Resumos
Os eventos de isquemia-reperfusão desencadeiam uma resposta inflamatória sistêmica que pode levar a lesões celulares e até falência de órgãos. Tais repercussões são notadas no pós-operatório de cirurgias, em especial, com o uso de circulação extracorpórea. Sabe-se, atualmente, que os leucócitos exercem importante papel neste processo. Assim, este estudo aborda o papel dos leucócitos na fisiopatologia das lesões de isquemia-reperfusão e a ativação das cascatas inflamatórias por esse processo e procura auxiliar na compreensão destes mecanismos assim como trazer contribuições acerca das abordagens terapêuticas que possam atenuá-los. Esta revisão bibliográfica retrospectiva foi realizada a partir de documentos científicos publicados nos últimos dez anos, em português e inglês, indexados em bases de dados internacionais Medline e SciELO e de textos clássicos relacionados. Os descritores pesquisados foram: isquemia-reperfusão, leucócitos, resposta inflamatória, circulação extracorpórea, efeitos adversos e apoptose.
Circulação extracorpórea; Leucócitos; Isquemia; Traumatismo por reperfusão
The events of ischemia-reperfusion injury triggers a systemic inflammatory response and can lead to cellular injury and organ failure. Such effects are noted in the postoperative recovery, especially with the use of cardiopulmonary bypass. Nowadays, it is known that leukocytes play an important role in this process. Therefore, this study addresses the role of leukocytes in the physiopathology of ischemia-reperfusion injuries and activation of inflammatory cascades through this process and seek to help in the understanding of these mechanisms as well as to bring contributions on the therapeutic approaches that can mitigate them. This retrospective review was performed from indexed scientific papers published over the last ten years in Portuguese and English in international databases MEDLINE and SciELO and related classic texts. The descriptors investigated were: ischemia-reperfusion, leukocytes, inflammatory response, cardiopulmonary bypass, adverse effects and apoptosis.
Extracorporeal circulation; Leukocytes; Ischemia; Reperfusion injury
ARTIGO DE REVISÃO
Os leucócitos e a resposta inflamatória na lesão de isquemia-reperfusão
Ieda FrancischettiI; José Bitu MorenoII; Martin ScholzIII; Winston Bonetti YoshidaIV
IDoutorado; Coordenadora do Programa de Desenvolvimento Docente da Faculdade de Medicina de Marília
IIPós-doutorado; Chefe da Disciplina de Cirurgia Vascular da Faculdade de Medicina de Marília
IIIDoutorado; Professor Adjunto do Departamento de Clínica Cirúrgica do Trauma e Mão da Universidade Heinrich-Heine, Düsseldorf, Alemanha
IVLivre-docente; Professor Adjunto da Disciplina de Cirurgia Vascular da Universidade Estadual Paulista, Botucatu, SP
Endereço para correspondência Endereço para correspondência: Ieda Francischetti Rua Doutor Augusto Barreto, 440 - Bairro Maria Izabel Marília, SP, Brasil - CEP 17516-033 E-mail: iedafster@googlemail.com
RESUMO
Os eventos de isquemia-reperfusão desencadeiam uma resposta inflamatória sistêmica que pode levar a lesões celulares e até falência de órgãos. Tais repercussões são notadas no pós-operatório de cirurgias, em especial, com o uso de circulação extracorpórea. Sabe-se, atualmente, que os leucócitos exercem importante papel neste processo. Assim, este estudo aborda o papel dos leucócitos na fisiopatologia das lesões de isquemia-reperfusão e a ativação das cascatas inflamatórias por esse processo e procura auxiliar na compreensão destes mecanismos assim como trazer contribuições acerca das abordagens terapêuticas que possam atenuá-los. Esta revisão bibliográfica retrospectiva foi realizada a partir de documentos científicos publicados nos últimos dez anos, em português e inglês, indexados em bases de dados internacionais Medline e SciELO e de textos clássicos relacionados. Os descritores pesquisados foram: isquemia-reperfusão, leucócitos, resposta inflamatória, circulação extracorpórea, efeitos adversos e apoptose.
Descritores: Circulação extracorpórea. Leucócitos. Isquemia. Traumatismo por reperfusão.
INTRODUÇÃO
As doenças cardiovasculares são, na atualidade, a principal causa de morte no mundo ocidental. No ano de 2005, elas corresponderam a 30% do total, o que significou 17,5 milhões de óbitos, sendo que 1/3 destes foram provocados pelas cardiopatias isquêmicas [1,2]. Estima-se que, no ano de 2015, o número de óbitos crescerá para 20 milhões, demonstrando a importância de medidas que possam contribuir para sua menor incidência e melhor terapêutica [1].
Nas cardiopatias isquêmicas, tanto na fase aguda como na fase crônica, existe o risco potencial de duas situações importantes que, em última análise, podem levar a resposta inflamatória sistêmica: 1) a isquemia seguida por reperfusão cardíaca após a desobstrução das artérias coronárias e 2) as complicações originadas do uso de circulação extracorpórea (CEC) nas cirurgias com pinçamento aórtico.
Durante a isquemia, prevalece o metabolismo anaeróbico, com o aumento de lactato e fosfato inorgânico e diminuição do pH, do trifosfato de adenosina (ATP) e da creatina. A falta de ATP acarreta falência das bombas transmembrana e alterações no gradiente iônico das células, com afluxo de sódio e cálcio para o meio intracelular e formação de edema celular. O aumento de cálcio intracelular ativa principalmente a fosfolipase A2 e a calpaína entre outras proteases citoplasmáticas, enquanto a falência das bombas de hidrogênio lisossomais e a queda do pH ativam enzimas lisossômicas que lesam diretamente organelas celulares. A fosfolipase A2 degrada o ácido aracdônico, dando origem a mediadores da inflamação, como leucotrienos, prostaglandinas e tromboxanos. A ação destas substâncias desencadeia adesão e ativação neutrofílica, vasoconstricção, lesão tecidual, agregação plaquetária e quimiotaxia na área isquêmica [3,4]. A calpaína, durante a isquemia, transforma a xantina desidrogenase, gerada pelo metabolismo anaeróbico, em xantina oxidase, que tem importância nas lesões de reperfusão, como se verá adiante [3].
Por outro lado, a restauração do fluxo sanguíneo (reperfusão), necessária à recuperação da função celular, pode piorar as lesões presentes na isquemia, desencadeando lesões irreversíveis e morte celular. A reintrodução do oxigênio molecular (O2) em tecido isquêmico produz radicais livres de oxigênio (RLO), altamente lesivos às células e que podem iniciar uma reação inflamatória sistêmica exacerbada. Especificamente nas cirurgias cardíacas com circulação extracorpórea (CEC), a isquemia cardiopulmonar inerente ao próprio procedimento cirúrgico provoca mecanismo lesivo adicional de isquemia e reperfusão, tanto nos pulmões como no coração, além de causar resposta imunológica por meio do contato do sangue com os materiais sintéticos de que é constituída a CEC [5-7].
REPERFUSÃO, LEUCÓCITOS E RLO
Em situações fisiológicas, a nicotinamida adenina dinucleotídeo fosfato (NADPH) é o aceptor final de elétrons na cadeia respiratória, que tem a participação da enzima xantina desidrogenase catalisando essa reação, cujo produto final é a água. Nos tecidos pósisquêmicos (na reperfusão), há o acúmulo da xantina oxidase que, ao invés do NADPH, utiliza o O2, disponibilizado pela reperfusão, como aceptor final de elétrons. Na reação hipoxantina-xantina, os elétrons são transferidos para o O2, gerando o radical superóxido (O2-), o qual, espontaneamente ou por ação enzimática (reação com a superóxido dismutase-SOD), sofre dismutação em peróxido de hidrogênio (H2O2), (reação 1). Por meio da reação descrita por Haber-Weiss (2), a reação entre H2O2 e O2-pode dar origem "in vivo" ao radical hidroxil (OH). Na presença de certos metais de transição (Fe2+, Cu1+, Co2+), o OH pode ser formado muito mais rapidamente, pela reação 3, descrita por Fenton [5,8,9].
Outras vias de produção de RLO conhecidas são a autoxidação de catecolaminas e a enzima NADPH-oxidase neutrofílica. Os neutrófilos ativados geram RLO nos vacúolos fagocitários, pela ativação da oxidase nicotinamida adenina dinucleotídeo fosfato (NADPHoxidase), que converte o O2 em ânion superóxido (O-, seguindo-se a cadeia de eventos até a formação do radical OH. A mieloperoxidase presente nos leucócitos catalisa a reação do H2O2 com o cloro, formando hipoclorito, potente agente oxidante [10-12] (Figura 1).
Os RLO e produtos da reação inflamatória funcionam como quimiotáticos, atraindo e ativando os leucócitos, os quais liberam várias enzimas proteolíticas, como elastases, hidrolases, mieloperoxidases e proteases, causando destruição tecidual e amplificando a resposta inflamatória e a quimiotaxia [3,4,6].
INTERAÇÕES CELULARES ENVOLVENDO A RESPOSTA INFLAMATÓRIA
Os leucócitos são as principais células sanguíneas envolvidas na resposta inflamatória, embora plaquetas e eritrócitos também participem. Os leucócitos são classificados em neutrófilos (40%-75%), linfócitos (20%-50%), monócitos (2%-10%), eosinófilos (1%-6%) e basófilos (<1%). Destes, os neutrófilos são os mais importantes na patogênese da inflamação. São as células predominantes nas primeiras 6 a 24 horas nas inflamações agudas [13]. Medem de 12 a 18 micrômetros, duram de 7-10 horas na circulação e sofrem apoptose em 24 horas.
As principais alterações da inflamação aguda ocorrem: 1) no calibre vascular com vasodilatação (com ou sem vasoconstricção transitória anterior) que levam a um aumento no fluxo sanguíneo, 2) alterações estruturais na microcirculação, que permitem o extravasamento de proteínas plasmáticas para o interstício em forma de exsudato inflamatório (edema) e 3) na migração de leucócitos da microcirculação e seu acúmulo no local de lesão inicial [13-16].
Logo após esta lesão inicial, ocorre vasodilatação e aumento da permeabilidade endotelial, provocando aumento da pressão hidrostática e diminuição da pressão osmótica do plasma, pela saída de líquido rico em proteínas. A perda de líquido resulta em concentração elevada de hemácias e aumento de viscosidade sanguínea, deixando o fluxo mais lento (estase), e contribuindo para que os leucócitos (especialmente os neutrófilos) se movam para as camadas mais periféricas da corrente sanguínea, iniciando a chamada marginação leucocitária ao longo do endotélio vascular [6].
Em função da inflamação, após o processo de marginação, tanto células endoteliais quanto os leucócitos circulantes são ativados pelas substâncias inflamatórias circulantes. Inicia-se, então, a fase de rolamento dos leucócitos que por meio da exposição de seus receptores, L-selectinas, e a interação destes com os receptores Pselectinas das células endoteliais ativadas, desenvolvem uma fase de adesão frouxa com as células endoteliais que produzem este processo de rolamento [3-6]. A adesão firme ocorre posteriormente, por meio do contato das integrinas leucocitárias com as imunoglobulinas endoteliais [3-6].
Assim, no início do processo destacam-se as selectinas, dentre elas a P-selectina, que participa apenas no rolamento, enquanto a E-selectina participa tanto no rolamento quanto na adesão de leucócitos ao endotélio, como destacamos a seguir:
1. A P-selectina é uma glicoproteína intracelular presente nas plaquetas e no endotélio, que quando expressa, liga-se principalmente aos neutrófilos, sendo essa ligação normalmente induzida pelo TNF e IL-1;
2. A E-selectina (ELAM-1), também exposta pelo endotélio ativado, é responsável pela adesão da maioria dos grupos leucocitários, principalmente no estágio inicial [6];
3. A L-selectina está presente na superfície da maioria dos neutrófilos, monócitos e linfócitos, participa do início do processo de adesão dos leucócitos ao endotélio [6,14].
Em seguida, o processo caminha para a forte adesão quando participam as integrinas nos leucócitos e as imunoglobulinas nas células endoteliais. As integrinas são proteínas transmembrana da superfície celular que reagem a sinais de ativação celular e se ligam a imunoglobulinas e à matriz extracelular. Cada integrina contém cadeias á e â, com estruturas características, e classificadas segundo sua cadeia β:
As β1-integrinas, também chamadas de very late antigen (VLA), estão presentes em leucócitos e contêm muitas subunidades de á1 a á6. A integrina á4â1 (VLA-4 ou CD49d) é importante com relação à adesão leucocitáriaendotelial, pois interage com a molécula de adesão celular vascular (VCAM-1);
As β2-integrinas são rapidamente apresentadas pelos leucócitos em reação a quadros agudos. São β2integrinas as LFA-1 (também denominas CD11a / CD18 ou αLβ2), e MAC-1 (CD11b/CD18 ou αMβ2). As integrinas MAC-1 e LFA-1 são as mais estudadas, sendo que a integrina MAC-1, em particular, desempenha papel primordial tanto na adesão quanto na diapedese de todos os leucócitos [15,16].
As imunoglobulinas são expressas nas células endoteliais como receptores para integrinas leucocitárias. A VCAM-1 e a molécula de adesão intracelular-1 (ICAM-1) são os principais receptores para as â2-integrinas dos leucócitos [6,14,15].
Após a forte adesão ao endotélio, os leucócitos migram através de junções interendoteliais (diapedese) e se dirigem aos sítios de inflamação guiados pelos fatores quimiotáticos [6] (Figura 2).
Tanto a adesão como a diapedese leucocitárias são afetadas por mediadores químicos da inflamação, os quais, além do efeito quimiotático, podem gerar uma cascata capaz de ampliar e liberar outros fatores estimulantes. A quimiotaxia envolve a ligação de mediadores químicos ou agentes quimiotáticos a receptores específicos na superfície da proteína G de leucócitos que ativa a via da fosfoinositol-3 quinase (IP-3K). Essas alterações causam aumento do cálcio citosólico e ativam as guanosinas trifosfatases (GTPases), favorecendo a apresentação de pseudópodes e o movimento leucocitário. Além da locomoção, os agentes quimiotáticos também induzem à ativação dos leucócitos com todas suas consequências: produção de metabólitos do ácido aracdônico; degranulação e secreção de enzimas lisossômicas; secreção de citocinas, assim como maior expressão de moléculas de adesão e maior exposição das integrinas.
Entre os mediadores da inflamação, encontram-se: aminas vasoativas (histamina, serotonina), metabólitos do ácido aracdônico (prostaglandinas, leucotrienos e lipoxinas), proteínas plasmáticas (sistemas do complemento, das cininas e da coagulação), fator de ativação das plaquetas (PAF), citocinas (TNF, e IL-1), óxido nítrico (NO), componentes lisossômicos dos leucócitos e RLO. Destes, os produtos do metabolismo do ácido aracdônico, fragmentos do complemento e as citocinas parecem ter ação fundamental na quimiotaxia [3-5].
A histamina e a serotonina estão entre os primeiros mediadores químicos liberados durante a inflamação. São encontrados nos mastócitos, nos basófilos e nas plaquetas do sangue. A liberação dos mastócitos é desencadeada por diferentes fatores como reações imunológicas envolvendo IgE, fragmentos do complemento C3a e C5a, citocinas (IL-1, IL-18) e fatores liberadores de histamina derivados de leucócitos. A liberação das plaquetas é estimulada após contato com colágeno, trombina, difosfato de adenosina (ADP), complexos antígeno-anticorpo e fatores de ativação das plaquetas.
Os metabólitos do ácido aracdônico também são importantes mediadores químicos da inflamação e agentes quimiotáticos. A partir do ácido aracdônico, por meio da via da lipooxigenase são formados os leucotrienos, dentre eles, o leucotrieno B4 (LTB4), que se liga a receptores específicos na superfície dos leucócitos dando origem a uma série de respostas que incluem a ativação de adesão molecular das integrinas β2 e aderência à célula endotelial. Os leucotrienos C4 e D4 e o TxA2 afetam o fluxo sanguíneo e a perfusão pela ação direta na microcirculação. Pela via da ciclooxigenase são liberados a prostaciclina (PGI2) e o tromboxane A2 (TxA2). A PGI2 causa vasodilatação e inibe a agregação plaquetária, enquanto o TxA2, sintetizado ao nível das plaquetas, causa forte vasoconstricção e induz fortemente à agregação plaquetária. O TxA2 é um forte quimiotático para os neutrófilos e promove a ativação e a adesão dos mesmos ao endotélio [5,6].
Os fragmentos do complemento estão também entre os mais potentes agentes quimiotáticos. São proteínas plasmáticas que quando ativadas se tornam proteases que degradam outras proteínas do complemento, formando uma cascata. A ativação do complemento pode se dar por diversas vias, entre as quais a clássica (complexo Ag-Ac dependente, via deposição de IgM nos tecidos isquêmicos) e a via alternativa (hidrólise dependente), sendo que ambas causam a clivagem de C3, cujos produtos levam à lise celular, quimiotaxia, opsonização e alterações na permeabilidade vascular. Os fragmentos C3a e C5a são importantes iniciadores da ativação neutrofílica e da produção de interleucina-8 (IL-8) [4,17].
As citocinas pró-inflamatórias são produzidas principalmente por linfócitos e macrófagos, mas também por células do endotélio [18]. As duas principais citocinas na inflamação aguda são o TNF-á e as interleucinas (IL-1, IL-6 e IL-8), que são importantes mediadores endógenos das moléculas de adesão. Sob influência das citocinas, há exposição de cargas negativas na superfície das células endoteliais (fase de rolamento e adesão), ativando a précalicreína que, então, converte-se em calicreína e ativa o fator XII, o qual, ativado, ativa os neutrófilos. A degranulação neutrofílica, induzida por TNF-a ou pelo fator XIIa, leva à destruição da arquitetura endotelial vascular por meio da liberação de enzimas proteolíticas, como elastase e colagenase [4-6].
A maioria dos agentes quimiotáticos tem meia-vida curta, sendo inativados por enzimas ou por inibidores.
Proteínas lisossômicas de neutrófilos e monócitos, quando liberadas, podem também contribuir para a resposta inflamatória. Os neutrófilos têm grânulos específicos, menores que contêm lisozima, colagenase, gelatinase, lactoferrina, ativador do plasminogênio, histaminase; e grânulos azurófilos, maiores, com mieloperoxidase, fatores bactericidas (lisozima, defensinas), hidrolases ácidas e várias proteases neutras (elastase, catepsina G, colagenases). Esses grânulos podem descarregar seus conteúdos nos vacúolos fagocitários ou, alternativamente, os conteúdos podem ser excretados diretamente no espaço extracelular ou liberado após a morte celular. As proteases ácidas degradam proteínas, bactérias e fragmentos somente dentro dos fagolisossomas, enquanto as proteases neutras são capazes de degradar os componentes extracelulares em um pH neutro. Os componentes lisossômicos podem aumentar ainda mais a permeabilidade vascular e a quimiotaxia, além de causar dano tecidual [6].
Outro mediador da resposta inflamatória que também age alterando tônus e permeabilidade vascular além de ser agente quimiotático é o óxido nítrico (NO). O NO é sintetizado pela enzima óxido nítrico sintetase (NOS), presente no endotélio, que é ativada pelo aumento do cálcio intracelular ou pelos macrófagos após indução por determinadas citocinas, como interferon-ã. Além da vasodilatação, da inibição da agregação e adesão plaquetárias, o óxido nítrico também atua como um mecanismo compensatório para reduzir o recrutamento leucocitário. O NO, por outro lado, pode combinar-se com os RLO levando à formação de metabólitos como o peroxinitrito (OONO-), S-nitrosotiol, e dióxido de nitrogênio (NO2), que são microbicidas, mas correm o risco de danificar as células do hospedeiro. O OONO-ou seus produtos de decomposição podem iniciar a peroxidação lipídica sem a necessidade de ferro. Existem evidências que indicam que na isquemia e reperfusão existe uma estreita relação entre NO e endotelina [5,6,19]. A endotelina é um potente agente vasoconstrictor e responde a vários estímulos que aumentam os níveis de RNAm do pré-pró-peptídeo endotelina isoforma-1 (PPET-1) nas células endoteliais, entre eles: a isquemia, a trombina, lesão vascular e níveis baixos de NO. Este aumento de endotelina ocorre possivelmente a partir de metaloproteinases de matriz (gelatinase 1 e 2) que via receptor proteína G da membrana celular neutrofílica leva a exposição de suas β-integrinas e à adesão dos neutrófilos ao endotélio [20-22] (Figura 3).
Os RLO, além de mediadores químicos da resposta inflamatória, ativam diferentes vias mediadoras, tanto de expressão gênica (adaptação celular) como de apoptose. Níveis baixos ou moderados de RLO são controlados pelos mecanismos antioxidantes endógenos, enquanto níveis elevados podem lesar o DNA das células, assim como proteínas e lipídios, acarretando respostas como proliferação, parada de crescimento, senescência e até morte celular (apoptose) [23].
APOPTOSE
A apoptose é um mecanismo de morte celular programada, regulado por comandos intracelulares capazes de eliminar células indesejáveis sem lesar células vizinhas e sem causar processo inflamatório adjacente. Trata-se de um processo celular fisiológico muito importante para a homeostase tecidual, mas pode também ser desencadeada por situações patológicas [6,23].
Descrita em 1972, tem seu mecanismo regulado por controle genético [24]. Neste processo, a membrana plasmática celular permanece íntegra enquanto as organelas se agrupam e a célula diminui de tamanho. A cromatina se prende à carioteca e pode ocorrer fragmentação do núcleo, enquanto se formam bolhas de citoplasma revestidas por membrana plasmática. Essas bolhas se desprendem e formam corpos apoptóticos, que são então reconhecidos e fagocitados sem que haja perda de integridade das membranas celulares, extravasamento de enzimas e processo inflamatório local, caracterizando, assim, importante diferença entre a apoptose e a necrose [6].
A via efetora da apoptose, via das caspases, é iniciada no citoplasma celular, por meio da ativação de proteínas do grupo das cisteína-proteases chamadas caspases (cysteineaspartic-acid-proteases). As caspases identificadas em humanos são onze e dividem-se em dois tipos: iniciadoras, como as caspases 8 e 9, e efetoras, como as caspases 3 e 7 [24-26]. Após ocorrer a ativação de uma caspase ativadora, o programa de morte enzimática é iniciado. Já as caspases efetoras vão atuar clivando proteínas do citoesqueleto e levando à destruição do núcleo celular. São duas as vias iniciadoras das caspases: via extrínseca (de morte iniciada por receptor) e via intrínseca (mitocondrial). Ambas as vias confluem na via efetora [27] (Figura 3).
O ativador interno da via intrínseca, citocromo c (Figura 3), responde a alterações mitocondriais, alterações de transporte elétrico, perda de potencial transmembrana, lesão por óxido-redução e, ainda, à participação pró e antiapoptótica da família de proteínas Bcl-2) ou a lesões do DNA celular resultantes de toxicidade ou radiação. Os ativadores da via extrínseca são da família do TNF e se ligam ao receptor TNF-R1 e à via do Fas. O TNF-R1 inicia o processo apoptótico ao se ligar ao receptor TNF de morte (TRADD) e à Fas-proteína de morte (FADD) [23]. O receptor Fas (APO-1ou CD-95) se liga ao FasL, outro componente do grupo do TNF. O complexo Fas e Fas-L resulta na formação do complexo sinalizador indutor de morte (DISC), o qual contém a FADD e ativa as caspases 8 e 10 [25].
As caspases podem ser inibidas pela proteína inibidora de apoptose (IAP), a qual pode ser deslocada pelo segundo ativador da caspase derivado da mitocôndria (SMAC) [26]. Estão sendo estudados inibidores das caspases na tentativa de reduzir a resposta inflamatória em modelos de isquemia-reperfusão cardíaca em ratos [28]. Neste sentido, por exemplo, resultados preliminares mostram que a administração endovenosa de Z-Val-Ala-DL-Aspfluorometilquetone (ZVAD-fmk) contribuiu, ao menos parcialmente, para a atenuação da apoptose dos cardiomiócitos [28].
Os RLO podem ativar numerosas vias de sinalização celular, e modular seja, direta ou indiretamente, as funções de muitas enzimas e fatores de transcrição por meio de sinais em efeito cascata. A dimensão e duração do estresse assim como o tipo celular envolvido são importantes fatores para determinar qual via será ativada [26].
Considerando a imensa rede inflamatória envolvida na lesão de isquemia-reperfusão, este quadro parece ser ainda mais complexo especificamente nos casos das isquemias miocárdicas, quando ao lado do tratamento da isquemia miocárdica, além da reperfusão, se soma o uso indispensável de CEC.
VANTAGENS E LIMITAÇÕES DO USO DA CEC
Após mais de meio século da primeira cirurgia cardíaca com uso de CEC, suas técnicas foram aperfeiçoadas pelo desenvolvimento de oxigenadores, cata-bolhas, materiais biocompatíveis, filtros e sistemas de bombeamento com vórtice centrífugo, entre outros, diminuindo a morbimortalidade do procedimento [29,30]. Hoje, o uso da CEC é rotina indispensável na maioria dos serviços de cirurgia cardíaca no mundo, possibilitando diferentes abordagens cirúrgicas com segurança e eficácia. Mesmo assim, traz consigo muitos efeitos indesejáveis, provocando complicações pulmonares, renais, neurológicas, hemodinâmicas e distúrbios de coagulação, que podem levar a disfunções e, ocasionalmente, até a falência de órgãos, o que justifica tentativas para aprimorá-la ainda mais [7,31-34].
Nas cirurgias cardíacas com CEC, existem mecanismos lesivos provocados pela isquemia e reperfusão, tanto nos pulmões como no coração, assim como pela ativação da resposta imunológica desencadeada pelo circuito. Alterações mecânicas de fluxo sanguíneo e hemodiluição, decorrentes do uso da CEC, podem causar ativação de neutrófilos polimorfonucleares (PMN) e das plaquetas, sendo que o principal mecanismo ativador destes parece ser o contato do sangue com as superfícies artificiais da CEC. Durante a CEC, a isquemia pulmonar, embora parcial, contribui em muito para as lesões secundárias à ação de mediadores inflamatórios, pois o fluxo pelas artérias brônquicas supre apenas 20% da necessidade de oxigenação tissular pulmonar [7].
O uso de técnicas cirúrgicas minimamente invasivas, como as cirurgias cardíacas sem uso da CEC, surgiu, então, como alternativa principalmente em pacientes idosos, com múltiplas obstruções arteriais cardíacas, e outras comorbidades [35-38]. Ainda que muitos relatos clínicos refiram bons resultados com essas técnicas mini-invasivas, existem contraindicações específicas a serem consideradas, como dilatação cardíaca, reoperação, pericardite e necessidade de remodelação cardíaca [35-38].
Por outro lado, uma revisão da American Heart Association Council mostrou que os resultados comparativos entre abordagem com e sem o uso de CEC foram semelhantes entre os grupos. Entretanto, essa publicação não demonstrou ser a cirurgia sem CEC, sistemática e vantajosa ao uso da CEC. O estudo relacionou, como parâmetros, tempo de hospitalização, mortalidade, função neurológica e desempenho card íaco pós-procedimento cirúrgico [38].
ATENUAÇÃO DA RESPOSTA INFLAMATÓRIA: ATUAÇÕES SOBRE OS NEUTRÓFILOS
Com o mesmo objetivo de atenuação da resposta inflamatória e das lesões de isquemia-reperfusão, outras abordagens foram propostas, como produção de neutropenia, ação de drogas atuando sobre aderência leucocitária e modificações nas soluções de cardioplegia visando à proteção celular.
A promoção de neutropenia através de filtro para depleção leucocitária (FDL) [11] e de radiação [39]; a associação entre NO e hipotermia durante a CEC, diminuindo a aderência dos leucócitos ao endotélio [40]; as modificações da solução de cardioplegia [41]; a heparinização da superfície do sistema de CEC; a adição de antiinflamatórios e de quelantes de RLO ao circuito [4,4244], não foram suficientes para reduzir os marcadores inflamatórios no pós-operatório e para sustentar a padronização de quaisquer destas alternativas junto ao procedimento de CEC [45].
Em 1972, foram comercializados os primeiros FDLs [46]. No final da década de 90, eram amplamente utilizados na CEC durante a cardioplegia, tanto no sangue transfundido como no aspirado do circuito ou nas soluções de preservação [47-49].
Estudos clínicos iniciais indicaram efeitos benéficos de FDL na CEC, com menor liberação de enzimas leucocitárias, melhora na recuperação clínica, menor permanência em unidade de terapia intensiva (UTI) e custos mais baixos [50-52]. Entretanto, outros autores mostraram que o uso de FDL parecia ser menos efetivo que o esperado e sua eficiência diminuía ao longo do tempo cirúrgico [53-55]. Observaram, ainda, que leucócitos presos nas malhas do filtro podiam ser ativados, liberando seus produtos na circulação [56,57]. Assim, a partir desse ponto, os FDLs foram menos utilizados por falta de evidências suficientes sobre seu benefício [58].
A abordagem imunorreguladora da apoptose representa novo enfoque no controle inflamatório relacionado à CEC. Pois se sabe hoje que o receptor de membrana Fas (CD95), conjugado com o ligante Fas (FasL), proteína produzida pelas células do sistema imunológico, além de induzir a apoptose, tem papel importante na regulação da proliferação celular e do crescimento tumoral. Assim, uma disfunção do Fas/FasL em células tissulares, protelando a apoptose, pode favorecer desordens proliferativas, enquanto uma menor atividade deste sistema apoptótico, nos PMNs, pode ter algum potencial terapêutico antiviral ou efeito anti-cancerígeno [18,59,60].
Ao interferir no tempo de vida das células, os receptores Fas/FasL podem funcionar como reguladores das respostas mediadas por PMNs [61]. Uma maior sobrevivência dos PMNs pode acarretar grande lesão tecidual pelo maior tempo de secreção de metabólitos tóxicos [62], enquanto um menor tempo de vida pode amenizar reações imunes [59,60].
O potencial terapêutico de um anticorpo anti-Fas, na inativação neutrofílica rápida, foi constatado em estudos in vitro, estudos in vivo em animais, e em estudo clínico com pacientes submetidos à cirurgia cardíaca [63-65]. Este grupo de pesquisadores desenvolveu um módulo de inibição leucocitária (leukocyte inhibition module- LIM®), aparentemente semelhante a um filtro biológico, mas com sua trama revestida por anticorpos anti-Fas. Esse módulo, quando introduzido na CEC, resultou em diminuição da hiperatividade neutrofílica, com ativação significativa da apoptose dessas células [65-68].
Apesar dessa abordagem parecer promissora ao reduzir a quantidade de marcadores inflamatórios e apresentar boa recuperação cardíaca tanto em modelo animal quanto na clínica cirúrgica em humanos, ainda requer estudos com maior número de casos.
CONCLUSÃO
A grande amplitude da resposta inflamatória secundária às lesões de isquemia-reperfusão e ao uso da CEC sinaliza para a necessidade de medidas que possam senão inibi-la ao menos atenuá-la. Assim, o controle dos fatores de risco, a redução de eventos isquêmicos cardiovasculares, a capacitação técnica para cirurgias sem CEC, assim como os avanços na terapêutica anti-inflamatória, são medidas a serem reforçadas enquanto pesquisas devem ser fomentadas para que esses objetivos sejam alcançados.
Embora o uso dos filtros leucocitários e de drogas bloqueadoras dos mediadores inflamatórios não tenham se comprovado definitivos na atenuação das lesões de isquemia-reperfusão, a utilização de técnicas combinadas parece ser mais promissora por intervir em diferentes pontos da rede inflamatória.
O uso de módulo de inibição leucocitária que atua sobre o complexo Fas/FasL por meio da ligação de imunoglobulina anti-CD95 ao CD-95 leucocitário (LIM) tem se mostrado um procedimento terapêutico seguro, com a imobilização exclusiva de leucócitos ativados sem interferir com o número de linfócitos e sem alterar com o sistema de coagulação do paciente.
A abordagem imunorreguladora pode trazer novas perspectivas, tanto agindo diretamente por meio de anticorpos contra mediadores inflamatórios, como na modulação de receptores de membrana celular responsáveis pela ativação, adesão, diapedese e quimiotaxia leucocitárias e ainda por meio da ativação ou inibição de proteínas das vias efetoras pró e anti-apoptóticas, firmando-se como um campo para contínuo aprofundamento.
Artigo recebido em 27 de agosto de 2010
Artigo aprovado em 25 de outubro de 2010
Trabalho realizado na Faculdade de Medicina de Marília (Famema), Marília, São Paulo, Brasil e Universidade Estadual Paulista, Unesp, Botucatu, São Paulo, Brasil Universidade Heinrich-Heine, Düsseldorf, Alemanha.
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Endereço para correspondência:
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
02 Mar 2011 -
Data do Fascículo
Dez 2010
Histórico
-
Recebido
27 Ago 2010 -
Aceito
25 Out 2010