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Significados culturais e pós-modernidade: uma análise simbólica do filme “Batman Begins”

PONTO DE VISTA

Significados culturais e pós-modernidade: uma análise simbólica do filme “Batman Begins”

Rafaela Cyrino 1 1 Psicóloga, assistente social, doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais e Mestre em Psicologia das Organizações pela Universidade Federal de Santa Catarina. Docente da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Endereço para correspondência: Rua do Mosteiro, 37, apartamento 302. Vila Paris, CEP 30380-780 - Belo Horioznte, M.G. Telefone : (31) 3293-7697. Endereço eletrônico: rafaelacyrino@pucminas.br

Universidade Federal de Minas Gerais

Uma análise reflexiva do filme Batman Begins, de Nolan (2005), permite vislumbrar a riqueza de símbolos culturais evocados a partir da história que conta a origem do herói mascarado. Não se trata de, simplesmente, reconstituir o significado simbólico do herói, mas de analisar de que forma a história se articula de maneira visível com aspectos significativos da cultura pós-moderna. Enquanto os outros filmes do herói, facilmente classificados no gênero aventura ou ação, giram em torno das batalhas travadas entre o homem-morcego e seus adversários, Batman Begins conta a história do herói a partir das suas origens, mostrando a sua evolução através do tempo. É justamente a reconstituição histórica do personagem que permite sua aproximação com o expectador, possibilitando explorar a riqueza ao mesmo tempo subjetiva e simbólica de Batman, considerado aqui como um autêntico herói pós-moderno.

O primeiro aspecto a ser destacado no filme refere-se à ênfase na natureza mortal do personagem. Afinal de contas, o Batman não é nenhum super-homem, com poderes mágicos e sobrenaturais. O personagem, um justiceiro mascarado, é absolutamente humano e, longe de possuir poderes mágicos, está sujeito às agruras da mortalidade. Tanto é, que, após cada batalha travada no filme, vemos, logo em seguida, o personagem com seus ferimentos e escoriações. Não há dúvida de que o herói mascarado foi continuamente humanizado pelo filme. Um herói que sente dor, medo, angústia, ansiedade, certamente nos é muito mais familiar. A história deixa clara a inexistência de um dispositivo mágico que garanta a salvação do personagem. Do que depende, então, o seu sucesso? De muito treinamento físico e psicológico, de muito esforço e empenho pessoal. O que define o personagem Batman é a vontade, vontade de conquistar, de superar seus próprios limites. A ênfase no empenho individual como base para o sucesso representa, simbolicamente, aspectos centrais da cultura norte-americana fundada na autonomia do sujeito e nos poderes de transformação do indivíduo.

Se podem ser observados conexões entre as representações simbólicas do personagem Batman e o ideário da cultura norte-americana, qual a importância da evocação de uma história que evidencia as origens do personagem na atualidade? De que forma os símbolos evocados pelo filme possuem alguma função estruturante na consciência coletiva?

Para fazer uma análise mais centrada no simbolismo é importante considerar que o que tornou possível a realização do filme é o reconhecimento de que Batman não nasceu pronto. Ao contrário, Batman se fez, se tornou um herói, entre ensaios e erros, avanços e retrocessos. O filme, ao mostrar a evolução do personagem, parece deixar um claro recado ao telespectador: “você precisa cair para aprender a se levantar”. Após cada batalha travada, o herói, em construção, vai aprimorando os seus artefatos tecnológicos, mudando as suas estratégias, melhorando a sua performance.

Essa realidade não essencialista e mutável do personagem é um tema recorrente abordado por cientistas sociais das mais diversas origens. Zygmunt Bauman (2001), importante sociólogo da contemporaneidade, afirma que a apresentação dos membros como indivíduos é uma das marcas da sociedade moderna. Este processo, conhecido como individualização, consiste justamente em transformar a “identidade” humana de um “dado” em uma “tarefa”, cuja responsabilidade passa a ser de cada indivíduo. Em outras palavras, os seres humanos não mais nascem prontos em suas identidades e precisam, outrossim, tornar-se “algo”, não se sabe exatamente o quê. Ao lado de uma autodeterminação quase compulsiva existe também uma indeterminação. Não é, mais ou menos esta, a trajetória de Batman? Uma trajetória que corresponde a um processo de auto-conhecimento contínuo, em que o personagem vai se descobrindo, enfrentando os seus medos, fortalecendo-se, rompendo com antigas “amarras” e com qualquer determinação a priori que lhe impeça de “tornar-se”?

Interessante relembrar que, embora a história de Batman seja contada a partir de um evento traumático(o assassinato de seus pais quando ainda era criança), este “trauma”, que, a partir de uma concepção essencialista, seria abordado como uma fraqueza, por um processo de inversão, torna-se a maior força do personagem. Podemos até pensar que, não fosse o trauma, provavelmente “o homem-morcego”, o grande herói, não existiria. Essa é uma idéia muito coerente com a chamada “cultura da pós-modernidade“, em que o “eu” tem uma trajetória de desenvolvimento a partir do passado em direção ao futuro antecipado. O indivíduo, então, apropria-se do seu passado, peneirando-o à luz do que antecipa como um futuro. Entretanto, é importante relembrar que todas estas possibilidades de ação implicam em risco para o indivíduo. Giddens (2002), ao referir-se à modernidade alta ou tardia, chega a afirmar que a noção de risco se torna central em uma sociedade que, ao deixar o modo tradicional de fazer as coisas, se abre para um futuro problemático. Então, nada mais justo, se o clima de risco da modernidade é inquietante para todos, ninguém deve escapar, nem mesmo Batman.

Uma das grandes inquietações vividas pelo herói refere-se à permanência de um “amor de infância“, representado pela personagem Rachel Dawes, promotora de justiça, que combate o crime, de maneira “legal”. Apesar de se nutrirem de ideais semelhantes, o romance entre os dois não é possível de ser concretizado. Ser um justiceiro mascarado compromete o que se pode denominar de uma vida “normal”. Em várias aparições do personagem, ora como o milionário Bruce Wayne, ora como o “Homem-morcego”, e para afastar qualquer dúvida sobre as suas atitudes, o herói está sempre a afirmar para a sua amada de que “ele não é o que ele é, mas o que ele faz”. Embora possa parecer confuso à primeira vista, é exatamente esta idéia que Giddens (2002) desenvolve em seu livro Modernidade e Identidade: na sociedade contemporânea, somos não o que somos, mas o que fazemos de nós mesmos. Não existe um destino único, nós é que somos responsáveis pela condução que damos à nossa vida.

Finalmente, um último aspecto a ser abordado no filme, refere-se aos instrumentos utilizados por Batman no combate ao crime. Além de sua força e inteligência, o herói faz uso de todo um arsenal tecnológico de “última geração”. Mas não pensem que essa parafernália tecnológica não precisa ser aperfeiçoada. A última cena do filme responde a qualquer dúvida sobre um herói pronto e acabado, com suas armas definitivas. Batman que fique esperto, pois, a cada nova invenção sua, os seus rivais criam novos artifícios, novas armas, novas armadilhas, novas artimanhas. Quantos autores já não consideraram este aspecto cambiante como um dos elementos mais centrais da cultura contemporânea?

Batman é seguramente um herói que, longe de estar pronto, precisa estar em contínuo diálogo com o seu tempo. Apesar de ter sido criado em 1939, o herói continua a mobilizar a atenção e o interesse da sociedade. O próprio reconhecimento de Batman como um herói pós-moderno, com todas as suas dúvidas, inquietações, transgressões, ambigüidades, potencialidades e limitações, nos leva a perceber que este mito ainda permanece central na nossa cultura. Pode-se perguntar que papel o mito do herói mascarado desempenha na contemporaneidade. Uma possível razão explicativa pode ser encontrada no pensamento de Jung (1964), para quem a superstição do homem moderno de que “querer é poder” é sustentada por uma incrível falta de introspecção, que tem nos afastado dos nossos instintos básicos, e, estes, quando perdem o contato com a consciência, são obrigados a afirmar-se de maneira indireta.

Byington (1998) afirma que a necessidade de símbolos heróicos surge quando o ego necessita fortificar-se, quando o consciente requer ajuda para alguma tarefa que não pode executar só ou sem a aproximação das fontes de energia do inconsciente. Levando-se em conta a grande mobilização mundial em torno dos eventos relacionados ao terrorismo, não seria o caso de pensarmos, neste caso, em uma hipótese explicativa em que a evocação do mito do herói cumpriria um papel de fortificação diante de inimigos reais e imaginários? Não se trata de situações de alto risco e de extrema imprevisibilidade, as quais desafiam os aparatos tecnológicos meticulosamente construídos para tornar o mundo seguramante controlado ? Diante desta realidade, é possível pensarmos em uma função estruturante do mito do herói mascarado. A busca das origens de Batman representaria, neste caso, a consciência das forças e fraquezas do herói, pois, parafraseando Chevalier e Gheerbrant (1990, p. 488) “a primeira vitória do herói é a que ele conquista sobre ele mesmo”.

Recebido em: 19/04/2006

Aceito em: 15/05/2006

  • Bauman, Z. (2001). Modernidade líquida (P. Dentzien, trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
  • Byington, C. (1998). Dimensões simbólicas da personalidade São Paulo: Ática.
  • Chevalier, J., & Gheerbrant, A. (1990). Dicionário de símbolos (V. C. Silva & L. Melim, trads.). Rio de Janeiro: José Olympio.
  • Giddens, A. (2002). Modernidade e identidade (P. Dentzien, trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.
  • Jung, C. (1964). O homem e seus símbolos (M. L. Pinho, trad.). São Paulo: Nova Fronteira.
  • Nolan, C. (Director). (2005). Batman begins [DVD]. Burbank, CA: Warner Bros.
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    Psicóloga, assistente social, doutoranda em Sociologia pela Universidade Federal de Minas Gerais e Mestre em Psicologia das Organizações pela Universidade Federal de Santa Catarina. Docente da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Endereço para correspondência: Rua do Mosteiro, 37, apartamento 302. Vila Paris, CEP 30380-780 - Belo Horioznte, M.G. Telefone : (31) 3293-7697. Endereço eletrônico:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      28 Set 2010
    • Data do Fascículo
      Mar 2006
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