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As contrarreformas e a reprodução social na pandemia da Covid-19

Counter-reforms and social reproduction in the Covid-19 pandemic

Resumo:

Este artigo busca compreender a conjuntura na qual nos encontrávamos quando a pandemia atinge o território brasileiro, procurando analisar suas consequências para a reprodução social tanto do capital, quanto dos trabalhadores. A pesquisa se pauta em estudos bibliográficos e documental, guiando-se nos passos do materialismo histórico-dialético. Busca evidenciar, inicialmente, as transformações no mundo do trabalho que vêm sendo implementadas desde o processo de redemocratização do país. A seguir, procura expor elementos que apontavam para o aumento das desigualdades e a piora das condições de vida dos trabalhadores, além de evidenciar algumas das frações da classe trabalhadora especialmente afetada. Os elementos estruturantes que impactam sobre a reprodução social resultam das contrarreformas implantadas, e não dos impactos da pandemia em si; as ações tomadas para o enfrentamento da crise objetivavam a manutenção do capital, em detrimento do trabalho.

Palavras-chave:
Reprodução social; Contrarreformas; Trabalho

Abstract:

The article seeks to understand the conjuncture in which we found ourselves when the pandemic hits Brazilian territory, seeking to analyze it’s consequences for social reproduction, both for capital and for workers. The research that resulted in the article is based on bibliographic and documentary studies, guided by the steps of historical-dialectical materialism. It seeks to initially highlight the changes in the world of work that have been implemented since the country's redemocratization process. Next, it seeks to expose elements that pointed to the increase in inequalities and the worsening of the living conditions of workers, in addition to highlighting some of the fractions of the working class especially affected. The structuring elements that impact on social reproduction result from the implemented counter-reforms, and not from the impacts of the pandemic itself; the actions taken to face the crisis aimed at maintaining capital, to the detriment of work.

Keywords:
Social reproduction; Counter-reforms; Job

Introdução

Agosto de 2021, por meio da imprensa oficial, faz-se saber que, segundo uma nova publicação da revista Forbes, o Brasil possui 315 nomes na lista de bilionários — 77 a mais que em 2020. Numa das inúmeras reportagens publicadas, podemos ler que os incentivos lançados para combater a crise financeira, agravada pela pandemia da Covid-19, “aqueceram” o mercado de capitais, tendo como consequência o aumento do patrimônio dos chamados super-ricos.

Outro indicador, o índice de Gini, referente ao ano de 2020, aponta para o aumento da massa de capitais nas mãos de poucos bem-aventurados. O coeficiente passou de 88,2 para 89, mostrando uma maior concentração da renda no Brasil. Se em 2019 o grupo dos 1% mais ricos detinham 46,9% da renda nacional, durante a pandemia eles abocanharam 49,6% de tudo que se produziu no País.

Buscar compreender a conjuntura em que nos encontrávamos, quando a pandemia atinge o território brasileiro, permite que analisemos suas consequências para a reprodução do capital e da classe capitalista, e para a reprodução da classe trabalhadora. Apreender que a crise não é somente sanitária, mas sim um momento agudo de crise do capital, e que as medidas tomadas para contorná-la vinham intensificando a expropriação e a exploração sobre a classe trabalhadora, pode contribuir para o entendimento e a superação desse quadro.

A pesquisa que embasa este artigo se pauta em estudos bibliográficos e pesquisa documental, guiando-se nos passos do materialismo histórico-dialético, visando não se limitar à aparência do fenômeno. O fio condutor da análise é a categoria reprodução social compreendida aqui como um conjunto de elementos e práticas coletivas, que propiciam a manutenção diária e geracional tanto da força de trabalho, quanto dos meios de produção — de forma a garantir sua conservação e perpetuação.

O primeiro tópico busca retratar as transformações no mundo do trabalho que vêm sendo implementadas desde o processo de redemocratização do país, evidenciando o processo de centralização de capitais. Na sequência, procura-se assinalar os componentes que apontavam para o aumento das desigualdades e a piora das condições de vida dos trabalhadores, elementos testemunhados com a pandemia, mas não resultado direto da crise sanitária. Evidencia-se, ainda, algumas frações da classe trabalhadora especialmente afetadas, para então apresentar as considerações finais.

As Contrarreformas e a Centralização do Capital

A pandemia deixou algumas coisas bastante evidentes. Primeiro, que o trabalho envolvido na reprodução social, aquelas atividades em que se produz, mantém e substitui a vida, geracionalmente, são os únicos verdadeiramente essenciais para a sociedade (BATTACHARYA, 2020). Trabalhos no ramo de alimentação, limpeza, transportes, educação, saúde e cuidados, mostraram-se os serviços sem os quais não é possível a reprodução da vida. Mesmo nas economias mais avançadas não foi possível suprir por um só dia as necessidades da população sem a utilização da força do trabalho humano, especialmente nos trabalhos voltados à reprodução social.

Em segundo lugar, a pandemia revelou que o sistema do capital está inteiramente voltado à obtenção do lucro, em oposição à manutenção da vida. Bilionários, banqueiros de investimentos e grandes empresários são exemplos daquilo que não tem relevância para o seu enfrentamento. Foram as trabalhadoras e trabalhadores dos serviços de reprodução social que enfrentaram a dramática situação; e ao trabalho deles, deve-se a atenuação de mais esta crise.

É importante assinalar, ainda, que o combate ao vírus e suas consequências — o desenvolvimento de vacinas e sua aplicação, a ampliação do número de leitos, as medidas que asseguraram a liquidez dos grandes capitais e a complementação da renda das famílias — foram ações financiadas, além de grande parte delas ter sido posta em prática pelo setor público. Se deixadas à mercê do mercado, na defesa de seu dogma da oferta e procura e em sua busca cega pelo lucro, os resultados funestos da pandemia teriam sido ainda mais catastróficos.

Com a crise do petróleo nos anos 1970, o capital buscou intensificar formas de extração do mais-valor por meio da intensificação do trabalho, bem como transformar esferas em que atuava o Estado, no sentido de garantir a reprodução social dos trabalhadores em espaços para a geração de mais-valor; grande parte das vezes por meio da privatização destes direitos, agora transmutados em serviços.

Para Corrêa (2020), aCORRÊA, V. O impacto global da pandemia: a humanidade diante de uma bifurcação social. 2020. Elaborado por LEFIS. Disponível em: https://lefis.ufsc.br/2020/10/15/o-impacto-global-da-pandemia-a-humanidade-diante-de-uma-bifurcacao-social/. Acesso em: 07 set. 2021.
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nova agenda do capitalismo tem como alicerce a reestruturação da produção assentada no Toyotismo com a consequente terceirização e precarização das relações trabalhistas, o que implica na imediata retirada de direitos sociais conquistados ao longo de décadas de luta. Segue, também, uma agenda de austeridade incorporada a partir do Consenso de Washington, estabelecendo diretrizes macroeconômicas como forma de obtenção de financiamentos junto a organismos internacionais. Implanta-se, dessa forma, um Estado mínimo para o social e máximo para o capital. Com a queda do muro de Berlim e o fim da experiência socialista na URSS, o capital alegoricamente exclamou sua vitória, e com o discurso da via única logo mostrou o que realmente objetiva, intensificando a exploração sobre a classe trabalhadora e piorando suas condições de vida na maior parte do planeta.

O léxico do programa político neoliberal ecoa em todos os campos da vida social: abertura comercial, disciplina fiscal, privatização, desburocratização, empreendedorismo, desregulamentação, reformas. Segundo Harvey (2016, pHARVEY, D. Reprodução Social. In: HARVEY, David. 17 Contradições e o fim do capitalismo. São Paulo: Boitempo, 2016. p. 169-183.. 176), “parte do ethos e do programa político neoliberal tem sido repassar o máximo possível de custos da reprodução social para a população em geral, com o intuito de aumentar a taxa de lucro do capital reduzindo a carga tributária”. O ideário da agenda neoliberal, tão somente a face mais hodierna do capitalismo que se desenvolveu nos países centrais nas décadas de 1960/70, logo foram adotadas pela classe capitalista brasileira a partir dos anos 1980/90.

Há de se reconhecer que algumas das teses econômicas do ideário neoliberal podem ser observadas durante os governos Figueiredo (1979-1985) e Sarney (1985-1990), mas sua utilização como fio condutor da política governamental, nos seus mais variados campos de atuação, encontra em Collor (1990-1992) seu primeiro representante de fato. Segundo Maciel (2011, p. 102), o Plano Collor I anunciou a aurora da era neoliberal num “ambicioso processo de redefinição do padrão de acumulação capitalista e de ofensiva contra os direitos sociais e trabalhistas.”

A implementação das diretrizes neoliberais naquele período teve como resultado o aprofundamento da recessão, do processo inflacionário, o aumento do desemprego e a precarização das políticas sociais. Em meio a este quadro, a corrupção no governo foi apontada como insustentável, e o presidente foi afastado por meio de impeachment. A diretriz econômica, no entanto, foi mantida.

Apontado como idealizador do plano real, Fernando Henrique Cardoso, sociólogo de formação e identificado por muito tempo com o campo progressista da política, segue a diretriz econômica neoliberal. Tendo como foco o controle inflacionário, estabelece ações como o aumento acelerado das importações e a absorção de recursos externos, sob um ambiente de juros elevados e retração da massa salarial, em sintonia com a cartilha estabelecida pelo FMI, alinhada às prerrogativas elencadas no Consenso de Washington. Foi em seu governo que ocorreu uma reforma sobre o imposto de renda das empresas em que se adotou a isenção sobre lucros e dividendos repassados aos acionistas. Somente esta medida equivale a uma renúncia fiscal estimada em mais de 59 bilhões ao ano, atualmente, inteiramente apropriada pelo capital.

Ainda neste alinhamento, sob o pretexto do inescapável equilíbrio orçamentário, um ajuste fiscal que reduzisse o déficit público, apontado como o principal problema do país, tornou-se um dogma que ainda hoje causa mazelas expressivas aos trabalhadores. Promoveu-se assim a privatização de empresas estatais de energia, telefonia, mineração, infraestruturas de transportes, bancos públicos estaduais, citando somente alguns setores. O mesmo pretexto também viabilizou a aprovação de reformas na previdência social, em seu regime geral e na administração pública (PORTO, 2009PORTO, M. C. da. Estado e neoliberalismo no Brasil contemporâneo: implicações para as políticas sociais. In: JORNADA INTERNACIONAL DE POLÍTICAS PÚBLICAS. São Luís, v. 4, 2009, p. 1-9. 1 CD-ROM. Disponível em: http://www.joinpp.ufma.br/jornadas/joinppIV/eixos/1_Mundializacao/estado-e-neoliberalismo-no-brasil-contemporaneo.pdf. Acesso em: 07 set. 2021
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).

Os investimentos públicos na área social sofreram um estrangulamento inédito. Tal redução orçamentária causou profundas transformações no caráter público dos serviços prestados pelo Estado, tendo em mira sua mercantilização.

Do ponto de vista ideológico, esse modelo econômico deixa de contar com o apoio popular nas quatro eleições seguintes. Do ponto de vista prático, pouca coisa mudou nos governos do campo progressista, naquilo que concerne às diretrizes para a área econômica. Com sua política de conciliação de classes, se manteve a tese da macroeconomia única — não há alternativa. Para Tristão (2011, pTRISTÃO, E. A opção neoliberal do primeiro mandato do governo Lula. SER Social, v. 13, n. 28, p. 104-128, 2011. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/SER_Social/article/view/12684. Acesso em: 8 set. 2021.
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. 113), o tripé econômico neoliberal “se baseia em juros altos/câmbio flutuante/superávit primário, ao qual se soma a “autonomia” do Banco Central (BC) em realizar políticas monetárias”. Todas essas diretrizes mantiveram-se nos governos do Partido dos Trabalhadores (PT).

No que concerne à reprodução social da classe trabalhadora, os avanços mais expressivos no período foram a redução do desemprego, o aumento real do salário mínimo, uma política habitacional, a expansão do financiamento à agricultura familiar, a política afirmativa de acesso à universidade, entre outras ações localizadas. A burguesia nacional, entretanto, foi bastante favorecida. Setores como a construção pesada, a mineração, o agronegócio, a indústria de construção naval, além do setor financeiro, foram deveras beneficiados (COLETTI, 2015COLETTI, C. Desenvolvimentismo e neoliberalismo no Brasil. Revista de Direito, v. 15, n. 23, p. 29-48, 2015. Disponível em: https://revistas.anchieta.br/index.php/RevistaDireito/issue/view/32/25. Acesso em: 08 set. 2021.
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), com taxas de juros subsidiadas, investimentos públicos em grandes obras, política externa de apoio à exportação e desonerações tributárias.

No governo Lula, foi aprovada a reforma da Previdência para os servidores públicos por meio da Emenda Constitucional (EC) n. 41, que atacou diretamente a integralidade salarial e favoreceu os Fundos de Pensão, em clara opção pelo capital em detrimento do trabalho. Por meio da EC n. 40, garantiu-se a autonomia operacional do Banco Central, presidido na época por Henrique Meirelles. Aprovou-se a Lei de Falências, as parcerias público-privadas foram regulamentadas com a Lei nº 11.079/2004 (TRISTÃO, 2011TRISTÃO, E. A opção neoliberal do primeiro mandato do governo Lula. SER Social, v. 13, n. 28, p. 104-128, 2011. Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/SER_Social/article/view/12684. Acesso em: 8 set. 2021.
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).

No campo das políticas sociais, programas como o Bolsa Família e o Fome Zero, diferentemente do que ocorre com os benefícios da Seguridade Social, não se configuram como direitos — mas tem um caráter meramente compensatório — não tendo como referência o salário mínimo e, o que pode ser ainda mais ruinoso, podendo ser extintos a qualquer momento, como de fato ocorreu.

Na educação, programas como o FIES e o PROUNI transferiram grandes somas de recursos públicos para grupos privados que atuam no mercado de capitais, em detrimento de políticas permanentes de fortalecimento das universidades públicas, permitindo ao capital uma expansão sem igual sobre o ensino superior e a mercantilização sem precedentes do setor.

Já no governo de Dilma Rousseff, o crescimento econômico brasileiro perdeu vigor, tanto por razões externas como por elementos do mercado interno. A despeito disso, com taxas de desemprego ainda em queda e inflação sob controle, mais uma vez o projeto “neodesenvolvimentista” é vencedor nas urnas, ainda que com pequena margem.

Corolário destas políticas, ocorreram avanços importantes para os trabalhadores durante os governos do PT; para o capital, este avanço foi extraordinário. Considerando ainda a lista de bilionários da revista Forbes, em 2003 o país contabilizava cinco brasileiros com patrimônio superior a 1 bilhão de dólares. Na edição de 2014, a revista registrou 65 nomes nesse grupo. O capital, no entanto, deixou de acreditar na postura de conciliação, iniciando um processo de contrarreformas que visava o desmonte das políticas sociais conquistadas desde os anos 1930 e 1940, passando pela Constituição de 1988, e não estava disposto a esperar mais (DELGADO; NASCIMENTO; SILVA, 2020).

Sem o apoio do Congresso Nacional, e se mostrando reticente a referendar as reformas exigidas pelas frações de classe ligadas ao capital internacional, a política de conciliação de classes entra em colapso e o golpe jurídico parlamentar é colocado em prática. Ainda, importante salientar que a suposta violação cometida, que afastou a presidente, refere-se a crimes de “responsabilidade fiscal”.

Logo após o golpe, o governo de Michel Temer retoma o projeto neoliberal parcialmente interrompido, e as reformas antissociais são aprovadas com urgência - todas em benefício do capital. Segundo Delgado et al. (2020), aDELGADO, G. de O.; NASCIMENTO, G. do; SILVA, R. M. da. O governo Temer e o avanço autoritário das contrarreformas no campo educacional. Marx e Marxismo. Niterói: Universidade Federal Fluminense, publicação do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Marx e Marxismo, v. 8, n. 15, 2020. p. 335-358. primeira ação nesse sentido é colocada em pauta logo em junho de 2016, apenas um mês após o afastamento e ainda na condição de interino, no fim do mesmo ano foi publicada como EC nº 95 - a “PEC do Fim do Mundo”. Tal emenda permitiu o congelamento por 20 anos dos gastos públicos em políticas sociais.

Em 2017, também é aprovada a Contrarreforma Trabalhista. Por meio deste (des)ordenamento jurídico, o capital garantiu a desregulamentação das leis de proteção ao trabalho. De um só golpe foi concedida a burla da legislação, pelo instrumento do “acordado sobre o legislado” que aparece sob o neologismo flexibilização. Na mesma oportunidade, foram regulamentados o trabalho intermitente, o home office, o banco de horas, a redução do tempo de intervalo para o almoço, o parcelamento das férias, entre outros pontos. Todos estes retrocessos sob o falacioso argumento de que, com as mudanças, empregos seriam gerados.

Depois de um conturbado processo eleitoral, com flagrante interferência do poder judiciário e disseminação de notícias falsas em massa, o projeto político do capital se mantém no poder. No dia em que toma posse, Jair Messias Bolsonaro assina a Medida Provisória (MP) 870, que extingue o Ministério do Trabalho. Esse, passa a fazer parte do Ministério da Economia, uma pasta nas mãos do “Chicago boy” Paulo Guedes.

Ainda no início do seu mandato, foi aprovada a Contrarreforma Previdenciária. Como traço comum, esta também teve como cerne a retirada de direitos dos trabalhadores. Ampliou a idade mínima para o acesso à aposentadoria — sobretudo para as mulheres — e suprimiu o pedido somente por tempo de contribuição. Aumentou o tempo mínimo de contribuição, reduziu o valor do benefício, entre outras mudanças. Considerando apenas a contribuição para algum instituto de previdência, dos 92,2 milhões de pessoas ocupadas no primeiro trimestre de 2020, 33,8 milhões eram não contribuintes1 1 Segundo dados extraídos da plataforma SIDRA com base na PNAD Contínua Trimestral (IBGE, 2022a). . Ou seja, considerando-se a manutenção deste quadro, a maior parte dos trabalhadores informais não terá acesso à aposentadoria pelas regras previdenciárias atuais.

Realizamos essa digressão histórica buscando entender como o grupo dos 1% mais ricos conseguiram se apropriar de metade da renda nacional, conforme apontamos anteriormente. Como demonstramos até aqui, esse disparate não foi ocasionado pela pandemia, mas sim por um conjunto de políticas implementadas e praticadas ao longo das últimas décadas. Portanto, almejava-se tal resultado. Vamos voltar nossa atenção agora aos resultados dessas políticas para a classe trabalhadora e seus efeitos sobre a reprodução social.

Estamos todos no mesmo barco?

No Brasil, não alcançamos um Estado de bem-estar social. Ainda assim, desde os anos 1990, temos assistido uma incessante investida contra a proteção ao trabalho, como forma de incrementar a extração do mais-valor. Ainda que o discurso oficial apregoe uma geração mais facilitada de empregos com a precarização ou a burla dos direitos conquistados pelos trabalhadores, os indicadores dos próprios aparelhos de Estado revelam uma outra realidade, conforme podemos observar na Figura 1.

Figura 1
- Taxa de desocupação, 1º trimestre de 2016 - 2º trimestre 2021

Desde o golpe político-judicial que assinalou o fim da política de conciliação de classes, a taxa de desocupação nunca foi inferior a 11%. Mesmo com ressalvas quanto à metodologia aplicada, é importante observar como a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua apresenta aumento da desocupação desde janeiro de 2020, alcançando 14,6% em setembro do mesmo ano. No primeiro trimestre de 2021 foi ainda pior chegando a 14,7%, seu recorde histórico. Isso representa 14,8 milhões de brasileiros sem possibilidades de adquirir os itens mínimos para a sua subsistência.

Em fevereiro de 2020, quando foi registrado o primeiro caso de Covid-19 no Brasil, já se contabilizavam 12,3 milhões de desempregados sem nenhuma influência que pudesse ser atribuída à pandemia. Se considerarmos o resultado do primeiro trimestre de 2021, uma parte do problema pode ser atribuído aos reflexos da pandemia na retração do emprego, no entanto, o patamar de 11% já estava colocado desde 2016. A pandemia vem, portanto, agravar um quadro que já era desolador.

Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde classifica o novo Coronavírus como pandemia, cobrando uma maior ação por parte dos governos em todo o mundo. O Ministério da Saúde na mesma data baixa a portaria nº 356, que estabelece medidas para o enfrentamento da emergência, prevendo a necessidade de isolamento e quarentena da população. No dia 24 do mesmo mês, o Banco Central anuncia a liberação de 1,2 trilhão de reais, visando garantir que as instituições financeiras tenham recursos para combater os efeitos da pandemia.

As ações que visaram proteger os empregos dos trabalhadores, por ironia do destino, seriam publicadas em 1º de abril daquele ano. Por meio da MP 936/2020 foram disciplinados os casos de redução da jornada de trabalho, com redução proporcional dos salários ou até mesmo a suspensão do contrato de trabalho. Em contrapartida, foram estabelecidas cotas de complementação por parte do governo federal sobre o seguro-desemprego a que os trabalhadores teriam direito num eventual desligamento. Nos casos de suspensão do contrato, o trabalhador teve direito a receber na integralidade o valor correspondente do seguro-desemprego que lhe era devido. A perversidade aqui reside no fato de que, no ano de 2020, o teto deste benefício era de R$ 1.813,03.

Inicialmente prevista para durar 60 dias nos casos de suspensão do contrato, e de 90 dias para os casos de redução, conforme estabelecido na Lei nº 14.020/2020 que instituiu o Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda — apelidado BEm (de Benefício Emergencial) — logo ambas as modalidades foram prorrogadas para um período de até 120 dias por meio do Decreto nº 10.422/2020. Em poucas palavras, o resultado do BEm, no que diz respeito aos trabalhadores, foi a redução salarial e a consequente piora nas suas condições de vida. Isso ocorreu sob o falacioso argumento de uma pretensa “estabilidade” no emprego, que não passou do estabelecimento de uma indenização em caso de descumprimento do acordo por parte do empregador. Deve-se considerar, ainda, que este programa se aplicou somente aos trabalhadores formais.

Os trabalhadores informais somavam, em fevereiro de 2020, um contingente de 38 milhões de pessoas segundo o IBGE. É fundamentalmente a essa fração da classe trabalhadora que se destinou o Auxílio Emergencial. Criado para atender as pessoas que veriam desaparecer qualquer estratégia de auferir alguma renda, este auxílio foi fundamental para garantir a compra de itens essenciais à subsistência.

De abril a dezembro de 2020, o Auxílio Emergencial permitiu as condições mínimas de sobrevivência a 67,9 milhões de brasileiros, um terço da população do País, ao custo aproximado de 300 bilhões de reais, um quarto do que foi disponibilizado ao capital financeiro. Durante a vigência deste auxílio, os níveis de desigualdade de renda e o número de pessoas em situação de extrema pobreza reduziram a patamares nunca antes alcançados no País (NASSIF-PIRES et al., 2021NASSIF-PIRES, L.; CARDOSO, L.; OLIVEIRA, A. L. M. de. Gênero e raça em evidência durante a pandemia no Brasil: o impacto do Auxílio Emergencial na pobreza e extrema pobreza. (Nota de Política Econômica nº 010). MADE/USP, 2021. Disponível em: https://madeusp.com.br/publicacoes/artigos/genero-e-raca-em-evidencia-durante-a-pandemia-no-brasil-o-impacto-do-auxilio-emergencial-na-pobreza-e-extrema-pobreza/. Acesso em: 22 set. 2021.
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).

No entanto, diante da economia política e seus dogmas, e tendo a EC-95 como parâmetro-base, a alimentação não é vista como um direito humano. Ainda que o auxílio tenha apresentado resultados formidáveis na redução da insegurança alimentar, confrontado com os ditames do capital no advento de 2021 — pior momento da pandemia no Brasil até o presente momento — a iniciativa perdeu o fôlego.

Nos três primeiros meses de 2021 não houve pagamento do Auxílio Emergencial. Como essa população não tinha uma alternativa de renda, viu-se forçada a arriscar se expor ao vírus ou morrer de inanição. O número de mortes diárias começa a apresentar um aumento considerável no fim de fevereiro, chegando ao seu ápice em abril. Novas parcelas do Auxílio passam a ser feitas em abril, para um público menor, e com valores bastante inferiores aos praticados anteriormente: “[...] os valores foram reduzidos para R$ 250, em média, variando entre R$150 e R$375, de acordo com a composição familiar dos domicílios: R$150 mensais para domicílios unipessoais, R$250 para domicílios com mais de uma pessoa e R$375 para mães solo” (NASSIF-PIRES et al., 2021, pNASSIF-PIRES, L.; CARDOSO, L.; OLIVEIRA, A. L. M. de. Gênero e raça em evidência durante a pandemia no Brasil: o impacto do Auxílio Emergencial na pobreza e extrema pobreza. (Nota de Política Econômica nº 010). MADE/USP, 2021. Disponível em: https://madeusp.com.br/publicacoes/artigos/genero-e-raca-em-evidencia-durante-a-pandemia-no-brasil-o-impacto-do-auxilio-emergencial-na-pobreza-e-extrema-pobreza/. Acesso em: 22 set. 2021.
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. 3).

Os resultados apresentados durante a vigência do auxílio de R$600 foram suficientes para reestabelecer discussões acerca da necessidade de uma garantia de renda mínima para as famílias, por meio de programas de transferência de renda, ou seja, de garantias da reprodução social deste público, inviabilizadas por conta da adoção de políticas econômicas que só interessam ao capital. O orçamento do benefício foi reduzido dos quase 300 bilhões de reais gastos em 2020 para 44 bilhões em 2021. Trata-se fundamentalmente de uma escolha da política econômica pautada na redução dos gastos sociais, e não uma consequência da pandemia.

A inflação também exerce pressão sobre o poder de compra das famílias dos trabalhadores. Os dois indicadores elaborados pelo IBGE, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) e o Índice Nacional de Preços ao Consumidor (INPC), como podemos observar na Figura 2, apresentam o seguinte comportamento2 2 Dados oficiais extraídos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística sobre INPC e ICPA. (IBGE, 2022b). :

Figura 2
- Comparativo IPCA e INPC - 2019/2020/2021

A inflação, como vemos, segue uma tendência de elevação no período destacado. Uma diferença substancial entre os dois indicadores se refere ao público a quem representam. Enquanto o IPCA, índice oficial da inflação utilizado pelo governo federal, busca representar uma cesta de produtos e serviços para famílias que percebem entre 1 e 40 salários mínimos, o INPC se refere a famílias que auferem entre 1 e 5 salários mínimos. Na última Pesquisa de Orçamentos Familiares divulgada pelo IBGE, mais de metade das famílias estão inseridas nesta faixa de renda. Este grupo é singularmente vulnerável à variação de preços, sobretudo dos grupos alimentação, transportes e medicamentos, o que corrobora em uma piora mais significativa na manutenção da reprodução social destes trabalhadores em particular.

O capital financeiro tem comportamento distinto frente à inflação crescente. No ano de 2020 a soma dos lucros contábeis dos quatro maiores bancos do país foi de 61,6 bilhões. Ainda que o ganho destas instituições seja significativo, maior que todo o orçamento destinado ao auxílio emergencial em 2021, ele foi 24,4% menor na comparação com os valores de 20193 3 Levantamentos feito pela consultoria de informações financeiras Economatica com base nos demonstrativos financeiros entregues à Comissão de Valores imobiliários dos seguintes bancos: Bradesco, Banco do Brasil, ItauUnibanco e Santander. (ECONOMATICA INSIGHTS, 2021). , quando os bancos tinham batido seu recorde de lucro em valores nominais. Por razão da pandemia, não foi possível atingir as expectativas do mercado financeiro. Já no primeiro trimestre de 2021 estes mesmos bancos apresentaram lucro de 18,6 bilhões, no segundo trimestre 23,1 bilhões — terceiro melhor resultado da série histórica que começa em 2009.

Grande parte desta resposta se originou na redução de despesas, via demissão de trabalhadores naquilo que as instituições financeiras chamam de “migração para o formato digital”, e o fechamento de agências4 4 Em estudo intitulado DESEMPENHO DOS BANCOS EM 2020, o DIEESE apurou que CEF, Santander, Itaú e Bradesco fecharam 1.376 agências e extinguiram 12.874 postos de trabalho em meio a pandemia, segundo informações das próprias instituições. . Tendo sido o primeiro setor a receber auxílio do Estado durante a pandemia, a receita das operações de crédito cresceu durante esse período. Ou seja, o aumento do desemprego via introdução de novas tecnologias, a renúncia fiscal somada à ajuda financeira por parte do governo garantiu a solvência das instituições financeiras e de seus operadores, em detrimento da maioria absoluta da população.

Assim como ocorre com a inflação, a reprodução social dos trabalhadores em seu conjunto não foi afetada da mesma maneira durante a pandemia. Há frações da classe que foram especialmente impactadas, uma vez que apresentam maior fragilidade em consequência da forma capitalista de exploração de sua força de trabalho. A pandemia evidenciou qual classe está mais vulnerável à infecção e a perecer em decorrência da Covid-19 e, dentro desta classe, quais são as frações mais expostas ao vírus.

Conforme artigo de Vendramini e Conde (2020)VENDRAMINI, C. R.; CONDE, S. F. Vítimas do coronavírus: A classe trabalhadora imigrante. Desacato, 2020. Disponível em: https://desacato.info/vitimas-do-coronavirus-a-classe-trabalhadora-imigrante-por-celia-vendramini-e-soraya-franzoni-conde/. Acesso em: 11 fev. 2021.
https://desacato.info/vitimas-do-coronav...
naqueles países onde a testagem e o rastreamento apresentam dados mais confiáveis, foi possível estabelecer clara correlação de classe entre os infectados. Mesmo em Nova Iorque, cidade modelo da mundialização do capital e epicentro mundial da pandemia durante um dilatado período, eram maiores os números de infectados nos bairros populares — nestes bairros entre os negros, imigrantes e mulheres — em funções extenuantes e com contratos, quando existiam, precários. Muitos deles em atividades diretamente ligadas à reprodução social, como serviços de alimentação, limpeza e cuidados de crianças e idosos, sem, no entanto, terem acesso aos serviços mais básicos de saúde.

O número de desempregados no Brasil reflete a desigualdade de gênero. Ainda que as taxas de desocupação tenham aumentado para ambos os sexos, para os homens essa taxa passou de 10,4% para 12,2%, comparando o primeiro trimestre de 2020 com o mesmo período de 2021. Para as mulheres essa taxa passou de 14,5% para 17,9% no período, apesar de apresentarem média de anos de escolaridade maior5 5 Realidade observada pelo IBGE em levantamento de 2018. Com dados de 2016, a frequência escolar líquida das mulheres era de 73,5%, enquanto a dos homens era de 63,2%. Na faixa etária dos 25 aos 44 anos, 21,5% das mulheres tinham graduação completa, contra 15,6% entre os homens. Ainda assim, elas ganham, em média, 76,5% dos rendimentos dos homens (PERET, 2018). . A taxa de desemprego entre as mulheres é reiteradamente mais elevada, como podemos observar no Gráfico 1.

Gráfico 1
- Taxa de desocupação por gênero - Brasil

Devemos ressaltar que a maior parte dos trabalhos de reprodução social — ensino, limpeza, alimentação, saúde — são fornecidos pelas mulheres da classe trabalhadora.

Estabelecendo um recorte pelo critério gênero, Nassif-Pires et al. (2021)NASSIF-PIRES, L.; CARDOSO, L.; OLIVEIRA, A. L. M. de. Gênero e raça em evidência durante a pandemia no Brasil: o impacto do Auxílio Emergencial na pobreza e extrema pobreza. (Nota de Política Econômica nº 010). MADE/USP, 2021. Disponível em: https://madeusp.com.br/publicacoes/artigos/genero-e-raca-em-evidencia-durante-a-pandemia-no-brasil-o-impacto-do-auxilio-emergencial-na-pobreza-e-extrema-pobreza/. Acesso em: 22 set. 2021.
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observaram que as mulheres apresentam maiores taxas de pobreza em relação aos homens em 2020, e que mais mulheres se encontram em situação de extrema pobreza do que homens. Para o ano de 2021 com valores reduzidos do Auxílio Emergencial, ao mesmo tempo em que se restringiu o número de beneficiados, a situação se agravou ainda mais.

Ao fazer o recorte por cor ou raça, os dados da PNAD-C trimestral trazem o retrato da taxa de desocupação para o Brasil exposto no Gráfico 2.

Gráfico 2
- Taxa de desocupação por cor ou raça - Brasil

Como podemos observar, as taxas de desemprego entre os trabalhadores pardos e pretos é sempre superior à média da população branca no País. No primeiro trimestre de 2020, a taxa de desocupação entre os brancos era de 9,8%, alcançava 14% entre os pardos enquanto a população preta já convivia com 15,2% de desocupação. No mesmo trimestre em 2021, esses números subiram para 11,9% entre os brancos, 16,9 entre os pardos e 18,6% entre os trabalhadores pretos. Examinando novamente o levantamento de Nassif-Pires et al. (2021)NASSIF-PIRES, L.; CARDOSO, L.; OLIVEIRA, A. L. M. de. Gênero e raça em evidência durante a pandemia no Brasil: o impacto do Auxílio Emergencial na pobreza e extrema pobreza. (Nota de Política Econômica nº 010). MADE/USP, 2021. Disponível em: https://madeusp.com.br/publicacoes/artigos/genero-e-raca-em-evidencia-durante-a-pandemia-no-brasil-o-impacto-do-auxilio-emergencial-na-pobreza-e-extrema-pobreza/. Acesso em: 22 set. 2021.
https://madeusp.com.br/publicacoes/artig...
, agregando gênero e raça, vamos constatar a maior vulnerabilidade social entre as mulheres pretas e pardas no país. Com base nos dados levantados, as autoras concluem que esta fração da classe apresenta as maiores taxas de pobreza e extrema pobreza em todos os cenários observados.

Atentando-se agora a uma outra fração dos trabalhadores — os migrantes — encontramos frequentemente o seguinte quadro. Os migrantes costumam ocupar os piores postos de trabalho, são funções mal remuneradas e socialmente desvalorizadas. Grande parte do trabalho exercido por eles é feito em condições precárias, seja do ponto de vista da proteção da legislação, seja da segurança e da saúde. Por conta dos gastos com aluguéis, transporte e alimentação, reiteradamente se submetem a longas jornadas de trabalho, a jornadas duplas, trabalhando aos finais de semana e feriados. Devido a isso, praticamente desconhecem o lazer.

Apesar de todos seus esforços e sacrifícios, durante a pandemia tomamos conhecimento das condições, terrivelmente precárias, a que está submetida a reprodução destes trabalhadores e da sua vulnerabilidade por conta da forma de organização social imposta pelo capital.

Já em maio de 2020, muitos imigrantes brasileiros se acharam sem condições de se manter nos Estados Unidos da América pela paralização de suas atividades em resposta à pandemia que se agravara naquele país. Como muitos estavam indocumentados, não foi possível a eles recorrer à ajuda das autoridades locais. Conforme reportagem de Macedo (2020)MACEDO, L. Com coronavírus, EUA acabaram para o imigrante. Está insustentável', diz mineiro que vai voltar ao Brasil. G1, 2020. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/05/02/com-coronavirus-eua-acabaram-para-o-imigrante-esta-insustentavel-diz-mineiro-que-vai-voltar-ao-brasil.ghtml. Acesso em: 29 set. 2021.
https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/...
, muitos já relatavam a exploração a que estavam submetidos antes mesmo da pandemia, tendo agora que realizar empréstimos para a compra de passagens aéreas, buscando retornar ao Brasil, e contavam com a ajuda de Organizações Não Governamentais para se alimentar.

No Brasil, uma onda de migrações foi observada a partir de maio, ainda no início da crise pandêmica. Segundo reportagem de Schmitt (2020)SCHMITT, G. Desemprego causado por coronavírus provoca êxodo para nordeste. Época, 2020. Disponível em: https://epoca.globo.com/brasil/desemprego-causado-por-coronavirus-provoca-exodo-para-nordeste-24440428?utm_source=Whatsapp&utm_medium=Social&utm_campaign=compartilhar. Acesso em: 03 jul. 2020.
https://epoca.globo.com/brasil/desempreg...
, muitos migrantes nordestinos começavam a retornar aos seus locais de origem, buscando a ajuda de familiares. O desemprego a que se viram expostos não lhes proporcionou uma alternativa. Por conta do risco de contaminação e da redução e interrupção das viagens rodoviárias interestaduais, muitos foram forçados a fretar ônibus de empresas de transporte informais, além de terem que negociar com os governantes locais para poderem regressar.

Situação ainda pior foi registrada entre os imigrantes estrangeiros. Em fiscalização promovida em São Paulo, foram encontradas trabalhadoras migrantes bolivianas em condições análogas à escravidão. Em oficinas de costura que também serviam de residência, muitas trabalhavam em longas jornadas que chegavam a 14 horas diárias e recebiam valores inferiores a um salário mínimo (LAZZERI, 2020LAZZERI, T. Trabalho escravo, despejos e máscaras a R$ 0,10: pandemia agrava exploração de migrantes bolivianos em SP. Reporter Brasil, 2020. Disponível em: https://reporterbrasil.org.br/2020/06/trabalho-escravo-despejos-e-mascaras-a-r-010-pandemia-agrava-exploracao-de-migrantes-bolivianos-em-sp/?utm_campaign=shareaholic&utm_medium=whatsapp&utm_source=im. Acesso em: 12 ago. 2020.
https://reporterbrasil.org.br/2020/06/tr...
). Com a pandemia, e por meio de coação, relatos indicam que permaneciam em condições que se assemelhavam à pena de confinamento.

Em Santa Catarina também encontramos casos análogos. No alto vale do Itajaí, o ano de 2020 ficou marcado pelo crescimento no número de ocorrências de trabalho em condições análogas à escravidão. Até o mês de setembro, já tinham sido registradas 55 ocorrências. Nestes episódios, todos os trabalhadores eram migrantes. A fala do procurador Acir Alfredo Hack, do Ministério Público do Trabalho de Santa Catarina, vai ao encontro do que procuramos evidenciar até o presente. Na matéria de Catie (2020)CATIE, T. Trabalho escravo dispara em Santa Catarina e 55 pessoas são resgatadas em 2020. ND+, 2020. Disponível em: https://ndmais.com.br/justicasc/trabalho-escravo-dispara-em-santa-catarina-e-55-pessoas-sao-resgatadas-em-2020/. Acesso em: 05 nov. 2020.
https://ndmais.com.br/justicasc/trabalho...
, expõe o procurador:

Talvez levados por uma interpretação errada de que a fiscalização não iria efetuar diligências nessa época por causa da pandemia e também levados por um discurso de neoliberalismo, de que os direitos dos trabalhadores seriam os mínimos a serem protegidos nesse governo federal, tiveram a falsa ideia de que poderiam fazer essas contratações e que não seriam punidos. Essas pessoas não recebiam equipamento de proteção individual, não era feito o registro. Eram levados à própria sorte, como nos séculos passados.

A forma de aliciamento guarda muitos elementos em comum ao que ocorre em diversos outros lugares no mundo. Atraídos por falsas promessas de bons pagamentos, ao chegar os migrantes tem que arcar com os custos da viagem, a alimentação, alojamentos precários, longas e extenuantes jornadas e outras arbitrariedades.

Considerações finais

Pelo exposto, contrariamente ao que muitos defendiam no início da pandemia, a Covid-19 não foi de forma alguma “democrática”. Também não nos encontramos todos “no mesmo barco”. Não contaminou burgueses e proletários na mesma proporção, da mesma forma ou com as mesmas consequências. As ações tomadas para o enfrentamento da crise tiveram como foco a manutenção do capital em detrimento do trabalho. A possibilidade de manter o distanciamento social, as medidas de prevenção mais simples — como lavar as mãos, utilizar álcool gel e o uso de máscaras —, o acesso aos serviços de saúde, aos meios de transporte, à educação, entre tantos outros exemplos, não fizeram mais do que transparecer o colossal abismo que existe no interior da sociedade tal como ela se encontra organizada.

O que procuramos salientar é que nenhuma destas mazelas pode ser atribuída às consequências da disseminação da Covid-19. A pandemia pode ter atuado como um catalizador, um acelerador do processo; todavia, os elementos estruturantes que impactam sobre a reprodução social, e a trouxeram para o centro do debate público, já estavam postos.

A diminuição da capacidade de resposta do Estado por meio de medidas de austeridade, o teto de gastos, o primado pelo pagamento da dívida pública, o desmonte do sistema de assistência e previdência social, a contrarreforma trabalhista e a precarização das relações de trabalho, a terceirização irrestrita, a financeirização dos serviços que antes residiam no rol dos direitos sociais, todas estas ações não poderiam levar a um resultado diferente do quadro atual.

O alinhamento econômico aos ditames do capital nos leva a relembrar e nos autorizam a parafrasear o professor Darcy Ribeiro para dizer que a crise em que se encontra a classe trabalhadora no Brasil não é uma crise, é projeto. Esse projeto, que vem sendo paulatinamente implantado, tomou especial impulso após o golpe político-judicial de 2016.

Nesta conjuntura, a volta ao mapa da fome, o aumento da pobreza e da extrema pobreza, o desemprego crescente, o desequilíbrio e a devastação ambiental, os milhares de mortos na pandemia, são apenas fruto de uma forma de organização social que não se mostra compelida, sequer comovida, com a miséria por ela mesma causada. Uma vez que trata grande parte da população como supérflua para seus objetivos, a manutenção e a reprodução social destes trabalhadores parecem não importar ao capital.

Agradecimentos

Agradecemos a UFSC e a todos os trabalhadores da instituição, em especial aqueles que atuam no PPGE, assim como a Secretaria de Educação de Balneário Camboriú, que possibilitaram que esta pesquisa ocorresse. Agradecemos igualmente a rede de solidariedade que se formou, o que permitiu que ficássemos fisicamente separados, mas socialmente unidos.

  • 1
    Segundo dados extraídos da plataforma SIDRA com base na PNAD Contínua Trimestral (IBGE, 2022aIBGE. Plataforma SIDRA. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua trimestral: Tabela 5947 - Pessoas de 14 anos ou mais de idade, ocupadas na semana de referência, por contribuição para instituto de previdência em qualquer trabalho. 2022a. Disponível em: https://sidra.ibge.gov.br/tabela/5947#resultado. Acesso em: 15 set. 2021.
    https://sidra.ibge.gov.br/tabela/5947#re...
    ).
  • 2
    Dados oficiais extraídos do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística sobre INPC e ICPA. (IBGE, 2022bIBGE. [Dados sobre INPC e IPCA]. Biblioteca, Catálogo, 2022b. Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=7236. Acesso em: 26 jan. 2022.
    https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php...
    ).
  • 3
    Levantamentos feito pela consultoria de informações financeiras Economatica com base nos demonstrativos financeiros entregues à Comissão de Valores imobiliários dos seguintes bancos: Bradesco, Banco do Brasil, ItauUnibanco e Santander. (ECONOMATICA INSIGHTS, 2021).
  • 4
    Em estudo intitulado DESEMPENHO DOS BANCOS EM 2020, o DIEESE apurou que CEF, Santander, Itaú e Bradesco fecharam 1.376 agências e extinguiram 12.874 postos de trabalho em meio a pandemia, segundo informações das próprias instituições.
  • 5
    Realidade observada pelo IBGE em levantamento de 2018. Com dados de 2016, a frequência escolar líquida das mulheres era de 73,5%, enquanto a dos homens era de 63,2%. Na faixa etária dos 25 aos 44 anos, 21,5% das mulheres tinham graduação completa, contra 15,6% entre os homens. Ainda assim, elas ganham, em média, 76,5% dos rendimentos dos homens (PERET, 2018PERET, Eduardo. Mulher estuda mais, trabalha mais e ganha menos do que o homem. Agência IBGE, Notícias, 07 mar. 2018. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/20234-mulher-estuda-mais-trabalha-mais-e-ganha-menos-do-que-o-homem. Acesso em: 2 nov. 2021.
    https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/ag...
    ).
  • Agência financiadoraNão se aplica.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participaçãoNão se aplica.
    Consentimento para publicaçãoConsentimos a publicação.

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Fev 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023

Histórico

  • Recebido
    29 Jun 2022
  • Aceito
    07 Out 2022
  • Revisado
    30 Nov 2022
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