabalho eficaz. Weil elabora uma distinção importante. O criador da obra não fala com os outros, mas aos outros. Desse modo, o projeto que o criador deseja realizar deve ser proposto na linguagem daqueles aos quais é direcionado (2012, p. 515). “O criador se servirá das outras categorias como lhe aprouver, portanto, para apresentar seu projeto, para apresentar a si mesmo sob as formas mais variadas” (Weil, 2012, p. 515WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.). Nesse momento, convém não perder de vista que essa apresentação do criador aos outros de que fala Weil não se dá como um julgamento do projeto. O criador é só e se sabe único. Essa apresentação visa apenas colher material para a obra – colaboradores.
Assim, essas retomadas11 11 A retomada expressa a passagem de uma categoria a outra tanto na sua circularidade quanto na sua linearidade, enquanto fenômeno histórico. Trata-se da apropriação de uma linguagem antiga, de uma categoria já ultrapassada, pela nova atitude que lhe sucede (Perine, 1987, p. 141). são apenas máscaras que a obra assume para realizar seu projeto, não sendo retomadas verdadeiras, pois isso implicaria na intenção da atitude de pensar a si mesma, o que só ocorrerá com o desenvolvimento da categoria – ou seja, no plano do discurso, quando surge a atitude do finito –; antes disso, essas máscaras ou apresentações são consideradas pela obra como estranhas a ela mesma (Weil, 2012, p. 516WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.).
Mas mesmo as retomadas autênticas apresentam outra dificuldade, e que é de ordem filosófica. A atitude está por inteiro na obra; a retomada, vista sobre a obra a partir de outra categoria, pode se efetuar, portanto de duas maneiras, conforme seja efetuada pelo homem que vive nessa atitude (agindo), mas que só a pensa numa categoria anterior, ou por alguém que, vivendo e pensando em outra atitude-categoria, busca compreender a obra. Do ponto de vista formal, essa distinção é possível para cada categoria; ela se torna necessária nesse ponto, porque pela primeira vez a realização sesepara do discurso e se faz não sem, mas contra este último. É de suma importância, portanto, discernir se estamos diante de uma justificação da obra que o criador busca conquistar diante do tribunal de seu pensamento12 12 A obra é a atitude refratária a toda justificativa do seu projeto. Sendo assim, como é possível falar de uma tentativa de justificar a obra perante o “tribunal de seu pensamento”, como afirma Weil? Para compreender essa afirmação, convém primeiramente atentar que a obra é rejeição do Pensamento universal para ser esse universal (2012, pp. 487-488). Esse Pensamento de nada serve ao criador da obra (Weil, 2012, p. 494). O pensamento que lhe interessa é aquele que chega pela via da condição e que alcança o indivíduo entediado: “Ele pensa, mas isso de nada lhe adianta. Ele não pode não pensar, porque essa é a sua maneira de ser, sua condição; mas seria melhor que ele se limitasse ao raciocínio, àquele pensamento com minúscula que é o servo do trabalho: ele nada tem a ganhar elevando-se ao Absoluto, exceto o silêncio de todas as vozes que lhe prometiam uma dignidade maior, um valor mais autêntico, um desprendimento mais completo” (Weil, 2012, p. 494). Esse recurso ao pensamento com minúsculas pode ocorrer quando o criador encontra concorrentes que opõem à obra outro projeto. Nesse caso, surge a retomada de justificação (Weil, 2012, p. 518). É crucial, portanto, compreender que não é ao Pensamento ou à Razão que a obra se justifica: tudo se orienta para a eficácia do projeto – e isso passa pela aquisição do material necessário. ou uma tentativa de compreender esse criador numa apreciação13 13 É importante registrar que apreciação aqui não significa apologia. A retomada de apreciação, pelo contrário, realiza a passagem da obra para o plano da linguagem do crítico (Weil, 2012, p. 518). A apreciação é, portanto, a visão crítica da obra por outra atitude-categoria com a linguagem que lhe é própria. Como exemplo de uma retomada de apreciação da obra pelo finito, podemos citar as análises de Jaspers sobre a situação da Alemanha após a queda do nazismo (2018, pp. 39-74). (Weil, 2012, p. 516WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.).
Para as duas formas de retomadas verdadeiras descritas acima, a personalidade é imprescindível. Além desta, para as retomadas de justificação, distinguindo entre criador e adversários, é útil a categoria do verdadeiro e do falso. As retomadas de apreciação passam pela inteligência (Weil, 2012, pp. 516-518WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.). Dito isso, o nível da formalidade que propomos aqui não é uma retomada de justificação ou de apreciação. Nesse nível, a linguagem da condição é aquilo que Weil denomina uma pseudorretomada ou máscara. As pseudorretomadas surgem para impedir que uma vontade de clareza confunda as máscaras com uma retomada de apreciação (2012, p. 516).
O elemento que caracteriza a condição como linguagem da obra enquanto formalidade é sua utilidade. A formalidade da linguagem da obra a caracteriza essencialmente como ferramenta, apresentando algumas funções. Ela serve para arrebanhar colaboradores, separando-os daqueles que serão inúteis ao empreendimento, seus inimigos. A linguagem da obra, portanto, pode ser compreendida nas suas características conforme sejam adequadas ao projeto. Ela pode servir-se de quaisquer formas, nos termos das categorias anteriores, de modo que o homem da obra, por exemplo, “pode falar de si mesmo empregando todas as categorias” (Weil, 2012, p. 505WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.). Essa formalidade é apenas um invólucro que, como aponta Weil (2012, p. 505)WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012., pouco importa. Desde que funcione, qualquer invólucro pode ser empregado: profeta, clarividente, realizador da liberdade, mestre, messias, variando conforme as circunstâncias.14 14 Esse elemento mutável e cambiante mostra a importância da categoria para a filosofia, pois explicita um traço que Weil atribui à violência mesma: a variedade de formas (2003, pp. 9-10). O caráter eminentemente instrumental da linguagem técnica na condição15 15 A linguagem do homem da condição é a da ciência em progresso, ciência do trabalho, a técnica, cuja linguagem é a do agir. Essa linguagem é somente um instrumento para o conhecimento das condições (Weil, 2012, pp. 291-292). se adéqua perfeitamente à visão daquele que vive a atitude da obra a respeito da linguagem.
Se, portanto, existir retorno a uma atitude anterior (não a uma categoria), será para o trabalho da condição. Aí, com efeito, o discurso pode ser deixado de lado. O trabalho liberta da liberdade abstrata do discurso, do tédio da circularidade do particular no Absoluto, e dá ao homem, se não um conteúdo, ao menos uma explicação para a ausência do conteúdo: o discurso não diz respeito ao homem que trabalha e que, em seu trabalho e graças a ele, sabe o que tem a fazer; se ele não está contente com sua condição atual, tem a certeza do progresso e, nessa certeza, a satisfação no que diz respeito ao mundo (Weil, 2012, pp. 492-493WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.).
É sob a categoria da condição que Weil apreende a mentalidade técnico-científica da civilização industrial. Esse dado é importante, pois a moderna sociedade do trabalho funciona sob a lei da racionalidade instrumental (Guibal, 1984, pp. 106-107GUIBAL, F. “La philosophie et son ‘autre’: Réflexions à partir de l’oeuvre d’Éric Weil”. In: Actualité d’Éric Weil. Paris: Éditions Beauchesne, 1984, pp. 105-117.). Dominando a linguagem da condição, domina-se a sociedade do trabalho. Com isso, o criador da obra domina todos os materiais necessários à sua empreitada, incluindo os possíveis colaboradores. A condição se presta a esse domínio por permitir considerar o ser humano nessa categoria como se refletindo em uma natureza considerada apenas enquanto sistema de fenômenos condicionados uns pelos outros. Importa observar ainda que na linguagem da condição inexiste aparato adequado para traduzir o sentido da liberdade. Apenas o que possui sentido para sua linguagem é a ciência enquanto totalidade de fatores objetivos e fundamento de uma ação possível sobre a natureza. A linguagem da condição toma o real como possibilidade, ou seja, totalidade de variáveis tomadas segundo uma função determinada. A questão do sentido para a dominação desse conjunto de variáveis extrapola o âmbito da sua linguagem (Canivez, 1999, pp. 48-50CANIVEZ, P. “Weil”. Paris: Les Belles Lettres, 1999.). Eis por que essa linguagem cabe perfeitamente ao projeto da obra: ela pode servir de instrumento para sua realização sem o inconveniente de propor qualquer julgamento para além da eficácia técnica. A linguagem da condição é adequada ao projeto da obra, pois dominá-la significa dominar por extensão todas as condições instrumentais necessárias ao seu projeto, como a sociedade e o Estado16 16 O governo dos Estados modernos serve-se da administração, que é o aparelho racional e técnico destinado a dar pareceres e executar as intenções do governo. Ela é a consciência técnica racional do Estado. Sua importância é tão grande que sua presença não só define um dos elementos do Estado moderno como por vezes pode ser confundida com ele. Essa destacada importância da administração carrega o perigo de que ela escape ao controle do governo e o domine, como um órgão intumescido de maneira patológica que desequilibra a saúde do corpo. Um governo cego pode também canalizar as forças da administração eficiente para prolongar do reino da violência com a ajuda do entendimento calculista, que é tão irracional que chega a descartar as objeções da própria administração quanto ao sucesso do projeto (Weil, 2011, pp. 180-187). (Weil, 2012, p. 503WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.).
O mundo é tal como foi descoberto e descrito pela ciência da condição; mas esse mundo dos fatores e dos meios reveste agora um sentido, um fim, que é a obra. Ora, esse mundo é o mundo do trabalho e da organização dos homens, o mundo da sociedade e do Estado, e sua existência se baseia na linguagem. Mas a linguagem da condição – nas suas duas formas da linguagem científica e da linguagem da educação – já não é, para si, um meio de progresso, nem em si (como se evidencia nas categorias posteriores) um fim para ela própria. Ela serve à obra (Weil, 2012, p. 503WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.).
É nesse eixo que deve ser compreendido o uso da linguagem da condição pela obra: trata-se de subordinar a primeira à segunda para convencer os colaboradores necessários à imediaticidade do projeto (Weil, 2012, p. 503WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.). “A obra produz, então, sua linguagem própria, uma linguagem na qual ela se apresenta e se impõe aos homens que, por sua vez, não têm obra” (Weil, 2012, p. 503WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.). Essa linguagem busca apropriar-se de um tédio manifesto nos indivíduos quando ela lhes mostra que seus valores não eram autênticos e que suas vidas não apresentavam sentido. Entretanto, esse tédio deve existir na medida em que se preste ao projeto, pois, generalizado ao extremo, destruiria o nível de organização requerido para a empreitada (Weil, 2012, p. 504WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.). “O criador quer criar, a linguagem lhe é tecnicamente necessária, mas essa linguagem não tem valor em si mesma: a linguagem age, ela proporciona aquele poder sobre os homens que lhe é indispensável, ela não é o fim em si” (Weil, 2012, p. 504WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.).
A linguagem como ferramenta atende a duas necessidades: deve ser compreensível e deve tornar os homens “seus”, pertencentes à obra. A condição atende a ambas. É compreensível, pois é partilhada por aqueles imersos no mundo do trabalho. Engendra colaboradores, pois permite ao homem da obra atrelá-los e descarregar sobre eles o trabalho e a organização atordoando os pela vertigem do movimento da obra. Para levar a cabo esse objetivo, a linguagem da obra deve falar ao sentimento. Esse sentimento deve criar uma nova imagem, cuja escolha depende exclusivamente da eficácia nas suas necessidades (Canivez, 1993, pp. 64-65CANIVEZ, P. “Le sa politique et logique dans l’oeuvre d’Eric Weil”. Paris: Eitions Kimé, 1993.).
Essa análise da sua linguagem permite explicitar a tendência da obra de ingerir traços de outras categorias e duplicá-las de modo distorcido para manter seu movimento. No exemplo, vemos como ocorre a fagocitose do aspecto da eficácia presente na condição, assimilado e distorcido numa eficácia própria orientada pela imagem adequada ao sentimento. Contudo, a obra pode realizar esse processo com qualquer categoria que se mostre adequada. Podemos agora passar ao próximo nível dessa linguagem, aquele que trata da sua forma.
3. A forma
Esse nível é composto de seis traços que estão interligados: mito, metáfora, sentimento, serventia, proposição e imperativo. Vamos apresentar cada um separadamente.
3.1. Mito
O conteúdo da linguagem da obra pode ser definido por um oximoro: é movediço e constante. Move-se de acordo com as necessidades do criador, muito embora permaneça invariável. Assim, essa característica espelha o aspecto contraditório da obra por meio da sua linguagem: “se for necessário designar por meio de um termo seu conteúdo movente e sempre idêntico (para nós), pode-se chamá-lo de mito” (Weil, 2012, p. 506WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012., grifo do autor). O mito exerce um papel importante na linguagem da obra atuando como o elemento que põe o raciocínio, a linguagem da condição, no seu devido lugar: como um instrumento. Tudo que for matéria-prima para a obra, como a tradição, o Estado, os valores, assim o será pela intervenção do mito (Weil, 2012, p. 506WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.).
O mito da obra caminha rumo à criação do mundo e seu único valor consiste em ser eficaz nesse projeto. Pode-se pensar que o mito da obra encerra um significado oculto, esotérico – oposto ao exotérico –, porém, ela não exprime uma filosofia ou visão de mundo a partir da qual se possa discutir a verdade.17 17 Conferir a esse respeito Canivez, 1999, pp. 63-65. O mito enquanto linguagem é uma imagem que impõe a forma da obra ao mundo.
O conteúdo deste mito não é destinado nem está apto a regular a vida e os atos dos homens que seguem e devem seguir as receitas da comunidade do trabalho. Ele não se baseia na tradição real (a tradição viva da comunidade é contada entre os fatores de ordem técnica), mas cria para si uma tradição, ela própria mítica. Ela não dá ao homem um lugar estável num mundo compreendido, mas permite-lhe manter-se pronto para o movimento que o arrastará, juntamente com o mundo de sua tradição viva (Weil, 2012, p. 506WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.).
É a instabilidade que executa essa atribuição. Ao estabelecer o que é matéria-prima para a obra, o mito prepara o colaborador para a criação da obra no seu movimento ininterrupto. O caráter cinético da obra apronta o material, e é o mito que executa essa preparação. Assim como a tradição torna-se ingrediente útil à criação da obra, os colaboradores, ao serem preparados para o movimento contínuo da obra em curso, pela intervenção do mito, são separados dos adversários.
A linguagem do homem da obra e o mito que ela contém não julgam, portanto, a si mesmos, e não podem ser julgados: são ou não são eficazes, pois são a expressão – mais exatamente, a ação – do homem só que não tem ninguém ao seu lado, no âmbito de sua obra e de seu mito. Ele tem colaboradores, pode ter amigos entre aqueles que sem colaborar com sua obra, aceitam seu mito; ele conhece inimigos, precisamente aqueles que opõem ao seu mito outro mito (porque, para ele, tudo é mito, isto é: toda expressão humana, mesmo aquela que parece excluir a ação sobre os homens, visa tão somente à ação e tem outro sentido); mas ele não pode ter iguais: os homens são a massa, o material da obra (Weil, 2012, pp. 506-507WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.).
Podemos extrair dois pontos desse excerto de Weil para a compreensão da importância do mito. Em primeiro lugar, ao reduzir toda expressão humana à qualidade de mito, esse traço da obra atua como um espelho distorcido do absoluto; pois se este compreende a violência como momento da particularidade no interior do pensamento universal, a obra reduz toda expressão de sentimento à condição de mito, muito embora inexista esforço de compreensão: o mito que não é imediato à obra, é adversário, excluído precisamente pela imediaticidade da obra, que atua como uma espécie de membrana separando da unidade o que não é o sentimento da obra. Em segundo lugar, ao considerar o conjunto dos colaboradores, a massa, como material para a obra, o mito atua, preparando-os para o movimento contínuo, como o pedreiro que, com matéria e movimento de enxada, prepara a argamassa para a construção.
Por certo essa massa não é absolutamente informe, ela não é uma simples soma de indivíduos; ao contrário, ela está organizada na sociedade e no Estado, e é de interesse da obra manter essa organização – e não desfazê-la – para dela se servir, mas opondo-lhe ao mesmo tempo o seu mito (Weil, 2012, p. 507WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.).
A imagem da obra revela o segredo do mito. E tudo aqui se relaciona com a eficiência. Isso porque a humanidade para o criador da obra é uma massa que deve ser separada no seu caráter amorfo entre dois grupos: colaboradores e inimigos. Essa separação é empreendida pelo mito. O mito está relacionado com a imagem. Na verdade, o mito é assim porque a imagem não é imagem de nada. Ela não tem referente algum. Ela não se reduz a nenhum argumento ou não tem nenhum raciocínio como fundamento. Tudo que a imagem é – e o que a torna mito –, é no movimento da obra e conduz a esse movimento. Assim, o mito apenas serve para alimentar a energia do movimento.18 18 Canivez considera que a linguagem da obra é dotada de três características: a primeira é a inexistência de qualquer sentido desvinculado de sua função de ferramenta; a segunda é que ela é imagem; a terceira, que essa imagem é mito (1993, p. 65). A imagem da obra é uma falsificação da verdade, pois ela se confunde com sua realização assim como a linguagem da obra se confunde com sua própria utilidade (Canivez, 1993, p. 65CANIVEZ, P. “Le sa politique et logique dans l’oeuvre d’Eric Weil”. Paris: Eitions Kimé, 1993.). Nisso reside também uma das ironias da obra: o mito é uma distorção do reconhecimento. Segundo Canivez, o mito serve eminentemente para utilizar a espécie. Além disso, o pseudorreconhecimento engendrado pelo mito promete àqueles identificados como colaboradores a dignidade por eles aspirada (1993, p. 66).
3.2. Metáfora
É a metáfora que acolhe o conteúdo plástico da linguagem e que também exerce uma função: os colaboradores se sagrarão com o efeito da metáfora (Weil, 2012, p. 505WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.).
Quanto a estes, eles tomarão a metáfora como metáfora e recebê-la-ão sem julgá-la conforme o raciocínio, e mais justificadamente ainda sem recusá-la por seu caráter metafórico: aqueles que raciocinam não são, em caso algum, utilizáveis para a obra e devem ser tratados como inimigos (Weil, 2012, pp. 505-506WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.).
A metáfora é necessária devido à imediaticidade da obra. Como é impossível separar a obra de sua criação, só é possível falar dela apelando ao sentimento e por meio de metáforas (Weil, 2012, p. 507WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.). A plasticidade é um elemento extremamente importante para a linguagem da obra. Como ela fala ao sentimento, seu projeto deve chegar imediatamente e insuflar o sentimento. É a ponte para o sentimento do criador da obra que alcança o solo fértil do colaborador cuja terra fervilha com o tédio e a revolta, perfeitos para firmarem as bases da arquitetura da obra.
3.3. Sentimento
Aqui esse conceito significa tanto o sentimento do criador da obra quanto o daquele que será colaborador do projeto. O sentimento do criador expressa “sua unicidade e a de sua obra” (Weil, 2012, p. 505WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.).
Toda linguagem para a atitude da obra é outro. A marca de separação é o sentimento de si do homem da obra, pois esse sentimento é o “caráter do que é imediato” (Weil, 2012, p. 500WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012., grifo do autor). Eis a fonte da imediaticidade, pois é esse sentimento a contraparte do Absoluto, a violência total que não admite nada que não seja ela mesma. Isso reafirma que o homem está imediatamente em sua obra, pois ela é a sua realização (Weil, 2012, pp. 499-501WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.). Isso, contudo, não significa que a obra não precise apelar para os sentimentos da sua matéria-prima: seus colaboradores. O sentimento dos colaboradores é aquele que pode ser capitaneado pelo criador para se tornar uma extensão dos sentimentos dele próprio. Para tanto, é necessário que esse sentimento esteja devidamente preparado, fervilhante em uma solução de tédio e ódio. O sentimento do colaborador é o liame com a função da obra de identificar e separá-los dos inimigos. Para expressar e realizar esse sentimento, o conteúdo não é o determinante, podendo inclusive ser contraditório. O sentimento do colaborador será o que o identificará como tal, separando-o da taxonomia de obstáculo para a obra. É por um vazio, uma insatisfação com a sociedade do trabalho, que eles se tornam comprometidos,19 19 Weil alerta que uma crise econômica sucedendo um progresso que implementou melhorias na vida dos cidadãos pode ser a geratriz de um desespero. Tal sentimento pode ser a semente que encerra uma espécie de revolta que eclodirá na forma de seres violentos (1991, pp. 308-309). Nessas ocasiões, pode surgir um tipo de líder das multidões desamparadas (1991, pp. 319-320), cujo apelo que ele dirige às massas depende de sua configuração. Massas mais jovens e não organizadas atendem palavras de ordem mais simplificadas. Para massas antigas, que não romperam de forma brutal com o passado tradicional, os valores tradicionais renascem à memória por uma linguagem mais calculada e racional, mais respeitosa da moral (1991, p. 297). ou seja, atraídos pela promessa da obra.
Na realidade histórica (no sentido da categoria da condição), a influência do mito será maior ou menor de acordo com o papel desempenhado – para os homens – pelo trabalho de um lado, e pelo sentimento, de outro, e a menos que o desejo se sinta insatisfeito, isto é, que os homens escapem, em certa medida, à organização da sociedade e do Estado, eles não sentem a necessidade do melhor e não se tornam acessíveis à promessa do projeto, promessa esta que é vazia, e vazia de sentido para o pensamento da condição, satisfeito como ele está na ideia de progresso, e satisfatório para aqueles que não estão à altura desta ideia, ao fornecer-lhes um sucedâneo de pensamento (Weil, 2012, p. 507WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.).
A obra oferece um substituto para a satisfação proporcionada pelo mundo do trabalho ilustrado pela condição. Apelando para o sentimento de insatisfação dos colaboradores, ela oferece algo em troca do pensamento da condição, apropriando-se da sua linguagem e de tudo que é descrito por ela: a organização e a eficácia técnica do mundo do trabalho, a burocracia do Estado. Eis por que o tédio não pode se disseminar entre os indivíduos de tal modo que solape os instrumentos de que a obra carece. Desalojada dos corações, a condição cede à obra tudo de que ela necessita.
3.4. Serventia
Perine evidencia o uso que a linguagem da obra tem em uma atitude que se caracteriza pelo mutismo: quando fala, o criador o faz apenas em vista e em função de sua obra. Sua linguagem, portanto, se caracteriza apenas por sua serventia (1987, p. 171). Quando se diz que aquele que vive na atitude se serve de uma linguagem como instrumento da obra, isso não é o mesmo que dizer que ele tem uma linguagem (Weil, 2012, p. 502WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.). A primeira possibilidade insere o homem na linguagem. Não é o caso que apresentamos aqui.
O homem da obra está fora da linguagem ‘filosófica’. No entanto, não apenas o discurso que chegou à maturidade pode falar dele, não apenas o homem na segurança de sua obra deixa falar de si, sabendo que se pode falar de tudo: ele próprio fala. Mas essa linguagem é fundamentalmente diferente de qualquer linguagem anterior (Weil, 2012, p. 501WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.).
Dizer que o homem da obra está ‘fora’ da linguagem filosófica significa que ele não tem uma linguagem, pois isso significaria romper com a imediaticidade da obra (Weil, 2012, p. 515-516WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.). A linguagem utilizada pela atitude é diversa de qualquer linguagem anterior, significando que o homem da obra não se vale de nenhum dos recursos das categorias que foram ultrapassadas – logicamente – para mediar uma compreensão e um entendimento coerente do seu empreendimento. Isso faz com que mesmo a linguagem da condição entre nessa rejeição cabal: a condição interessa à obra como apetrecho, não enquanto instância de compreensão. As categorias anteriores apenas podem aparecer para a atitude enquanto utensílios, não reconhecidas enquanto discurso. A linguagem tem serventia apenas porque se mostra um meio para a execução da obra, que é puro fazer, ou seja, não há um pensamento anterior ao fazer. A linguagem, portanto, é um meio que se mostra adequado na concomitância da obra. O homem da obra é o senhor da linguagem, dominando-a. Isso se dá apenas para arregimentar colaboradores. Isso significa que uma linguagem é requerida apenas porque os seres humanos que estão no mundo falam (Weil, 2012, p. 502-503WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.). Seu falar se distingue por buscar um efeito: converter o outro em ferramenta, de modo que ele se torne afeito ao convite da obra. Assim, o efeito que a linguagem da obra almeja é transformar, sem que ele o perceba, o outro em escravo que não discute, não sendo sequer a justificação de uma teoria da força (Kirscher, 1992, p. 34KIRSCHER, G. “Figures de la violence et de la modernité: Essais sur la philosophie d’Eric Weil”. Lille: Presses Universitaires de Lille, 1992.).
A linguagem da violência pura apresenta um regime logocrático que tem duplo sentido: é exotérica e esotérica, tendo um sentido para os iniciados e outro para aqueles que não fazem parte do seu círculo. O regime é logocrático, pois é uma linguagem fundamentada em um poder sedutor e enganoso, o que caracteriza seu aspecto demoníaco. O poder desnudo desse demoníaco se reveste de aparência de autoridade e de razão, mas na verdade é um sistema patogênico que educa para o mal, pois conduz a uma indiferença diante do horror. Esse aspecto da linguagem serve à função de separar adversários de colaboradores. Isso porque esse poder constitui uma verdadeira metafísica do ódio ao outro, reduzido ao status de obstáculo de um futuro brilhante por sua maldade essencial. A violência pura, assim, por meio desse traço da sua linguagem, faz com que seus colaboradores enxerguem no outro o mal absoluto, fazendo com que os colaboradores sejam possuídos por uma vontade demente, diabólica (Caillois, 1984, p. 221CAILLOIS, R. “La violence pure est-elle démoniaque?” In: Actualité d’Éric Weil. Paris: Éditions Beauchesne, 1984. pp. 213-222.). Isso esclarece a serventia da obra: disseminar o sentimento violento do criador.
3.5. Proposição
A proposição expressa o caráter paupérrimo da linguagem da obra. Esse traço é suficiente, contudo, para recusar o universal do discurso absolutamente coerente (Perine, 1987, p. 172-173PERINE, M. “Filosofia e violência: sentido e intenção da filosofia de Éric Weil”. São Paulo:Edições Loyola, 1987.). Bem compreendido, aquilo que o criador fala, não importa de qual formalidade ele se valha, é invariavelmente a mesma coisa:
Essa linguagem diz uma única coisa: ‘A obra importa, e nada mais’; mas essa proposição única basta para recusar e rejeitar todo o pensamento, isto é, o universal no sentido do discurso absolutamente coerente, e para substituí-lo pela obra, que se torna, assim, categoria pela qual todas as coisas recebem sua função nos julgamentos do homem da atitude (Weil, 2012, p. 513WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.).
Proposição aqui não deve ser entendida como um fenômeno da obra, ou seja, como significando que todo homem da obra materializa essa sentença nos seus discursos. Trata-se de um recurso de compreensão: do ponto de vista da filosofia, a linguagem da obra pode ser compreendida pelo recurso a esse conceito que extrai a forma subjacente às próprias categorias filosóficas (Weil, 2012, p. 506WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.) que são utilizadas para atingir aqueles a quem a obra se dirige. É nesse horizonte que emolduramos o seguinte trecho de Weil que se dá em sequência à apresentação da proposição:
Em tudo o que diz, o criador da obra é sincero assim; as formas não contam para ele, e quer fale de grandeza, quer de bondade, de amor ou de luta, de salvação ou de alegria, ele não mente – nem que fosse porque a ideia de mentira não poderia se encaixar nesse plano, dado que no movimento não pode haver verdade; verdade e mentira existem juntas para outras categorias; uma vez que tenham sido ultrapassadas, a oposição desaparece junto com os termos que a compõem (2012, p. 506).
Não importa para a eficácia da proposição que sua forma seja paupérrima, assim como tal pauperismo não interfere na formalidade, que pode ser mais ou menos exigente conforme a necessidade de atingir determinados colaboradores. Essa formalidade é extremamente eficaz na substituição do pensamento válido universalmente pela própria obra, constituindo o aspecto total da violência da atitude e evidenciando a categoria para aquele que opta pelo discurso da razão (Weil, 2012, p. 513WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.).
É pela proposição que a obra nega a linguagem das categorias anteriores. Quando caem na sua forma, passam pelo filtro da proposição e desembocam na serventia. Se é a recusa da razão que fornece a categoria dessa atitude, a obra se mostra como categoria ao declarar absurdas as linguagens de todas as outras categorias (Weil, 2012, p. 515WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.). A linguagem da obra relaciona a categoria com todas as anteriores, tornando-as abertas para sua proposição (Kirscher, 1989, p. 311KIRSCHER, G. “La philosophie d’Eric Weil”. Paris: Presses Universitaires de France, 1989.).
3.6. Imperativo
A linguagem do absoluto é aquela que é “válida e – filosoficamente – satisfatória para todos e para cada um” (Weil, 2012, p. 511WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.). A essa linguagem, o homem da obra é perfeitamente indiferente. Como o julgamento do seu projeto de um ponto de vista universal não lhe interessa, ele nega esse universal. O que é necessário é apenas o que a obra assim exige, o que não carece de justificações e pode ser expresso na sua linguagem pelo imperativo.
O homem da obra não julga, as qualidades de bom ou mau se reduzem a questões técnicas que só lhe interessam secundariamente; ele comanda e seu comando dispensa justificações: ‘Faça isso, faça aquilo. A obra assim o exige!’, eis sua linguagem, que não é nem pretende ser pensada, visto que ela não diz respeito àquele que fala [...]; ela é meio de realização, não instância de julgamento do projeto: o projeto não é julgado, ele julga, e a razão pertence àquele que dela se apossa (Weil, 2012, pp. 512-513WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.).
A exigência cumpre no imperativo também uma função: é o sucedâneo da razão. Weil assinala que o imperativo aqui não é moral, no sentido que trate de juízos de uma razão prática que é universalmente válida (2012, p. 512). O imperativo é o elemento que caracteriza a linguagem da obra como própria, diferenciando-a das demais, especialmente daquela da razão, pois reduz tudo que há ao que a obra exige. O imperativo permite antever que a obra tem uma linguagem que é válida apenas para ela própria, ainda que se dirija aos colaboradores, que é avessa à teoria, muito embora reflita a pretensão de totalidade da teoria, atuando como um espelho deformador (Weil, 2012, p. 513WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.) e servindo-se de toda e qualquer linguagem categorial adequada. Ricoeur assinala que esse empréstimo constitui o aspecto do imperativo como a proclamação, o envio à missão (1984, p. 413).
O criador se servirá das outras categorias como lhe aprouver, portanto, para apresentar seu projeto, para apresentar a si mesmo sob as formas mais variadas. Sua escolha dependerá da utilidade maior ou menor desta ou daquela categoria sobre este ou aquele grupo; ela terá a maior importância técnica e não terá nenhuma de ordem categorial, sendo apenas um meio destinado a permitir que o criador possa enfim empregar sua linguagem natural, o imperativo (Weil, 2012, pp. 515-516WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.).
Esse traço colabora com o projeto da obra visando dominar a sociedade e o Estado – os quais não convém abolir, mas remodelar – por meio da totalidade de sua linguagem (Canivez, 1993, p. 64CANIVEZ, P. “Le sa politique et logique dans l’oeuvre d’Eric Weil”. Paris: Eitions Kimé, 1993.). A linguagem busca convencer do valor do seu projeto. A linguagem da obra não busca anunciar o que é, mas formular o que ela quer, de modo que ela não é esforço de compreensão da realidade; ela é comando, não saber. Sua linguagem almeja apenas o controle sobre a matéria inerte, a comunidade dos seres humanos, que deve ser transformada em colaboradores. Desse modo, essa linguagem não é endereçada para interlocutores com os quais se queira debater o valor da obra, mas para colaboradores cuja obediência é o que importa à linguagem (Savadogo, 2003, pp. 174-175SAVADOGO, M. “Éric Weil et l’achèvement de la philosophie dans l’Action”. Namur: Presses Universitaires de Namur, 2003.).
Considerações finais
Concluímos com considerações de duas ordens. A primeira, por meio de um breve debuxo do tema da mentira em Platão,20 20 Uma figura relacionada com a categoria do objeto é Platão. Entre os expedientes utilizados pelo pensador para comunicar verdades filosóficas está o mito (Perine, 2016, pp. 299-303). O tema da mentira ao qual Weil possivelmente alude aparece n’A república: os mitos devem ser rejeitados para fortalecer e habituar à coragem os guardiões (Platão, 2009, pp. 72-75, 386a-388d). Esse papel do mito como forma de comunicar verdades filosóficas é distorcido na criação da obra, o mito a cuja construção sua linguagem se presta sendo de natureza completamente diversa. complementa alguns dos aspectos da linguagem aqui trabalhada. A segunda extrai uma resposta ao imperativo da obra, propondo outro tipo de imperativo para a linguagem, inspirado em Ricoeur. Vamos à primeira ordem dessas considerações.
Na linguagem da obra as fronteiras entre verdade e mentira são borradas e suas definições distorcidas (Weil, 2012, p. 506WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.); o verdadeiro e o falso são incorporados à serventia do projeto, portanto, descaracterizados (Weil, 2012, p. 518WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.). Weil afirma que Platão, não contente em permitir que o governante se valha da mentira, a recomenda (1970, p. 161). Possivelmente ele alude aqui ao trecho do Livro III da República em que Sócrates compara a administração da mentira com a de um medicamento, cabendo a quem é apropriado receitá-lo: o governante (Platão, 2009, pp. 76-77, 388d-389cPLATÃO. “A república”. Tradução, introdução e notas E. M. Teixeira. Fortaleza:Edições UFC, 2009.). Platão distingue dois tipos de mentira. A primeira é o mais real, a chamada “mentira verdadeira, isto é, a ignorância na alma do homem que está enganado” (2009, p. 69, 382b-c). A segunda é menos real por não ser completamente pura, ou seja, misturada com a verdade (Teixeira, 2009, p. 69, nota 38TEIXEIRA, E. “Introdução e notas”. In: PLATÃO. A república. Tradução, introdução e notas E. M. Teixeira. Fortaleza: Edições UFC, 2009.). Essa é a “mentira que se expressa por palavras”, sendo de certo modo “uma imitação da disposição que existe na alma”, “transformada em simulacro” (2009, p. 69, 382b-c). Ela não é considerada justa nem quando é útil, ou seja, direcionada para a insensatez ou loucura dos amigos, pois o que é demônico e divino é oposto à mentira (2009, pp. 69-70, 382c-e). Finalmente, demônico aqui significa o que é enviado pela divindade (Teixeira, 2009, p. 70, nota 39TEIXEIRA, E. “Introdução e notas”. In: PLATÃO. A república. Tradução, introdução e notas E. M. Teixeira. Fortaleza: Edições UFC, 2009.).
A sumária apresentação dessa tratativa socrática da mentira permite organizar as linhas de eixo da relação entre os dois níveis da linguagem da obra que apresentamos nas seções II e III. Se não vejamos. A mentira por palavras platônica, conforme esboçado acima, é uma mistura e um simulacro. Ela recorre a uma disposição existente no indivíduo. Ela tem uma utilidade direcionada à loucura ou insensatez e é oposta ao demônico. Ora, todos esses traços estão presentes, por analogia, na linguagem da obra. A obra não tem, propriamente, conteúdo para sua linguagem, extraindo-o das outras categorias. Esse processo é movido por sua ironia. Assim, a obra faz um simulacro da linguagem da condição, por exemplo, ironizando o sentido de termos como “eficácia”. Esse uso irônico é capaz de misturar linguagens distintas à da condição, como a da certeza. Tal linguagem recorre ao sentimento individual, ao tédio e à revolta das massas enquanto disposições existentes no indivíduo disponíveis ao projeto da obra. Esse recurso é movido por uma utilidade: separar adversários de colaboradores, os primeiros distinguidos dos segundos por aderirem ao projeto insensato da violência demoníaca – e aqui convém demarcar a oposição que pode ser feita entre o demônico e o seu reverso: o demoníaco. A ironia da obra é uma deformação do que toca, atuando como um jogo de espelhos que distorce o que captura. A ironia na obra não refina o pensamento, como a socrática, ela se presta ao oposto: selar, inviabilizar, obstruir o pensamento. Passemos agora à segunda ordem das considerações.
Ricoeur retira três conclusões teóricas e práticas do confronto entre discurso e violência que dizem respeito à noção de sentido e discurso razoável. Em primeiro lugar, a discussão entre discurso e violência tem sentido apenas se for possível falar de uma destinação da linguagem. É no plano da destinação que a busca do sentido se contrapõe à violência. Essa destinação enquanto finalidade é a plena manifestação da orientação de um dinamismo: a vocação da linguagem para exprimir a totalidade do pensável. Em segundo lugar, falar de sentido razoável não é falar exclusivamente de entendimento calculador e inteligência instrumental. Finalmente, quando a inteligência calculista se apodera da linguagem, ela produz os mesmos efeitos da ausência de sentido. Conhecer as estruturas da linguagem não faz avançar na direção de um sentido razoável (1995, pp. 65-66).
Para viver na zona intermediária entre sentido e violência, Ricoeur elabora três regras do bom uso da linguagem no seu confronto com a violência. Primeira: não se deve deixar de considerar a verdade formal da oposição entre discurso e violência. Não deixar de reconhecer a violência como contrário do discurso é condição para não fazer apologia da violência, de considerá-la superada onde não está. Essa regra marca uma moral da responsabilidade (1995, p. 67). Segunda: além de reconhecer como formal a não violência do discurso, ela deve ser tomada como um imperativo: “não matar” é sempre verdade, ainda que não seja praticável; essa regra implica entrar em discussão com um adversário, não com um inimigo e jamais cometer em tempo de guerra um ato que torne a paz impossível. Isso atesta que o fim da história está ligado ao fim da violência. Essa regra marca uma moral da convicção (Ricoeur, 1995, p. 67RICOEUR, P. “Violência e linguagem”. In: Leituras 1: Em torno ao político. Tradução M. Perine. São Paulo: Edições Loyola, 1995.). Terceira: a violência do discurso consiste na pretensão de que apenas uma das modalidades do discurso esgota o império da palavra. A essa violência Ricoeur opõe uma prática não violenta do próprio discurso. Ser não violento é respeitar a pluralidade dos discursos e a diversidade das linguagens, é reservar os lugares apropriados para todos os modos de discurso: por exemplo, o lugar para a linguagem calculadora e todas as linguagens do entendimento. Trata-se de respeitar a multiplicidade, a diversidade e a hierarquia das linguagens. Esse é o modo de trabalhar para o sentido razoável (1995, p. 68).
Inspirados nessas regras apresentadas por Ricoeur, oferecemos algumas características do uso linguístico que a obra faz da linguagem para identificá-lo, opondo imperativos a esse uso: i. Na obra, a linguagem tem apenas serventia, sendo apetrecho para uma obra que a transcende, mas, mesmo nessa transcendência, não há preocupação com o sentido; se a linguagem da ciência também pode cair nessa definição, deve haver ao menos a pergunta pelo sentido da ciência que usa a linguagem, ou seja, deve haver uma relação entre linguagem e sentido: a linguagem deve ser filosófica, se filosofia é busca do sentido. ii. A obra separa os seres humanos entre os que servem ao projeto e os que devem ser exterminados para que os primeiros prevaleçam. A linguagem não deve servir para desumanizar os sujeitos, seu papel fundamental sendo o fortalecimento da consciência da humanidade do outro e do reconhecimento dos direitos da alteridade ao ser; a linguagem da obra serve para erigir diferenças essencialistas entre os indivíduos, separando inimigos de colaboradores e estes do criador da obra. Se o criador não tem iguais, apenas colaboradores, estes, pelo emprego do mito, sentem-se essencialmente separados dos adversários. Não se trata mais de uma oposição entre antagonistas ou do estabelecimento estrito de hierarquias de comando, mas da separação inapelável e essencial entre humanos verdadeiros e infra-humanos. A linguagem não deve ser utilizada para sacramentar esse tipo de separação. iii. A linguagem da obra desencadeia um reino de violência pura no mundo. Será legítimo o uso da linguagem que tenha como fim o desvelamento e a erradicação da violência no mundo; é ilegítimo o uso da linguagem cujo propósito final seja a pura semeadura da violência.
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Na sua obra principal, Lógica da filosofia, Weil apresenta 18 possibilidades para o discurso filosófico: as categorias. Uma atitude é uma forma de viver e estar no mundo. Nem toda atitude gera uma categoria. Apenas quando essa forma atitude reflete sobre seu essencial a atitude se torna uma categoria. É o conjunto das categorias que permite a ideia de uma lógica da filosofia enquanto sucessão dos discursos nos quais o ser humano compreendeu as suas realizações e se compreendeu nas suas realizações. A passagem de uma atitude para uma categoria mostra como o discurso se forma na história a partir de uma atitude que não se é obrigado a deixar; de como aquilo que é implicitamente reconhecido pela atitude chega a sua consciência. A lógica da filosofia enquanto compreensão compreensiva (Perine, 1987, pp. 136-138PERINE, M. “Filosofia e violência: sentido e intenção da filosofia de Éric Weil”. São Paulo:Edições Loyola, 1987.).
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O tripé obra, finito e ação marca o segundo movimento da Lógica, com o qual surge a primeira ruptura irreparável do discurso, a tentativa de reconhecer no discurso uma atitude que é a do homem violento (Perine, 1987, p. 150PERINE, M. “Filosofia e violência: sentido e intenção da filosofia de Éric Weil”. São Paulo:Edições Loyola, 1987.). A obra é categoria da revolta (Perine, 1987, p. 169PERINE, M. “Filosofia e violência: sentido e intenção da filosofia de Éric Weil”. São Paulo:Edições Loyola, 1987.). “Para Weil, a violência é o outro irredutível da razão, ela não é um não-ainda-tornado-razão. Ela é a recusa sempre definitiva e inapelável a toda autoridade da razão, não a sua arma ou o instrumento da sua astúcia” (Perine, 1987, p. 169PERINE, M. “Filosofia e violência: sentido e intenção da filosofia de Éric Weil”. São Paulo:Edições Loyola, 1987.). A violência encontrada na obra é aquilo que é incompreensível para a categoria do absoluto, categoria que assinala a possibilidade filosófica do discurso absolutamente coerente. Se a pretensão é refutar o absoluto, só é possível fazê-lo no seu próprio campo. Entretanto, a obra não pretende refutar o absoluto. Indo mais longe, a obra pergunta se é preciso pensar. Além disso, a obra apresenta como característica da sua atitude a preponderância do sentimento de si sobre o falar: o homem da obra separa-se do discurso, deixa de ocupar-se com o discurso para ser (Perine, 1987, pp. 169-170PERINE, M. “Filosofia e violência: sentido e intenção da filosofia de Éric Weil”. São Paulo:Edições Loyola, 1987.).
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Sobre uma forma de ver a relação entre linguagem e discurso em Weil a partir de uma interpretação hermenêutica do autor, ver BERNARDO, L. M. A. V. “Linguagem e discurso: uma hipótese hermenêutica sobre a filosofia de Eric Weil”. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2003.
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A violência é o silêncio, silêncio inicial, anterior à reflexão, silêncio do bruto. A consciência da violência que quer ser violência conduz ao silêncio da brutalidade humana (Weil, 2011, p. 231WEIL, E. “Filosofia política”. Tradução M. Perine. São Paulo: Edições Loyola, 2011.). A obra é o caso mais exacerbado de uma atitude que se recusa a ser categoria, rejeitando a coerência. Isso é o que significa dizer que ela é antifilosófica: a obra é atitude que deseja permanecer como tal, privada de todo discurso, manifestando-se no seu silêncio (Kirscher, 1989, p. 304-305KIRSCHER, G. “La philosophie d’Eric Weil”. Paris: Presses Universitaires de France, 1989.).
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Sobre o conceito de massas em Weil, ver 1991, pp. 255-294.
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Conferir a esse respeito Weil (2012, pp. 160-161, pp. 242)WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012. e Perine (1987, pp. 140-141)PERINE, M. “Filosofia e violência: sentido e intenção da filosofia de Éric Weil”. São Paulo:Edições Loyola, 1987..
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Como exemplo, podemos indicar as regras de linguagem (Sprachregelung) a respeito da solução final discutidas por Arendt (1999, pp. 100-101)ARENDT, H. “Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal”. TraduçãoJosé Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999..
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Um exemplo é o uso do mito nos discursos de Mussolini (Stanley, 2019, p. 21STANLEY, J. “Como funciona o fascismo: a política do ‘nós’ e ‘eles’”. Tradução B. Alexander. Porto Alegre: L&PM, 2019.).
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Como exemplo, indicamos o excelente trabalho de Bignotto (2022, pp. 120-174)BIGNOTTO, N. “Bolsonaro e o bolsonarismo entre o populismo e o fascismo”. In: BIGNOTTO, N. et al. Linguagem da destruição: a democracia brasileira em crise. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.. Agradecemos a gentil indicação de Marcelo Perine.
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Registramos nossos agradecimentos à sugestão generosa de Francisco Valdério, dada no contexto dos encontros do Núcleo de Estudos Avançados de Filosofia (NEAFILOS) da Universidade Estadual do Maranhão (UEMA).
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A retomada expressa a passagem de uma categoria a outra tanto na sua circularidade quanto na sua linearidade, enquanto fenômeno histórico. Trata-se da apropriação de uma linguagem antiga, de uma categoria já ultrapassada, pela nova atitude que lhe sucede (Perine, 1987, p. 141PERINE, M. “Filosofia e violência: sentido e intenção da filosofia de Éric Weil”. São Paulo:Edições Loyola, 1987.).
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A obra é a atitude refratária a toda justificativa do seu projeto. Sendo assim, como é possível falar de uma tentativa de justificar a obra perante o “tribunal de seu pensamento”, como afirma Weil? Para compreender essa afirmação, convém primeiramente atentar que a obra é rejeição do Pensamento universal para ser esse universal (2012, pp. 487-488). Esse Pensamento de nada serve ao criador da obra (Weil, 2012, p. 494WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.). O pensamento que lhe interessa é aquele que chega pela via da condição e que alcança o indivíduo entediado: “Ele pensa, mas isso de nada lhe adianta. Ele não pode não pensar, porque essa é a sua maneira de ser, sua condição; mas seria melhor que ele se limitasse ao raciocínio, àquele pensamento com minúscula que é o servo do trabalho: ele nada tem a ganhar elevando-se ao Absoluto, exceto o silêncio de todas as vozes que lhe prometiam uma dignidade maior, um valor mais autêntico, um desprendimento mais completo” (Weil, 2012, p. 494WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.). Esse recurso ao pensamento com minúsculas pode ocorrer quando o criador encontra concorrentes que opõem à obra outro projeto. Nesse caso, surge a retomada de justificação (Weil, 2012, p. 518WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.). É crucial, portanto, compreender que não é ao Pensamento ou à Razão que a obra se justifica: tudo se orienta para a eficácia do projeto – e isso passa pela aquisição do material necessário.
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É importante registrar que apreciação aqui não significa apologia. A retomada de apreciação, pelo contrário, realiza a passagem da obra para o plano da linguagem do crítico (Weil, 2012, p. 518WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.). A apreciação é, portanto, a visão crítica da obra por outra atitude-categoria com a linguagem que lhe é própria. Como exemplo de uma retomada de apreciação da obra pelo finito, podemos citar as análises de Jaspers sobre a situação da Alemanha após a queda do nazismo (2018, pp. 39-74).
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Esse elemento mutável e cambiante mostra a importância da categoria para a filosofia, pois explicita um traço que Weil atribui à violência mesma: a variedade de formas (2003, pp. 9-10).
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A linguagem do homem da condição é a da ciência em progresso, ciência do trabalho, a técnica, cuja linguagem é a do agir. Essa linguagem é somente um instrumento para o conhecimento das condições (Weil, 2012, pp. 291-292WEIL, E. “Lógica da Filosofia”. Tradução L. C. Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2012.).
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O governo dos Estados modernos serve-se da administração, que é o aparelho racional e técnico destinado a dar pareceres e executar as intenções do governo. Ela é a consciência técnica racional do Estado. Sua importância é tão grande que sua presença não só define um dos elementos do Estado moderno como por vezes pode ser confundida com ele. Essa destacada importância da administração carrega o perigo de que ela escape ao controle do governo e o domine, como um órgão intumescido de maneira patológica que desequilibra a saúde do corpo. Um governo cego pode também canalizar as forças da administração eficiente para prolongar do reino da violência com a ajuda do entendimento calculista, que é tão irracional que chega a descartar as objeções da própria administração quanto ao sucesso do projeto (Weil, 2011, pp. 180-187WEIL, E. “Filosofia política”. Tradução M. Perine. São Paulo: Edições Loyola, 2011.).
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Conferir a esse respeito Canivez, 1999, pp. 63-65CANIVEZ, P. “Weil”. Paris: Les Belles Lettres, 1999..
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Canivez considera que a linguagem da obra é dotada de três características: a primeira é a inexistência de qualquer sentido desvinculado de sua função de ferramenta; a segunda é que ela é imagem; a terceira, que essa imagem é mito (1993, p. 65).
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Weil alerta que uma crise econômica sucedendo um progresso que implementou melhorias na vida dos cidadãos pode ser a geratriz de um desespero. Tal sentimento pode ser a semente que encerra uma espécie de revolta que eclodirá na forma de seres violentos (1991, pp. 308-309). Nessas ocasiões, pode surgir um tipo de líder das multidões desamparadas (1991, pp. 319-320), cujo apelo que ele dirige às massas depende de sua configuração. Massas mais jovens e não organizadas atendem palavras de ordem mais simplificadas. Para massas antigas, que não romperam de forma brutal com o passado tradicional, os valores tradicionais renascem à memória por uma linguagem mais calculada e racional, mais respeitosa da moral (1991, p. 297).
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Uma figura relacionada com a categoria do objeto é Platão. Entre os expedientes utilizados pelo pensador para comunicar verdades filosóficas está o mito (Perine, 2016, pp. 299-303PERINE, M. “Platônicos sem mito e sem deus”. In: PERINE, M., COSTESKI, E. (eds.).Violência, educação e globalização: compreender o nosso tempo com Eric Weil. São Paulo: Edições Loyola, 2016.). O tema da mentira ao qual Weil possivelmente alude aparece n’A república: os mitos devem ser rejeitados para fortalecer e habituar à coragem os guardiões (Platão, 2009, pp. 72-75, 386a-388dPLATÃO. “A república”. Tradução, introdução e notas E. M. Teixeira. Fortaleza:Edições UFC, 2009.). Esse papel do mito como forma de comunicar verdades filosóficas é distorcido na criação da obra, o mito a cuja construção sua linguagem se presta sendo de natureza completamente diversa.
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Agradecemos pela sempre obsequiosa leitura de Evanildo Costeski.
Referências
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- BERNARDO, L. M. A. V. “Linguagem e discurso: uma hipótese hermenêutica sobre a filosofia de Eric Weil”. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2003.
- BIGNOTTO, N. “Bolsonaro e o bolsonarismo entre o populismo e o fascismo”. In: BIGNOTTO, N. et al Linguagem da destruição: a democracia brasileira em crise São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
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- CANIVEZ, P. “Weil”. Paris: Les Belles Lettres, 1999.
- CANIVEZ, P. “Le sa politique et logique dans l’oeuvre d’Eric Weil”. Paris: Eitions Kimé, 1993.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
03 Nov 2023 -
Data do Fascículo
Ago 2023
Histórico
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Recebido
21 Jul 2022 -
Aceito
08 Nov 2022