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Tricobezoar gigante: relato de caso e revisão da literatura

Giant trichobezoar: case report and literature review

CARTA AO EDITOR

Tricobezoar gigante. Relato de caso e revisão da literatura

Giant trichobezoar: case report and literature review.

Henrique José Virgili Silveira; José Antônio Coelho-Junior; Martinho Antônio Gestic; Elinton Adami Chaim; Nelson Adami Andreollo

Endereço para correspondência Correspondência: Henrique J. V. Silveira, e-mail: henriquejvs@gmail.com

INTRODUÇÃO

Bezoares consistem em aglomerados de material estranho ingerido e acumulado no interior do tubo digestivo. A palavra bezoar tem origens no árabe (badzher) ou no persa (padzhar) ou no hebreu (beluzaar), todas com o mesmo significado: "proteção contra veneno", ou seja, antídoto2,3. Isto porque os antigos utilizavam como proteção contra feitiços e como amuletos para trazer sorte, aglomerados de substâncias não digeridas encontrados no tubo digestivo de animais ruminantes. Desde então, substâncias estranhas, não digeríveis, encontradas no tubo digestivo receberam a denominação de bezoar3. O relato mais antigo de um bezoar encontrado em humanos é de Baudamant, que em 1779 descreveu um caso de tricobezoar em uma mulher7.

Existem diversas composições dos bezoares, porém as mais comumente encontradas são os bezoares constituídos por pelos e cabelos, tricobezoares, ou os formados por aglomerados de fibras vegetais, os fitobezoares. Existem ainda bezoares mistos, tricofitobezoares, ou outros menos frequentes como lactobezoares, encontrados em lactentes prematuros e constituídos por fórmulas lácteas concentradas, farmacobezoares, decorrentes de ingestão de alguns tipos de medicamentos, litobezoares, formados por aglomerados de pequenas pedras, e bezoares micóticos2,8.

A incidência dos bezoares é de 1% na população e sua formação geralmente está associada à alterações gástricas como operações de ressecção prévia, hipomotilidade ou hipossecreção com hipocloridria5. Nestes casos é mais comum a formação de fitobezoares e obstrução no intestino delgado, devido ao esvaziamento gástrico mais rápido e a digestão deficiente das fibras vegetais. Pacientes com problemas mentais e ingestão de corpos estranhos não digeríveis (pedras, por exemplo) ou do próprio cabelo, também são muito suscetíveis à formação de bezoares; porém o local de obstrução mais comum é o estômago. Neste grupo, 90% dos pacientes são mulheres com cabelos longos e predisposição a doenças psiquiátricas1,2,6,9.

Os sintomas ocasionados pela presença do bezoar no tubo digestivo são geralmente decorrentes da obstrução, acompanhados de dor abdominal. Menos frequentemente podem levar a sintomas compressivos de estruturas adjacentes e à perfuração gástrica ou do intestino delgado1,2,3,7.

O seu tratamento consiste em remoção por meio endoscópico, dissolução por substâncias químicas ou tratamento cirúrgico. Este último é utilizado quando os primeiros métodos não obtiverem sucesso ou em casos de bezoares gigantes, não passíveis de resolução por outros métodos1,2,6,7.

No presente trabalho apresenta o caso de uma mulher portadora de tricobezoar gigante submetida a tratamento cirúrgico.

RELATO DE CASO

Paciente com 15 anos apresentando quadro de dor abdominal com predomínio na região epigástrica e empachamento pós-prandial há um ano. Nas últimas três semanas apresentou piora do quadro de dor, não conseguindo alimentar-se adequadamente. Há sete dias apresentava vômitos pós-prandiais e emagrecimento de 4 kg. Tinha antecedente de anemia em acompanhamento clínico há um ano, utilizando sulfato ferroso, porém sem resposta ao tratamento. Referia também queda capilar há dois anos, não sendo identificada deficiência nutricional ou problema dermatológico.

Ao exame físico a paciente apresenta-se em bom estado geral, levemente desidratada e moderadamente descorada, anictérica e afebril. Estável hemodinamicamente. Na inspeção e palpação do abdome observava-se abdome plano, com abaulamento na região epigástrica em topografia gástrica, de consistência amolecida, móvel e dolorosa à palpação.

Realizado exame ultrassonográfico abdominal que evidenciou em topografia gástrica grande massa sólida hipoecóide, de bordas ecogênicas, que determinava sombra acústica posterior, sendo aventada a hipótese de corpo estranho gástrico.

Foi então realizada endoscopia digestiva alta que constatou grande massa heterogênea composta por cabelo, preenchendo todo a cavidade gástrica, com passagem do endoscópio com grande dificuldade. O esôfago apresentava-se sem alterações e a mucosa gástrica apresentava apenas enantema, sem outras lesões.

Uma vez definido o diagnóstico de tricobezoar gigante, a paciente foi submetida ao tratamento cirúrgico com laparotomia através de incisão mediana supraumbilical. Encontrado estômago distendido, totalmente preenchido pelo bezoar (Figura 1). O duodeno e alças de delgado não apresentavam acometimento pelo bezoar. Foi realizada gastrotomia transversal de 8 cm de extensão, junto à grande curvatura na transição entre corpo e fundo gástrico e retirado o bezoar que apresentava-se com o formato da câmara gástrica. Ele pesou 1450 gramas (Figura 2).



A paciente apresentou boa evolução pós-operatória, iniciando alimentação por via oral no terceiro dia de pós-operatório e recebendo alta hospitalar no sexto dia sem apresentar qualquer tipo de complicação. Após a alta foi encaminhada para seguimento psiquiátrico.

DISCUSSÃO

Mesmo apresentando incidência de 1% na população, não é frequente o achado de bezoares gigantes como o relatado2,3,5,6. Eles são encontrados no estômago e necessitam grandes períodos para sua formação. Até atingirem suas dimensões finais podem levar a diversos sintomas inespecíficos como dor esporádica, mal-estar, halitose, anemia, que muitas vezes não são devidamente valorizados9.

Mulheres com propensão a distúrbios emocionais e psiquiátricos, apresentando sintomas dispépticos associados ou não a outros sintomas, devem sempre ter a hipótese de bezoar aventada. No caso relatado a paciente apresentava história de dois anos de queda capilar, dor abdominal inespecífica e anemia.

Quando localizados no estômago o melhor método diagnóstico é a endoscopia digestiva alta; porém na impossibildade de sua realização outros métodos como estudo radiológico contrastado ou ultrassonografia abdominal podem ser suficientes para o diagnóstico1,5,6,8. Bezoares localizados em porções mais distais do intestino delgado podem ser diagnosticados com tomografia computadorizada e radiologia contrastada8.

Raramente é possível a remoção endoscópica ou dissolução química de um bezoar gigante, sendo necessária a intervenção cirúrgica2,4,7. Ela pode ser realizada por via laparoscópica ou laparotômica. Alguns autores descrevem dificuldade na retirada de bezoares gigantes quando da realização de cirurgia laparoscópica10. Outros autores, porém, propõe modificações técnicas obtendo sucesso na remoção laparoscópica de bezoares gigantes sem aumento da morbidade4. Neste caso foi optado por laparotomia, que mostrou-se adequada com resolução do caso e sem complicações pós-operatórias.

Para que o tratamento possa ser considerado completo é necessário prevenir a sua recorrência com seguimento psiquiátrico, clínico e endoscópico.

Fonte de financiamento: não há

Conflito de interesses: não há

Recebido para publicação: 27/10/2010

Aceito para publicação: 22/12/2011

Trabalho realizado pelo Serviço de Cirurgia Geral do Hospital Estadual Sumaré - Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Sumaré, SP, Brasil.

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  • Correspondência:
    Henrique J. V. Silveira, e-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      01 Fev 2013
    • Data do Fascículo
      Jun 2012
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