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A gestão da pandemia de covid-19 e as suas repercussões para o gestor do SUS

Resumo

Este artigo discute os desafios enfrentados pelos gestores estaduais do Sistema Único de Saúde (SUS) no contexto da pandemia de covid-19 e as consequências produzidas em suas vidas pessoais. A partir de entrevistas com gestores estaduais, tornou-se evidente que a pandemia demandou o replanejamento das ações e serviços de saúde, a estruturação de novos serviços e leitos hospitalares, o uso de telemedicina e a contratação e capacitação de profissionais. Também emergiu a ausência de políticas integradas e de uma coordenação nacional, que levou à adoção de diferentes estratégias por parte dos estados. Estes fatores, assim como a politização da pandemia, a negação da doença e a tentativa do governo federal de impor tratamentos ineficazes para a covid-19 foram consideradas entre as maiores dificuldades vivenciadas pelos gestores. Fazer a gestão do SUS se tornou um exercício de risco, com repercussões deletérias não apenas para si e para a sua gestão, mas também para suas famílias e amigos. Se, por um lado, o contexto extenuante afetou a saúde física e mental dos gestores, que passaram a lidar com excesso de peso, ansiedade e angústia, de outro, foi fonte de motivação por catalisar solidariedade, empatia e o compartilhamento entre os atores políticos.

Palavras-chave:
Gestor de Saúde; Sistema Único de Saúde; COVID-19; Gestão em Saúde; Saúde Ocupacional

Abstract

This article discusses the challenges faced by the state managers of the Brazilian National Health System (SUS) in the context of the COVID-19 pandemic and the consequences for their personal lives. From interviews with state managers, it became evident that the pandemic implied the replanning of health actions and services, the structuring of new hospital services and beds, the use of telemedicine, and the hiring and training of professionals. It also exposed the lack of integrated policies and national coordination, which led to states adopting different strategies. These factors, as well as the politicization of the pandemic, the denial of the disease, and the attempt of the federal government to impose ineffective treatments for COVID-19 were considered among the greatest difficulties experienced by managers. Managing the SUS became a risky exercise, with deleterious repercussions not only for themselves and their management, but also for their families and friends. If, on the one hand, the strenuous context affected the managers’ physical and mental health, who began dealing with overweight, anxiety, and anguish, on the other hand, it was a source of motivation for catalyzing solidarity, empathy, and sharing among political actors.

Keywords:
Health Manager; Brazilian National Health System; COVID-19; Health Management; Occupational Health

Introdução

A gestão pode ser compreendida como uma prática desenvolvida no exercício cotidiano do trabalho, que associa ciência, arte e habilidade. Nesse sentido, a prática da gestão ocorre em três planos, do conceitual ao concreto: o plano das informações, o das pessoas e o da ação. Eles envolvem uma combinação de pensamentos, análise crítica, negociação de conflitos, decisões, ações e liderança para responder às demandas e necessidades dos sistemas organizacionais (Mintzberg, 2010MINTZBERG, H. Managing: desvendando o dia a dia da gestão. Porto Alegre: Bookman, 2010.).

As funções clássicas de um gestor - planejamento, coordenação, organização e controle - enfatizam a dimensão objetiva, racional, sistemática e decisiva da gestão. Contudo, além da racionalidade, na prática da gestão é importante considerar também a dimensão subjetiva, representada pela imprevisibilidade, inclusive das relações humanas. Portanto, as habilidades gerenciais envolvidas no processo de tomada de decisão não se restringem aos aspectos formais de programação, orçamentação e controle. Cabe aos gestores tratar o comportamento administrativo, que engloba o contexto social e político, mas também os aspectos ligados às relações individuais e coletivas, como a motivação, as condições de trabalho, os conflitos e o comprometimento dos indivíduos com a ação cooperativa (Motta, 2002MOTTA, P. R. Gestão contemporânea: a ciência e a arte de ser dirigente. Rio de Janeiro: Record, 2002.; Mintzberg, 2010MINTZBERG, H. Managing: desvendando o dia a dia da gestão. Porto Alegre: Bookman, 2010.).

O desafio representado pela implementação do Sistema Único de Saúde (SUS) exige a utilização cada vez mais profunda de ferramentas e tecnologias que facilitem a identificação dos principais problemas de saúde e permitam a avaliação de intervenções eficientes e eficazes. A complexidade deste sistema se apresenta como um desafio para qualquer gestor, pois, mais do que um administrador, o gestor do SUS é considerado a autoridade sanitária em cada esfera de governo, cuja ação deve estar pautada pelos princípios da reforma sanitária brasileira.

Podem-se distinguir três dimensões indissociáveis da atuação dos gestores da saúde no SUS - política, técnica e administrativa -, que ajudam a compreender a complexidade e os dilemas que decorrem do exercício dessa função pública (Souza; Bahia, 2014SOUZA, L. E. P. F.; BAHIA, L. Componentes de um sistema de serviços de saúde. In: PAIM, J. S.; ALMEIDA-FILHO, N. Saúde coletiva: teoria e prática. Rio de Janeiro: MedBook, 2014. p. 49-68.). De um lado, a dimensão política se expressa, de antemão, no fato de que o ocupante do cargo de ministro ou secretário de saúde é designado pelo chefe do Poder Executivo eleito em cada esfera do governo. Isso situa o gestor da saúde como integrante de uma equipe que tem compromisso com um determinado projeto de governo. Por outro lado, enquanto autoridade sanitária, o gestor de saúde tem a responsabilidade de conduzir as políticas de saúde segundo as determinações constitucionais e legais do SUS, cujo modelo de política de Estado não se encerra após o fim do mandato de um governo. Há, nesse aspecto, a interação entre projeto de governo e política de Estado para a saúde, a qual expressa tensões que influenciam a continuidade ou descontinuidade de políticas públicas (Souza, 2009SOUZA. L. E. P. F. O SUS necessário e o SUS possível: estratégias de gestão: uma reflexão a partir de uma experiência concreta. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 3, p. 911-918, 2009. DOI: 10.1590/S1413-81232009000300027
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; Machado et al., 2011MACHADO, C. V. et al. Princípios organizativos e instâncias de gestão do SUS. In. GONDIM, R. et al. (Org). Qualificação dos gestores do SUS. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011. p. 47-72. ; Souza; Bahia, 2014SOUZA, L. E. P. F.; BAHIA, L. Componentes de um sistema de serviços de saúde. In: PAIM, J. S.; ALMEIDA-FILHO, N. Saúde coletiva: teoria e prática. Rio de Janeiro: MedBook, 2014. p. 49-68.).

Por essa ótica, a atuação política do gestor do SUS se expressa em seu relacionamento com diversos grupos e atores sociais, nos diferentes espaços de negociação e decisão existentes, sejam eles formais ou informais. Isso exige dedicar tempo e energia ao estabelecimento de relações e interações com outros órgãos do governo, outros poderes e com a sociedade civil. O desafio dessa dimensão é tornar as relações político-institucionais e sociopolíticas úteis ao projeto de consolidação do SUS e do direito à saúde (Souza, 2009SOUZA. L. E. P. F. O SUS necessário e o SUS possível: estratégias de gestão: uma reflexão a partir de uma experiência concreta. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 3, p. 911-918, 2009. DOI: 10.1590/S1413-81232009000300027
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; Machado et al., 2011MACHADO, C. V. et al. Princípios organizativos e instâncias de gestão do SUS. In. GONDIM, R. et al. (Org). Qualificação dos gestores do SUS. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011. p. 47-72. ).

A dimensão técnica relaciona-se com o objetivo de conduzir o sistema de saúde de acordo com os preceitos técnicos da saúde pública/coletiva, de forma coerente com os princípios do sistema público de saúde e da gestão pública (Souza, 2009SOUZA. L. E. P. F. O SUS necessário e o SUS possível: estratégias de gestão: uma reflexão a partir de uma experiência concreta. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 3, p. 911-918, 2009. DOI: 10.1590/S1413-81232009000300027
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). Trata-se da dimensão que confere especificidade à gestão da saúde, abrangendo as ações de identificação e priorização de problemas de saúde e de proposição e aplicação de soluções. Nessa perspectiva, colocam-se como necessários, ao gestor, conhecimentos, habilidades e experiências no campo da gestão pública e da saúde (Machado et al., 2011MACHADO, C. V. et al. Princípios organizativos e instâncias de gestão do SUS. In. GONDIM, R. et al. (Org). Qualificação dos gestores do SUS. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2011. p. 47-72. ). A dimensão administrativa, por sua vez, refere-se ao objetivo de garantir a coordenação do sistema de saúde. Concretamente, reúne as ações de mobilização de competências e de uso eficiente dos recursos humanos, financeiros, materiais e tecnológicos (Souza, 2009SOUZA. L. E. P. F. O SUS necessário e o SUS possível: estratégias de gestão: uma reflexão a partir de uma experiência concreta. Ciência & Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, v. 14, n. 3, p. 911-918, 2009. DOI: 10.1590/S1413-81232009000300027
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; Souza; Bahia, 2014SOUZA, L. E. P. F.; BAHIA, L. Componentes de um sistema de serviços de saúde. In: PAIM, J. S.; ALMEIDA-FILHO, N. Saúde coletiva: teoria e prática. Rio de Janeiro: MedBook, 2014. p. 49-68.).

Ante o exposto, a gestão do sistema de saúde brasileiro se apresenta como um grande desafio para aqueles que ocupam cargos e funções gestoras na estrutura governamental. Em seu artigo intitulado “O desafio de ser gestor da saúde no Brasil”, Raggio (2015RAGGIO, A. O desafio de ser gestor da saúde no Brasil. Consensus, [s. l.], ano 5, n. 14, p. 34-37, 2015. )1 1 Armando Raggio atuou como secretário municipal de saúde de Curitiba/PR, de São José dos Pinhais/PR e de Sorocaba/SP; foi secretário estadual de saúde do Paraná e presidente do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde e do Conselho Nacional de Secretários de Saúde. afirma que ser gestor não é o mesmo que estar gestor. Ele faz a seguinte recomendação àqueles que estejam nessa posição:

Seja gestor na plenitude de suas faculdades e dificuldades, pois estas não lhe faltarão. Não há como estar simplesmente; é preciso ser inteiro em todos os dias da semana, do mês e do ano, quanto você permaneça no cargo, seja gestor tanto nos dias ordinários chamados de úteis, nos dias extraordinários de pontos facultativos, feriados e dias santos de festa e de guarda! (Raggio, 2015RAGGIO, A. O desafio de ser gestor da saúde no Brasil. Consensus, [s. l.], ano 5, n. 14, p. 34-37, 2015. , p. 35).

No contexto da pandemia de covid-19, o papel do gestor tornou-se ainda mais crucial e difícil. A rapidez com que a doença se alastrou, o seu potencial de transmissão e contaminação, a insuficiência de evidências científicas sobre o vírus e a ausência de abordagens farmacológicas eficazes e de vacinas aditaram complexidade e incerteza às estratégias de seu enfrentamento, exigindo do gestor a ágil tomada de decisões (Mendes, 2020MENDES, E. V. O lado oculto de uma pandemia: a terceira onda da covid-19 ou o paciente invisível. Brasília: Conselho Nacional de Secretários de Saúde , 2020.).

Cumpre frisar que há muitos estudos publicados sobre o tema da gestão no SUS. Todavia, pouco se aborda sobre o gestor do SUS, seja enquanto ator político, trabalhador da saúde ou mesmo pessoa civil, que tem uma trajetória de vida, aspirações, dificuldades e desafios (Castro et al., 2022CASTRO, J. L. et al. Evidências e lacunas na produção científica sobre os gestores do SUS: scoping review. New Trends in Qualitative Research, Aveiro, v. 13, e699, 2022. DOI: 10.36367/ntqr.13.2022.e699
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), e menos ainda sobre as suas dificuldades no contexto da pandemia. É sobre a função desse ator, nessas circunstâncias, que se debruça este artigo, cujo objetivo foi discutir os desafios da gestão estadual da pandemia de covid-19 e as suas repercussões para a vida do gestor.

Método

A pesquisa que deu origem a este artigo se caracteriza por ser exploratória e qualitativa. Para o seu desenvolvimento, diferentes técnicas de coleta de dados foram empregadas: pesquisa bibliográfica, que buscou mapear e analisar a produção científica sobre os gestores do SUS; consulta aos sites institucionais das secretarias estaduais de saúde, com o intuito de se elaborar um diagnóstico descritivo sobre a organização e atividades dessas estruturas; pesquisa documental, cujo objeto foram os planos estaduais de contingência elaborados para o enfrentamento da pandemia de covid-19; e entrevistas semiestruturadas com gestores do SUS. Essas técnicas resultaram em um extenso conjunto de dados ainda não publicado, sendo parte deles apresentado neste artigo, que alude, de modo especial, aos resultados encontrados nas entrevistas realizadas com informantes-chave.

Foram entrevistados sete secretários estaduais de saúde das regiões Nordeste, Sul e Sudeste, um ex-secretário, além de um representante do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). A inserção deste último na pesquisa se justifica pela sua posição no cenário da gestão do SUS, que o permite acompanhar as diversificadas trajetórias dos gestores estaduais de saúde.

As entrevistas foram realizadas de forma remota, por meio da plataforma Zoom, no período de abril de 2021 a março de 2022. Foram previamente agendadas de acordo com a disponibilidade dos gestores e tiveram uma duração média de 60 minutos. Para balizamento do pesquisador, foi utilizado um roteiro contendo questões norteadoras relacionadas à trajetória acadêmico-profissional do respondente, à sua percepção sobre ser gestor de saúde e as implicações do cargo para a sua vida, e à pandemia e ao papel do gestor de saúde nesse contexto.

As entrevistas foram gravadas e transcritas na íntegra. Em seguida, as transcrições foram exaustivamente lidas, de modo a possibilitar a sua codificação, categorização e interpretação. Este processo foi realizado por meio da análise de conteúdo, segundo a proposta de Bardin (2011BARDIN, L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70, 2011.), que consiste em um conjunto de técnicas para análise e tratamento das comunicações através de procedimentos sistemáticos para descrição das mensagens. Este artigo coloca em perspectiva as discussões relacionadas a duas categorias emergidas na análise: a gestão estadual da pandemia de covid-19 e as repercussões da gestão da pandemia para o gestor.

A pesquisa atendeu a todos os preceitos éticos relacionados a pesquisas com seres humanos, tendo sido o projeto submetido, avaliado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital Universitário da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Parecer 4.880.629. Para a garantia do anonimato, neste artigo, os participantes foram numerados em sequência (E1, E2, …), segundo a ordem de realização das entrevistas.

A gestão estadual da pandemia de covid-19

A Secretaria de Estado da Saúde (SES) é um órgão da administração pública direta do governo do estado, cuja competência é desenvolver a política estadual de saúde. Constituiu-se, assim, como a gestora estadual do SUS, conforme definido pela Lei Orgânica da Saúde, de 19 de setembro de 1990 (Brasil, 1990BRASIL. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 set 1990. Disponível em: Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8080.htm . Acesso em: 10 out 2023.
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). As SES estão presentes em todos os estados brasileiros e no Distrito Federal, e têm como função precípua o desenvolvimento da política estadual de saúde. A despeito das diferenças, a maioria das SES executa uma gestão ampla, ou seja, uma gestão que não se restringe ao gerenciamento de sua rede própria de prestação de serviços, dos prestadores de serviços sob sua gestão e de alguns programas assistenciais. Incorpora, também, as funções de regulação, formulação e avaliação de políticas de saúde, de negociação e coordenação da política estadual de saúde (Conass, 2023CONASS - Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Guia de apoio à gestão estadual do SUS. Brasília, DF: Conass , 2022. Disponível em: Disponível em: https://www.conass.org.br/guiainformacao/ >. Acesso em: 12 fev 2023.
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).

A esse conjunto de funções, soma-se a gestão e a execução de serviços e ações especiais, como laboratórios de saúde pública, hemocentros, serviços de transplantes e assistência farmacêutica, atribuições comuns a todas as secretarias. Pressupõe-se, portanto, que as SES trabalhem no sentido do fortalecimento do sistema e, em consonância com seus princípios e diretrizes, garantam a atenção integral à saúde da população, por meio de ações de promoção, prevenção, assistência e reabilitação (Conass, 2023CONASS - Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Guia de apoio à gestão estadual do SUS. Brasília, DF: Conass , 2022. Disponível em: Disponível em: https://www.conass.org.br/guiainformacao/ >. Acesso em: 12 fev 2023.
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).

A gestão de uma instituição com tal complexidade, no período que se constituiu como uma das mais graves crises sanitárias do século, exigiu significativos esforços da gestão estadual e de todos os trabalhadores da assistência e da gestão.

O SARS-CoV-2, causador da doença covid-19, foi notificado em dezembro de 2019, em Wuhan, província chinesa. Em decorrência do alto grau de transmissibilidade do vírus, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou situação de emergência em saúde pública de importância internacional em 30 de janeiro de 2020, conforme regulamento sanitário internacional. A condição de pandemia foi declarada em 11 de março do mesmo ano, alertando os países para a necessidade de criar estratégias de controle da transmissão do vírus e organização dos sistemas de saúde. Naquele momento, mais de 115 mil casos e 4 mil mortes já haviam sido reportados, em 114 países (Opas, 2020).

No Brasil, a situação de emergência em saúde pública de importância nacional foi declarada em 3 de fevereiro de 2020, acompanhada da ativação do Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública para o novo Coronavírus (Brasil, 2020BRASIL. Ministério da Saúde. Portaria nº 188, de 3 de fevereiro de 2020. Declara Emergência em Saúde Pública de importância Nacional (ESPIN) em decorrência da infecção humana pelo novo Coronavírus (2019-nCoV). Diário Oficial da União , Brasília, DF, 4 fev 2020. Disponível em: < Disponível em: https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/portaria-n-188-de-3-de-fevereiro-de-2020-241408388 >. Acesso em: 10 out 2023.
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) e da publicação da primeira versão do Plano de Contingência Nacional para Infecção Humana pelo Novo Coronavírus (Brasil, 2021BRASIL. Ministério da Saúde. Centro de Operações de Emergências em Saúde Pública. Plano de Contingência Nacional para Infecção Humana pelo novo Coronavírus COVID-19. Brasília, DF: Ministério da Saúde, 2021. Disponível em: <Disponível em: https://www.gov.br/saude/pt-br/coronavirus/publicacoes-tecnicas/guias-e-planos/livreto-plano-de-contingencia-espin-coe-26-novembro-2020 >. Acesso em: 24 mar 2023.
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).

Os governos estaduais e do Distrito Federal, por meio de suas secretarias de saúde, também anunciaram seus planos de contingências. Compreendidos como instrumento de planejamento governamental, esses planos assumiram como objetivo a contenção do avanço da doença e o reforço do sistema de vigilância e de ações de prevenção e controle da pandemia (Vieira et al., 2023VIEIRA, S. L. et al. Ações de educação permanente em saúde em tempos de pandemia: prioridades nos planos estaduais e nacional de contingência. Ciência & Saúde Coletiva , Rio de Janeiro, v. 28, n. 5, p. 1377-1386, 2023. DOI: 10.1590/1413-81232023285.11252022
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). Assim, esses documentos anunciaram decisões estratégicas imediatas, estabeleceram responsabilidades e prioridades, e orientaram investimentos de recursos necessários para responder à emergência sanitária.

Dado o contexto alarmante de transmissão do vírus, o enfrentamento da pandemia passou a ser a atividade prioritária das secretarias e serviços de saúde, em detrimento de todas as demais. Assim, as SES anunciaram diversas medidas de controle e prevenção a serem implementadas no âmbito de suas redes de serviços. As ações de saúde foram replanejadas, novos serviços foram estruturados, leitos foram abertos e o uso da telemedicina foi ampliado, conforme indicam os excertos abaixo:

A pandemia nos pegou de surpresa, atrapalhou fortemente o nosso planejamento, e tivemos que montar um novo planejamento. (E3)

Planejar, replanejar, tomar decisões rápidas foi o que fizemos em todo este período. A gente fazia reuniões toda hora para tomar decisão […] e ia fazendo, vendo o que deu certo, replanejando e seguia. Não dava tempo para fazer diagnóstico de nada. Fazer diagnóstico de rede? Não dava tempo. O negócio era abrir leitos, era algo muito imediatista, mas necessário. (E7)

Verifica-se que o manejo da situação de crise não substituiu o raciocínio do planejamento; ao contrário, este foi base para a organização das ações de enfrentamento (Caleman et al., 2021CALEMAN, G. et al. O planejamento estratégico situacional em tempos de crise. In: SANTOS, A. O.; LOPES, L. T. (Org.). Planejamento e saúde. Brasília, DF: Conselho Nacional de Secretários de Saúde, 2021. p. 40-50.). A pandemia encontrou nos gestores das SES, portanto, uma postura de flexibilidade; uma atitude em constante revisão que considerou as situações e circunstâncias, de modo que o sistema de ações se baseou no conhecimento da realidade de cada momento, tal como propõe o planejamento estratégico situacional (Matus, 1978MATUS, C. Estrategia y plan. México: Siglo XXI, 1978.). Assim, dado o contexto de crise e de incertezas, cuja fase inicial foi marcada pelas lacunas de conhecimento, aos gestores estaduais coube a importante tarefa de desenhar soluções para o enfrentamento da pandemia, considerando as peculiaridades do seu território e de seus contextos sociopolíticos. Na prática, os gestores mostraram o que é um planejamento vivo, passível de sofrer modificações em tempo real.

Isto considerado, os planos estaduais de contingência foram elaborados com a finalidade de instrumentalizar a gestão da rede pública de saúde estadual e os serviços com vistas à redução das complicações e danos ocasionados pela covid-19. Em um primeiro momento, os planos se restringiram, na prática, a indicar ações de vigilância de casos novos e de ampliação da rede especializada, especialmente da oferta de leitos, o que foi efetivamente levado à cabo pela gestão.

Criamos uma rede de atendimento com hospitais de referência macrorregionais […], 25 pronto atendimentos regionais com oxigênio, respiradores, ambulância na porta para fazer remoção dos pacientes. Estimulamos os 400 municípios a montarem pequenos pronto-atendimentos para covid […]. Em 60 dias construímos um prédio de biologia molecular no nosso Laboratório Central de Saúde Pública […] e colocamos o laboratório para rodar 24 horas, sete dias por semana. (E5)

Nós aumentamos em 200% o número de leitos de unidades de terapia intensiva, mesmo na ausência eventual do custeio federal. (E6)

No enfrentamento da pandemia no Brasil, os esforços concentraram-se nos serviços hospitalares, com investimentos destinados especialmente à abertura de hospitais de campanha - muitos dos quais não ficaram prontos em tempo oportuno - e leitos de unidades de terapia intensiva. A atenção primária, por seu turno, foi subutilizada, o que pode ter sido considerado um erro estratégico quando se considera a sua capilaridade territorial e a potência do trabalho em equipe multiprofissional na Estratégia Saúde da Família (Medina et al., 2020MEDINA, M. G. et al. Atenção primária à saúde em tempos de COVID-19: o que fazer? Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 36, n. 8, p. e00149720, 2020. DOI: 10.1590/0102-311X00149720
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; Massuda et al., 2021MASSUDA, A. et al. A resiliência do Sistema Único de Saúde frente à COVID-19. Cadernos EBAPE.BR, Rio de Janeiro v. 19, p. 7350744, nov. 2021. Edição especial.). Essa perspectiva ficou corroborada pela ausência de menções dos entrevistados à atenção primária.

Apesar disso, com o avanço da pandemia, a produção de evidências científicas e o alargamento do conhecimento sobre os impactos da covid-19, os planos de contingência passaram a incorporar novas ações a partir das necessidades produzidas pela crise sanitária, como a de capacitação profissional e suporte de recursos de educação, monitoramento e atendimento à distância. De outro modo, aspectos da gestão do trabalho foram muito pouco abordados pelos planos, a exemplo do dimensionamento de pessoas para o enfrentamento da pandemia, reorganização dos processos de trabalho, adequação de jornadas de trabalho, saúde mental e formas de contratação. Em contraste, para operar as demandas impostas pela pandemia, as questões relacionadas à força de trabalho em saúde tiveram que ser enfrentadas.

Não tem médicos. Na pandemia ficou claro. Nós colocamos recém-formados para trabalhar na UTI [unidade de terapia intensiva]. (E5)

O clima na organização era devastador. […] Um clima de muito trabalho, ninguém tirava férias, todo mundo trabalhando com a pandemia e a autoestima pra baixo. (E7)

É preciso ressaltar que a pandemia não foi a causa da precarização no setor da saúde, mas um fator de agravamento de históricas, crônicas e precárias condições de trabalho e de saúde dos trabalhadores do setor, marcada pela sobrecarga laboral, falta de recursos materiais para a assistência, escassez de profissionais, desvalorização profissional e baixa remuneração (Aith et al., 2020AITH, F. et al. Is COVID-19 a turning point for the health workforce?. Revista Panamericana de Salud Publica, Washington, DC, v. 44, e102, 2020. DOI: 10.26633/RPSP.2020.102
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; Barreto et al., 2021BARRETO, M. S. et al. Vivências de enfermeiros e médicos de unidades de pronto atendimento no enfrentamento da covid-19. Revista Baiana de Enfermagem, Salvador, v. 35, e43433, 2021. DOI: 10.18471/rbe.v35.43433
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; Castro; Pontes, 2021CASTRO, J. L.; PONTES, H. J. C. A importância dos trabalhadores da saúde no contexto covid-19. In: SANTOS, A. O.; LOPES, L. T. Profissionais de saúde e cuidados primários. Brasília, DF: Conass, 2021. p. 40-52.).

O novo coronavírus escancarou, ainda, a ausência de políticas integradas e de uma coordenação nacional por parte do Ministério da Saúde, o que levou à adoção de diferentes estratégias por parte de cada um dos estados. Estes fatores, assim como a politização da pandemia, a negação da doença e a tentativa de impor tratamentos ineficazes para a covid-19 por parte de representantes do governo federal, foram consideradas as maiores dificuldades vivenciadas por aqueles que estavam no comando das ações estaduais direcionadas ao enfrentamento da pandemia.

A resposta à pandemia foi, de certa forma, sabotada pelo governo federal em larga escala. E isso dificultou muito a articulação e o sentido tripartite do SUS. (E3)

Tivemos dificuldades sim, na politização da pandemia, na negação da gravidade dessa doença, na tentativa de impor tratamentos completamente sem sentido. (E6)

Faz-se oportuno lembrar que, em 16 meses de pandemia, entre os pedidos de exonerações e as demissões realizadas, houve 15 mudanças de secretários estaduais de saúde. No Ministério da Saúde, foram quatro ministros no período. Este movimento provocou ruptura nos processos administrativos e nas articulações de decisões políticas já tomadas, conforme informa um dos entrevistados:

O que dificulta bastante é a quebra da sequência administrativa do Ministério da Saúde, porque com a quebra de sequência de ministros da saúde você também tem a quebra das políticas. (E1)

Associe-se a este quadro à escalada do processo de desmonte do financiamento da saúde e a ausência de maior comprometimento para alocação de recursos voltados ao enfrentamento da pandemia. Sobre este panorama, Mendes, Carnut e Melo (2023MENDES, A.; CARNUT, L.; MELO, M. Continuum de desmontes da Saúde Pública na crise do covid-19: o neofascismo de Bolsonaro. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 32, 2023. DOI: 10.1590/S0104-12902022210307pt
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) defendem que as ações, ou a ausência delas, consistiam em uma orientação sintonizada com o negacionismo científico e com as práticas dos neofascistas de desprezo às vidas dos mais vulneráveis.

As repercussões da gestão da pandemia para o gestor

Seligmann-Silva (2011SELIGMANN-SILVA, E. Trabalho e Desgaste Mental: o direito de ser dono de si mesmo. São Paulo: Cortez, 2011. p. 34) afirma que o processo social envolve os indivíduos e interage em sua complexidade psicossomática, uma vez que “as forças políticas e sociais podem favorecer ou fragilizar a saúde dos seres humanos de acordos com as situações que estes vivenciam em contextos macrossociais e situações específicas de vida e trabalho”. Nessa perspectiva, é lícito supor, a partir das análises das falas dos gestores, que o contexto sociopolítico, grave, polêmico e delicado, tornou mais complexa e tensa a gestão da covid-19, causando impacto na vida pessoal dos gestores responsáveis pela condução do SUS estadual. Um dos gestores aludiu a esse processo:

Fazer a gestão da pandemia não foi fácil. O dia a dia de trabalho tenso, intenso e complexo exigia uma dinâmica de trabalho em que não se podia ser amigo do sono. (E1)

Outro informante descreveu o exercício da gestão como intenso e muito absorvente, além de:

aterrador, desolador, porque primeiro ele te subtrai o tempo de vida com a família e com os amigos. Você é sumido diante dos desafios e das limitações do contexto organizacional estrutural, então você é consumido, da manhã até altas horas da noite […]. (E2)

Este contexto extenuante, com pouco tempo para pausas, produziu consequências como estresse, depressão, problema físicos, obesidade, agudização de alguns problemas já existentes e sentimento de angústia permanente, decorrente das limitações e impossibilidades enfrentadas no dia a dia.

O sentimento de angústia é muito doloroso. Eu não desejo para ninguém. Por mais que você tenha que lidar com naturalidade, é muito danoso. […] Adoeci, tive quase um mês com sinusite brava, e depois meu problema prostático se agudizou. Sofri repercussões na saúde física e corporal e mental. (E2)

O saldo mais negativo que eu estou adquirindo nesta gestão são os quilos a mais. Eu sou um indivíduo extremamente reativo à comida com a ansiedade. A ansiedade me faz comer mais. (E3)

Rotineiramente, a carga horária destinada à gestão do SUS vai muito além das oito horas diárias comumente estabelecidas para os trabalhadores no Brasil. Durante a pandemia de covid-19, esta carga horária foi exponencialmente aumentada e expandida para os finais de semana. Segundo Sousa et al. (2020SOUSA, K. H. J. F. et al. Factors related to the risk of illness of nursing staff at work in a psychiatric institution. Revista Latino-Americana de Enfermagem, Ribeirão Preto, v. 28, e3235, 2020. DOI: 10.1590/1518-8345.3454.3235
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), em um contexto geral, o aumento das horas de trabalho está associado a uma maior predisposição ao adoecimento laboral. O resultado dessa sobrecarga de trabalho se traduz em insônia, ansiedade, nervosismo, depressão e outros problemas de saúde mental, com destaque para a síndrome de burnout (Soares et al., 2022SOARES, J. P. et al. Fatores associados ao burnout em profissionais de saúde durante a pandemia de Covid-19: revisão integrativa. Saúde em Debate, Rio de Janeiro, v. 46, p. 385-398, 2022. Edição especial. DOI: 10.1590/0103-11042022E126
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). O impacto da pandemia nos secretários estaduais de saúde não foi diferente.

Outro elemento importante a considerar, no tenso contexto em que se deu a gestão da pandemia de covid-19, foi o posicionamento agressivo nas redes sociais, em que a difamação, a injúria e o incentivo ao ódio, direcionados à gestão do SUS, eram comuns. No contexto pandêmico, as repercussões dos ataques nas redes sociais se estenderam ao âmbito familiar e aos amigos, provocando um sofrimento generalizado, como menciona um dos entrevistados:

Quando um filho ouve um negócio desse fica sofrendo também. O sofrimento é generalizado, é dos amigos, é das pessoas que estão na luta. Esses ataques não têm limites. (E2)

Sobre o atual contexto, marcado pela forte presença e influência das redes sociais, Han (2022HAN, B-C. Não coisas: reviravoltas do mundo da vida. Petrópolis: Vozes, 2022., p. 11) observa que o mundo digitalizado e informatizado reflete contrariamente a ordem terrena - “aquela em que as coisas assumem uma forma duradoura”. Conforme o autor, a ordem digital descodifica o mundo ao informatizá-lo. É o mundo das não-coisas. “Essas não-coisas são chamadas de informação” (Han, 2022HAN, B-C. Não coisas: reviravoltas do mundo da vida. Petrópolis: Vozes, 2022., p. 12). As informações no mundo digital determinam o mundo da vida, o mundo das pessoas. Surgem tão rápido quanto desaparecem. São fugazes. Sem embargo, sabe-se que, quando determinada notícia desaparece de algum sítio da web, os seus efeitos deletérios podem não desaparecer junto com elas. O mais comum, quando se trata da gestão pública, é que tais efeitos causem desgastes políticos, pessoais e, possivelmente, sofrimento na vida dos gestores públicos.

Nesse cenário, fazer gestão do SUS se tornou um exercício de risco, como pode ser observado na fala de um dos entrevistados:

Hoje a gente vive um aspecto que é uma quase criminalização da atividade de gestão. É uma situação muito complexa, de certa punição das atividades de gestão. O gestor é praticamente levado à condição de quase marginal por certas discussões e, por vezes, pelas auditorias. (E3)

A análise do conjunto dos depoimentos evidenciou certa mágoa, entre os gestores, por serem frequentemente culpabilizados por processos judiciais ainda não concluídos. Segundo eles, é necessário que o processo chegue até o fim, com provas, antes que reputações sejam destruídas. Nessa seara, entre os diversos problemas enfrentados pelos gestores está o aumento da judicialização, com ações decorrentes especialmente da insuficiência de leitos de unidades de terapia intensiva e de demandas por medicamentos de alto custo.

A escassez de recursos financeiros, resultado do processo de redução do financiamento do sistema de saúde e aprofundado pela aprovação da Ementa Constitucional nº 95/2016 - que congelou o gasto público primário por 20 anos (Mendes; Carnut; Melo, 2023MENDES, A.; CARNUT, L.; MELO, M. Continuum de desmontes da Saúde Pública na crise do covid-19: o neofascismo de Bolsonaro. Saúde e Sociedade, São Paulo, v. 32, 2023. DOI: 10.1590/S0104-12902022210307pt
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) -, e as frágeis condições de trabalho dos profissionais de saúde também foram elementos que causaram tensão entre os gestores. De acordo com os entrevistados pela nossa pesquisa, a vulnerabilidade do gestor em relação ao subfinanciamento do SUS e aos processos judiciais no momento de eclosão da pandemia foram determinantes para que alguns gestores solicitassem exoneração dos seus cargos.

Apesar do exposto e da constatação de que o trabalho dos gestores é atravessado por fatores limitantes, fontes de tensão e frustração, nota-se que a função também é fonte de prazer e de motivação. É nesse sentido que os nossos entrevistados, ainda que em meio ao caos, conseguiram depreender a importância da solidariedade, da empatia e do compartilhamento entre os atores políticos. Esses fatores foram fundamentais para o êxito das estratégias definidas no curso da pandemia e para o fortalecimento do compromisso firmado em defesa da população e do próprio SUS:

Acho que o significativo foi realmente esse sentimento de compartilhar, de estar junto, de ter dentro do governo e junto a outros segmentos, até mesmo os municípios, ter essa corrente de solidariedade […] esse foi um ganho muito importante e que eu acho que em alguma medida até tem repercutido também na nossa condução ao longo da pandemia, mas também nas ações que vão para além da pandemia. (E2)

Compreendemos a solidariedade anunciada tanto a partir de uma dimensão ética, que alude à cooperação com o outro, dentro de uma perspectiva de alteridade, quanto de uma dimensão jurídica, que une as pessoas a partir de uma perspectiva do bem comum e universalizante, que implica, inclusive, a construção de políticas públicas sociais e de saúde concretas (Carvalho; Miranda, 2021CARVALHO, M. H. P.; MIRANDA, M. L. L. O princípio da solidariedade no enfrentamento da COVID-19 no Brasil. Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário, [s. l.], v. 10, n. 1, 2021. DOI: 10.17566/ciads.v10i1.729
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).

Para Harari (2020HARARI. Y. N. Na batalha contra o coronavírus, faltam líderes à humanidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2020. , p. 10), tal como a pandemia, a falta de confiança entre os seres humanos também constitui crise aguda. Sem pretender discordar do autor, no entanto, parece apropriado destacar a firmeza dos gestores ao afirmar a importância da solidariedade para salvar a si próprios e as suas respectivas gestões. Nessa direção, concordamos com a afirmação de Carvalho e Miranda (2021CARVALHO, M. H. P.; MIRANDA, M. L. L. O princípio da solidariedade no enfrentamento da COVID-19 no Brasil. Cadernos Ibero-Americanos de Direito Sanitário, [s. l.], v. 10, n. 1, 2021. DOI: 10.17566/ciads.v10i1.729
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), de que a crise sanitária e suas implicações tornaram urgente a construção de uma sociedade solidária e fraterna, com convergência de ações. Para as autoras, é “essencial que se construam novas trilhas ou pontes para uma atuação solidária de todos, individual e coletivamente, em um verdadeiro pacto de solidariedade, no sentido de encontrar-se, pela união de forças, caminhos de superação” (2021, p. 9).

Considerações finais

A SES consiste no órgão de administração pública direta do governo estadual ao qual compete desenvolver a política estadual de saúde. No meio de todos os desafios que fazem parte do cotidiano do SUS, a pandemia de covid-19 se impôs como protagonista das atenções nos anos 2020 e 2021. O contexto obrigou os gestores a planejarem e replanejarem constantemente os seus recursos e ações face aos desdobramentos da pandemia e aos desafios impostos pelo desmonte do SUS e pelos embates políticos, travados especialmente com o governo federal. Os momentos de tensão e conflitos vividos pelos gestores, nesse período, acarretaram implicações políticas, mas também pessoais, traduzidas em sofrimento mental, ansiedade, angústia e estresse.

As consequências da covid-19 na sociedade e no trabalhador da saúde já foram estudadas sob diversos aspectos. No entanto, a participação e o papel dos gestores do SUS, atores protagonistas em um dos contextos mais delicados da instituição, ainda não foram suficientemente estudados, tampouco as repercussões do contexto sobre a vida desses atores. Nesse sentido, as evidências produzidas por este artigo trazem um novo olhar. Seus resultados, seguramente, colocarão na agenda a discussão sobre a saúde do gestor do SUS, assim como as fragilidades e forças da gestão do SUS durante a pandemia.

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  • 1
    Armando Raggio atuou como secretário municipal de saúde de Curitiba/PR, de São José dos Pinhais/PR e de Sorocaba/SP; foi secretário estadual de saúde do Paraná e presidente do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde e do Conselho Nacional de Secretários de Saúde.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jan 2024
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    28 Jul 2023
  • Revisado
    22 Ago 2023
  • Aceito
    22 Ago 2023
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