RESUMO:
Os dispositivos de Tecnologia Assistiva (TA) são potencialmente benéficos para pessoas com baixa visão. Todavia, esse público não os utiliza na promoção de sua funcionalidade, em razão do desconhecimento, das barreiras econômicas e por esses recursos marcarem a deficiência. Paralelamente, os aplicativos de smartphone e tablets apresentam-se como novas possibilidades em TA e seu uso tem se popularizado entre as pessoas com baixa visão por apresentarem características menos estigmatizadoras e serem economicamente mais viáveis, quando comparados aos recursos convencionais. O presente estudo visou identificar e caracterizar funcionalmente, a partir do ponto de vista dos usuários, aplicativos de smartphones e/ou tablets que assumem função de recursos de TA e vêm sendo utilizados por pessoas com baixa visão. Participaram do estudo 28 pessoas com baixa visão, que são membros de um grupo já existente no aplicativo WhatsApp. A coleta de dados aconteceu no espaço virtual desse aplicativo, individualmente, por meio de entrevista semiestruturada. Os dados foram transcritos e organizados em duas categorias de análise: aplicativos utilizados e funcionalidade. Os participantes citaram 50 aplicativos e nove recursos de acessibilidade usados em smartphone e tablets. Em relação à funcionalidade, destacaram-se os aplicativos destinados ao acesso a conteúdos textuais, impressos ou digitais, e outros para realização de tarefas cotidianas, laborais, de estética e de navegação (orientação e mobilidade). A partir desse levantamento, foi possível identificar o potencial desses aplicativos na solução de dificuldades enfrentadas por pessoas com baixa visão. Desse modo, sugere-se mais pesquisas, investimentos, divulgação e programas de ensino para aumentar o seu uso.
PALAVRAS-CHAVE:
Educação Especial; Tecnologia Assistiva; Baixa visão; Aplicativos
ABSTRACT:
The Assistive Technology (AT) devices are potentially beneficial for low visioned people. However, this public does not use them in the promotion of their functionality, due to the lack of knowledge, economic barriers and because these resources draw attention to the disability. At the same time, smartphone and tablet applications present themselves as new possibilities in AT and their use has become popular among people with low vision because they have fewer stigmatizing characteristics and are more economically viable compared to conventional resources. The present study aimed to identify and functionally characterize, from the point of view of users, smartphone and/or tablet applications that assume the function of AT resources and are being used by people with low vision. The study included 28 people with low vision who are already members of a chat group in the WhatsApp application. Data collection took place in the virtual space of this application, individually, through a semi-structured interview. The data were transcribed and organized into two categories of analysis: applications used and functionality. The participants cited 50 apps and 9 accessibility resources used in smartphones and tablets. Regarding functionality, the apps destined for access to textual content, being printed or digital, and others for everyday tasks, work, aesthetics and navigation (orientation and mobility) were highlighted. From this survey, it was possible to identify the potential of these applications in the solution of difficulties faced by people with low vision. Thus, more research, investments, dissemination and teaching programs to increase their use are suggested.
KEYWORDS:
Special education; Assistive Technology; Low vision; Applications
1 Introdução
Segundo a Classificação Internacional das Doenças e Problemas relacionados à Saúde (CID-10), uma pessoa tem baixa visão (ou visão subnormal) quando sua acuidade visual, corrigida no melhor olho, é menor que 20/70 e maior ou igual a 20/400, e são consideradas cegas aquelas cujos valores se encontram abaixo de 20/400. Entretanto, apesar desses critérios, uma vasta diversidade de condições pode ser encontrada em pessoas com baixa visão. Há aquelas com autonomia na locomoção enquanto outras necessitam desenvolver estratégias para atingi-la. Algumas realizam atividades escolares sem necessidade de nenhum auxílio, enquanto outras precisam de auxílios ópticos (lupas e telescópios), eletrônicos (lupas eletrônicas e vídeo-ampliadores) e de informática (software ampliadores e/ou leitores de telas) para ampliarem sua funcionalidade visual. Há as que conseguem utilizar manuscritos, ainda que em formatos ampliados; enquanto outras necessitam de materiais táteis ou auditivos, tais como leitores de tela (Laplane & Batista, 2008Laplane, A. L. F., & Batista, C. G. (2008). Ver, não ver e aprender: A participação de crianças com baixa visão e cegueira na escola. Caderno Cedes, Campinas, 28(75), 209-227.).
A fim de atender a essa variedade de demandas em relação às pessoas com baixa visão, Ferroni e Gasparetto (2012)Ferroni, M. C. C., & Gasparetto, M. E. R. F. (2012). Escolares com baixa visão: Percepção sobre as dificuldades visuais, opinião sobre as relações com comunidade escolar e o uso de Tecnologia Assistiva nas atividades cotidianas. Revista Brasileira de Educação Especial, Marília, 18(2), 301-318. indicam a utilização dos recursos de Tecnologia Assistiva (TA). A TA é uma área de conhecimento interdisciplinar que compreende produtos, recursos, metodologias, estratégias, práticas e serviços que objetivam promover a funcionalidade para pessoas com deficiência, facilitando a autonomia, a independência, a qualidade de vida e a inclusão social (Alves, Monteiro, Rabello, Gasparetto, & Carvalho, 2009Alves, C. C. F., Monteiro, G. B., Rabello, S., Gasparetto, M. E., & Carvalho, K. M. de (2009). Assistive technology applied to education of students with visual impairment. Pan American Journal of Public Health, Washington, 26(2), 148-152.).
Nesse contexto, infere-se que qualquer recurso que potencialize o funcionamento visual e propicie o desempenho da pessoa com baixa visão em suas atividades cotidianas pode ser compreendido como recurso de TA (Ferroni, & Gasparetto, 2012Ferroni, M. C. C., & Gasparetto, M. E. R. F. (2012). Escolares com baixa visão: Percepção sobre as dificuldades visuais, opinião sobre as relações com comunidade escolar e o uso de Tecnologia Assistiva nas atividades cotidianas. Revista Brasileira de Educação Especial, Marília, 18(2), 301-318.). Para as pessoas com baixa visão, a TA visa auxiliar na realização de tarefas desejadas utilizando o resíduo visual e as habilidades remanescentes, e aumentar a eficiência e o conforto visual na realização dessas atividades, proporcionando mais independência e autonomia (Organização Mundial da Saúde [OMS], 2003Organização Mundial da Saúde (2003). Consultation on development of standards for characterization of visual loss and visual functioning. WHO/PBL/03.91. Geneva: OMS.).
Assim, a maioria das pessoas com baixa visão poderá ter suas habilidades visuais ampliadas com auxílio de recursos ópticos (Carvalho, Gasparetto, Venturini, & Kara-José, 2005Carvalho, K. M. M., Gasparetto, M. E. R. E., Venturini, N. H. B., & Kara-José, N. (2005). Visão subnormal: Orientações ao professor do ensino regular. Campinas: Unicamp.), não ópticos (Gasparetto, 2010Gasparetto, M. E. R. F. (2010). Orientações ao professor e à comunidade escolar referentes ao aluno com baixa visão. In M. W. Sampaio, M. A. O. Haddad, H. A. da Costa Filho, & M. O. de C. Siaulyz (Orgs.), Baixa visão e cegueira: Os caminhos para a reabilitação, a educação e a inclusão (pp. 347-360). Rio de Janeiro: Cultura Médica, Guanabara Koogan.; Montilha, Temporini, Nobre, Gasparetto, & Kara-José, 2006Montilha, R. C. I., Temporini, E. R., Nobre, M. I. R. de S., Gasparetto, M. E. R. F., & Kara-José, N. (2006). Utilização de recursos ópticos e equipamentos por escolares com deficiência visual. Arquivos Brasileiros de Oftalmologia, São Paulo, 69(2), 207-211.), eletrônicos e de informática (Mortimer, 2010Mortimer, R. (2010). Recursos de informática para a pessoa com deficiência visual. In M. W. Sampaio, M. A. O. Haddad, H. A. da Costa Filho, & M. O. de C. Siaulyz (Org.), Baixa visão e cegueira: Os caminhos para a reabilitação, a educação e a inclusão (pp. 221-231). Rio de Janeiro: Cultura Médica, Guanabara Koogan.), como meio de garantia de acesso às informações necessárias ao desenvolvimento funcional, seja em atividades de vida diária e prática, mobilidade ou nos processos de ensino e aprendizagem.
Os recursos ópticos compreendem dispositivos que devem ser prescritos por oftalmologistas especializados e consistem em uma ou mais lentes, que se antepõem entre o olho e o objeto para aumentar ou ajustar a imagem visual. Na categoria de recursos ópticos para visão de longe, encontram-se os óculos comuns, as lentes de contato, os sistemas telescópios de foco ajustável ou de foco fixo. Entre recursos ópticos para visão de perto, há lupas manuais, fixas, de apoio, óculos comuns e óculos com lentes especiais de grande aumento. Esses auxílios colaboram para ampliar o desempenho visual, principalmente em relação à leitura e à escrita (Carvalho et al., 2005Carvalho, K. M. M., Gasparetto, M. E. R. E., Venturini, N. H. B., & Kara-José, N. (2005). Visão subnormal: Orientações ao professor do ensino regular. Campinas: Unicamp.; Ferroni & Gasparetto, 2012Ferroni, M. C. C., & Gasparetto, M. E. R. F. (2012). Escolares com baixa visão: Percepção sobre as dificuldades visuais, opinião sobre as relações com comunidade escolar e o uso de Tecnologia Assistiva nas atividades cotidianas. Revista Brasileira de Educação Especial, Marília, 18(2), 301-318.)
Os recursos não ópticos são aqueles que melhoram a função visual sem o auxílio de lentes, são simples, úteis, e transformam os materiais e os ambientes, proporcionando um melhor desempenho visual (Carvalho et al., 2005Carvalho, K. M. M., Gasparetto, M. E. R. E., Venturini, N. H. B., & Kara-José, N. (2005). Visão subnormal: Orientações ao professor do ensino regular. Campinas: Unicamp.). Além disso, facilitam a visão por meio de modificações ambientais, melhorando condições de iluminação e aumentando o contraste; ampliam textos e imagens por meio de impressos; e proveem acessórios para melhorar o conforto físico (Romognolli & Ross, 2008Romagnolli, G. S. E., & Ross, P. R. (2008). Inclusão de alunos com baixa visão na rede pública de ensino. Curitiba: Universidade Federal do Paraná, Programa de Desenvolvimento Educacional-PDE.). Dentre os auxílios não ópticos, destacam-se a ampliação de livros didáticos, de pautas de caderno; iluminação adequada; suporte para leitura e escrita; aumento do contraste com a utilização de grafites mais fortes (lápis 6B); canetas hidrográficas; uso de cores bem contrastantes como a tinta preta em papel branco, ou giz branco ou amarelo para aumentar o contraste com o fundo do quadro; tiposcópio; luminárias portáteis e outros (Ferroni & Gasparetto, 2012Ferroni, M. C. C., & Gasparetto, M. E. R. F. (2012). Escolares com baixa visão: Percepção sobre as dificuldades visuais, opinião sobre as relações com comunidade escolar e o uso de Tecnologia Assistiva nas atividades cotidianas. Revista Brasileira de Educação Especial, Marília, 18(2), 301-318.).
Os recursos eletrônicos, por sua vez, permitem às pessoas com baixa visão terem acesso a materiais impressos que lupas ópticas são incapazes de ampliar suficientemente para permitir a leitura. Eles podem ampliar imagens em até 66 vezes sem nenhuma distorção, além de mudar cores e contrastes para atender às necessidades diversas de cada pessoa com deficiência visual. Dentre os recursos eletrônicos destacamos: Circuito Fechado de Televisão (CCTV), lupa eletrônica, digitalizadores e leitores autônomos de textos e vídeo ampliadores.
Os recursos de tecnologia de informação e comunicação (TIC) constituem-se como importantes ferramentas para as pessoas com baixa visão e funcionam mediante interfaces visuais, sonoras e táteis ou pela combinação entre elas. O principal dispositivo dessa categoria é o computador, que, por meio de softwares e recursos, permite atender às necessidades de cada pessoa no que se refere à ampliação, ao contraste, à edição de texto e suporte sonoro. Os recursos mais utilizados por pessoas com baixa visão, por meio do computador, são os softwares ampliadores de tela, que permitem acesso à informática, agindo como uma lupa virtual. Outra opção são os leitores de tela, que transmitem as informações contidas na tela do computador por meio de sintetizadores de voz (Ferroni & Gasparetto, 2012Ferroni, M. C. C., & Gasparetto, M. E. R. F. (2012). Escolares com baixa visão: Percepção sobre as dificuldades visuais, opinião sobre as relações com comunidade escolar e o uso de Tecnologia Assistiva nas atividades cotidianas. Revista Brasileira de Educação Especial, Marília, 18(2), 301-318.).
Assim, observamos que existe uma variedade de recursos que podem ser usados por pessoas com baixa visão, permitindo-lhes funcionalidade nas tarefas. Várias pesquisas apontam que esses dispositivos de TA são potencialmente benéficos para pessoas com baixa visão, principalmente em idade escolar (Alves et al., 2009Alves, C. C. F., Monteiro, G. B., Rabello, S., Gasparetto, M. E., & Carvalho, K. M. de (2009). Assistive technology applied to education of students with visual impairment. Pan American Journal of Public Health, Washington, 26(2), 148-152.; Ferroni & Gasparetto, 2012Ferroni, M. C. C., & Gasparetto, M. E. R. F. (2012). Escolares com baixa visão: Percepção sobre as dificuldades visuais, opinião sobre as relações com comunidade escolar e o uso de Tecnologia Assistiva nas atividades cotidianas. Revista Brasileira de Educação Especial, Marília, 18(2), 301-318.; Janial & Manzini, 1999Janial, M. I., & Manzini, E. J. (1999). Integração dos alunos deficientes sob o ponto de vista do direito de escola. In E. J. Manzini (Org.), Integração de alunos com deficiência: Perspectiva e prática pedagógica (pp. 1-25). Marília: Unesp Marília publicações.; Rabello, Gasparetto, Alves, Monteiro, & Carvalho, 2014Rabello, S., Gasparetto, M. E. R. F., Alves, C. C. de F., Monteiro, G. B. M., & Carvalho, K. M. de (2014). The influence of assistive technology devices on the performance of activities by visually impaired. Revista Brasileira de Oftalmologia (Impresso), Rio de Janeiro, 73, 103-107.). Todavia, evidências apontam que, no Brasil, a falta de formação dos professores e o desconhecimento das próprias pessoas com deficiência visual acerca dos recursos de TA, além da escassez/ausência dos recursos na escola, e de profissionais especializados para assessorá-la na avaliação e na implementação da TA prejudicam o acesso e o uso desses valiosos recursos (Ferroni & Gasparetto, 2012Ferroni, M. C. C., & Gasparetto, M. E. R. F. (2012). Escolares com baixa visão: Percepção sobre as dificuldades visuais, opinião sobre as relações com comunidade escolar e o uso de Tecnologia Assistiva nas atividades cotidianas. Revista Brasileira de Educação Especial, Marília, 18(2), 301-318.; Alves et al., 2009Alves, C. C. F., Monteiro, G. B., Rabello, S., Gasparetto, M. E., & Carvalho, K. M. de (2009). Assistive technology applied to education of students with visual impairment. Pan American Journal of Public Health, Washington, 26(2), 148-152.; Rabello et al., 2014Rabello, S., Gasparetto, M. E. R. F., Alves, C. C. de F., Monteiro, G. B. M., & Carvalho, K. M. de (2014). The influence of assistive technology devices on the performance of activities by visually impaired. Revista Brasileira de Oftalmologia (Impresso), Rio de Janeiro, 73, 103-107.; Janial & Manzini, 1999Janial, M. I., & Manzini, E. J. (1999). Integração dos alunos deficientes sob o ponto de vista do direito de escola. In E. J. Manzini (Org.), Integração de alunos com deficiência: Perspectiva e prática pedagógica (pp. 1-25). Marília: Unesp Marília publicações.).
Em relação à percepção das pessoas com baixa visão quanto ao uso de TA, Monteiro, Montilha e Gasparetto (2011)Monteiro, M. M. B., Montilha, R. C. I., & Gasparetto, M. E. R. F. (2011). A atenção fonoaudiológica e a linguagem escrita de pessoas com baixa visão: Estudo exploratório. Revista Brasileira de Educação Especial, Marília, 17, 121-136., ao investigarem quais recursos de TA eram utilizados por pessoas com baixa visão que frequentavam um centro de reabilitação para auxiliar as práticas de leitura e escrita, observaram que 80% dos participantes faziam uso de recursos ópticos e não ópticos, sobressaindo-se o uso de óculos, lupa manual, aproximação de textos e objetos aos olhos e ampliação de textos.
Ferroni e Gasparetto (2012)Ferroni, M. C. C., & Gasparetto, M. E. R. F. (2012). Escolares com baixa visão: Percepção sobre as dificuldades visuais, opinião sobre as relações com comunidade escolar e o uso de Tecnologia Assistiva nas atividades cotidianas. Revista Brasileira de Educação Especial, Marília, 18(2), 301-318., em levantamento sobre o uso de TA por alunos com baixa visão, identificaram que 52,6% faziam uso de recursos ópticos para longe, dos quais 90% usavam óculos comuns e apenas 10% telescópios. A mesma porcentagem (52,6%) usava recursos ópticos para perto; destes, 70% usavam apenas óculos para perto, 20% faziam uso combinado de óculos e lupas de apoio, e 10% usavam somente lupa de apoio; 68,4% usavam a ampliação de materiais impressos como único recurso não-óptico citado; e a maioria dos respondentes (76,7%) destacou o uso da informática com programas específicos como principal recurso de TA usado.
Hummel (2016)Hummel, E. I. (2016). Tecnologia Assistiva nas Salas de Recursos Multifuncionais. Revista Interdisciplinar de Licenciatura e Formação Docente: Ensino & Pesquisa, União da Vitória, 14(1), 36-54., com o auxílio do questionário Tecnologia Assistiva para a Educação, elaborado por Manzini, Maia e Gasparetto (2008)Manzini, E. J., Maia, S. R., & Gasparetto, M. E. R. F. (2008). Questionário T. A. E.: Tecnologia Assistiva para a Educação Brasileira. Brasília: Comitê de Ajudas Técnicas., observou que, em relação aos recursos destinados às pessoas com deficiência visual, a maior parte dos que se encontravam disponíveis nas escolas de ensino regular eram recursos de baixa tecnologia, tais como: jogo da velha em EVA, reglete, jogo de xadrez, lupa sem luz e livros ampliados (Hummel, 2016Hummel, E. I. (2016). Tecnologia Assistiva nas Salas de Recursos Multifuncionais. Revista Interdisciplinar de Licenciatura e Formação Docente: Ensino & Pesquisa, União da Vitória, 14(1), 36-54.); e que uma parcela considerável de recursos era inexistente na escola ou desconhecida pela maioria dos professores. Dos 39 itens apresentados, 13 estavam ausentes na escola. Pesquisas com objetivos semelhantes, e que usaram o mesmo instrumento de coleta de dados, encontraram 16 itens ausentes dos 39 investigados (Manzini et al., 2008Manzini, E. J., Maia, S. R., & Gasparetto, M. E. R. F. (2008). Questionário T. A. E.: Tecnologia Assistiva para a Educação Brasileira. Brasília: Comitê de Ajudas Técnicas.). Verusa (2009)Verusa, E. de O. (2009). Tecnologia Assistiva para o Ensino de alunos com deficiência: Um estudo com professores do Ensino fundamental (Dissertação de Mestrado). Faculdade de Filosofia e Ciência, Universidade Estadual Paulista, Marília, SP, Brasil. verificou 28 itens indisponíveis no ambiente escolar pesquisado.
Quanto aos recursos de TA ausentes ou desconhecidos pelos professores, as três pesquisas evidenciaram que, em geral, são os economicamente mais caros ou importados que estão indisponíveis, como: ampliador de imagens e textos, lupas eletrônicas, aquecedor de papel microcapsulado, duplicador Braille, calculadora que fala em português, notebook com programas para o aluno com deficiência visual e display Braille (Manzini et al., 2008Manzini, E. J., Maia, S. R., & Gasparetto, M. E. R. F. (2008). Questionário T. A. E.: Tecnologia Assistiva para a Educação Brasileira. Brasília: Comitê de Ajudas Técnicas.; Hummel, 2016Hummel, E. I. (2016). Tecnologia Assistiva nas Salas de Recursos Multifuncionais. Revista Interdisciplinar de Licenciatura e Formação Docente: Ensino & Pesquisa, União da Vitória, 14(1), 36-54.; Verusa, 2009Verusa, E. de O. (2009). Tecnologia Assistiva para o Ensino de alunos com deficiência: Um estudo com professores do Ensino fundamental (Dissertação de Mestrado). Faculdade de Filosofia e Ciência, Universidade Estadual Paulista, Marília, SP, Brasil.). Ademais, Verusa (2009)Verusa, E. de O. (2009). Tecnologia Assistiva para o Ensino de alunos com deficiência: Um estudo com professores do Ensino fundamental (Dissertação de Mestrado). Faculdade de Filosofia e Ciência, Universidade Estadual Paulista, Marília, SP, Brasil. destacou que nem mesmo os alunos usuários de tais recursos de TA os possuíam.
No âmbito nacional, a maior parte dos estudos que se referem ao uso da TA é feita com crianças e adolescentes em idade escolar. Essa prevalência deve-se ao fato de que, nessa fase da vida, são exigidas habilidades de leitura e escrita que requerem um maior esforço visual. Em síntese, as pesquisas convergem para a descrição de um panorama quanto ao uso de TA na escola por alunos com deficiência visual, enfatizando que: as escolas não estão preparadas para implementarem a TA; os serviços de reabilitação nem sempre apresentam articulação com a educação; os recursos não estão presentes na escola e/ou a comunidade escolar os desconhece; os alunos não fazem uso da TA na promoção de sua funcionalidade por não a conhecerem, por barreiras econômicas ou até mesmo por esta se constituir em recursos estigmatizantes, o que resultaria em uma não aceitação pelos colegas.
Apesar das condições de acesso e de implementação de recursos de TA ocorrerem de forma diferente em outros países, um desafio comum se refere à aceitação e uso dos dispositivos de TA por seus usuários. Infelizmente, muitos recursos de TA são abandonados e/ou não utilizados após a aquisição, não cumprindo seu papel de proporcionar funcionalidade e melhorar o desempenho ocupacional, não importando o quanto isso seja valorizado pelos prestadores de serviço, fornecedores e designers (Strong, Jutai, Bevers, Hartley, & Plotkin 2003Strong, G., Jutai, J. W., Bevers, P., Hartley, M., & Plotkin, A. (2003). The psychosocial impact of closed circuit television low vision aids. Visual Impairment Research, 5(3), 179-190.; Mann, Goodall, Justiss, & Tomita, 2002Mann, W. C., Goodall, S., Justiss, M. D., & Tomita, M. (2002). Dissatisfaction and nonuse of Assistive devices among frail elders. Assistive Technology, 14, 130-139.; Polgar, 2006Polgar, J. M. (2006). Assistive technology as an enabler to occupation: What's old is new again (Muriel Driver Lecture). Canadian Journal of Occupational Therapy, 73(4), 199-205.; Fok, Polgar, Shaw, & Jutai, 2011Fok, D., Polgar, J. M., Shaw, L., & Jutai, J. W. (2011). Low vision assistive technology device usage and importance in daily occupation. IOS Press, 39, 37-48.).
No entanto, muitos dos fatores supracitados que levam as pessoas com baixa visão a não utilizarem os recursos podem ser minimizados com novas possibilidades em TA. A evolução dos dispositivos de TA, nas últimas duas décadas, foi muito rápida. Quando, por exemplo, foi lançado o CCTV, este era considerado uma revolução em termos de magnificação, mas a princípio era um dispositivo grande e muito difícil de ser deslocado. Com o passar dos anos, foram ocorrendo inovações quanto aos recursos eletrônicos e estes equipamentos foram tomando proporções menores, tornando-se mais versáteis, até chegarem à estrutura dos vídeo-ampliadores. Apesar dos vídeo-ampliadores serem dispositivos recentes, eles já se encontram ameaçados pelos aplicativos de magnificação, digitalizadores e leitores de textos, disponibilizados nos smartphones e nos tablets. A aceitação desses aplicativos e a grande popularização entre as pessoas com deficiência visual se deve às características quase imperceptíveis de um recurso de TA e a fatores econômicos, já que muitos podem ser baixados gratuitamente da internet.
Nesse sentido, acredita-se que a recente e rápida evolução dos recursos eletrônicos e de informática tem dificultado a sua sistematização pelos materiais e profissionais de formação e literatura especializada. A exemplo, há os inúmeros aplicativos de smartphones e tabletes. Assim, a sistematização e a divulgação de informações úteis acerca dessas novas possibilidades de TA apresentam-se como demandas, já que se parte do pressuposto de que estes podem ser mais bem aceitos pela população juvenil em idade escolar. Partindo dessa premissa, faz-se necessário conhecer e caracterizar os aplicativos que assumem função de recursos de TA e vêm sendo utilizados por pessoas com baixa visão. Dessa feita, o presente estudo partiu das questões: Quais têm sido os aplicativos que assumem função de recursos de TA usados pelas pessoas com baixa visão? Esses aplicativos têm atendido a quais necessidades funcionais das pessoas com baixa visão?
Assim, o presente estudo visou identificar e caracterizar funcionalmente, a partir do ponto de vista dos usuários, aplicativos de smartphones e/ou tablets que assumem função de recursos de TA e são utilizados por pessoas com baixa visão.
2 Método
Esta pesquisa é de natureza descritiva, pois pretende investigar uma população amostral com mais de uma variável sem a finalidade de estabelecer relações ou fazer predições, pois se procurou descrever as condições existentes (Sigelmann, 1984Sigelmanm, E. (1984). Tipos de pesquisa: Aspectos metodológicos específicos. Arquivos Brasileiros de Psicologia, Rio de Janeiro, 36(3), 141-155.). O projeto foi submetido e previamente aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) - CAAE: 74755017.8.0000.5504.
2.1 Contexto de pesquisa e participantes
Participaram do estudo 28 pessoas com baixa visão, as quais foram selecionadas em um grupo no WhatsApp composto por 104 integrantes, formado por pessoas com deficiência visual, pais, responsáveis e cônjuges de pessoas nessa condição visual. Foram incluídas, nesta pesquisa, pessoas com baixa visão, com mais de dezoito (18) anos, usuárias de aplicativos de TA em smartphnes ou tabletes, e que consentiram em participar da pesquisa.
Dos participantes, 13 eram mulheres (46%) e 15 homens (54%), com idade média de 35 anos, e intervalo entre 18 e 63 anos, distribuídos pelo território nacional e internacional, tendo representantes de aproximadamente 10 estados, a saber: São Paulo (13), Minas Gerais (6), Paraná (2), Bahia (1), Rio de Janeiro (1), Rio Grande do Norte (1), Rio Grande do Sul (1) Santa Catarina (1), Tocantins (1) e New Jersey-EUA (1). Quanto ao nível de escolaridade, 32% (9) possuíam Ensino Superior completo, 25% (7) Pós-Graduação, 18% (5) Ensino Médio completo, 11% (3) Ensino Superior incompleto, 7% (2) Ensino Técnico, 3,5% (1) Ensino Médio incompleto e 3,5% (1) Ensino Fundamental incompleto.
Em relação à patologia que causou a baixa visão, 96% dos participantes foram afetados pela doença de Stargardt, e, destes, um participante apresentava Stargardt em comorbidade com retinose pigmentar, e 3,5% relataram ter apenas estrabismo e nistagmo. Nesse universo, baseado na acuidade visual, 32% (9) apresentavam perda visual moderada (<20/60 e ≥ 20/200), 46% (13); perda visual grave (<20/200 e ≥20/400); 18% (5) perda visual profunda (<20/400 e ≥ 20/1200); e 3,5% (1) não soube informar.
A Doença de Stargardt é uma distrofia retiniana progressiva, hereditária autossômica recessiva, geralmente bilateral, que, frequentemente, se inicia nas duas primeiras décadas de vida e afeta principalmente a visão central (Aragão, Barreira, & Horlanda Filha, 2005Aragão, R. E. M., Barreira, I. M. A., & Holanda Filha, J. G. (2005). Fundus flavimaculatus e neovascularização subretiniana - relato de caso. Arquivos Brasileiros de Oftalmologia, São Paulo, 68(2), 263-265.). Corroborando com a definição, a idade média de diagnóstico da doença nos participantes da pesquisa foi de 13,5 anos, e 82% afirmaram ter comprometimento apenas na visão central, enquanto 18% disseram ter tanto a visão central quanto a periférica afetadas.
2.2 Instrumentos
O instrumento de coleta de dados foi um roteiro de entrevista semiestruturado, organizado de acordo com as seguintes categorias de análise: identificação dos participantes, levantamento dos aplicativos utilizados e de informações relacionadas à funcionalidade e habilidades de manuseio. O roteiro de entrevista foi submetido ao julgamento de juízes que auxiliaram na (re)formulação. As entrevistas foram realizadas individualmente. Neste artigo, apresentar-se-á dados referentes as duas primeiras categorias.
Quanto aos materiais e aos equipamentos, foram utilizados smartphones com aplicativo WhatsApp e notebook para transcrição das gravações das entrevistas realizadas no espaço virtual do aplicativo.
2.3 Procedimentos de coleta de dados
A coleta de dados foi realizada por meio de entrevistas no espaço virtual do aplicativo WhatsApp. Os objetivos de pesquisa foram apresentados aos integrantes do grupo composto por 104 participantes e, também, foram enviados convites individuais (conversa privada). Atenderam aos critérios de inclusão na pesquisa 28 pessoas, e, conforme adesão, os participantes foram chamados individualmente para uma conversa privada entre pesquisador e sujeito no aplicativo para agendamento da entrevista e aceite do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). Nos horários agendados, as entrevistas foram realizadas usando o recurso de mensagens de voz gravada. Assim, com cada participante, em conversa privada (fora do grupo), a pesquisadora iniciou a entrevista enviando pergunta por pergunta em mensagens de voz gravada, e os participantes responderam às perguntas da mesma forma. Ao enviar uma questão, o participante ouvia a pergunta e, em seguida, respondia via gravação de áudio.
2.4 Procedimento de análise de dados
A pré-análise aconteceu no momento das transcrições, já que, segundo Manzini (2004)Manzini, E. J. (2004). Entrevista semi-estruturada: Análise de objetivos e roteiros. Anais do Seminário Internacional sobre Pesquisas e Estudos Qualitativos (CD-ROM), Bauru, SP, Brasil. e Bogdan e Biklen (1994)Bogdan, R., & Biklen, S. (1994). Investigação qualitativa em educação: Uma introdução à teoria e aos métodos. Porto: Porto Editora., a transcrição da entrevista se constitui como o primeiro momento de análise do pesquisador, pois, enquanto ele transcreve, começa a fazer as primeiras inferências sobre as falas dos participantes. Adotaram-se os seguintes sinais usados em transcrições de informações orais: para pausas (+); supressão de trechos (...); quando não foi compreendida parte da fala e se supôs ter ouvido ( ); quando sílabas ou palavras foram pronunciadas com maior ênfase MAIÚSCULA; e, para inferir alguma colocação do pesquisador, (( )).
Posteriormente à pré-análise, foram analisados os dados de identificação dos participantes da pesquisa a fim de se traçar seu perfil. Os textos das transcrições foram organizados nas seguintes categorias: aplicativos utilizados e funcionalidade, que foram analisadas segundo a técnica de análise do conteúdo descrita por Bardin (2004)Bardin, L. (2004). Análise do conteúdo. Lisboa, Portugal: 70..
3 Resultados e discussões
Foi relatado o uso de 50 diferentes aplicativos para smartphone e tablets utilizados por pessoas com baixa visão para realizarem diferentes tarefas, antes impossibilitadas, ou de esforço dispendioso, devido à condição visual. Entre esses aplicativos, encontram-se os desenvolvidos especificamente para auxiliar pessoas cegas e com baixa visão (aplicativos de TA), os que permitem tornar conteúdos desejados acessíveis, os não específicos para pessoas com baixa visão, mas que suas funções atendem a algumas necessidades desse público, assumindo função de TA, e os que acabam otimizando algumas tarefas desejadas por estarem disponíveis em aparelhos (smartphone e tablets) com diversos recursos de acessibilidade (Quadro 1).
Em relação aos recursos de acessibilidade disponíveis nesses dispositivos, foram citados nove tipos de recursos que são utilizados por essa amostra (Quadro 2). O uso destes recursos foi elencado pela população como o principal diferencial dos smartphones e tablets, uma vez que são eles os responsáveis pelo acesso independente a esses dispositivos, e, consequentemente, aos outros aplicativos ali disponíveis, sejam eles de TA ou não. Os recursos de acessibilidade são usados individualmente ou associados uns aos outros, bem como aos aplicativos de TA. É essa variedade de arranjos possíveis que torna esses dispositivos potencialmente benéficos à população com baixa visão, já que, nessa situação visual, encontramos uma vasta diversidade de condições visuais e, portanto, necessidades variadas de recursos (Laplane & Batista, 2008Laplane, A. L. F., & Batista, C. G. (2008). Ver, não ver e aprender: A participação de crianças com baixa visão e cegueira na escola. Caderno Cedes, Campinas, 28(75), 209-227.).
Os aplicativos e os recursos de acessibilidade listados (Quadros 1 e 2) atendem a necessidades específicas dessa condição visual, tais como: acesso à leitura e à escrita, orientação e mobilidade e atividades de vida diária. Muitos simulam recursos já existentes como lupas eletrônicas, digitalizadores, programas OCR (Reconhecimento Óptico de Caracteres), leitores de textos, geolocalizadores, identificadores de cores, objetos e cédulas, enquanto outros apresentam um caráter inovador, executando funções que não podem ser encontradas em outros dispositivos, como é o caso dos aplicativos que auxiliam a usar o transporte coletivo de forma independente.
Ao se relacionar os aplicativos citados à faixa etária da população, percebe-se que os sujeitos com idade superior a 50 anos citaram um número maior de aplicativos. Esse fato está diretamente relacionado à percepção de recursos que auxiliam a realizar tarefas antes impossibilitadas pela deficiência visual, pois, em consequência de não pertencerem à geração da informática, esses participantes listaram recursos como relógio, agenda, alarme, notas e calculadora. O uso desses aplicativos como recursos de TA foram defendidos pelos usuários de baixa visão, pois eles substituíam recursos anteriormente usados, tais como: relógios sonoros, calculadoras sonoras, agendas e blocos de notas adaptados, entre outros.
Apesar desses aplicativos citados não se constituírem em sua essência como aplicativos de TA, foi possível perceber nas justificativas dos usuários (excerto 1) como estes assumiam características de recursos de TA por estarem disponíveis em dispositivos acessíveis.
Excerto 1: Eu consigo agora, com este celular, através do Voice Over, ler mensagens e passar mensagens. Coisa que eu não conseguia no outro celular. Eu consigo programar o despertador, por exemplo. Eu consigo usar o WhatsApp, mandar mensagens (+). Então, meu Deus, é muito útil o celular pra mim, me dá muita independência. Eu tinha que pedir às pessoas para lerem as mensagens pra mim quando eu recebia ou eu tinha que pedir para programar o despertador, e, hoje, eu consigo fazer tudo sozinha (P 22).
Esses dados demonstram a importância dos recursos elaborados na perspectiva do desenho universal, em que já sejam previstos, na elaboração do próprio equipamento, meios e estratégias que atendam à diversidade das necessidades humanas. A ideologia do desenho universal prevê a criação de recursos, equipamentos e estruturas do meio físico destinadas a serem utilizadas simultaneamente por todas as pessoas, sem necessitar de reformas, adaptações ou recursos adicionais para atender a um grupo específico. Assim, a sua finalidade é simplificar a vida de todos, qualquer que seja a idade, estatura ou capacidade, tornando os produtos, estruturas, comunicação/informação e o meio edificado utilizáveis pelo maior número de pessoas possível a baixo custo ou sem custos extras (Decreto nº 5296, 2004Decreto nº 5296, de 2 de dezembro de 2004. Regulamenta as Leis nos 10.048, de 8 de novembro de 2000, que dá prioridade de atendimento às pessoas que especifica, e 10.098, de 19 de dezembro de 2000, que estabelece normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida, e dá outras providências. Recuperado em 03 de Fevereiro de 2018 de http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5296.htm.
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; Lima, 2007Lima, N. M. (2007). Legislação Federal Básica na área da pessoa portadora de deficiência. Brasília: Secretaria Especial dos Direitos Humanos, Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência.). Com base nessa concepção, pode-se inferir que os smartphones e os tablets, por meio dos seus recursos de acessibilidade, têm possibilitado acesso e uso a pessoas com deficiência visual, independentemente da sua condição e de seu desempenho visual, atendendo, portanto, aos princípios do desenho universal.
A respeito das atividades e das tarefas que esses aplicativos têm auxiliado, destacaram-se as tarefas relacionadas à leitura, seja de cunho acadêmico, laboral ou cotidiano. Outras demandas são atendidas por aplicativos de smartphones, como identificação de objetos, cores, cédulas, orientação e mobilidade, assim como as relacionadas ao trabalho, entretenimento, estética, culinária, domésticas entre outras, que utilizam outros aplicativos e são possíveis graças aos recursos de acessibilidade do celular. O Quadro 3 apresenta as atividades e as tarefas mediadas pelo uso dos aplicativos.
Atividade e tarefas realizadas por pessoas com baixa visão com auxílio de aplicativos de smartphone e tablets
A relação de aplicativos/tarefas denota algumas tendências em relação à leitura, geralmente aplicativos de ampliação, como os que simulam lupas eletrônicas, usados para realizar leituras curtas, estáticas e rápidas, enquanto os leitores de texto se encarregam de leituras longas que exigem maior esforço visual. Outro dado interessante quanto aos aplicativos de magnificação é a versatilidade de tarefas que eles auxiliam, atendendo às necessidades de leitura de conteúdos próximos e distantes dos olhos. Pessoas com baixa visão grave e profunda substituem os ampliadores eletrônicos por aplicativos que capturam via fotografia conteúdos textuais impressos, fazem o OCR e realizam a leitura sonora.
Ademais, os aplicativos auxiliam em tarefas cotidianas, sejam elas laborais, domésticas ou de estética. Os aplicativos são usados como um maximizador visual nessas atividades, ampliando imagens e objetos desejados, identificando produtos, utensílios domésticos, cores e cédulas, bem como possibilitando a esse público participar ativamente de atividades relacionadas à era digital, sejam elas relacionadas ao acesso rápido e instantâneo a informações variadas, às interações via redes sociais, ao acesso e ao controle de informações em banco de dados digitais, entre outras. As tarefas de orientar-se e locomover-se no espaço, caminhando ou usando o transporte público, também são auxiliadas por esses aplicativos; contudo, estes foram citados geralmente por usuários que residiam em capitais, enquanto as pessoas com baixa visão do interior apontaram a necessidade desses recursos (aplicativos que auxiliam no embarque do transporte público) como demandas para auxiliar na sua independência no deslocamento.
O auxílio às atividades de leitura foi unanimemente citado pelos participantes. As dificuldades quanto a essa tarefa são destacadas como as mais comuns a pessoas com baixa visão (Smith, 2008Smith, D. D. (2008). Introdução à Educação Especial - Ensinar em tempos de inclusão. Porto Alegre: Artmed.; Alves et al., 2009Alves, C. C. F., Monteiro, G. B., Rabello, S., Gasparetto, M. E., & Carvalho, K. M. de (2009). Assistive technology applied to education of students with visual impairment. Pan American Journal of Public Health, Washington, 26(2), 148-152.; Rabello et al., 2014Rabello, S., Gasparetto, M. E. R. F., Alves, C. C. de F., Monteiro, G. B. M., & Carvalho, K. M. de (2014). The influence of assistive technology devices on the performance of activities by visually impaired. Revista Brasileira de Oftalmologia (Impresso), Rio de Janeiro, 73, 103-107.). Pessoas com baixa visão podem apresentar dificuldades de leitura mesmo auxiliadas por recursos ópticos e não-ópticos (Rabello et al., 2014Rabello, S., Gasparetto, M. E. R. F., Alves, C. C. de F., Monteiro, G. B. M., & Carvalho, K. M. de (2014). The influence of assistive technology devices on the performance of activities by visually impaired. Revista Brasileira de Oftalmologia (Impresso), Rio de Janeiro, 73, 103-107.; Alves et al., 2009Alves, C. C. F., Monteiro, G. B., Rabello, S., Gasparetto, M. E., & Carvalho, K. M. de (2009). Assistive technology applied to education of students with visual impairment. Pan American Journal of Public Health, Washington, 26(2), 148-152.), dificuldades em ler o que escreveu, e na compreensão de textos quando a leitura é realizada por outra pessoa, uma vez que cada pessoa realiza a leitura de maneira diferente, tanto em relação ao tempo quanto às inferências realizadas, que são individuais e modelam o sentido do que se lê (Monteiro & Carvalho, 2013Monteiro, M. M. B., & Carvalho, K. M. M. (2013). Avaliação da autonomia em atividades de leitura e escrita de idosos com baixa visão em intervenção fonoaudiologia: Resultados preliminares. Revista Brasileira de Geriatria e Gerontologia, Rio de Janeiro, 16(1), 29-40.). A fim de superar essas dificuldades, Alves et al. (2009)Alves, C. C. F., Monteiro, G. B., Rabello, S., Gasparetto, M. E., & Carvalho, K. M. de (2009). Assistive technology applied to education of students with visual impairment. Pan American Journal of Public Health, Washington, 26(2), 148-152. e Rabello et al. (2014)Rabello, S., Gasparetto, M. E. R. F., Alves, C. C. de F., Monteiro, G. B. M., & Carvalho, K. M. de (2014). The influence of assistive technology devices on the performance of activities by visually impaired. Revista Brasileira de Oftalmologia (Impresso), Rio de Janeiro, 73, 103-107. apontam para os benefícios do uso combinado de recursos de Tecnologia da Informação e comunicação (TIC), como ampliadores de tela e leitores de tela e textos em computadores. Apesar das autoras não mencionarem o uso de aplicativos de smartphones e tablets como recursos de TIC, esta pesquisa corrobora com os apontamentos realizados, ampliando o olhar dos profissionais da reabilitação, da saúde e da educação para as vantagens do uso desses dispositivos no acesso à leitura e à escrita.
Ao compararem recursos convencionais (lupas ópticas, recursos não ópticos, eletrônicos e de uso no computador) com os aplicativos de smartphone e tablets, também foi possível destacar padrões quanto ao uso dos aplicativos. Pessoas com baixa visão que têm acesso a recursos convencionais consideram os aplicativos como recursos complementares na realização de tarefas pretendidas, apontando como principal vantagem dos aplicativos a praticidade, a convergência (uso combinado de diversos aplicativos) e a portabilidade. Entre as desvantagens, destacam a falta de qualidade dos aplicativos quando comparados a recursos especificamente desenvolvidos para assistir tarefas pretendidas por pessoas nessa condição visual. Todavia, pessoas com baixa visão que não possuem acesso a recursos convencionais mais sofisticados encontram nos aplicativos a possibilidade de solucionar a maioria das dificuldades práticas do seu dia a dia.
Assim, observa-se que, para pessoas com baixa visão que têm acesso a recursos convencionais, os aplicativos de smartphones e tablets assumem função secundária em seu cotidiano, sendo utilizados mais em tarefas curtas e rápidas; enquanto para as que não têm acesso, não se adaptaram ou os recursos convencionais não atendem as suas necessidades (baixa visão profunda), os aplicativos assumem importância central nas tarefas pretendidas. Esse padrão é destacado nos excertos 2 e 3:
Excerto 2: O celular tem uma praticidade infinitamente maior, é muito mais fácil eu levar só o celular, que levar uma lupa, um monóculo e etc., mas dependendo da tarefa que eu vou realizar, eu não levo só o celular. Eu levo a lupa, o monóculo e o celular. Então, se eu vou passear, se eu vou num lugar que eu quero perceber mais as coisas, eu levo meu monóculo, se eu vou num lugar que eu sei que vou ter que ler mais coisas, eu levo minha lupa eletrônica. Então, eu acho que um não substitui o outro AINDA, mas um complementa o outro, principalmente por conta da praticidade (...). Os aplicativos ainda não conseguem ter a mesma qualidade dos recursos convencionais, uma lupa eletrônica é muito melhor que uma lupa do celular por exemplo (P8).
Excerto 3: As vantagens são inúmeras. A questão de praticidade. Questão até de volume de coisa que você carrega, porque igual, antes eu tinha que andar com os óculos, com a lupa, que, no meu caso, é uma lupa pedra que é pesada e volumosa. Então eu andava com os dois na bolsa o tempo todo e utilizava só os dois o tempo todo para leitura de qualquer coisa. A questão de custo, porque estes recursos não são baratos, os óculos ficam caros, a lupa também é cara (...) e os aplicativos normalmente são gratuitos. Pelo menos os que eu uso são gratuitos. E questão também de qualidade, você vê as coisas muito mais nítidas. O zoom por exemplo ele amplia muito, então até uma coisa pequenininha eu consigo ver. Outra vantagem é a facilidade de acesso. Hoje em dia todo mundo tem um smartphone, e você poder ter este recurso no celular facilita muito. Porque, às vezes, as pessoas poderiam não ter acesso a uma lupa, telelupa, óculos de prisma e outros recursos que são coisas mais caras. Então o aplicativo acaba igualando as pessoas, na facilidade de ter aquele recurso, de forma mais fácil e de baixo custo (...). Eu acho que os que têm desvantagem são os convencionais, por serem caros, por serem grandes, por serem pouco discretos (P5).
Considerando as vantagens apontadas quanto à praticidade, à facilidade de acesso, aos fatores econômicos, às características menos estigmatizantes, à pluralidade de condições visuais que conseguem atender às dificuldades de acesso à leitura enfrentadas por essa população, grande parte dos participantes relembraram a fase da escolarização, conjecturando as facilidades que esses aplicativos teriam proporcionado se já existissem naquela época. Desse modo, partindo da gama de aplicativos e tarefas desempenhadas levantados nesta pesquisa, e dos problemas levantados nas pesquisas quanto à indisponibilidade, à recusa e à falta de acesso a recursos convencionais de TA nas escolas (Ferroni & Gasparetto, 2012Ferroni, M. C. C., & Gasparetto, M. E. R. F. (2012). Escolares com baixa visão: Percepção sobre as dificuldades visuais, opinião sobre as relações com comunidade escolar e o uso de Tecnologia Assistiva nas atividades cotidianas. Revista Brasileira de Educação Especial, Marília, 18(2), 301-318.; Alves et al., 2009Alves, C. C. F., Monteiro, G. B., Rabello, S., Gasparetto, M. E., & Carvalho, K. M. de (2009). Assistive technology applied to education of students with visual impairment. Pan American Journal of Public Health, Washington, 26(2), 148-152., Rabello et al., 2014Rabello, S., Gasparetto, M. E. R. F., Alves, C. C. de F., Monteiro, G. B. M., & Carvalho, K. M. de (2014). The influence of assistive technology devices on the performance of activities by visually impaired. Revista Brasileira de Oftalmologia (Impresso), Rio de Janeiro, 73, 103-107.; Janial & Manzini, 1999Janial, M. I., & Manzini, E. J. (1999). Integração dos alunos deficientes sob o ponto de vista do direito de escola. In E. J. Manzini (Org.), Integração de alunos com deficiência: Perspectiva e prática pedagógica (pp. 1-25). Marília: Unesp Marília publicações.), os aplicativos de smartphone e tablets revelam seu potencial em solucionar as dificuldades de leitura e escrita enfrentadas por alunos com baixa visão. Assim, fica o desafio de conscientizar a população em geral sobre as potencialidades destes dispositivos, seja na escola ou fora dela, e de elaborar programas de divulgação e ensino destas novas possibilidades em TA.
4 Considerações finais
Os recursos de TA são potencialmente benéficos às pessoas com baixa visão no que diz respeito à ampliação e/ou à substituição das habilidades visuais no desempenho de tarefas pretendidas. No entanto, os recursos convencionais (ópticos, não-ópticos, eletrônicos e de informática) nem sempre estão disponíveis ou seus usuários não se adaptam a eles.
O crescente avanço tecnológico, porém, permite que dispositivos tenham acoplados ao seu sistema operacional, ou disponibilizem em suas lojas virtuais aplicativos adicionais que assistem às pessoas com deficiência no acesso e na realização de diversas tarefas, e, em consequência dos seus benefícios, estes têm ocupado espaço nos recursos de TA usados por pessoas com baixa visão.
Ao se propor a identificar e a caracterizar o novo perfil de recursos de TA em smartphones e tabletes, esta pesquisa identificou 50 aplicativos e nove recursos de acessibilidade usados por pessoas com baixa visão em tarefas de leitura e escrita, cotidianas, laborais, de estética e de navegação. Os aplicativos e os recursos de acessibilidade geralmente são usados de forma combinada, dando inúmeras possibilidades de arranjos que atendem às mais variadas condições visuais, possibilitando a execução de diversas tarefas. Entre as grandes vantagens desses dispositivos, destacam-se os recursos de acessibilidade que permitem o acesso dos usuários com baixa visão e a aquisição de aplicativos de TA. Ao compararem-se os aplicativos de TA aos recursos convencionais, as principais vantagens são a convergência, a portabilidade e as econômicas. Contudo, o usuário que têm acesso a recursos convencionais mais sofisticados delega aos aplicativos um caráter secundário na realização das tarefas, apontando para a baixa qualidade de magnificação e foco dos aplicativos quando comparados aos recursos convencionais.
A partir desse levantamento, foi possível identificar o potencial desses aplicativos na solução de dificuldades enfrentadas por pessoas com baixa visão, bem como retratar como essa população tem se beneficiado de novas possibilidades em TA, e quais as tarefas esses recursos tem auxiliado. O levantamento foi realizado com um grupo heterogêneo quanto à faixa etária, ao desempenho visual, às atividades laborais e acadêmicas; no entanto, seria interessante que houvesse mais diversidade em relação à patologia, o que poderia fornecer um perfil diferente de aplicativos e tarefas. Desta feita, sugerem-se, para futuros estudos, amostras com maior diversidade quanto às causas da baixa visão, além de investimentos, divulgação e programas de ensino para aumentar o uso desses aplicativos.
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Financiamento CAPES/PROEX - Processo nº 23038.005155/2017-67.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Oct-Dec 2018
Histórico
-
Recebido
17 Fev 2018 -
Revisado
03 Maio 2018 -
Aceito
15 Maio 2018