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Uma crítica à refutação lógica da macroeconomia neoclássica

A criticism of the logical refutation of neoclassical macroeconomics

RESUMO

Este artigo é uma resposta ao artigo de Gilson Schwartz, publicado na Revista de Economia Política, vol. 9, n. 1. Mostra que sua pretendida refutação lógica da teoria macroeconômica neoclássica se deve a mal-entendidos conceituais. Demonstra esses mal-entendidos e sugere algumas formas mais razoáveis de crítica à macroeconomia neoclássica.

PALAVRAS-CHAVE:
Teoria neoclássica; metodologia da economia

ABSTRACT

This paper is an answer to Gilson Schwartz’s paper, published in Revista de Economia Política, vol. 9, n. 1. It shows that his intended logical refutation of the neoclassical macroeconomic theory falls due to conceptual misunderstandings. It demonstrates these misunderstandings and suggests some more reasonable ways of criticism to neoclassical macroeconomics.

KEYWORDS:
Neoclassic theory; methodology of economy

INTRODUÇÃO

Em artigo publicado recentemente (Revista de Economia Política, vol. 9, n. 1, jan-mar/89) Gilson Schwartz promoveu uma tentativa de refutação lógica da macroeconomia neoclássica. Ao contrário das críticas usuais (“externas”, no seu entender), Schwartz pretende ter realizado uma crítica “interna” à macroeconomia neoclássica, procurando atingir seus fundamentos lógicos. O percurso desta crítica pode ser dividido em duas partes. Na primeira delas, apoiado na obra de Schmitt, Schwartz faz uma breve análise da teoria dos preços, afirmando inicialmente que a noção de preço está necessariamente ligada à efetivação de um ato de troca. Apenas nestes instantes - “ti” -, então, é que se verificaria a “identidade” entre oferta e demanda. Nos demais instantes “tj” -, no intervalo entre os instantes finitos da troca, oferta e demanda são “fatores” distintos, podendo aí se constatar eventuais excessos de demanda ou oferta, ocorrendo o ajuste via preços.

O segundo passo de sua critica é examinar a analogia entre a teoria dos preços e a teoria da renda. Nesta última afirma, baseado em Schmitt, que a “identidade” entre oferta e demanda ocorre em todos os instantes de tempo (ti e tj), em virtude da identidade macroeconômica básica, ao contrário do que ocorre na teoria microeconômica dos preços. Não há espaço, portanto, para a ocorrência do excesso de demanda e para que opere o mecanismo dinâmico de ajuste via quantidades. Logo, segundo Schwartz, a analogia com a teoria dos preços é falsa e há um erro lógico em postular Y=C+I como condição de equilíbrio, quando Y≡C+I é a identidade macroeconômica básica. Um mesmo objeto não pode ser, simultaneamente, uma tautologia e uma condição de equilíbrio.

Esta é, em linhas gerais, a démarche de Schwartz. Cremos, no entanto, que este autor cometeu alguns equívocos teóricos básicos que inviabilizam o seu esforço. Neste ensaio procuraremos destacar estes problemas, bem como indicar caminhos alternativos de críticas à macroeconomia.

TEORIA DOS PREÇOS

Em sua análise da teoria dos preços, quando se refere à temporalidade do equilíbrio, Schwartz afirma que” (...) quando se fala em ‘preço’, subentende-se a efetivação de um ato de troca. Uma sucessão de atos de troca define uma sequência de instantes em que ocorre a troca. A cada ato de troca corresponde a igualdade entre oferta e demanda. Uma mesma transação pode ser chamada de oferta ou demanda” (Schwartz, 1989Schwartz, G. (1989) “Uma Nota sobre a Refutação Lógica da Macroeconomia Neoclássica”, Revista de Economia Política, vol 9, n. 1., p. 90, grifo nosso). Há nesta passagem duas confusões conceituais de grandes proporções e uma afirmação que não possui validade geral e que, portanto, precisa ser corretamente qualificada.

A primeira confusão é acreditar que a noção de preços está vinculada à efetivação de um ato de troca, como quer Schmitt, de modo que só seria possível associar relações numéricas a bens no ato da troca, inexistindo comensurabilidade entre oferta e demanda fora dela (Schmitt, 1988Schmitt, B. (1988) “The Identity of Agreggate Supply and Demand in Time”, in Barrére, A. (ed.), Foundations of Keynesian Analysis, MacMillan Press, Londres., p. 178). Suponhamos, porém, que o indivíduo “i” vá ao mercado onde se troca o bem A (exemplares do Compêndio dos Elementos de Economia Política Pura, de Walras) pelo bem B (exemplares do Macroeconomic Theory: a Fundamental Revision, de Schmitt) e onde o preço de B em termos de A seja PBA=2. Isto significa que dois exemplares do Compêndio são trocados por um único exemplar do Macroeconomic Theory. Dado PBA, “i”, que é detentor do Macroeconomic Theory, decide demandar DA=10 exemplares do Compêndio, o que vem a ser a mesma decisão de ofertar OB=5 exemplares do Macroeconomic Theory. “Mas se, por exemplo, estivesse impedido de ir ao mercado, ou se, por uma razão ou por outra, tivesse que fazer uma encomenda a um amigo, ou dar suas ordens a um agente, deveria prever todos os valores possíveis de PBA, desde zero até o infinito, e determinar, em consequência, todos os valores correspondentes de DA, exprimindo-os de alguma maneira [em nosso caso em termos de B]” (Walras, 1983Walras, L. (1983) Compêndio dos Elementos de Economia Política Pura, Ed. Abril, S. Paulo., p. 42, grifo nosso). Fica claro, portanto, que a noção de preço ou termos de troca define-se independentemente da efetivação de um ato de troca. Preços representam meramente proporções possíveis de troca entre dois bens, segundo as quais determinado agente estaria disposto a realizar a troca.

Mantendo nosso exemplo, suponhamos agora que há dez pessoas ofertando 10 exemplares do Compêndio em troca de 5 exemplares do Macroeconomic Theory e sete pessoas ofertando 5 unidades do Macroeconomic Theory em troca de 10 exemplares do Compêndio. Neste caso temos:

O A = 100 ; D A = 70 O A > D A

O B = 35 ; D B = 50 O B < D B

Temos aí duas possibilidades. Num primeiro caso podemos supor que sete entre os dez demandantes do Macroeconomic Theory (ou ofertantes do Compêndio) encontram os sete demandantes do Compêndio (ou ofertantes do Macroeconomic Theory) e realizam suas trocas na proporção PBA=2. Neste caso podemos dizer que a troca foi efetuada pelo “lado curto do mercado” (ofertantes do Macroeconomic Theory), enquanto os ofertantes do Compêndio estão “racionados”. Temos assim a troca efetivada, embora oferta e demanda sejam diferentes, caracterizando o chamado “equilíbrio não-walrasiano”. Não necessariamente, portanto, “um ato de troca corresponde à igualdade entre oferta e demanda”, cabendo aí a qualificação a que nos referíamos quanto à passagem supracitada de Schwartz.

No segundo caso pode ocorrer, entretanto, que os agentes (ou um leiloeiro central) percebam que OA>DA e tenha início um processo de ajuste de preços, no qual PaA deverá diminuir até que OA=DA. É necessário, pois, algum mecanismo coordenador para que haja a igualdade entre oferta e demanda no ato da troca tal como referida por Schwartz.

O outra confusão refere-se à relação entre venda/compra e oferta/demanda. Como já vimos em nosso exemplo, o total de compras de um produto é necessariamente idêntico ao de suas vendas, independente de sua oferta ser igual à sua demanda. Como já dizia Walras, “toda troca de duas coisas, uma pela outra, compõe-se de uma dupla venda e uma dupla compra” (Walras, 1983Walras, L. (1983) Compêndio dos Elementos de Economia Política Pura, Ed. Abril, S. Paulo., p. 33), repetindo, aliás, o que já haviam afirmado James Mill, Marx etc.

Oferta e demanda são, no entanto, conceitos diversos. No caso do consumidor, sua demanda é fruto de um programa de maximização de utilidade sujeito à restrição posta por sua dotação de fatores e pelos preços destes fatores. Já a oferta das firmas é obtida a partir de um programa de maximização do lucro. Ambas envolvem, portanto, um caráter de planejamento ou desejabilidade, São, desta forma, funções comportamentais. Sob algumas condições (Debreu, 1959Debreu, G. (1959) Theory of Value, Yale University Press, Londres., caps. 3 e 4) as ofertas e demandas são funções contínuas cujo argumento é o vetor de preços (Debreu, 1959Debreu, G. (1959) Theory of Value, Yale University Press, Londres., cap. 5). Não há sentido, pois, na afirmação de Schwartz que “uma mesma transação pode ser chamada de oferta ou demanda” ou que “as transações oferta e demanda confundem-se numa mesma entidade” (Schwartz, 1989Schwartz, G. (1989) “Uma Nota sobre a Refutação Lógica da Macroeconomia Neoclássica”, Revista de Economia Política, vol 9, n. 1., p. 90), permanecendo como “fatores” distintos nos demais instantes. Oferta e demanda são sempre “fatores” distintos, apesar de não nos ter ficado claro o que Schwartz quer dizer com “fatores”.

TEORIA DA RENDA

A crítica central do autor, contudo, refere-se ao mecanismo de ajuste macroeconômico neoclássico. Conforme já adiantamos anteriormente, para Schwartz, o conceito de excesso de demanda agregada como elemento que conduz à igualdade macroeconômica entre oferta e demanda (mediante movimentos do produto real) estaria errado porque, pela identidade macroeconômica básica Y≡C+I, a demanda agregada nunca poderia ser superior ou inferior à oferta agregada. Como ambas seriam idênticas, não poderia existir excesso de demanda, o que configuraria o erro lógico fundamental da macroeconomia neoclássica. Graficamente isto poderia ser traduzido por:

Figura 1

ou seja, na macroeconomia neoclássica o nível de renda ficaria indeterminado, em função de seu erro lógico, porque yD≡yS.

Parece-nos haver aí outra confusão. No nosso entender, Schwartz confunde o conceito contábil de “dispêndio” agregado - necessariamente idêntico à oferta agregada - com o conceito econômico de demanda agregada. O segundo conceito, devido à sua natureza econômica, envolve necessariamente uma referência aos planos dos agentes econômicos, ou seja, está ligado, como assinalamos anteriormente, à desejabilidade, e consequente planejamento dos agentes. Mais especificamente, a demanda agregada envolve dois tipos de planos: um referente à satisfação das necessidades (a demanda de consumo) e outro relativo ao estoque desejado de capital (investimento). Ambos os componentes estão, portanto, relacionados aos desejos dos agentes econômicos.

Como se sabe, o consumo é geralmente suposto ser função da renda esperada. Os modelos neoclássicos tradicionais vão mais além e substituem a renda esperada pela renda corrente como argumento da função consumo. O investimento, por sua vez, é suposto ser independente do produto e refere-se ao estoque desejado de capital em contraposição ao estoque efetivo.

A demanda agregada está relacionada, portanto, a uma noção de gasto planejado/desejado que pode diferir - ao contrário do que afirmam Schmitt e Schwartz - do volume de produção. Tal afirmação pode ser ilustrada por dois modelos bastante simples que, no fundo, dizem a mesma coisa: o modelo de Hansen (dentro da tradição neoclássica) e o modelo de Weintraub-Casarosa (dentro da tradição pós-keynesiana).

Num determinado momento, os empresários devem tomar uma decisão quanto ao volume de emprego que ofertarão, ou seja, seu volume de produção. No entanto, como o processo produtivo envolve tempo (o “período de produção”) as decisões a este respeito são tomadas com base nas expectativas sobre o volume de demanda agregada ao final do período de produção. Supondo que a demanda agregada expectacional seja DEº’ os empresários fixam o nível de emprego em No e de produção em Yº’ configurando o ponto de Demanda Efetiva A. Todavia, a este nível de emprego as disposições de demanda da sociedade são superiores ao volume de produção, ou seja:

(1) f N > N

(2) y D > y S

Figura 2

Tal fenômeno implica uma dinâmica de estoques. O volume dos estoques cai (dE<0), impedindo a concretização dos planos dos empresários quanto ao estoque desejado de capital. Em outras palavras, o investimento realizado I’”=Ip+dE é inferior ao investimento desejado lp, já que dE<O, caracterizando o desequilíbrio no sistema. Tal desequilíbrio, aliás, pode ser caracterizado por outro ângulo, qual seja, a não-confirmação das expectativas a curto prazo dos empresários.

A variação indesejada dos estoques, além de caracterizar o desequilíbrio do sistema, garante que a identidade macroeconômica básica não seja violada, já que da demanda agregada “real” D=f(N) retiramos dE, de forma a definir o conceito contábil de “dispêndio” agregado. Tal variação induz, ademais, ao já referido processo de revisão das expectativas a curto prazo, que só cessa no equilíbrio do sistema, quando a demanda agregada expectacional D1E (e consequentemente a oferta agregada Z=ϕ(N)) coincide com o volume de demanda agregada “real” D (o ponto B do gráfico, também um ponto de Demanda Efetiva) na forma:

(3) D 1 E = f N = ϕ N

(4) Y D = Y S Y

determinando o nível de emprego N e de produto Y. Supõe-se, pois, que os agentes não erram, ou, mais precisamente, que “o processo de revisão de expectativas a curto prazo é gradual e contínuo, e ocorre (...) de tal modo que os resultados esperados e realizados se confundem e se entrelaçam nos seus efeitos” (Keynes, 1983Keynes, J. M. (1983) A Teoria Geral do Emprego, dos Juros e da Moeda, Ed. Abril, S. Paulo., p. 45).

Não há sentido, portanto, em confundir - como fazem Schmitt e Schwartz - a demanda agregada com a produção em geral. O “dispêndio” agregado (contábil) não pode, sem dúvida, ultrapassar a produção, sendo garantida a identidade, pela queda indesejada dos estoques. A demanda agregada, contudo, não se acha limitada pela produção, porque envolve (como já ressaltamos) um caráter de planejamento em relação ao consumo e à formação de capital. Este é o caráter salientado por Keynes, que transparece mesmo nos modelos neoclássicos mais simples como o de Hansen, e é o que os toma traduções muito mais fiéis do pensamento keynesiano do que nossos preconceitos permitem imaginar.

FINAL

Parece-nos, portanto, que o esforço crítico de Schwartz não foi bem-sucedido, em função dos equívocos teóricos acima apontados. Isto não quer dizer que a macroeconomia neoclássica (assim como a macroeconomia em geral) seja imune a críticas.

O problema central da macroeconomia, isto é, o problema da agregação permanece sem uma solução analítica satisfatória. Nos modelos macroeconômicos, não apenas somos obrigados a agregar todos os bens num único bem (seja na forma da mercadoria composta hicksiana, seja pela suposição de produção única), como também somos forçados a agregar os planos dos agentes econômicos individuais. Especificamente, quando supomos o processo de formação de expectativas a curto prazo, a hipótese implícita neste raciocínio é a de um período de produção igual e coincidente para todas as firmas. Da mesma forma é necessário supor - para realizar a agregação destes planos individuais - que a racionalidade dos agentes seja paramétrica, isto é, que cada agente individual considere os planos dos demais agentes como dados. Se admitirmos racionalidade estratégica - na qual a formulação dos planos e expectativas de cada agente depende do que o agente espera ser a reação dos demais - a agregação dos planos individuais torna-se um problema bastante complexo, cuja solução está no âmbito da Teoria dos Jogos.

Além da questão da agregação, a macroeconomia neoclássica apresenta também problemas relacionados a seus fundamentos microeconômicos em suas várias funções comportamentais. Por exemplo, a introdução da moeda nos modelos macroeconômicos neoclássicos (em particular o chamado efeito-Pigou) carece de bases microeconômicas. Como ficou claro na polêmica Patinkin-Hahn, a introdução de moeda num sistema de equilíbrio geral pode comprometer a sua solução, no sentido de que deixa de haver garantia da existência do equilíbrio, mesmo com as demais hipóteses básicas do modelo Arrow-Debreu.

São tais críticas, aliás, que têm orientado o programa de pesquisa da macroeconomia neoclássica. Os avanços da teoria macroeconômica têm-se dado no sentido de resolver estes problemas, como é o caso da assim chamada “macroeconomia do desequilíbrio”. É forçoso reconhecer, todavia, que tais críticas não apenas são “externas” (para utilizarmos a expressão de Schwartz), como vêm sendo incorporadas à macroeconomia neoclássica pelos avanços mais recentes da ciência. Não pretendemos neste espaço discutir as demais críticas “externas” citadas pelo autor em seu artigo, embora também vejamos problemas metodológicos em sua argumentação.

À guisa de conclusão, somos tentados a dizer que o esforço de Schwartz (mais uma vez) apenas reforçou a ideia de que os fundamentos lógicos do castelo neoclássico são muito mais sólidos do que sonham alguns de nossos economistas.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • Cafarosa, C. (1981) “The Micro Foundations of Keynes’ Aggregate Supply and Expected Demand Analysis”, The Economic Journal, vol. 91, março.
  • Debreu, G. (1959) Theory of Value, Yale University Press, Londres.
  • Keynes, J. M. (1983) A Teoria Geral do Emprego, dos Juros e da Moeda, Ed. Abril, S. Paulo.
  • Schmitt, B. (1988) “The Identity of Agreggate Supply and Demand in Time”, in Barrére, A. (ed.), Foundations of Keynesian Analysis, MacMillan Press, Londres.
  • Schwartz, G. (1989) “Uma Nota sobre a Refutação Lógica da Macroeconomia Neoclássica”, Revista de Economia Política, vol 9, n. 1.
  • Walras, L. (1983) Compêndio dos Elementos de Economia Política Pura, Ed. Abril, S. Paulo.
  • 1
    JEL Classification: B41; B21.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1989
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