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Demonstrar a ordem racional do mercado: reflexões em torno de um projeto impossível

Demonstrate the rational order of the market: reflections on an impossible project

RESUMO

A abordagem walrasiana na teoria neoclássica visa explicar um equilíbrio geral e estável ao longo do tempo, que é determinado pelo comportamento maximizador dos agentes no mercado. Este artigo pretende destacar as principais deficiências lógicas inerentes à Teoria do Equilíbrio Geral, que têm implicações importantes no nível da pesquisa. Nesse contexto, as principais questões passam a ser: i) no nível das premissas, a questão da estabilidade introduz uma indeterminação fundamental no modelo; ii) as conhecidas imperfeições do mercado no mundo real contribuem para a impossibilidade de estabelecer princípios gerais. A busca para resolver os problemas por meio de uma abordagem mais realista gera novas indeterminações e dificulta ainda mais o Pareto Optimum. Para entender melhor as impossibilidades lógicas e metodológicas dessa teoria, o artigo sugere encaminhar o programa de pesquisa à filosofia construtivista racional dos tempos modernos.

PALAVRAS-CHAVE:
Metodologia da economia; história do pensamento econômico; equilíbrio geral

ABSTRACT

The Walrasian approach in the neoclassical theory aims to explain a general and stable equilibrium over time which is determined by the maximizing behaviour of agents in the marketplace. This paper intends to highlight the main logical shortcomings inherent to the General Equilibrium TheoryWEINTRAUB, E.R. (1974) General Equilibrium Theory. London, Macmillan., which have important implications at the research level. In this context, the main issues become: i) at the level of assumptions, the issue of stability introduces a fundamental indetermination in the model; ii) the well-known market imperfections in the real world contribute to the impossibility of setting general principles. The search to address the issues through a more realistic approach generates new indeterminations and makes it even more difficult to attain the Pareto Optimum. In order to better understand the logical and methodological impossibilities of this theory, the article suggests referring the research program to the rational constructivist philosophy of modem times.

KEYWORDS:
Economic methodology; history of economic thought; general equilibrium

1. INTRODUÇÃO

A Teoria do Equilíbrio Geral (TEG), enquanto modelo de referência e núcleo duro da teoria neoclássica, é o ponto de partida teórico para a compreensão da atualização, pelo programa neoclássico, de um velho e caro projeto ortodoxo: demonstrar a superioridade do mercado como elemento regulador da economia e constituinte da ordem. Essa proposta demonstrativa do mercado como instância reguladora da ordem social se inscreve, dentro da história das ideias, na tentativa de fornecer uma resposta definitiva, no plano econômico, à questão hobbesiana e aos filósofos do contrato. Se Adam Smith legou à história do pensamento econômico a ideia da economia como fundamento da sociedade, e a do mercado como viabilizador da ordem social liberal, Walras inaugura o esforço demonstrativo lógico necessário a uma ciência que elege, como seus, os critérios newtonianos de científicidade e se volta para a busca de resultados da aplicação do esprit géometrique dos modernos ao seu campo disciplinar.

A questão da possibilidade da demonstração de uma ordem equilibrada, estável e ótima, que resulta dos múltiplos interesses individuais, foi originalmente tratada na matriz walras-paretiana. Tal questão, retomada neste século pelo programa Hicks/Samuelson, teve como grande marco teórico os desdobramentos matemáticos do modelo de Arrow/Debreu na década de 50, expressos principalmente pela prova da existência do equilíbrio e pelos dois teoremas do bem-estar. Nas últimas décadas, atendo-se apenas às repercussões no campo epistemológico, o programa neoclássico recuperou o velho projeto ortodoxo de evocar o poder regulador do mercado, apesar das impossibilidades lógicas que enfrenta no campo demonstrativo para construir leis gerais a partir de um princípio explicativo minimal, a hipótese da racionalidade maximizadora. Através de um mecanismo metodológico de proceder a ajustes e correções no ideal caricaturado da Teoria do Equilíbrio Geral, o programa neoclássico de pesquisa atingiria patamares mais altos de racionalidade, atualizando seu projeto racional-construtivista de mercado através de uma articulação metodológica entre o quadro de idealidade da TEG e os programas a ela associados (a micro de equilíbrio parcial e a macroeconomia, por exemplo). Do seu ponto de vista, e alimentando o fascínio exercido sobre as novas gerações de economistas, viria a crença de que a ciência econômica (confundida por seus adeptos com o programa) avança axiomática e cumulativamente, reduzindo inexoravelmente aos seus próprios termos as questões tradicionalmente colocadas pela heterodoxia.

Defendo neste artigo a ideia de que, a mesma fonte que nutre e dá vigor ao projeto do mercado evocado pelo mainstream nos fornece os elementos sinalizadores dos seus impasses lógicos e paradoxos que, por sua natureza, extrapolam as dificuldades localizadas no terreno estritamente metodológico e, portanto, superáveis internamente por uma complexidade crescente de cálculos. Em última análise, suas questões remetem a reflexões de ordem filosófica e epistemológica nada triviais sobre a natureza da ciência econômica. Entre elas, a possibilidade ou não de conciliação entre o coerente e o complexo, os limites da axiomática e da formalização e a existência de princípios unificadores exemplares das ciências físicas.

Isso posto, pretende-se: i) expor os impasses e paradoxos da demonstração, acentuando impossibilidades, mesmo ao nível da axiomática mais pura da Teoria do Equilíbrio Geral; ii) sublinhar as limitações do procedimento de correções ao ideal perfeito quanto à demonstração da superioridade do mercado. A introdução de imperfeições inviabiliza o projeto, pois joga o programa em indeterminações, na perda da manutenção dos microfundamentos da ordem, na multiplicidade de equilíbrios e no caráter não-ótimo de soluções não-cooperativas; iii) extrair conclusões de ordem epistêmica e filosófica, sugerindo que o primeiro movimento metodológico de caráter demonstrativo evoca a perseguição do mito de uma ordem racional para a economia, enquanto o segundo, de natureza corretiva, reafirma as limitações epistêmicas dos modelos axiomáticos. Ambos nos levam à perspectiva filosófica racional construtivista dos tempos modernos, em que a política (Hobbes) e o mercado (Walras) podem ser demonstrados e construídos independentemente da história e segundo os critérios do modelista.

2. A PERSPECTIVA LAKATOSIANA DO NÚCLEO DURO E DO CINTURÃO PROTETOR PARA O PROGRAMA NEOCLÁSSICO DE PESQUISA

Para Lakatos, os elementos que compõem um programa dividem-se em partes rígidas e flexíveis. As primeiras são ideias centrais que formam o núcleo duro e escapam à confrontação empírica, sendo infalsificáveis por decisão metodológica de seus protagonistas. O núcleo duro da física newtoniana é, por exemplo, constituído pelas leis irrefutáveis de movimento e atração universal. Além disso, tem-se o anel protetor, constituído pelas hipóteses auxiliares que permitem preservar o hard core. Essas últimas são as únicas sujeitas à verificação (Lakatos, 1974LAKATOS, I. (1974) The Methodology of Scientific Research Programmes. Cambridge University Press.).

O uso da perspectiva lakatosiana para uma descrição do programa neoclássico fornece uma clivagem essencial entre o núcleo duro (TEG), com seu programa de demonstração da existência, estabilidade e otimicidade do equilíbrio, e um cinturão protetor composto por programas, que supondo o relaxamento das hipóteses cruciais, introduzem “imperfeições”, aproximando com isso o modelo ideal da realidade (Weintraub, 1985WEINTRAUB, E. R. (1985) General Equilibrium Analyses: Studies in Appraisal. Cambrige University Press, Cambridge.; Lavoie, 1991LAVOIE, M. (1991) “Noyau, Demi-Noyau et heuristique du programme de recherche néoclassique”. Economie Appliquée, tome XLIV.).

2.1 Teoria do Equilíbrio Geral: avanços e impasses

O velho projeto ortodoxo que remonta às fundações smithianas da ciência econômica tem em Walras-Pareto um marco epistêmico. Dentro de uma perspectiva lógico-demonstrativa, esse projeto incorpora da matriz smithiana o legado de pensar a economia como fundamento da sociedade e o mercado como viabilizador da ordem liberal (Dumont, 1977DUMONT, L. (1977) L ‘Homo Aequalis: Génese et Épanouissement de l’Idéologie Économique, Editions Gallimard.; Rosanvallon, 1989ROSANVALLON, P. (1989) Le Libéralisme Economique. Editions du Seuil.; Dupuy, 1992aDUPUY, J. P. (1992a) Le Sacrifice et l’Envie: Le Libéralisme aux Frises de la Justice, Calmann Levy.). De Newton e da Revolução Científica Moderna, herda o paradigma do universo-máquina e o espelho necessário e cativo da física que marcou o nascimento das ciências sociais (Walras, 1952WALRAS, L. (1952) Elements d ‘Economie Politique Pure. Llibraire Général de Droit et de Jurisprudence.; Prigogine, 1979PRIGOGINE, I-Stengers (1979) La Nouvelle Alliance. Folio Essais, Gallimard.; Koyré, 1952KOYRÉ, A. (1952) Du Monde elos à l ‘Univers Infini. Paris, Gallimard.). De Hobbes, incorpora l’esprit géometrique1 1 A geometria é um saber demonstrativo em que nós mesmos construímos os objetos: a linha é produzida pelo movimento do ponto, a superfície pelo movimento da linha e o sólido pelo movimento da superfície. Nesse sentido, ela é considerada do ponto de vista epistemológico e filosófico o exemplo privilegiado do poder arbitrário do fazer humano. Estabelecendo uma analogia com a construção artificial do Estado, segue-se que a política para Hobbes é uma dedução da necessidade da fundação originária e a histórica do Estado (Zarka, 1982; Strauss, 1986, 1991), e o mercado pode ser visto como a resposta racionalista aos filósofos do contrato e ao Leviathan: em última análise, uma aplicação da mathesis geométrica ao universo da economia. Ainda sobre a aplicação do esprit géometrique à economia, é pertinente e irônica a observação de Tolipan em que o “esprit géometrique cospe no prato da intuição de que se alimenta. Se recebe dela seu sopro de vida, procura a independência tentando liquidar a forma que derivou. A consequência é que a ciência econômica é cada vez mais complicada e irrelevante” (Tolipan, 1992, p. 202 ). no qual o Estado hobbesiano é o resultado inequívoco da construção de um artífice: Estado e mercado, produtos do mesmo construtivismo racional (Hobbes, 1983HOBBES, T. (1983) Léviathan. Editions Sirey, Paris.; Strauss, 1986STRAUSS, L. (1986) Droit Naturel et Histoire. Libraire Plon, Paris., 1991STRAUSS, L. (1991) La Philosophie Politique de Hobbes. Editions Belin, Paris.; Zarka, 1982ZARKA, Y. (1982) La décision métaphysique de Hobbes: Conditions de la Politique, PUF, Paris.; Ganem, 1993GANEM, A. (1993) Théorie de L’Equilibre Général: le Mythe d’un Ordre Rationnel. Tese de doutorado, Paris X-Nanterre Université.). Da conjunção dessas heranças resulta o esforço demonstrativo de uma teoria do mercado espelhado nas exigências da física (a necessidade de um princípio explicativo minimal unificador de um sistema integrado de leis) inaugurando o caminho da axiomatização e da economia matemática. Este movimento, centrado na valorização das regras de coerência interna, toma alguns desdobramentos teóricos da matriz smithiana, como as teorias liberais da ordem espontânea à la Hayek, desenvolvimentos literários (apologéticos) destituídos do rigor necessário a uma ciência carente de provas.

Através da axiomática, a TEG objetiva a demonstração lógico-matemática da superioridade do mercado. A demonstração da existência, da estabilidade e de uma ordem ótima constituem as démarches centrais do chamado núcleo duro da teoria neoclássica, constituído de algumas equações fundamentais e de hipóteses altamente irreais às quais corresponde um mundo deduzido coerentemente. Seu mundo, o da mais perfeita idealidade, consiste num ato lógico. A TEG não foi concebida para ser testada. Dentro dessa perspectiva, a desconsideração ao objeto é autorizada pelas hipóteses irreais de partida e “qualquer discussão sobre realismo ou falta dele é uma falta de compreensão do seu estatuto teórico e metodológico” (Blaug, 1982BLAUG, M. (1982) “La méthodologie economique”. Economica, Paris.).

A TEG, a partir de um princípio explicativo minimal - o comportamento maximizador individual-, defende o mecanismo de preços como elemento de coordenação e traz consigo a noção de “uma ordem capaz de se impor ao caos individual” (Hahn, 1986HAHN, F. (1986) “Théorie de l’Equilibre Général”. In Crise et renouveau de la Théorie Economique, Bonnel/Publised., p. 230). Ausência de externalidades, informação perfeita, mercado a termo, flexibilidade de preços, secretário de mercado, hipótese de substitutibilidade bruta e critério paretiano são algumas das hipóteses cruciais que, conjugadas às hipóteses axiomáticas fundamentais, forneceriam o quadro de idealidade capaz de tomar possível a demonstração de uma ordem equilibrada, estável e ótima.

As regras de conduta ou a heurística do núcleo duro correspondem ao programa neo-walrasiano de pesquisa que tem nas demonstrações formais da existência, da estabilidade e da otimicidade do equilíbrio do modelo de Arrow/Debreu um acabamento dos trabalhos “literários” de Walras (Arrow, Hahn, 1971ARROW, K. & HAHN, F. (1971) General Competitive Analysis, Holden Day, San Francisco.). A partir desses três subprogramas da TEG sublinharemos, de um lado, os elementos metodológicos que assinalam os sucessos nas provas demonstrativas e, de outro, os impasses lógicos da questão da estabilidade.

A prova da existência

A prova da existência, considerada o resultado mais importante da TEG, consiste, essencialmente, numa generalização feita por Von Newman do teorema do ponto fixo do matemático Brouwer2 2 Von Newman demonstrou que certas formas bilineares têm um ponto nulo, sendo essa demonstração uma generalização do teorema da existência do equilíbrio no jogo de duas pessoas com soma nula (Arrow, Hahn, 1971). , em que toda aplicação contínua e convexa de um conjunto Rn admite ao menos um ponto fixo.

Nos anos 30 Cassel retomou a formulação da existência e da unicidade, questão que, na década de 50, culmina com os trabalhos de Arrow/Debreu (1954ARROW, K. & DEBREU, G. (1954) “Existence of an equilibrium for a competitive economy”. Econometrica, julho.) e de Debreu (1959DEBREU, G. (1959) Theorie of Value, John Wiley & Sons, Nova York.). Para que fosse aplicado o teorema da existência, em equilíbrio geral, era necessário que se garantisse a continuidade e a convexidade das curvas de oferta e demanda. Foram então formuladas duas hipóteses cruciais que forneceriam a precisão lógico-matemática necessária aos desenvolvimentos neo-walrasianos. São elas: i) a existência de um mercado para todos os bens e para todas as datas futuras; ii) a exigência de condições necessárias e suficientes garantidoras da continuidade do consumo e da produção dos bens. Essas hipóteses afastam questões incômodas, eliminando a incerteza, o tempo e o risco do modelo.3 3 A eliminação do tempo, da moeda e da incerteza sublinha o papel crucial dos preços como a única informação transmitida aos agentes que, por sua vez, estabelecem seus planos sem levar em consideração uma eventual incidência de suas ações sobre os preços ou sobre os planos dos outros agentes. Além disso, os agentes munidos de funções objetivas intertemporais intervêm sobre os mercados a termo para todos os bens e para todas as datas futuras (Arrow e Hahn, 1971; Guerrien, 1989). . Sob essas hipóteses, “se a demanda líquida é contínua, então existe ao menos um vetor-preço que compatibiliza oferta e demanda e a prova da existência é realizada” (Arrow e Hahn, 1971ARROW, K. & HAHN, F. (1971) General Competitive Analysis, Holden Day, San Francisco., p. 33). Apoiando-se sobre a eficiência do sistema de preços e contando com essas duas hipóteses cruciais, constata-se que existe um vetor-preço de equilíbrio que compatibiliza os planos ótimos dos agentes: a existência do equilíbrio é demonstrada e está assegurada lógico-formalmente a existência da ordem.

A ordem ótima

Uma nova investida do programa se dá com a demonstração de uma ordem ótima. Essa prova é assim expressa pelos seus teóricos: “A Teoria do Equilíbrio Geral faz mais do que demonstrar a possibilidade da ordem numa economia descentralizada; ela mostra que o equilíbrio possui a seguinte propriedade: não existe nenhuma alocação de bens que outorgará a cada família uma posição melhor do que a sua de equilíbrio (Hahn, 1986HAHN, F. (1986) “Théorie de l’Equilibre Général”. In Crise et renouveau de la Théorie Economique, Bonnel/Publised., p. 212).

O critério paretiano supra-ético (Rosanvallon, 1989ROSANVALLON, P. (1989) Le Libéralisme Economique. Editions du Seuil.), ou lógico-ético (Dupuy, 1992DUPUY, J. P. (1992b) lntroduction aux Sciences Sociales: La Logique des Phénomenes Collectives, Elipses, Paris.) é, como sabemos, a expressão da abstenção de toda comparação interpessoal, da mais absoluta alteridade entre os indivíduos. Duas ideias o sustentam: o princípio da eficiência (o melhor estado é o estado mais eficiente) e o princípio da unanimidade (não se pode melhorar a situação de um indivíduo sem que ocorra diminuição do bem-estar de pelo menos um outro indivíduo). Através do critério de Pareto4 4 Aliás, o critério paretiano não é somente a peça angular da TEG. Ele é o ponto de partida teórico da velha escola de Economia do Bem-Estar de Chicago ( de origem pigouniana) e da Nova Economia do Bem-estar, a New Welfare Economics (cuja pretensão é construir uma ética científica), sem contar a grande influência que exerce nas disciplinas vizinhas como a Teoria das Escolhas Sociais e a Escola do “Public Choice”.Ver a crítica ao critério em Dupuy (1992a) e Paridjis (1991). , peça nuclear do discurso de uma ordem ótima, a TEG apresenta uma resposta lógica (uma medida) para o bem-estar coletivo, demonstrando que o equilíbrio concorrencial é o melhor, no sentido de ser o mais eficiente (Arrow, Hahn, 1971ARROW, K. & HAHN, F. (1971) General Competitive Analysis, Holden Day, San Francisco.).

A primeira formulação moderna que estabeleceu uma relação entre o equilíbrio walrasiano e a otimicidade paretiana foi a de Bergson, em 1938, no artigo “A reformulation of certains aspects of Welfare Economics” em que o autor constrói uma função de bem-estar social à qual Samuelson dedica um lugar estratégico nos seus “Foundations”. Ao longo dos anos 30-40, muitos autores contribuíram para desenvolver essa nova disciplina (a New Welfare Economics), entre eles Hicks, Lemer, Kaldor e Little (Dupuy, 1992aDUPUY, J. P. (1992a) Le Sacrifice et l’Envie: Le Libéralisme aux Frises de la Justice, Calmann Levy.). Mas foi apenas nos anos 50 que Arrow e Debreu demonstraram os dois teoremas básicos do bem-estar, provando, no quadro do equilíbrio geral, que “todo equilíbrio concorrencial é um ótimo de Pareto”. Ou seja, o primeiro teorema afirma que: “se sob certas hipóteses um estado realizável constitui um equilíbrio em relação ao sistema de preços, então este estado é um ótimo”. E o segundo teorema demonstra a recíproca: “a partir de uma alocação ótima paretiana é sempre possível achar um equilíbrio concorrencial associado a um ótimo.” (Arrow, 1951; Debreu, 1951)5 5 Duas contribuições teóricas marcaram a década de 50: o trabalho de Arrow (1951), intitulado “An extension of the basic theorems of classical welfare economics publicado em Proceding of Second Berkeley Symposium On Mathematical Statistics and Probability, University of California e o de Debreu (1951), intitulado The coeficient of resources utilisation”, Econometrica. .

No plano estritamente lógico-eficiente do discurso da TEG, a presença dos efeitos externos impede a obtenção de uma ordem ótima. A resposta da teoria a essa impossibilidade é a internalização dos efeitos, mesmo sabendo das dificuldades teóricas de tal empreendimento (Arrow e Hahn, 1971ARROW, K. & HAHN, F. (1971) General Competitive Analysis, Holden Day, San Francisco.; Guerrien, 1989GUERRIEN, B. (1989) “La Théorie Néoclassique: bilan et perspectives du modele d’Equilibre Général.” Economica, Paris.) e da fissura que a sua presença abre na defesa incondicional do mercado como uma estrutura racional otimizante, exigindo a participação do Estado para corrigir disfunções. Em outros termos, o mercado não asseguraria infalivelmente a conjunção entre eficiência e equidade. Mesmo tentando o “ótimo de segundo rang”, o que se observa é “o drama epistemológico dos neoclássicos, que, por força de precisar as condições que permitiam à mão invisível funcionar plenamente, subordinaram essa mão invisível à mão visível do Estado” (Lagueux, 1989LAGUEUX, M. (1989) “Le néo-libéralisme comme programme de recherche et comme idéologie”. Cahiers d’Economie Politique, L’Harmattan., p. 138). Do ponto de vista da política, os neoclássicos preconizaram intervenções racionais dos governos, introduzindo o paradoxo da centralização, num pretenso discurso da descentralização. Entretanto, do ponto de vista retórico souberam capitalizar a demonstração pareto-ótimo para celebrar o poder incontestável do mercado. Nesse sentido, os dois teoremas produziram mais efeitos do que as dificuldades lógicas, aparentemente intransponíveis, dos efeitos externos.

O calcanhar-de-aquiles da TEG: a prova lógica da estabilidade

Simultaneamente aos avanços do programa, a busca da estabilidade tem-se constituído em um desafio permanente no tempo. Sua demonstração constitui o calcanhar-de-aquiles da TEG, pois, como afirma Fisher, se a estabilidade não está demonstrada não há nada que possa justificar o objetivo do equilíbrio: “os economistas se ocupam da maior parte dos problemas relativos ao equilíbrio. Sem a demonstração da estabilidade, não há nada que possa justificar tal empreendimento” (Fisher, 1981FISHER, F. M. (1981) “Stability, disequilibrium, awareness and the perception of new oportunities”. Econometrica, 49(2), março., p. 279).

A prova da estabilidade reside na definição das condições que devem ser preenchidas para assegurar uma estabilidade global. A teoria do tâtonnement de Walras foi retomada pelos trabalhos de Hicks e Samuelson, nos anos 30-40. Este último formulou a definição de estabilidade utilizada pelos neoclássicos, traduzida num sistema de equações diferenciais. Os estudos que procuraram determinar a estabilidade e a unicidade necessárias às exigências lógicas da TEG encontraram novas perspectivas de pesquisa com a hipótese de substitutibilidade bruta introduzida por Wald em 1936. Foi em 1959 que os autores K. Arrow, H. D. Block e L. Hurwicz, no trabalho “on the Stability of the Competitive Equilibrium”, formalizaram, em termos mais modernos, o teorema da estabilidade geral, apoiando-se na continuidade da função da demanda e na hipótese de substitutibilidade bruta. Nos anos 70, ocorreu uma visível mudança de perspectiva nos trabalhos de Sonnenschein (1973) e Debreu (1974) nos quais se constata “o caráter decepcionante do teorema de estabilidade geral, posto que, ele arruína toda a esperança de se obter leis gerais, a partir do estudo das demandas líquidas walrasianas” (Guerrien, 1989GUERRIEN, B. (1989) “La Théorie Néoclassique: bilan et perspectives du modele d’Equilibre Général.” Economica, Paris., p. 173)

O teorema de Sonnenschein, Mantel e Debreu6 6 São considerados referências para o debate em tomo da questão da estabilidade: o trabalho de Sonnenschein “Do Walraís identify and continuity characterize the class of community excess demand functions?” ,Journal of Economic Theory (6), e o de Debreu (1971), Excess demandfunctions (reeditado em 1986), in Mathematical Economics: Twenty Papers of Gerard Debreu, Cambridge University Press. A propósito do teorema da estabilidade na sua primeira versão e na versão Sonnenschein/Mantel/Debreu, ver demonstrações em Guerrien, 1989. Para uma avaliação crítica dos impasses gerados pela aplicação do teorema, consultar Guerrien, 1992 e De Villé, 1990. tenta decompor a demanda líquida E(p) em “n” demandas líquidas. Seu resultado define que as demandas de Arrow/Debreu podem ter qualquer forma. Isso introduz a dificuldade de se dar conta das interações dos comportamentos dos indivíduos num quadro de equilíbrio geral. O teorema constata a impossibilidade de generalização da hipótese de substitutibilidade bruta. Ou seja, num contexto de equilíbrio geral as análises de oferta e de demanda se tornam cada vez mais complexas e a convergência cada vez mais problemática (Guerrien, 1989GUERRIEN, B. (1989) “La Théorie Néoclassique: bilan et perspectives du modele d’Equilibre Général.” Economica, Paris.). Arrow e Hahn registram a impossibilidade de se fundar, microeconomicamente, um modelo geral estável: “nós podemos falar de um aspecto tristemente anedótico de nosso empreendimento: é possível analisar caso a caso, mas não se consegue estabelecer nenhum princípio geral” (Arrow e Hahn, 1971ARROW, K. & HAHN, F. (1971) General Competitive Analysis, Holden Day, San Francisco., p. 321).

Outra hipótese crucial dos modelos de tâtonnement é a absoluta necessidade do leiloeiro walrasiano. A simples enumeração de suas funções é suficiente para a compreensão de sua importância. Sem ele, não existe concorrência perfeita, no seu estado puro (Arrow e Hahn, 1971ARROW, K. & HAHN, F. (1971) General Competitive Analysis, Holden Day, San Francisco.; Guerrien, 1989GUERRIEN, B. (1989) “La Théorie Néoclassique: bilan et perspectives du modele d’Equilibre Général.” Economica, Paris.). A sua importância e seu caráter ad hoc mostram-nos que ele não é um recurso metafórico como os neo-walrasianos fazem crer, mas a expressão da centralização do modelo.7 7 Amaud Berthoud em Economie Politique et Morale chez Walras” é o autor que melhor elucida a questão de uma ordem integrada pelo centro, associando a TEG walrasiana a uma máquina em que “la virtualité des tatônnements ne releve pas des démonstrations logiques” e que, além disso, “l’unicité du crieur figure l’unicité de la causalité mise en oeuvre en toute machine” (Berthoud, 1988).

Pesquisas alternativas orientadas no sentido de um relaxamento das hipóteses cruciais da TEG constituem-se nos modelos intermediários e nos de non-tâtonnement. Levam incondicionalmente ao fenômeno de hysteresis, isto é, de indeterminação: não apenas os planos não procedem de um comportamento racional, como o equilíbrio não é determinado. A autorização para que os agentes façam trocas antes que o equilíbrio seja alcançado exige que se coloque em funcionamento um esquema de racionamento quantitativo, fazendo com que o resultado do processo não dependa somente do ponto de partida, mas do caminho seguido para se alcançar o próprio resultado. Neste quadro, em que as trocas são realizadas em uma situação de desequílibrio, é necessária a intervenção da moeda. Como a demonstração é similar à da estabilidade sem moeda, a hipótese do comportamento maximizador se torna insustentável (Arrow e Hahn, 1971ARROW, K. & HAHN, F. (1971) General Competitive Analysis, Holden Day, San Francisco., pp. 337-46). Além do mais, tal demonstração passa a se apoiar sobre a cegueira dos agentes: “esses continuam a estabelecer seus planos de maneira walrasiana quando a cada etapa constatam que não podem realizá-los, posto que sofrem restrições na quantidade: sua faculdade de aprendizagem é nula” (Guerrien, 1989GUERRIEN, B. (1989) “La Théorie Néoclassique: bilan et perspectives du modele d’Equilibre Général.” Economica, Paris., p. 201).

Os modelos de non-tâtonnement ou o desaparecimento total do leiloeiro walrasiano significam em última análise, o abandono total da hipótese da concorrência e uma rediscussão em tomo de uma racionalidade mais estratégica que maximizadora: os agentes não seriam mais price takers, mas price-makers. Além disso, suas escolhas dependeriam de suas conjecturas, de uma função que traduzisse suas crenças tomando em conta suas experiências passadas e as informações de que dispõem. Em suma, seria necessário abandonar “a hipótese que antecipa o futuro no presente” (Arrow e Hahn, 1971ARROW, K. & HAHN, F. (1971) General Competitive Analysis, Holden Day, San Francisco.) e se colocar num universo de mercados a termo, num quadro de horizonte infinito. Nesse sentido, a moeda, que até então assumia papel de acelerador de impasses (modelos intermediários), passa a ter uma função estratégica nesses modelos afetados pela incerteza. Como dissemos, o desaparecimento do leiloeiro walrasiano implica o abandono do modelo de referência. Mas não seria apenas isso: “Fisher, além de ser um dos poucos teóricos que se recusam a usar o leiloeiro walrasiano, chama atenção para o fato de que o seu desaparecimento significa o risco de abalar, nos seus fundamentos, a teoria do valor neoclássica” (Guerrien, 1989GUERRIEN, B. (1989) “La Théorie Néoclassique: bilan et perspectives du modele d’Equilibre Général.” Economica, Paris., p. 204).

Analisando metodologicamente as três provas lógicas da TEG, constatamos a impossibilidade do projeto racionalista neoclássico em demonstrar lógico-matematicamente a superioridade do mercado. Foi ressaltado que; embora o teorema da existência demonstre que sob “determinadas condições” existe um sistema de preços garantidor da igualdade entre ofertas e demandas e que, apesar dos dois teoremas do bem-estar demonstrarem uma ordem ótima, o comportamento do indivíduo não é suficiente para dar à mão invisível a força que ela precisa para conduzir o mercado em direção a um equilíbrio estável. A estabilidade, nesse caso, através do teorema de Sonnenschein, revela uma impossibilidade que invalida a afirmação retórica de seus defensores de que a superioridade da economia liberal é incontestável e matematicamente demonstrada.

2.2 Dois subprogramas exemplares do programa neoclássico de pesquisa

Os subprogramas de pesquisa do chamado cinturão protetor (apesar de diferenças substantivas internas) obedecem a regras consensuais de conduta: i) a ideia segundo a qual a TEG representa o modelo de referência ou a caução científica para modelos mais pedestres. Admite-se que, sob certas condições, está demonstrada a existência, a estabilidade e a otimicidade do equilíbrio concorrencial; ii) deve-se introduzir imperfeições no modelo ideal, proceder a correções, relaxando as hipóteses mais restritivas. Dentro dessa perspectiva, fazem parte da heurística do cinturão protetor: i) alargar a noção de racionalidade econômica e tratar a informação; ii) introduzir as instituições ou aspectos institucionais como um campo de imperfeições; iii) excluir tudo o que não é modelizável (Lavoie, 1991LAVOIE, M. (1991) “Noyau, Demi-Noyau et heuristique du programme de recherche néoclassique”. Economie Appliquée, tome XLIV., p. 60).

Na articulação hierárquica entre os dois braços, a TEG fornece os elementos rigorosos para as teorias macroeconômicas no campo ortodoxo e para as teorias de equilíbrio parcial que, nesse caso, podem se expressar sob questões concretas tornando-se a face prática da Teoria do Equilíbrio Geral (Weintraub, 1985WEINTRAUB, E. R. (1985) General Equilibrium Analyses: Studies in Appraisal. Cambrige University Press, Cambridge., p. 135; Lavoie, 1991LAVOIE, M. (1991) “Noyau, Demi-Noyau et heuristique du programme de recherche néoclassique”. Economie Appliquée, tome XLIV., p. 53). Além disso, a introdução de imperfeições ao ideal perfeito reatualizaria o projeto neoclássico do mito do mercado, como mecanismo de coordenação e como instância fundadora da ordem social.

Nessa perspectiva, vamos utilizar, como ilustração, dois subprogramas que compõem o cinturão protetor e que refletem bem os impasses do programa neoclássico vis à vis à lógica da ordem do mercado. Tais programas expressam bem as dificuldades de conciliação entre a hipótese de racionalidade, o equilíbrio geral e a exigência de maior realismo. São eles: a pesquisa dos fundamentos microeconômicos da macroeconomia (Novos Clássicos) e os modelos de concorrência imperfeita com utilização da teoria dos jogos. Deixamos de lado dois outros subprogramas: a aplicação do raciocínio micro a outras áreas (Garry Becker) e os Novos Keynesianos. O primeiro estende o conceito a outros domínios da vida social. O segundo produz um tratamento mais sofisticado para as expectativas racionais. Ambos trabalham num contexto de equilíbrio parcial e, por isso, estão muito distantes da preocupação e da produção de tratamento teórico que dê conta da interdependência de mercados e da construção de leis gerais.

A pesquisa dos fundamentos micro da macroeconomia neoclássica

Essa frente de pesquisa do programa neoclássico tem como objetivo a procura dos fundamentos micro para os comportamentos agregados, ou a pesquisa de leis de conjunto que reflitam os comportamentos maximizadores individuais. Por sua importância epistemológica, essa frente de pesquisa acabou se impondo para os neoclássicos como o único empreendimento rigoroso. A exigência de fundamentos micro da macroeconomia se insere no programa de Clark/Hicks, que consistia (ainda na primeira metade do século) em transpor para o conjunto da economia a análise marginalista da empresa (Hicks, 1939HICKS, J. (1939) Value and Capital. Abril Cultural, São Paulo, 1984.; Samuelson, 1948SAMUELSON, P. (1948) Foundations of Economic Analysis. Cambridge, Harvard University, 1948, Abril Cultural, 1984, São Paulo.), tentando construir leis gerais agregadas.

A obediência ao comportamento maximizador racional com uma resposta articulada para fenômenos macro colocou os neoclássicos diante da dificuldade de construir bens agregados a partir de bens diferenciados, isto é, da dificuldade de passar de um conjunto de números a um número agregado representativo (Guerrien, 1989GUERRIEN, B. (1989) “La Théorie Néoclassique: bilan et perspectives du modele d’Equilibre Général.” Economica, Paris., p. 272-330). Mark Blaug resume bem os limites insuperáveis do problema de agregação: ... “existe toda uma categoria de funções microeconômicas dotadas de propriedades muito utilizadas pelos economistas como homogeneidade, substitutibilidade positiva, complementaridade positiva que, se agregadas, não fornecem uma função de produção macroecônomica muito cômoda” (Blaug, 1986BLAUG, M. (1986) “La pensée économique: origine et développement”. Economica, Paris., p. 554). Em última análise, conclui-se que não é possível obter raciocínios globais fundados no princípio da maximização.

Duas saídas, não triviais e também não muito cômodas, foram tentadas diante da impossibilidade de generalização: raciocinar com agentes de base ou considerar como ponto de partida um número extremamente reduzido de bens e indivíduos. A primeira transforma a macroeconomia numa microeconomia a dois, ou num ramo particular do equilíbrio geral walrasiano. A segunda retira do quadro de ação a interdependência entre agentes, um dos grandes desafios de uma economia de trocas. Através do apelo a bens e agentes representativos, são construídos pequenos modelos num contexto ultra-simplificado. Esse subprograma de pequenos modelos simplificados tem como princípio relaxar duas hipóteses centrais do modelo Arrow/Debreu: os mercados a termo e a incerteza (introduzindo o tempo e a moeda). Examinemos o sentido geral dessa segunda saída.

O primeiro modelo dentro dessa perspectiva foi o de Muth, elaborado em 1961, e seu objetivo “era o de modelar as expectativas como os economistas modelizam os outros comportamentos microeconômicos” (Willes, 1986WILLES, M. H. (1986) “Les anticipations rationnelles: une contre revolution”. In Crise et renouveau de la Théorie Economique. Bonnel/Publisud., p. 158). No entanto, o modelo que marcou os anos 70 foi o de Lucas, 1972LUCAS, R. (1972) “Expectations and the neutrality of money”. Journal of Economic Theory, 4. que “descreve uma economia de jovens e velhos (overlapping generation) vivendo separadamente, cada grupo em equilíbrio walrasiano permanente, e sofrendo choques externos devido à chegada aleatória de novos jovens e à criação de moeda por parte das autoridades” (Guerrien, 1989GUERRIEN, B. (1989) “La Théorie Néoclassique: bilan et perspectives du modele d’Equilibre Général.” Economica, Paris.). Esses modelos, que postulam um equilíbrio permanente de todos os mercados (no sentido walrasiano), supõem que os agentes são planificadores oniscientes e que somente choques imprevistos desviariam a economia de sua evolução natural.

A hipótese de “expectativas racionais” é central para os Novos Clássicos, embora seja utilizada em contextos não-walrasianos. Supõe que “cada agente sabe que todos os outros são racionais e todos sabem que todos são racionais” (Arrow, 1986ARROW, K. (1986) “Rationality of self and others in economic system. In Rational choice, Hogarth, R. & Reder, M. (orgs.), The University of Chicago Press.). Além dessa ideia de que todos dispõem do mesmo conjunto de informações, Simonsen assinala uma hipótese sub-reptícia na qual os autores ligados à corrente das expectativas racionais contornam o problema da interdependência estratégica. Para que todos formulem suas previsões com base no mesmo modelo é imprescindível o socorro do econometrista. Na verdade, “a comunidade dos econometristas desempenha o papel de leiloeiro walrasiano capaz de homogeneizar as expectativas de todos os agentes econômicos”. Além de introduzir o modelista no próprio modelo (situação nada cômoda), “os novos clássicos não erram nas suas previsões e acertam na mosca no equilíbrio de Nash” (Simonsen, 1986SIMONSEN, M.H. (1986) “Keynes versus expectativas racionais”. Pesquisa e Planejamento Econômico, Rio de Janeiro, 16(2)., p. 260).

No momento, interessa-nos sublinhar três pontos desse subprograma: i) a existência de equilíbrio com expectativa racional só é possível em modelos ultra-simplificados; ii) a pobreza teórica dos modelos ultra-simplificados vis à vis à pretensão maior do programa; iii) o atrelamento pragmático dos modelos às políticas macroeconômicas e o aval dos testes econométricos derivado de equações de comportamento ou sobre modelos de maximização com 2 ou 3 agentes representativos. Esse último aspecto alimenta o mito de que é possível prever alguma coisa a partir de uma perspectiva axiomática de ciência. Quoiqu ‘il soit, il faut avoir la foi du charbonnier pour croire que tels petits modeles peuvent étre ‘operationnels’ notamment sur le plan précditif (Guerrien, 1990GUERRIEN, B. (1990) “La Théorie Economique: mythes et réalité.” Revue du Mauss, nº 9, 3 trimestre., p. 139).

Os impasses da macro ortodoxa atual expressos nesse subprograma de pesquisa se concentram em dois pontos fundamentais: de um lado, modelos extremamente reduzidos e de aplicabilidade ilusória e limitada e, de outro, a impossibilidade de generalização. Num certo sentido, retoma-se ao teorema de Sonnenschein, o qual denuncia a inviabilidade da dedução de leis gerais estáveis baseando-se no princípio maximizador. Além disso, a escolha dos bens e agentes representativos significa o abandono das interações das atividades dos indivíduos (Guerrien, 1989GUERRIEN, B. (1989) “La Théorie Néoclassique: bilan et perspectives du modele d’Equilibre Général.” Economica, Paris.). Esse subprograma acentua o dilema da teoria neoclássica atual: ou modelos super-reduzidos em que a teoria aparece como um catálogo sem fim de pequenos modelos, às vezes com conclusões opostas, ou o quadro ideal da TEG, com hipóteses altamente restritivas e de impossível aplicabilidade.

Teoria dos jogos e concorrência imperfeita

Esse subprograma abre inúmeras vias de pesquisa, permitindo a construção de modelos mais realistas que os da concorrência perfeita, próprios da estrutura caricatural da TEG. Os neoclássicos, que adotam o quadro da teoria dos jogos, ou da concorrência imperfeita, têm maiores possibilidades de discutir o conceito de racionalidade. Isso na medida em que, pretendendo dar conta (mesmo de uma maneira limitada) do comportamento estratégico dos indivíduos, necessitam introduzir elementos da realidade que o modelo da TEG exclui.

A preocupação central da teoria dos jogos é a de precisar comportamentos racionais e extrair as principais características de suas interações. “A ofensiva recente dos partidários do individualismo metodológico, que faz dos estudos da racionalidade e do comportamento estratégico entre os agentes, questões centrais do debate teórico é a explicação de por que uma teoria que foi concebida na década de 40 só passa a ter destaque recentemente” (Guerrien, 1993GUERRIEN, B. (1993) “Quelques réflexions sur la Théorie des Jeux”. Revue du Mauss, n. 15-16.). Faz parte das ideias dos defensores dessa teoria achar que com seus instrumentos elaborados alcançam progressos na compreensão das relações e dos conflitos sociais. Esquecem, assim, as irônicas palavras de um de seus estudiosos que afirma que “essa teoria vai um pouco além do que sugere a intuição” (Kreps, 1990KREPS, D. (1990) Game Theory and Economic Modeling. Clarendon Press, Oxford.). Se por um lado, o programa investe numa questão crucial da economia de trocas, que é a interdependência dos agentes, de outro lado, não avança na construção de uma micro geral, além de ter que admitir a perda do caráter ótimo­paretiano na maior parte das soluções dos jogos não-cooperativos (Guerrien, 1992GUERRIEN, B. (1992) “Ou en est le programme de recherche Néoclassique?”, L ‘Actualité Economique, Revue d’Analyse Economique, vol. 68, n. 4.). Examinemos algumas de suas características à luz dessas questões:

A primeira característica é que essa teoria oferece uma linguagem que permite classificar situações muito diversas. Ou seja, ela fornece uma contribuição de ordem didático-classificatória indiscutível (Guerrien, 1993GUERRIEN, B. (1993) “Quelques réflexions sur la Théorie des Jeux”. Revue du Mauss, n. 15-16., p. 80). Além disso, sua maleabilidade linguística combinada com o estudo de infindáveis exemplos lhe dá o caráter de exemplifying theory e a constatação de dificuldades na construção de princípios gerais (generalysing theory).

A segunda característica é que tal teoria implica rapidamente situações intrincadas, refletindo as dificuldades de estudos que deem conta da complexidade das interações entre indivíduos calculadores. Aliás, o que mais se observa quando se lê uma obra de teoria dos jogos é a diversidade das situações, o lugar ocupado pelos exemplos, dilemas e paradoxos.

A terceira característica traduz a necessidade de introduzir elementos extramercado para se garantir equilíbrios ótimos. Embora a teoria dos jogos traga a vantagem de permitir uma discussão mais sofisticada da racionalidade dos agentes, o fato de considerar o confronto entre indivíduos maximizadores “engendra situações complexas, múltiplas, e que só podem ser resolvidas, no sentido matemático, se considerarmos fatores exteriores aos indivíduos, como as estruturas sociais, as normas e as convenções ( .... )” (Guerrien, 1993GUERRIEN, B. (1993) “Quelques réflexions sur la Théorie des Jeux”. Revue du Mauss, n. 15-16., p. 88).

Em economia, os jogos são não-cooperativos por excelência, cada um maximiza seu ganho e os acordos são assegurados pelos próprios jogadores. Mesmo se o problema for suficientemente delimitado e mesmo contando com uma descrição verbal bem detalhada, existem muitas formas de visualizá-lo e resolvê-lo (Shubick, 1991SHUBICK (1991) “Théorie des jeux et sciences sociales”, Economica, Paris.). Daí a necessidade de se recorrer a conceitos-solução, sendo o Equilíbrio de Nash o conceito-solução por excelência. Não é necessário o recurso a cálculos complexos para se concluir que a aplicação estrita do princípio da racionalidade maximizadora conduz a equilíbrios subótimos. Aliás, o Dilema do Prisioneiro (sauce pour tous les goúts) serve exatamente para mostrar o conflito entre a racionalidade maximizadora individual e a coletiva (Guerrien, 1993GUERRIEN, B. (1993) “Quelques réflexions sur la Théorie des Jeux”. Revue du Mauss, n. 15-16., Dupuy, 1992bDUPUY, J. P. (1992b) lntroduction aux Sciences Sociales: La Logique des Phénomenes Collectives, Elipses, Paris.). É anedótica a conclusão de que escolhas racionais podem levar a situações que não são coletivamente racionais: reedita-se sob novas roupagens o teorema da impossibilidade de Arrow (Arrow, 1974).

Neste quadro, a única saída para se obter equilíbrio ótimo será impedindo comportamentos oportunistas e formando coalizões e acordos. Ora, esses acordos são compromissos fora do mercado, o que significa a ruptura com a ideia de um local de trocas livres e autônomas entre indivíduos. Outra forma de introdução da imperfeição é atribuir uma probabilidade fraca, mas não-nula a uma escolha irracional por parte dos outros jogadores (Kreps, 1990KREPS, D. (1990) Game Theory and Economic Modeling. Clarendon Press, Oxford.). Para Possas, além de ocorrer uma descaracterização da imperfeição, os neoclássicos pagam um alto tributo aos pilares metodológicos da maximização e equilíbrio: “evita-se que a incerteza e a complexidade sejam introduzidas com plenas consequências”,( ... ) “a incerteza é enfraquecida pela identificação explícita e sistemática com informação incompleta”(Possas, 1995POSSAS, M. (1995) “A cheia do mainstream: comentários sobre os rumos da ciência econômica”. IEI, TD n. 327., pp. 6-7).

O que se conclui é que, no quadro de interações estratégicas, esse subprograma se depara com dois tipos de problemas até então insuperáveis: a multiplicidade de equilíbrios, e, portanto, a dificuldade da construção de uma micro geral, e o caráter não-ótimo no sentido paretiano das soluções não-cooperativas. O primeiro problema é fonte de indeterminação e o segundo indicação de perda do caráter normativo dos modelos (Guerrien, 1993GUERRIEN, B. (1993) “Quelques réflexions sur la Théorie des Jeux”. Revue du Mauss, n. 15-16.).

Os dois subprogramas remetem-nos diretamente, e de forma inequívoca, à questão da inviabilidade (através de correções e aproximações ao real) do projeto da demonstração da superioridade do mercado. No exame da aplicação do método, ou seja, na introdução de imperfeições ao ideal perfeito, acentuam-se as limitações do projeto racionalista diante das suas possibilidades de conciliar a ambição da demonstração da ordem com a introdução de elementos corretivos. Ao constructo racional lógico purificado, adicionar-se-iam elementos de complexidade (por um processo de aproximações sucessivas), e o resultado seria um constructo complexificado (Walliser, 1992WALLISER, B. (1992) “L’économie est une science dure, mais idéale et générique”. In Colloque: L ‘Économie devient-elle une science dure?, Ministêre de L ‘Education Nationale, Paris.). Ou seja, o modelo seria progressivamente complicado pela introdução do tempo, da incerteza, da informação e pelo reconhecimento de estruturas imperfeitas de mercado. Esse método permitiria explicar problemas como o de crescimento, inflação, dando conta não apenas de fenômenos econômicos, mas também reafirmando a ideia de que o mercado auto-regulador é o parâmetro de ordem para a sociedade

No entanto, à menor tentativa de introduzir imperfeições, o projeto se inviabiliza, produzindo situações de indeterminação do modelo e perda de seu caráter ótimo-normativo. A introdução de instituições, a extensão da hipótese de racionalidade e o tratamento da informação acentuam as limitações do projeto de construção de leis gerais/explicativas do poder coordenador do mercado.8 8 O fato de se constatar a impossibilidade de construção de leis gerais não invalida o avanço do programa em outras direções, priorizando e desenvolvendo teorias de equilíbrio parcial, propondo políticas econômicas, submetendo as teorias a testes econométricos, enfim, sublinhando o braço prático e instrumental do programa e, com isso, alargando seu campo de ação e seduzindo as novas gerações de economistas.

3. CONCLUSÕES: A METODOLOGIA À LUZ DA EPISTEMOLOGIA CRÍTICA E DA FILOSOFIA

Dois argumentos metodológicos foram sublinhados ao analisarmos o programa de pesquisa neoclássico, a partir de sua preocupação epistemológica maior, que se constitui na construção de leis gerais inequívocas capazes de fornecer a resposta clara e definitiva de que os preços de equilíbrio impõem a ordem no caos individual:

  1. A demonstração não é realizada, mesmo no plano da axiomática mais pura. Cotejando as principais questões metodológicas e sublinhando a questão da estabilidade, foi possível constatar que, ao contrário do que se difunde e excetuando algumas críticas lúcidas internas, a demonstração se sustenta exclusivamente sobre a prova da existência e sobre os dois teoremas do bem-estar. Na verdade, a questão não-resolvida da obtenção de uma ordem estável é uma das evidências de impossibilidade do projeto. O teorema de Sonnenschein-Mantel-Debreu vai muito além de um problema localizado no mecanismo concorrencial. Ele introduz uma indeterminação fundamental no modelo de equilíbrio geral: o princípio maximizador é insuficiente para levar o modelo ao equilíbrio estável (Guerrien, 1992GUERRIEN, B. (1992) “Ou en est le programme de recherche Néoclassique?”, L ‘Actualité Economique, Revue d’Analyse Economique, vol. 68, n. 4.). Mesmo na versão axiomática mais pura se faz apelo à “instituição” do leiloeiro walrasiano, hipótese imprescindível, que introduz o paradoxo da centralização e da exterioridade num pretenso discurso da descentralização (De Villé, 1990DE VILLÉ, P. (1990) “Comportements concurrentiels et equilibre général: la necessité des Institutions”. Economie Appliqué, Tome XLIII.).

  2. A utilização do método axiomático cartesiano,9 9 A ideia cartesiana subjacente ao método axiomático neoclássico seria aquela segundo a qual a adição de ideias claras e distintas resultaria num conhecimento que progride cumulativamente. Como resultante desse processo axiomático centrado na dedução coerente obtém-se a verdade. Ou, em outros termos, “l’idée que la connaissance ainsi conçue ne peut progresser que quantitativement, par l’accroissement du nombre des idées claires et distinctes, sans que le progrés puisse remettre en question des connaissances antérieures” (Perelman, 1990, p. 65). isto é, a introdução de imperfeições ao ideal perfeito da TEG (adição/subtração de hipóteses), inviabiliza o projeto, defrontando-o com novos impasses: indeterminações, hysteresis, perda da possibilidade de manter os microfundamentos da ordem (Novos Clássicos), ou do caráter ótimo das soluções não cooperativas, além de ter que se admitir a multiplicidade de equilíbrios (teoria dos jogos).

Do ponto de vista epistêmico é questionável que esse procedimento que dá novo fôlego ao programa (porque estende seu campo de ação aproximando o quadro ideal da TEG do real) reconstrói o objeto complexo da economia. Dito em outros termos, é falsa a ideia de que a introdução de realismo seria cumulativa e que o objeto complexo da economia seria alcançado pela adição e/ou subtração de hipóteses dentro de uma perspectiva axiomática.10 10 Opondo axiomática à noção de ad hoc, Boyer et alii sublinham bem os traços que fazem da axiomática o critério de cientificidade exemplar para os neoclássicos: “la démarche axiomatique en économie ne semble donc manquer d’interêt: minimalité, généralité, universalité du príncipe explicatif, systematicité de la production théorique, unité et correction du langage; l’axiomatique parait atteindre la scientificité dans la plupart desses príncipes d’unité” (Boyer et alii, 1992, p. 26). Aliás, corroborando os limites insuperáveis desse jogo metodológico de introduzir realismo ao ideal perfeito, nunca é demais lembrar as palavras sombrias de Kaldor: “as hipóteses irrealistas exigidas para a construção dos fundamentos do edifício neoclássico não podem ser retiradas sob pena de o edificio desabar” (Kaldor, 1966KALDOR, N. (1966) “Marginal productivity and the macroeconomic theory of distribution”. Review of Economic Studies, vol. 33., p. 310). O ideal de descobrir normas permanentes para o pensamento racional aplicado à ciência econômica comete um pecado capital: a valorização abusiva das regras de coerência interna11 11 A axiomática ou “a busca de regras de coerência interna e de encadeamentos rigorosos” (Blanché, 1990, p. 11-55) significa, em última análise, “a enunciação de um pequeno número de condições suficientes e, se possível, estritamente necessárias, a partir das quais e por meio de uma regra de demonstração precisa e mecânica podemos tirar esquemas válidos de encadeamentos rigorosos” (Granger, 1967, pp. 42-58). em detrimento de pertinência.12 12 Acreditamos ser dispensável discorrer sobre as múltiplas concepções heterodoxas que, associadas ao realismo, como critério demarcatório científico advogam: i) que uma teoria não pode estar correta se as hipóteses não são realistas; ii) que abstrair não significa deformar a realidade, mas sim, identificar o que há de essencial (que aliás não necessariamente é o mais geral) (Lawson, 1989; Lavoie, 1992). Aqui o aviso kantiano permanece como um alerta: “o conhecimento pode estar em conformidade com a lógica, isto é, não contradizer a si mesmo e, no entanto, contradizer o objeto” (Kant, 1980KANT, I. (1980) Critique de la Raison Pure. Editions Gallimard, Paris.).

É certo que essas considerações de caráter metodológico (irrealismo de hipóteses, impossibilidades lógicas, paradoxos e indeterminações) fornecem-nos uma fonte originária e inquestionável de reflexão. São elas, em última análise, que revelam as potencialidades e os desvarios da razão humana aplicada ao universo da economia. Se, de um lado, nos permitem dar os primeiros passos dentro da viagem racionalista dos neoclássicos, de outro, exigem a transposição de seus próprios limites, sob pena de, prisioneiros da auto legitimidade dos métodos, não compreendermos esse velho projeto ortodoxo.

Transpor as impossibilidades no campo lógico leva-nos a considerações de ordem filosófica, à história das ideias e à epistemologia crítica13 13 Aqui fazemos uma contraposição à epistemologia positivista, em que se afirma “a história heroica da razão e em que se supõe a superioridade da teoria neoclássica, diante das clássicos dentro de uma perspectiva de ciência que avança cumulativamente, sem crises, alcançando patamares cada vez mais altos de racionalidade” (Ganem, 1989, p. 268). . O caminho axiomático da economia vem tomando a ciência econômica cada vez mais “restritiva” (Possas, 1995POSSAS, M. (1995) “A cheia do mainstream: comentários sobre os rumos da ciência econômica”. IEI, TD n. 327., p. 19),14 14 Ver, a propósito, a arguta crítica ao mainstream e uma avaliação dos rumos atuais da ciência econômica em que o autor assinala três tendências que se realimentam mutuamente e que refletem o estreitamento dos parâmetros científicos da economia ditados pela ortodoxia: a formalização crescente, a aplicação compulsória, excludente e restritiva da noção de equilíbrio e a utilização sistemática do princípio de otimização (Possas, 1995, p. 18). “degenerada” (Morishima, 1992MORISHIMA, M. (1992) “General equilibrium theory in twenty-first-century”. In HEY J. D. (org.) The future of economics, Basil Blackwel, Oxford., p. 72), “complicada e irrelevante” (Tolipan, 1992TOLIPAN, R. (1992) “Equílibrio e história do pensamento econômico”. In Literatura Econômica, IPE., p. 202.). Recorrer a esses campos limítrofes, reforçando o eixo filosófico foucaltiano da economia, significa iluminar o projeto no seu nascedouro e admitir que foi a conjunção de heranças da modernidade que forjou uma das questões mais pungentes dentro do campo ortodoxo: a produção de uma ordem equilibrada, estável e ótima pelo poder coordenador e soberano do mercado (Ganem, 1989GANEM, A. (1988) “Teoria Neoclássica: a face econômica da razão positiva”. Anais da XVI ANPEC (1988) e Literatura Econômica, IPEA (1989), vol. 11, nº 25., 1993GANEM, A. (1993) Théorie de L’Equilibre Général: le Mythe d’un Ordre Rationnel. Tese de doutorado, Paris X-Nanterre Université.).

Nossa opinião é que a resposta lógico-demonstrativa de Walras caminhou no mesmo sentido da resposta hobbesiana cujo desígnio epistemológico era construir uma ciência política certa, total e a priori transpondo a mathesis geométrica para o terreno da política e tornando-a uma dedução da fundação do Estado. “A assertiva segundo a qual o Estado se funda a priori traduz a resposta a uma exigência epistemológica crucial: ser a-histórico para obter a unidade de um sistema ou de uma ordem de leis que faça da política uma ciência indiscutível” (Zarka, 1982ZARKA, Y. (1982) La décision métaphysique de Hobbes: Conditions de la Politique, PUF, Paris.). Na verdade, o sonho e a tentação dos economistas walrasianos, como o de Hobbes, traduz-se na ideia de uma política matemática ou de um estado de direito totalmente construído acima da natureza, como uma geometria, e de uma relação entre os homens totalmente ideal, mental e nominalista e, portanto, transparente e certa (Ganem, 1993GANEM, A. (1993) Théorie de L’Equilibre Général: le Mythe d’un Ordre Rationnel. Tese de doutorado, Paris X-Nanterre Université.).

O projeto racional construtivista dos neoclássicos revela que somente no plano da axiomática poder-se-ia evocar o mito fundador de um mundo ordenado segundo leis inequívocas e a partir de uma racionalidade onisciente e que, portanto, pleiteia que “todo objeto pode ser pensado e todo problema pode ser resolvido a partir de um bom uso da razão” (Descartes, mais uma vez revisitado). Se para os seus teóricos a resposta da TEG é clara e definitiva (Hahn, 1986HAHN, F. (1986) “Théorie de l’Equilibre Général”. In Crise et renouveau de la Théorie Economique, Bonnel/Publised.) e foram encontradas as boas “regras para a direção do espírito”, para nós a pretensão de demonstrar a superioridade do mercado se inscreve na filosofia racionalista dos tempos modernos e no padrão de cientificidade ditado pela Revolução Científica Moderna. Deles decorre a exigência de um conhecimento completo e de uso universal (ta mathema)15 15 A matemática na expressão grega ta mathema significa “conhecimento completo, perfeito e inteiramente dominado pela inteligência”. de um princípio explicativo minimal capaz de integrar e articular todas as partes num sistema de leis ou, ainda, de hipóteses irrealistas a partir das quais se construiria um mundo deduzido coerentemente. Na verdade, só o mito da onipotência da razão16 16 Aqui nos referimos à razão onipotente cartesiana que remete a ideia de “qu’il faudra éliminer de notre connaissance tout ce qui est apport individueil subjectif, social ou historique, en un mot contingentiel pour retrouver l’usage universellement valable de cette raison commune a tous les hommes et qui n ‘est que le reflet de la raison divine” (Perelman, 1990, p. 66). pode pretender que um mundo idealizado e depois corrigido obedeça a uma ordem intrínseca (a do mercado) capaz de ser desvelada, de uma vez por todas, reeditando o homem moderno da crítica heideggeriana.17 17 O teórico da TEG de uma certa forma reencontra o homem moderno da crítica de Heidegger que, regido por uma onisciente razão, descobre a verdade: ele a vê. O homem moderno, a partir da certeza de que a verdade do mundo pode ser descoberta por intermédio de uma linguagem inequívoca (a natureza escrita em caracteres geométricos), vê a totalidade (Heidegger, 1962). Só o mito racional18 18 A noção de “mito racional” pode parecer à primeira vista uma heresia, mas não é. Embora o mito primitivo seja da ordem da integração do homem com a cosmologia e a guerra fratricida entre o mito e a razão na história das ideias gregas fez da razão a vencedora (a destruição da mitologia pela autoridade das estruturas matemáticas pitagóricas), ele renascerá servindo à razão, emagrecido de seus conteúdos enriquecedores originários. Ele renasce num reencontro trágico-ascético com a onipotente razão na modernidade (Gusdorf, 1984; Illiade, 1963). do modelador poderia produzir uma idealidade em que somando-se ou subtraindo-se ideias ao núcleo duro resultaria o objeto da economia “reconstruído”. A evidência da impossibilidade de construir leis gerais de uma ordem estável, as frustrações definidas por constatações de indeterminações, a perda do caráter normativo de seus modelos, a proliferação de equilíbrios, a redução de suas ambições a modelos extremamente reduzidos e míopes revelam mais do que desconfortos metodológicos suscetíveis de ser superados com a complexidade crescente dos cálculos. Os esforços inúteis expressos nas tentativas de conciliar maximização e equilíbrio, e estes com exigência de realismo, mostram a mais cruel das idiossincrasias dos neoclássicos: seu desejo ascético de construir aprioristicamente os fundamentos rigorosos de uma ciência dura para uma ciência que é de natureza social. A ilusão que os arrasta para o terreno do mito é a mesma que alimenta a ideia metafisica de uma ciência que se pretende pairar neutra, objetiva e eternamente sobre a moral, a incerteza, o tempo histórico, enfim, sobre as contingências de um mundo que teima não ser aprisionado pelos ditames da lógica formal. Em última análise, essa utopia racionalista de que o conhecimento e a direção do mundo se farão a partir de uma “possibilidade lógica” remete a TEG e os programas a ela associados ao mito da razão, e inscreve o programa neoclássico como herdeiro ( expressão mais acabada dentro das ciências sociais) da tradição racional-construtivista dos tempos modernos em que o Estado (Hobbes) e o mercado (TEG) podem ser demonstrados e construídos, desrespeitando qualquer herança ou tradição (Ganem, 1993GANEM, A. (1993) Théorie de L’Equilibre Général: le Mythe d’un Ordre Rationnel. Tese de doutorado, Paris X-Nanterre Université.).

Na verdade, se o projeto axiomático de ciência tem levado à pretensão racional-construtivista dos neoclássicos a impasses inevitáveis é porque, em última análise: i) o objeto da economia não se deixa capturar por esse método, revelando, a cada momento, as dificuldades de conciliação do “coerente” com o “complexo”; ii) o mercado não é necessariamente a instância auto-reguladora e constitutiva da ordem social; iii) o equilíbrio não deve ser a noção central da analise econômica. Questões metodológicas, sem dúvida, mas que ironicamente não demandam o socorro do econometrista, e sim talvez a ajuda do olhar inquietante do filósofo.

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  • ZARKA, Y. (1982) La décision métaphysique de Hobbes: Conditions de la Politique, PUF, Paris.
  • 1
    A geometria é um saber demonstrativo em que nós mesmos construímos os objetos: a linha é produzida pelo movimento do ponto, a superfície pelo movimento da linha e o sólido pelo movimento da superfície. Nesse sentido, ela é considerada do ponto de vista epistemológico e filosófico o exemplo privilegiado do poder arbitrário do fazer humano. Estabelecendo uma analogia com a construção artificial do Estado, segue-se que a política para Hobbes é uma dedução da necessidade da fundação originária e a histórica do Estado (Zarka, 1982ZARKA, Y. (1982) La décision métaphysique de Hobbes: Conditions de la Politique, PUF, Paris.; Strauss, 1986STRAUSS, L. (1986) Droit Naturel et Histoire. Libraire Plon, Paris., 1991STRAUSS, L. (1991) La Philosophie Politique de Hobbes. Editions Belin, Paris.), e o mercado pode ser visto como a resposta racionalista aos filósofos do contrato e ao Leviathan: em última análise, uma aplicação da mathesis geométrica ao universo da economia. Ainda sobre a aplicação do esprit géometrique à economia, é pertinente e irônica a observação de Tolipan em que o “esprit géometrique cospe no prato da intuição de que se alimenta. Se recebe dela seu sopro de vida, procura a independência tentando liquidar a forma que derivou. A consequência é que a ciência econômica é cada vez mais complicada e irrelevante” (Tolipan, 1992TOLIPAN, R. (1992) “Equílibrio e história do pensamento econômico”. In Literatura Econômica, IPE., p. 202 ).
  • 2
    Von Newman demonstrou que certas formas bilineares têm um ponto nulo, sendo essa demonstração uma generalização do teorema da existência do equilíbrio no jogo de duas pessoas com soma nula (Arrow, Hahn, 1971ARROW, K. & HAHN, F. (1971) General Competitive Analysis, Holden Day, San Francisco.).
  • 3
    A eliminação do tempo, da moeda e da incerteza sublinha o papel crucial dos preços como a única informação transmitida aos agentes que, por sua vez, estabelecem seus planos sem levar em consideração uma eventual incidência de suas ações sobre os preços ou sobre os planos dos outros agentes. Além disso, os agentes munidos de funções objetivas intertemporais intervêm sobre os mercados a termo para todos os bens e para todas as datas futuras (Arrow e Hahn, 1971ARROW, K. & HAHN, F. (1971) General Competitive Analysis, Holden Day, San Francisco.; Guerrien, 1989GUERRIEN, B. (1989) “La Théorie Néoclassique: bilan et perspectives du modele d’Equilibre Général.” Economica, Paris.).
  • 4
    Aliás, o critério paretiano não é somente a peça angular da TEG. Ele é o ponto de partida teórico da velha escola de Economia do Bem-Estar de Chicago ( de origem pigouniana) e da Nova Economia do Bem-estar, a New Welfare Economics (cuja pretensão é construir uma ética científica), sem contar a grande influência que exerce nas disciplinas vizinhas como a Teoria das Escolhas Sociais e a Escola do “Public Choice”.Ver a crítica ao critério em Dupuy (1992aDUPUY, J. P. (1992a) Le Sacrifice et l’Envie: Le Libéralisme aux Frises de la Justice, Calmann Levy.) e Paridjis (1991PARIDJIS, P. V. (1991) Qu ‘est qu ‘une Societé Juste?, Seuil, Paris.).
  • 5
    Duas contribuições teóricas marcaram a década de 50: o trabalho de Arrow (1951), intitulado “An extension of the basic theorems of classical welfare economics publicado em Proceding of Second Berkeley Symposium On Mathematical Statistics and Probability, University of California e o de Debreu (1951), intitulado The coeficient of resources utilisation”, Econometrica.
  • 6
    São considerados referências para o debate em tomo da questão da estabilidade: o trabalho de Sonnenschein “Do Walraís identify and continuity characterize the class of community excess demand functions?” ,Journal of Economic Theory (6), e o de Debreu (1971), Excess demandfunctions (reeditado em 1986), in Mathematical Economics: Twenty Papers of Gerard Debreu, Cambridge University Press. A propósito do teorema da estabilidade na sua primeira versão e na versão Sonnenschein/Mantel/Debreu, ver demonstrações em Guerrien, 1989GUERRIEN, B. (1989) “La Théorie Néoclassique: bilan et perspectives du modele d’Equilibre Général.” Economica, Paris.. Para uma avaliação crítica dos impasses gerados pela aplicação do teorema, consultar Guerrien, 1992GUERRIEN, B. (1992) “Ou en est le programme de recherche Néoclassique?”, L ‘Actualité Economique, Revue d’Analyse Economique, vol. 68, n. 4. e De Villé, 1990DE VILLÉ, P. (1990) “Comportements concurrentiels et equilibre général: la necessité des Institutions”. Economie Appliqué, Tome XLIII..
  • 7
    Amaud Berthoud em Economie Politique et Morale chez Walras” é o autor que melhor elucida a questão de uma ordem integrada pelo centro, associando a TEG walrasiana a uma máquina em que “la virtualité des tatônnements ne releve pas des démonstrations logiques” e que, além disso, “l’unicité du crieur figure l’unicité de la causalité mise en oeuvre en toute machine” (Berthoud, 1988BERTHOUD, A. (1988) “Economie politique et morale chez Walras” Oeconomica, La Découverte.).
  • 8
    O fato de se constatar a impossibilidade de construção de leis gerais não invalida o avanço do programa em outras direções, priorizando e desenvolvendo teorias de equilíbrio parcial, propondo políticas econômicas, submetendo as teorias a testes econométricos, enfim, sublinhando o braço prático e instrumental do programa e, com isso, alargando seu campo de ação e seduzindo as novas gerações de economistas.
  • 9
    A ideia cartesiana subjacente ao método axiomático neoclássico seria aquela segundo a qual a adição de ideias claras e distintas resultaria num conhecimento que progride cumulativamente. Como resultante desse processo axiomático centrado na dedução coerente obtém-se a verdade. Ou, em outros termos, “l’idée que la connaissance ainsi conçue ne peut progresser que quantitativement, par l’accroissement du nombre des idées claires et distinctes, sans que le progrés puisse remettre en question des connaissances antérieures” (Perelman, 1990PERELMAN, C. (1990) “De l’evidence en métaphysique”. In L ‘homme et la réthoríque, Meridiens-Klincksieck., p. 65).
  • 10
    Opondo axiomática à noção de ad hoc, Boyer et alii sublinham bem os traços que fazem da axiomática o critério de cientificidade exemplar para os neoclássicos: “la démarche axiomatique en économie ne semble donc manquer d’interêt: minimalité, généralité, universalité du príncipe explicatif, systematicité de la production théorique, unité et correction du langage; l’axiomatique parait atteindre la scientificité dans la plupart desses príncipes d’unité” (Boyer et alii, 1992BOYER, R. et alii (1992) “Le paradoxe de l’ad hoc en économie”. In Colloque: L’’economie Devient-elle Une Science Dure? Ministére de L’ Éducation Nationale, Paris., p. 26).
  • 11
    A axiomática ou “a busca de regras de coerência interna e de encadeamentos rigorosos” (Blanché, 1990BLANCHÉ, R. (1990) L ‘Axiomatique. Quadrige, PUF., p. 11-55) significa, em última análise, “a enunciação de um pequeno número de condições suficientes e, se possível, estritamente necessárias, a partir das quais e por meio de uma regra de demonstração precisa e mecânica podemos tirar esquemas válidos de encadeamentos rigorosos” (Granger, 1967GRANGER, G. G. (1967) La Raison. PUF, Paris., pp. 42-58).
  • 12
    Acreditamos ser dispensável discorrer sobre as múltiplas concepções heterodoxas que, associadas ao realismo, como critério demarcatório científico advogam: i) que uma teoria não pode estar correta se as hipóteses não são realistas; ii) que abstrair não significa deformar a realidade, mas sim, identificar o que há de essencial (que aliás não necessariamente é o mais geral) (Lawson, 1989LAWSON (1989) “Abstraction, tendencies and stylised facts: a realist approach to economic analyses”. Cambridge Journal of Economics; vol. 13, março.; Lavoie, 1992LAVOIE, M. (1991) “Noyau, Demi-Noyau et heuristique du programme de recherche néoclassique”. Economie Appliquée, tome XLIV.).
  • 13
    Aqui fazemos uma contraposição à epistemologia positivista, em que se afirma “a história heroica da razão e em que se supõe a superioridade da teoria neoclássica, diante das clássicos dentro de uma perspectiva de ciência que avança cumulativamente, sem crises, alcançando patamares cada vez mais altos de racionalidade” (Ganem, 1989GANEM, A. (1988) “Teoria Neoclássica: a face econômica da razão positiva”. Anais da XVI ANPEC (1988) e Literatura Econômica, IPEA (1989), vol. 11, nº 25., p. 268).
  • 14
    Ver, a propósito, a arguta crítica ao mainstream e uma avaliação dos rumos atuais da ciência econômica em que o autor assinala três tendências que se realimentam mutuamente e que refletem o estreitamento dos parâmetros científicos da economia ditados pela ortodoxia: a formalização crescente, a aplicação compulsória, excludente e restritiva da noção de equilíbrio e a utilização sistemática do princípio de otimização (Possas, 1995POSSAS, M. (1995) “A cheia do mainstream: comentários sobre os rumos da ciência econômica”. IEI, TD n. 327., p. 18).
  • 15
    A matemática na expressão grega ta mathema significa “conhecimento completo, perfeito e inteiramente dominado pela inteligência”.
  • 16
    Aqui nos referimos à razão onipotente cartesiana que remete a ideia de “qu’il faudra éliminer de notre connaissance tout ce qui est apport individueil subjectif, social ou historique, en un mot contingentiel pour retrouver l’usage universellement valable de cette raison commune a tous les hommes et qui n ‘est que le reflet de la raison divine” (Perelman, 1990PERELMAN, C. (1990) “De l’evidence en métaphysique”. In L ‘homme et la réthoríque, Meridiens-Klincksieck., p. 66).
  • 17
    O teórico da TEG de uma certa forma reencontra o homem moderno da crítica de Heidegger que, regido por uma onisciente razão, descobre a verdade: ele a vê. O homem moderno, a partir da certeza de que a verdade do mundo pode ser descoberta por intermédio de uma linguagem inequívoca (a natureza escrita em caracteres geométricos), vê a totalidade (Heidegger, 1962HEIDEGGER, M. (1962) “L’époque des conceptions du monde”. In Chemins quine mênent nulle part, Gallimard, Paris.).
  • 18
    A noção de “mito racional” pode parecer à primeira vista uma heresia, mas não é. Embora o mito primitivo seja da ordem da integração do homem com a cosmologia e a guerra fratricida entre o mito e a razão na história das ideias gregas fez da razão a vencedora (a destruição da mitologia pela autoridade das estruturas matemáticas pitagóricas), ele renascerá servindo à razão, emagrecido de seus conteúdos enriquecedores originários. Ele renasce num reencontro trágico-ascético com a onipotente razão na modernidade (Gusdorf, 1984GUSDORF, G. (1984) Mythe et Métaphysique, Flamarion, Paris.; Illiade, 1963ILLIADE, M. (1963) Aspects du Mythe. Editions Gallimard, Paris.).
  • 20
    JEL Classification: B20; B41.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1996
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