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Casa da mãe solo: na cidade segregada, a produção de um lugar para mulheres e crianças que estão por vir

Single mother home: in the segregated city, the production of a place for women and children to come

Casa de madre sola: en la ciudad segregada, la producción de un lugar para que las mujeres y los niños posan venir

Resumo:

Mulheres mães-solo tornaram-se um fenômeno social comum não apenas a quem pesquisa o tema. Sua existência remete à produção de diferentes configurações familiares e organizações produzidas pelas mulheres de modo individual ou coletivamente, econômica ou espacialmente. Neste artigo, fruto de pesquisas sobre luta por moradia na cidade de São Paulo, destaca-se a ideia de criação da Casa da Mãe Solo e sua confluência com práticas de empoderamento, tal como chamadas por sua criadora na Ocupação Jardim da União, situada no extremo da Zona Sul paulistana. A Casa é/foi criada de modo concomitante à espera das crianças que estão sendo gestadas. Entrevistas-passo e outras semidirigidas somaram-se a observações de campo realizadas ao longo de 2018/2019, compondo metodologicamente a pesquisa. A Casa da Mãe Solo é um ponto de partida para se refletir sobre diferentes configurações de lutas de mulheres em movimentos sociais urbanos por moradia. Ela busca abrigar e produzir discussões, formação, cuidados e solidariedade às mães-solo desta Ocupação, o que, indiretamente, implica reflexões sobre a produção de uma infância periférica na relação com as mulheres. O artigo visa contribuir para estudos sociais da infância e estudos de gênero e mulheres na intersecção com a educação, bem como indagar políticas públicas para mulheres, infância, moradia e educação.

Palavras-chave:
Mãe-solo; Moradia; Feminismo; Infância; Ocupações

Abstract:

Single mothers have become a common social phenomenon, not only for those who research the subject. Their existence refers to the production of different family configurations and organizations produced by women individually or collectively, economically or spatially. This article, the result of research on the struggle for housing in the city of São Paulo, highlights the idea of creating the Casa da Mãe Solo and its confluence with empowerment practices, as called by its creator in Ocupação Jardim da União, located in the extreme South Zone of São Paulo. The House is/was created concomitantly to the waiting of the children being gestated. Step-interviews and other semi-directed interviews added to field observations conducted throughout 2018/2019 and methodologically composed the research. Casa da Mãe Solo is a starting point to reflect on different configurations of women's struggles in urban social movements for housing. The House seeks to shelter and produce discussions, training, care and solidarity to the Solo Mothers of this Occupation which, indirectly, implies reflections on the production of a peripheral childhood in relation to women. The article aims to contribute to social studies of childhood and gender studies and women in the intersection with education, as well as to investigate public policies for women, childhood, housing and education.

Keywords:
Single-mother; Dwelling house; Feminism; Childhood; Occupations

Resumen:

La mujer como madre sola se ha convertido en un fenómeno social común, y no sólo para quienes investigan el tema. Su existencia se refiere a la producción de diferentes configuraciones y organizaciones familiares producidas por las mujeres individual o colectivamente, económica o espacialmente. Este artículo, fruto de una investigación sobre la lucha por la vivienda en la ciudad de São Paulo, destaca la idea de la creación de la Casa da Mãe Solo y su confluencia con las prácticas de empoderamiento, tal y como fue convocada por su creador en la ocupación Jardim da União, situada en el extremo de la Zona Sur de São Paulo. La Casa es/ha sido creada concomitantemente con la espera de los niños que se están gestando. Las entrevistas escalonadas y otras semidirigidas se sumaron a las observaciones de campo realizadas a lo largo de 2018/2019 y compusieron metodológicamente la investigación. Casa da Mãe Solo es un punto de partida para reflexionar sobre las diferentes configuraciones de las luchas de las mujeres en los movimientos sociales urbanos por la vivienda. La Casa busca albergar y producir debates, formación, atención y solidaridad a las madres solas de esta Ocupación que, indirectamente, implica reflexiones sobre la producción de una infancia periférica en la relación con las mujeres. El artículo pretende contribuir a los estudios sociales sobre la infancia y los estudios de género y las mujeres en la intersección con la educación, así como investigar las políticas públicas para las mujeres, la infancia, la vivienda y la educación.

Palabras-clave:
Madre-sola; Ciudad; Feminismo; Infancia; Ocupaciones

Casa, mulheres, crianças: introdução

Segundo pesquisa da Rede Nossa São Paulo (RNSP),2 2 Ibope. Inteligência. 2020/2021. Pesquisa de Opinião Pública. Viver em São Paulo. Gênero/Mulheres. Rede Nossa São Paulo. Ibope, 05 dez. 2020. Acessado em 15 nov. 2021. https://www.nossasaopaulo.org.br/wp-content/uploads/2021/03/ViverEmSP-Mulher-2021-completa.pdf. o número de mulheres que dividem os cuidados de seus filhos e/ou suas filhas com os pais das crianças diminuiu de 37% em 2020 para 24% em 2021. Nesse mesmo ano, a parcela de mulheres que não dividem esses afazeres alcançou o índice de 22%. O relatório “Mulheres e Arranjos Familiares na Metrópole”,3 3 Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade). 2020. Pesquisa Mulheres e Arranjos familiares na metrópole. Pesquisa Seade, 2020. Acessado em 15 nov. 2021. https://trajetoriasocupacionais.seade.gov.br/wp-content/uploads/sites/6/2021/05/mulheres_arranjos_familiares_metropole.pdf. mostra que quatro em cada dez lares (39%) da região metropolitana de São Paulo têm as mulheres como responsáveis financeiras. E, entre as mulheres que chefiam seus lares, 46% sustentam os filhos ou netos sem a presença de um companheiro. Segundo dados do site Gênero e Número,4 4 Gênero e Número. 2020. Um Retrato das mães solo na pandemia. Gênero e número, 8 jul. 2020. Acessado em 10 jun. 2022. https://www.generonumero.media/retrato-das-maes-solo-na-pandemia. elas compõem as mais de 11 milhões de mulheres, no Brasil, que se desdobram para conciliar trabalho, filhos, falta de dinheiro e sanidade mental. Cotejando a situação com indicadores socioeconômicos de corte racial e de classe, os dados mostram que mães solo negras são maioria e que enfrentam restrições severas no acesso à internet, à moradia, à educação e a saneamento.

Se parcela significativa das mulheres se encontra nesses arranjos familiares e, muitas vezes, atuando sozinhas no sustento próprio e da casa, embora não seja o cerne deste artigo, cabe-nos perguntar onde estão as crianças e se a rede pública de atendimento cumpre suas funções. Os dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), obtidos pela Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), informam que apenas 35,6% das crianças brasileiras em idade pré-escolar, de quatro a cinco anos, encontram-se nas escolas de educação infantil.

A escassez de dados específicos referentes às crianças com idade inferior a quatro anos demonstra a preponderância da educação infantil obrigatória no que diz respeito à construção dos dados e à formulação de políticas públicas. Nesse sentido, o último Censo Escolar realizado anualmente pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) abarca as crianças de zero a seis anos matriculadas na educação infantil, cujos números saltaram de 12,6 % em cinco anos, passando de 7.972.230, em 2015, para 8.972.778, em 2020. Embora, segundo a pesquisa, esse aumento tenha sido impulsionado pelas matrículas em creche, podemos observar que ainda são poucas as crianças frequentadoras dessas instituições. A questão anteriormente proposta retorna: ao considerar os arranjos familiares já mencionados, quais são os locais frequentados pelas crianças, em especial os(as) bebês, já que não estão nas creches e/ou pré-escolas?

Infiro que esses e essas bebês devem estar sob cuidados de mulheres, seja em suas próprias casas, seja em práticas coletivas com vizinhas ou parentes e de diferentes idades. Crianças e mulheres, em relação, conformam uma rede de cuidados sobre a qual urge refletir. Ao cruzarmos cuidado com categorias gênero, sexo, raça e classe social as desigualdades saltam aos olhos e nos convocam a pensar, e particularmente, nas construções historicamente feitas por várias mulheres negras, que, desde a escravidão se organizavam em poupança para comprar a alforria e com ela possíveis transformações, ou nem tanto, que geram práticas solidárias e criativas, mas nem sempre providas de direitos.

O trabalho de cuidado é exemplar das desigualdades imbricadas de gênero, de classe e de raça, pois os cuidadores são majoritariamente mulheres, pobres, negras, muitas vezes migrantes (provenientes de migração interna ou externa). Por ser “um conjunto de práticas materiais e psicológicas que consiste em trazer respostas concretas às necessidades dos outros”, o trabalho de cuidado de idosos, crianças, doentes, deficientes físicos e mentais foi exercido durante muito tempo por mulheres, no interior do espaço doméstico, na esfera dita “privada”, de forma gratuita e realizado por amor. (Hirata 2016Hirata, Helena. 2016. O trabalho de cuidado: comparando Brasil, França e Japão. SUR 24 13 (24): 53-64., 52).

Questiono: teríamos propostas em curso que visem debater sobre a existência ou inexistência de práticas formativas envolvendo questões amplas e estritas sobre mães-solo, jovens mulheres grávidas e, com isso, crianças com pouca idade?

Este artigo, fruto de pesquisas5 5 Refiro-me às pesquisas “Imagens de São Paulo: moradia e luta em regiões centrais e periféricas da cidade a partir de representações imagéticas criadas por crianças (Fapesp)” e “Crianças e mulheres em luta por moradia: na lida cotidiana, as escolas frequentadas e representadas”. Projeto a ser desenvolvido no ano sabático de 2020, realizado no Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA-USP). já realizadas e que visavam conhecer infâncias e mulheres em luta por moradia em ocupações urbanas da cidade de São Paulo, busca destacar a construção da Casa da Mãe Solo na Ocupação Jardim da União, em São Paulo. Trata-se de um local ainda em construção cujo princípio, esboçado já em 2019, teve seu início em debates de ideias em 2020. O relevo dado neste texto encontra-se na proposta de acolhimento, assistência e formação a mulheres gestantes e mães-solo, o que nos permite articular os direitos das mulheres e das crianças à produção e à manutenção digna de suas vidas. A Casa6 6 A palavra casa será grafada com a letra “c” maiúscula sempre que referir-se à Casa da Mãe Solo. está sendo feita concomitantemente à espera das crianças em gestação e aos cuidados devidos àquelas já existentes e filhas de mães e avós solo, denominação da qual tratarei adiante. Ela é um elemento fundamental para o entendimento de uma rede mais complexa que envolve mulheres e crianças em luta por moradia, no cotidiano que se faz sobre o terreno ocupado.

Localizada no Grajaú, de acordo com alguns mapas geográficos, ou Jardim São Judas Tadeu, segundo outros, a Jardim da União está no extremo da Zona Sul da cidade de São Paulo, em área de mananciais, em um terreno público vazio, pertencente há oito anos à Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU). São 700 famílias morando em área de mananciais, o que confere alguns problemas e exige muita atenção para que não se esparramem demais, ocupando maior parte do terreno e comprometendo os recursos naturais da região. Essas áreas criam fronteiras em que ficam perceptíveis a presença e a força de quem tem direitos sobre as vidas dos outros. Força essa que versa sobre quando se pode remover pessoas, individualmente ou famílias inteiras e, consequentemente, seus sonhos, relações e direitos.

Tomei contato com a Ocupação Jardim da União em 2017, para a realização da pesquisa de campo já mencionada. Eu a frequentei em 2018, ao longo de oito meses, majoritariamente aos finais de semana, estendendo o contato presencial até 2019 e retornando em 2021, de forma a construir os dados da pesquisa e observar as transformações que ocorriam na Ocupação.7 7 Optou-se por escrever a palavra ocupação com a letra “o” em maiúsculo a cada vez que tratar-se da Ocupação Jardim da União. Festas, processo eleitoral de 2018, ameaças de despejos e andanças pelo terreno ocupado compuseram a experiência da pesquisa de campo.

Para a escrita deste artigo foram utilizados vídeos da Rede Extremo Sul8 8 Redes de comunidades do extremo sul de São Paulo-São Paulo. 2010. Rede Extremo Sul. Acessado em 11 jun. 2022. https://redeextremosul.wordpress.com. e três das oito entrevistas feitas com as primeiras mulheres que ocuparam o terreno, morando sob a lona, logo no início do processo de Ocupação iniciado em 12 de outubro de 2013, junto com Sandra,9 9 As mulheres optaram pela manutenção de seus nomes reais. idealizadora da Casa da Mãe Solo, uma das primeiras ocupantes da Jardim da União e que à época era uma de suas coordenadoras. Ela muito gentilmente me apresentou às mulheres entrevistadas. Optei por escolher entre elas as três primeiras ocupantes do que é atualmente essa Ocupação. Buscou-se, com isso, aproximar-se de seu processo histórico e de algumas transformações concernentes aos modos de vida, sobretudo, em relação às mulheres e crianças. Essa ocupação se fez e se faz emblematicamente com a construção de equipamentos forjados na luta e pelos direitos das crianças e mulheres, como a Creche Filhos da Luta – não mais existente – e da Casa da Mãe Solo, central para a escrita deste artigo.

Foram consideradas entrevistas semiestruturadas e entrevistas-passo (Moreira 2017), em que caminhadas pela Ocupação eram associadas a diálogos previamente pensados. As caminhadas pelas ruas de terra ocorreram ao longo de 2018 e primeiro semestre de 2019 e tiveram continuidade após certo controle da pandemia de COVID-19, quando se tornou possível retomar algumas atividades presenciais, em 2021. Nas entrevistas-passo e nas conversas, emergiu a ideia e o processo de construção da “Casa da Mãe Solo” em parte do terreno ocupado como local, não apenas de abrigo e assistência a mães solo, mas de formação e produção de formas de pensar sobre a condição materna que se faz junto à luta por moradia. Os diálogos eram gravados com consentimento das participantes, assinado e firmado verbalmente após esclarecimento sobre a pesquisa e/ou escritos em caderno de notas de campo. Outro recurso utilizado foi gravar falas-lembretes e fazer anotações no bloco de notas de aplicativo de celular. Ao longo do processo, as mulheres eram consultadas sobre os conteúdos, o que levava a uma recomposição das falas, isso ocorreu também na finalização deste artigo, não apenas como devolutiva de parte da pesquisa, mas para fazê-lo conjuntamente e incluir informações até então despercebidas.

Por entender que o campo de pesquisa se dá também em seu entorno, optei por ir ao local de pesquisa utilizando ônibus e trens aos finais de semana. Trata-se de uma opção metodológica. Contudo, a dificuldade no acesso à cidade nestes dias se configurou como um desafio. O aumento de pausas e paradas do reduzido número de transportes públicos que deveriam servir à população periférica dificulta seus deslocamentos, mantendo-a em seu “devido lugar”. Essa prática traduz uma concepção de cidade na qual os periféricos só têm lugar como força de trabalho e não como portadores de direito aos equipamentos culturais e de lazer. Com essas interdições veladas, interdita-se e se rechaça a presença de pessoas negras, de todas as idades, dos pobres, de quem não tem carro, e tantos outros grupos cuja subalternização também se faz pela ausência da possibilidade de transportes.

A Casa da Mãe Solo é o fio a ser puxado dentro da complexa rede que envolve mulheres e crianças e a luta por moradia, ponto fundamental que venho perseguindo em pesquisas sobre a temática e que representam aspectos de certa indissociação entre mulheres e crianças nos distintos processos de luta pela habitação. Com as mães-solo, aproximamo-nos das crianças ainda em gestação, ausentes fisicamente, mas para as quais a Casa da Mãe Solo passa a ser o lugar emblemático em que bebês se encontram presentes na ausência. Há uma miríade de questões que fornece o pano de fundo para a discussão proposta no presente artigo envolvendo a construção da Casa da Mãe Solo, e se constituem como objetivos deste artigo: entender o processo de construção de uma casa que abrigue discussões, formação, cuidados e solidariedade às mães-solo; conflitos que envolvem a ausência do estado na concretização da sustentação dos direitos à vida; o capital que se impõe às mulheres negras e periféricas e suas crianças, desde a gestação. Busca-se contribuir com estudos sociais da infância e gênero e, quem sabe, ensejar debates sobre políticas públicas de saúde, educação, moradia, infância e mulheres.

Mãe-solo não é mãe solteira: busca por definições

A presença das mulheres em luta por moradia tem sido destacada em várias pesquisas em que são vistas como sustentáculos dos movimentos sociais e das festas10 10 Festa é a denominação usada para o momento em que um terreno ou edifício que não cumpre a função social da moradia é ocupado. que levam à ocupação de terrenos e edifícios e da coordenação e organização do cotidiano. Em alguns movimentos, percebe-se a presença de uma ética que regula a vida em comum, especialmente, em relação à violência doméstica. Carvalho-Silva (2019)Carvalho-Silva, Hamilton Harley. 2019. A dimensão educativa da luta de mulheres por moradia no Movimento dos Trabalhadores Sem Teto de São Paulo. Tese em Educação, Universidade de São Paulo., faz repercutir as ações de mulheres de Ocupações do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) como ações em que há um caráter de politização e socialização das moradoras e demais militantes. Viviani (2021)Viviani, Fabrícia Carla. 2021. Entre lutas: mulheres na construção do direito à moradia em uma ocupação da cidade de São Paulo. Relatório pós-doutoral em Educação, Universidade de São Paulo., atendo-se à pesquisa de campo com mulheres da Ocupação Esperança, em Osasco, corrobora com a dimensão política já evidenciada por Carvalho-Silva (2019)Carvalho-Silva, Hamilton Harley. 2019. A dimensão educativa da luta de mulheres por moradia no Movimento dos Trabalhadores Sem Teto de São Paulo. Tese em Educação, Universidade de São Paulo. e destaca a luta cotidiana que envolve processos de formação e criação artística e política entre as moradoras, desde a lona, quando ainda sequer possuíam casas de madeira. Bizzotto (2022)Bizzotto, Luciana M. 2022. As crianças nas ocupações urbanas: experiências infantis na Rosa Leão (Belo Horizonte- MG). Tese em Educação, Universidade Federal de Minas Gerais. coloca as crianças em relevo na Ocupação Rosa Leão, em Belo Horizonte. Ela defende o caráter de luta e resistência que são produzidas cotidianamente pelas crianças e adultas, o que se faz presente em suas brincadeiras e demais vivências construídas entre elas. Essas pesquisas somam-se as de Gobbi (2020)Gobbi, Marcia A. 2020. Imagens de São Paulo: moradia e luta em regiões centrais e periféricas da cidade a partir de representações imagéticas criadas por crianças. Relatório de pesquisa regular. São Paulo: Fapesp. ao destacarem a majoritária presença feminina nos processos de luta por moradia urbana, e das quais é possível inferir a importância da construção de uma Casa que funcione não somente como abrigo, mas local de resistência.

Ao retomar estudos sobre a história de mulheres no Brasil, encontramos práticas que anunciam a construção da figura da chamada mãe solteira estigmatizada ao longo dos tempos. Ser mãe implica um estado civil. Desde o século 19, nas camadas populares era uma constante lares chefiados por mulheres de modo que a ausência dos companheiros engendrava suposições – em geral de intuito ofensivo, pejorativo e machista – de maior liberdade sexual das mulheres pertencentes a essas camadas (Soihet 2004Soihet, Rachel. 2004. Mulheres pobres e violência no Brasil urbano. In História das mulheres no Brasil, organizado por Mary Del Priori, e Carla Bessanezi, 362-400. São Paulo: Companhia das Letras.).

Elisabeth Badinter (2011)Badinter, Elisabeth. 2011. Um amor conquistado: o mito do amor materno. São Paulo: Círculo do Livro., ao questionar a estrutura que forjou a construção do mito de amor materno, atribuindo-lhe um peso histórico e social, permite-nos considerar quão imbricado estão os conceitos de família, infância, maternidade e o ser mulher, mãe ou não. Saliento que, no Brasil, as alterações legislativas como Estatuto da Mulher Casada (Lei n.° 4.121/1962), Emenda Constitucional do Divórcio (EC9/77) e a Lei do Divórcio (Lei n.° 6.515/77), Constituição Federal de 1988, que reconhece as famílias monoparentais, e a Lei Maria da Penha (n.° 11340/2006) foram essenciais para a emancipação e a justiça em relação às mulheres e a produção de novas configurações familiares. Elas resultam de lutas de movimentos feministas e demais grupos de mulheres, tal como Maria da Penha. Disto derivam questionamentos sobre a mescla entre desejo, imposições sociais e práticas que interpelam a família nuclear ocidental, cuja base é branca e europeia, além de produzir pesquisas sobre as diferenças entre os efeitos da opressão sobre as mulheres, em especial, negras que se encontram entre a maioria das chefias das famílias monoparentais e em situação de pobreza.

A noção recém-cunhada “mãe-solo” carrega diferentes compreensões e posturas diante do mundo e se faz, entre outras formas, ao questionar a figura da mãe solteira, representações e práticas dela decorrentes. Taiane Lima (2021)Lima, Taiane. 2021. Mãe Solo é mãe sozinha: tecendo vivências em Fortaleza-CE. Dissertação em Antropologia, Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira., na tentativa de conceituá-la, destaca a solidão presente na palavra solo e que se revela na vida. Há um forte peso carregado e que se fez na construção da complexa figura acolhedora, que deve ser sempre forte e guerreira e não envergar, sobretudo, quando negras e pobres. Trata-se de estar só e ter que contemplar questões que estão para além da preocupação financeira característica à chefia da família, não exatamente por opção. Vale sublinhar que ao homem, no caso da maternidade solo, coube a decisão de não ser pai, o que é aprovado socialmente, o mesmo não ocorrendo com a mulher que opta por não criar os filhos(es/as).11 11 Busca-se o uso do gênero neutro na escrita deste texto.

Contudo, ser mãe-solo não deve ser resumido apenas a um infortúnio ocasionado à vida de alguém que se viu desprovida de um companheiro (inclusive no aspecto de auxiliar nas despesas domésticas ao prover o lar). Ao contrário, a condição “solo” pode ser vista como opção ativa. O caráter dessa opção contempla diversos elementos, tais quais a não sujeição à violência doméstica,12 12 Bueno, Samira, coord. 2022. Violência contra mulheres em 2021. Forum Brasileiro de Segurança Pública. Acessado em 10 jul. 2022. https://forumseguranca.org.br/publicacoes_posts/violencia-contra-mulheres-em-2021. Segundo o Atlas de Violência contra mulheres, publicado pelo Forum Brasileiro de Segurança Pública, tivemos entre março de 2020, mês que marca o início da pandemia de COVID-19 no país, e dezembro de 2021, último mês com dados disponíveis, 2.451 feminicídios e 100.398 casos de estupro e estupro de vulnerável de vítimas do gênero feminino. o justo direito de desejar e viver em liberdade – de não ter alguém ao lado cotidianamente a regrar os passos dados –, o querer cuidar dos filhos e das filhas sem a obrigatoriedade de uma colaboração masculina e, até mesmo, o querer construir outras configurações familiares em que a presença masculina não é prioritária. As opções sofrem condicionamentos e limitações sociais, sobretudo, quando encaramos as mães-solo negras, pobres, periféricas.

Ocupação desde a lona: Aqui a gente vai ficar13 13 Fala proferida em entrevista dada para a autora deste artigo por Dona Maria dos Doces, em 2018.

Eu sou guerreira. Num abandono não.

Quando nóis chegou aqui no começo, aqui da ocupação, era só mato e cobra, nóis fez um barraquinho e entrou dentro do barraquinho, de noite todo mundo ia se embora e eu ficava. Continuei e tamo aqui há cinco anos. Foi melhorando, melhorou bastante. Nós num tinha luz, num tinha água. O primeiro rolo de mangueira foi de uma vaquinha. O chão era de barro, sem nada. É um bairro agora. Antes, era 2 a 3 metros pra fazer o cercadinho. Foi tudo na luta. (Gorete, com. pess., jul. 2018).

Aqui todo mundo é amigo, antes todo mundo passava, dava bom dia, boa tarde. A gente era feliz. Ahhhhh é bom demais. Nóis têm essa moradia, e eu tenho orgulho de contar que tamos aqui. A gente dividia tudo, o arroz que nós cozinhava, por isso se chama: Jardim da União! (Dona Maria, com. pess., jul. 2018).

Figura 1
Vista aérea da Ocupação Jardim da União em 2018

Para Dona Maria, à época trabalhando na informalidade em uma das vendinhas da Ocupação, vir morar no Jardim da União se deu, segundo ela, ao desejo de “dar uma morada digna para os filhos”. Há 40 anos ocupou um terreno na periferia da Zona Sul, onde permaneceu até 2013, quando foi para Jardim da União por ouvir falar que estariam formando um novo lugar onde morar e viver. Ocupar – ato que se fez junto à amiga Gorete – é dignificar e produzir o futuro das duas filhas e um filho – fez questão de contar que a quarta filha faleceu –, os quais permaneceram, por conta da estabilidade, no terreno que ela ocupou primeiro.

No cumprimento dessa busca pela moradia e na construção do que isso implica, ela e tantas outras moradoras e “moradeiras” – neologismo criado por Dona Maria – vão fazendo sutilmente com que haja certa resistência ao proposto desaparecimento em sua dimensão política, cada vez mais fundido às nossas vidas. Há uma inegável força que se faz em luta cotidiana, tendo as crianças, filhos e filhas, como arranque para suas ações. É um futuro no presente, não há uma projeção para o depois, o depois é o agora sob a lona que se organiza em grande parte pela vida das crianças. Em suma, nas falas dessas mulheres há debates profundos, os quais revelam concepções sobre luta e sobre a presença das famílias nesse processo. Afirmo que essa é uma fala constante e reveladora das práticas majoritariamente das mulheres.

A gente entrou aqui na lona, falaram pra fazer um cercadinho para marcar o lugar, com uma taubinha daqui e outra dali. E fui ficando. Gosto daqui porque aqui é sossegado. Tô aqui, só saio quando deus me tirar. Quando eu cheguei, tive um pensamento positivo. Pensava: aqui a gente vai ficar. Agora eu sou moradeira daqui. (Dona Maria, com. pess., 2018).

A fala de Dona Maria, uma das primeiras moradeiras a ocupar o terreno, apresenta uma dimensão dessa moradia que se faz cotidianamente, em relações com aquelas e aqueles com os quais convive. Ao ser entrevistada, chamou uma de suas amigas para participar do que foi se tornando uma conversa mais livre. Ela alegou que a amiga teria muito mais histórias para contar e, de fato, trata-se de uma moradora que chegou ainda antes dela, permanecendo embaixo de uma lona durante dias, até que o terreno fosse cercado. Segundo Gorete, que aceitou o convite para participar dessa conversa/entrevista, elas passaram dias acampadas no terreno sem ter sequer o que comer, sem luz, sem água, “apenas à luz das estrelas”.

Movimentos sociais e ocupações têm suas histórias em constantes transformações. Há uma dinâmica ágil em que os tempos se sobrepõem com exigências que remetem a contínuas reorganizações. A permanência entre eles pode ser definida pela universalidade da luta de trabalhadoras e trabalhadores por seus direitos à cidade, à moradia, à saúde, à educação, ao respeito, à segurança e ao trabalho digno, já que milhões se encontram atualmente desempregados, diferenciando-se segundo idade, classe social, raça e gênero.

Ocupação e creche: todo poder ao povo, desde o nascimento

É muita criança que nasceu aqui dentro. É muita que ainda tem pra nascer. O que segura a gente aqui é as crianças.

—Dona Maria

Figura 2
Parede externa da Creche Filhos da Luta

Com o desenvolvimento da pesquisa mencionada, em 2017, aprendi que em algumas ocupações, para chegar até as crianças, era necessário me aproximar e conhecer as histórias das mulheres. Mulheres essas que colocaram as primeiras lonas e madeiras e ocuparam um terreno que, ao não cumprir com sua função social, desrespeitava a Constituição de 1988.14 14 Assegurado pela Constituição Federal de 1988, o direito à moradia é uma competência comum da União, dos estados e dos municípios. Ressalto que elas não invadiram nada, mas ocuparam, buscando fazer cumprir o direito constitucional à moradia e à vida em toda sua extensão. Desta aproximação, resultaram várias reflexões, dentre as quais se destaca a oportunidade de conhecer aspectos da Creche Filhos da Luta.

Os tempos memoráveis estão presentes constantemente nas falas de mães e avós e a movimentação ocasionada pela creche é motivo de comentários, ora com pesar, ora com alegria por terem feito parte do processo de construção da Creche e seus desdobramentos quanto à educação das crianças. Principiar a construção de uma Ocupação com a fundação de uma creche é para poucos. A existência de creches públicas na vizinhança, a demanda pelo uso do espaço como moradia para as inúmeras famílias semm teto que buscam a Ocupação, levaram ao fim da creche Filhos da Luta que ocupou um espaço central na Jardim da União. A construção da Casa da Mãe Solo remete à retomada de espaços e práticas que denotam a importância da infância e das mulheres em sua constituição.

Criar a Filhos da Luta, como foi chamada à época, revela a incrível força materializada de moradoras(es) para os quais a educação deve ser tecida no cotidiano. Segundo Carolina Catini (2021Catini, Carolina. 2021. A formação política e o trabalho da Educação Infantil Popular. In Crianças, educação e o direito à cidade: pesquisas e práticas, organizado por Marcia Aparecida Gobbi, Maria Cristina Stello Leite, e Cleriston Izidros dos Anjos, 175-85. São Paulo: Cortez., 182), referindo-se ao processo de construção da creche aqui tratada,

Ao fazê-lo, tomamos a educação como intervenção que faz no mundo, como um ato de criação coletiva e não apenas de repetição de programas prontos, descontextualizados, sem relação com as condições concretas de existência e resistência. Ademais, descobrimos que organizar coletivamente o espaço de educação infantil é um ato político que se refere ao confronto a um tipo de pedagogia que reproduz as hierarquias, bem como as formas de apassivamento e estigmatização das classes populares.

A educação das crianças tem uma presença fundamental como impulsionadora, não apenas da luta pelos direitos à moradia, como também à existência e à vida propriamente dita. A construção da creche desde o princípio desta Ocupação remete a pensar que a luta pela moradia não se dá apartada daquelas relacionadas à infância e aos bebês. Isso interessa muito, pois nela residem preocupações e formações, desde o nascimento das crianças, em que dimensões políticas são acionadas cotidianamente e para se pensar criticamente a vida vivida, construída e retirada a cada instante.

Ainda que houvesse um caráter assistencial (Catini 2021Catini, Carolina. 2021. A formação política e o trabalho da Educação Infantil Popular. In Crianças, educação e o direito à cidade: pesquisas e práticas, organizado por Marcia Aparecida Gobbi, Maria Cristina Stello Leite, e Cleriston Izidros dos Anjos, 175-85. São Paulo: Cortez.), certamente havia uma concepção de crianças como ativas e agentes nesse processo de construção, não apenas da moradia, mas de um modo de morar e viver. Em entrevista com Sandra, realizada em março de 2019, observa-se que as crianças não eram tratadas na Filhos da Luta como em estado de espera de um momento privilegiado de conquistas. O prenúncio do mundo que queriam construir encontrava-se nessas ações, e não apenas nas crianças como expressão, passiva e paciente, de futuro. A presença ativa das crianças no processo político vista em diálogos sobre manifestações públicas pela não remoção de casas, em 2019, coloca por terra a ideia de infância privada, destinada a uma vida de guarda em suas casas, sob as asas familiares, em especial da mãe. Desse modo, mulheres e crianças produzem, concomitantemente, a si mesmas e à luta, o que contraria afirmações de invisibilidade, sobretudo, das crianças. A presença delas remete a um aprendizado, não acadêmico ou escolar, sobre a importância de considerar suas falas e opiniões, forjando formas de participar e ter suas falas escutadas.

Em pesquisa de campo, pude perceber essa presença das crianças em processos de elaboração de faixas e cartazes para manifestações contra o despejo que ameaçavam moradoras(es).15 15 O registro imagético dessas práticas encontra-se no site www.entrimagens.com.br criado pela autora deste artigo e grupo de pesquisa Crianças, práticas urbanas, gênero e imagens. Várias meninas discutiam com meninos sobre a participação de seus pais, homens, em assembleias que decidiriam os rumos desta Ocupação. Bastante aquecidos, os debates eram ensejados pelas meninas e envolviam crianças de todas as idades. Na elaboração de materiais que seriam levados para a rua, havia diálogo e tomada de posicionamento que colaborariam com os caminhos vindouros. Há uma visibilidade inquestionável que nos faz pensar sobre as chamadas invisibilidades das demais crianças e criar definições do que é visível e invisível quando nos referimos à infância.

Fui aprendendo, com as mulheres e as crianças, outros significados da palavra luta, justamente a partir das distintas maneiras pelas quais conjugam esse verbo e o materializam em atos diários que se confundem a tantas ações. Finalmente, o significado de luta, conquista e morar em ocupação é respondido pelas próprias crianças e mulheres. Há uma fatura diária de grandes e pequenas lutas, porém, compreendidas diferentemente de acordo com o grupo de crianças, de mulheres, ocupações e abordagens políticas referentes aos movimentos sociais dos quais participam, direta ou indiretamente. É ensinado em pequenos atos que soluções não virão de cima, ou pelo menos, não aquelas que possam resolver as vidas dos de baixo. Urge esse aprendizado, ainda raro entre nós, como se fez presente na creche e, mais recentemente, na Casa da Mãe Solo.

Ocupação e a casa da mãe-solo: gestações

Nasceu muita criança e tá nascendo. Não sei quantas, mas tá nascendo.

—Dona Maria

Meu interesse em propor a Casa é pra acolher as meninas, as mães com bebês. Tem muitas aqui, que vieram crianças pra Ocupação e hoje já estão grávidas. É pra ter formação, discutir o que é ter bebê, o que é criança, como se relacionar com elas. Discutir violência doméstica. Tem muitas mulheres que há anos sofrem abusos e nem sabe que é, já convivem há tanto tempo. Têm medo de perder o homem. É cuidar (Sandra, com. pess., nov. 2021).

Bell hooks (2019bell, hooks, 2019. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. São Paulo: Elefante., 117, grifos meus) afirmou que o lar ou a casa podem ser vistos como espaço-chave da resistência feminina no contexto da opressão de raça e gênero. Nesse sentido, o local entendido como de confinamento de mulheres passa a ser compreendido “como espaço ao qual regressamos para nos renovar e nos recuperar, no qual podemos curar nossas feridas e nos tornar inteiras”. É dentro da casa onde é possível encontrar refúgio, acolhimento, alento. Para a autora, o processo de construção do lar também deve ser entendido como o estabelecimento de comunidade de resistência. Estaria, então, uma proposta de construção de uma Casa da Mãe Solo ancorada em uma compreensão de cuidado e acolhimento nos moldes apresentados por hooks? Embora não se observe contato direto entre as propostas, identifico certa afinidade entre elas, na medida em que ambas traçam a compreensão do espaço doméstico como local para organização e formação de solidariedade política (bell hooks 2019bell, hooks, 2019. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. São Paulo: Elefante., 113).

Na busca por entender questões concernentes à construção da Casa, a conversa-entrevista com Sandra, mãe de dois filhos e duas filhas e avó-solo, configurou-se em uma forma de registrar pela voz de uma das protagonistas da construção do projeto da Casa da Mãe Solo, o que de alguma forma me torna testemunha do processo. Dentro deste contexto de luta e transformações pelas quais passa essa Ocupação, acredito que propor a construção de uma Casa da Mãe Solo é um manifesto pela vida.

Em retrospectiva histórica, a Casa remete aos Clubes de Mães da Zona Sul de São Paulo, nos quais, durante os anos 1970/1980, faziam-se reuniões para discutir questões domésticas e a carestia. Posteriormente, esses clubes tornaram-se o Movimento Custo de Vida, que criou, em meio à ditadura militar, um espaço de contestação, com a predominância de mulheres, e contribuiu para o processo de redemocratização do país (Sader 1988Sader, Eder. 1988. Quando novos personagens entram em cena – experiência e luta dos trabalhadores da grande. São Paulo, 1970-1980. Rio de Janeiro: Paz e Terra.). Não há um padrão e seria anacrônico afirmar que se trata de um mesmo processo, contudo, não podemos deixar de considerar práticas políticas já existentes e suas transformações, neste caso, em uma mesma região.

Distante temporalmente deste período, para Sandra, embora o custo de vida esteja aumentando, atualmente prepondera a preocupação com quem está gravida, com quem engravidará e com o cuidar. Há uma politização das questões privadas – ter ou não uma filha ou um filho – e lhes confere outro tratamento, aproximando-se de discussões nem tão recentes, mas muito caras: aborto, liberdade sexual, feminismo, juventude e gravidez, violência doméstica.

A maternidade e o trabalho doméstico representados como intrínsecos à mulher resultam de um estado que associa a opressão da mulher à sua natureza. Como exposto nos estudos de Silvia Federici (2018)Federici, Silvia. 2018. O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista. São Paulo: Elefante., o estado confisca a autonomia das mulheres, destinando-as à reprodução da sociedade capitalista desde suas casas. Raramente paramos nossas vidas para dialogar sobre essas temáticas. Na conversa com Sandra, identifico que, mesclada a outras concepções, autonomia seria a palavra definidora de parte da Casa. A compreensão da opressão sofrida pelas mulheres, somada às necessidades cotidianas de manutenção da vida e das(es/os) filhas(es/os), aproxima-se das propostas que ela chama de empoderamento feminino via formação profissional que permita, em suas palavras,” ter um dinheirinho no final do mês”.

As tecnologias reprodutivas não foram incrementadas às vidas de quem frequenta a Casa, não mudando o perfil e a prática social da maternidade, pelo que pude observar em entrevista e conversas informais com as moradoras. “Sou feminista”, afirmou Sandra ao ser entrevistada em novembro de 2021. Infiro que esse feminismo se fez no contato diário com as agruras que impelem a construção das condições de escape das históricas condições de opressão. Considero que a proposta da Casa amenize agruras cotidianas nas vidas de mulheres e crianças na Ocupação e não traga mudanças estruturais. Contudo, é possível identificar a expressão do desejo de existência de bases de uma vida comunitária. Seria esse o prenuncio da construção de uma nova vida? É possível vislumbrar que no centro desse projeto estão envolvidas uma nova maneira de viver, e sentir, que incorpora preocupações com as dimensões materiais e subjetivas da vida destas mulheres, em uma luta contra o desaparecimento em vida.

Em linhas gerais, percebe-se a busca por escapar dos controles de uma sociedade que desinforma, oprime, trata desigualmente. Ou seja, apesar do projeto não formular questão nesses termos, podemos afirmar que há uma percepção da precariedade dos sujeitos, da vida e o quão vulnerável ela é. Inspirada em reflexões de Fábio Luís Franco (2021)Franco, Fábio Luis. 2021. Governar os mortos: desaparecimento e subjetividade. São Paulo: Ubu., é possível afirmar que na contramão do projeto neoliberal, a proposição da Casa expõe a vulnerabilidade em suas várias dimensões. Dentre elas, estão os diferentes lutos necessários às diferentes formas de tirar a vida. Outro elemento importante do projeto é o seu caráter coletivo que, ao organizar problemas e propor soluções, permite que as mulheres alterem as condições em que se encontram. Destaco a importância desse processo que se faz a passos vagarosos remando na direção contrária ao neoliberalismo, ao mesmo tempo em que remar contra pressupõe estar dentro da água junto, e, por isso, negociar, aquiescer, usar e praticar termos difundidos pelo próprio movimento que se combate, tal como o paradoxo vivido pelas crianças, meninas e mulheres em relação ao empreendedorismo e empoderamento feminino.

Contudo, o estado, ao perceber essas propostas de quem está à margem, tenta, pelos mais diferentes mecanismos, transformar os sujeitos rebeldes em sujeitos legais (Das e Poole 2008Das, Veena, e Deborah Poole. 2008. El estado y sus márgenes. Etnografías comparadas. Cuadernos de Antropologia Social 8 (27): 19-52.). Há um paradoxo, pois a Casa que poderia ser entendida como a presença de uma rede de proteção às mães-solo e crianças e, por isso, um espaço emancipador às mulheres, também tem práticas e discurso de empreendedorismo, que reflete a ausência de direitos trabalhistas, precariedade do trabalho. Nas palavras de Sandra, a Casa teria a função de propiciar às mulheres a capacidade de “se empoderar, ter uma formação para ser independente e poder buscar o sustento da família”. Encontra-se aqui aspectos de certo modelo neoliberal de gestão que confunde as ideias de empoderamento e empreendedorismo. O empoderamento feminino, que visa em sua forma radical abolir o patriarcalismo e que pode ser entendido como tomar para si as rédeas da vida, e não só economicamente, pode tornar-se um empoderamento light (Cornwall 2018Cornwall, Andrea. 2018. Além do “empoderamento light”: empoderamento feminino, desenvolvimento neoliberal e justiça global. Cadernos Pagu (52). https://doi.org/10.1590/18094449201800520002.
https://doi.org/10.1590/1809444920180052...
) em que convergem problemas e propostas de emancipação feminina e o capitalismo neoliberal. Em suma, não são identificadas ações para mudanças estruturais, mas o desejo de incorporação de mulheres ao mercado de trabalho, o que permite a obtenção de sustento da família. Refletimos aqui se não temos uma maquiagem semântica, como uma inovação terminológica, que vem junto a mudanças e práticas políticas a cada tempo, tal como o/a empreendedor/a de si, e tantas outras. É importante pensar sobre as palavras e seu tempo e o que denotam quanto a intencionalidades e acobertamentos e acompanhar os passos que vão sendo dados ao longo do percurso da construção material dessa ideia em que não podemos desconsiderar as tantas contradições presentes no processo.

Presença e ausência do estado forjam margens e a criação da Casa pode ser uma forma de ocupá-las criativa e politicamente, convertendo-a em empoderamento vagaroso, que a seu modo, questiona o poder cujo acesso é determinado pela classe social, pela raça e pelo gênero. Assim, o interesse em acolher as grávidas não se traduz no questionamento do dilema: seguir a carreira ou a maternidade. Parece-nos que há a convivência entre a aceitação da maternidade, sem ter rompido com a ideia de um determinismo biológico e certa indisposição em relação a ela e a não aceitação.

A gente precisa fazer alguma coisa, porque as meninas têm filhos e deixam sem saber o que fazer com eles, sem cuidar direito. Tem o caso de uma menina que deixou o filho neném em casa à noite e saiu pras balada. O pai viu, chamou o pai do filho que quis tirar o bebê da menina… tá vendo? Tem que discutir isso. (Sandra, com. pess., nov. 2021).

O relato proferido por Sandra remete a várias questões. Dentre elas, destacam-se o cuidado com as crianças muito pequenas, a maternidade na juventude e as formas de colaborar com as mãe-solo, mesmo que essas não sejam tão jovens. Identifico, assim, que a construção da Casa se relaciona à percepção de que essas mulheres se reconhecem como sujeitas subalternas da história, ainda que passem ao largo de compreender a própria exclusão, elas buscam construir saídas para seus problemas imediatos. Ainda que não encontremos articulações que evidenciem profundas transformações e de libertação de pensamentos já naturalizados quanto à condição de subalternização das mulheres e das crianças, entendo que a proposta em si abre caminhos para essa percepção, afinal, a Casa revela a busca e o encontro de soluções para a construção de modos de sobrevivência e de vida para se contrapor às formas de violência explicitas e implícitas, que decompõem o tecido social.

Aqui me despeço, para poder continuar

A escrita deste texto deriva do compromisso que tenho na relação com o que venho investigando. Fui me deixando afetar pela pesquisa, pelos lugares e relações que eram construídas pelas pessoas, pelas crianças e mulheres propriamente ditas, e isso se faz neste tempo que nos é exigida a tomada e a explicitação de qual lado estamos nessa tragédia em que vivemos, assim como provocar diálogos entre a produção acadêmica, academia e movimentos sociais, mulheres e crianças em luta em diferentes espaços sociais e, com isso, colocar-se em atenção constante para alimentar nossa incipiente democracia.

Qual o papel da Casa da Mãe Solo na Ocupação? Objetivamente, é possível afirmar que se trata de um espaço em produção para e pelas mulheres e está imbricado às crianças, ainda que em sua ausência, conferindo atendimento de formação e assistência às mães-solo, categoria que ganha relevância neste texto e na produção da Casa. Ao retomarmos a pergunta: “onde estão as(os) bebês?”, recupero a Ocupação como terreno para a construção de infâncias, seja na Creche – porque já nascidas e crescidas –, seja na Casa da Mãe Solo. Há uma relação estreita entre as mães-solo, a Casa e as crianças, em que lutar pela qualidade de vida das mães remete a, indiretamente, provocar melhorias de vida para as crianças.

Não é difícil concluir a existência de muitas Donas Marias e Goretes, suas amigas e as crianças, filhas(es/os) e netas(es/os), pertencentes a grupos para os quais as expectativas de vida são mais baixas quando comparadas à outras regiões da cidade. Suas histórias não são comumente concebidas como válidas, dignas de registro. São trabalhadoras, hoje inseridas na informalidade que lhes permite a compra de mantimentos para elas e suas crianças. Disto decorre a grande importância de elaborarmos escritas e fazermos com que circulem os registros de suas histórias, reflexões e visões de mundo, para que possamos aprender com elas. Assim, espero que esse artigo seja uma pequena contribuição para a Casa da Mãe Solo e quem a faz diariamente.

  • 2
    Ibope. Inteligência. 2020/2021. Pesquisa de Opinião Pública. Viver em São Paulo. Gênero/Mulheres. Rede Nossa São Paulo. Ibope, 05 dez. 2020. Acessado em 15 nov. 2021. https://www.nossasaopaulo.org.br/wp-content/uploads/2021/03/ViverEmSP-Mulher-2021-completa.pdf.
  • 3
    Fundação Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade). 2020. Pesquisa Mulheres e Arranjos familiares na metrópole. Pesquisa Seade, 2020. Acessado em 15 nov. 2021. https://trajetoriasocupacionais.seade.gov.br/wp-content/uploads/sites/6/2021/05/mulheres_arranjos_familiares_metropole.pdf.
  • 4
    Gênero e Número. 2020. Um Retrato das mães solo na pandemia. Gênero e número, 8 jul. 2020. Acessado em 10 jun. 2022. https://www.generonumero.media/retrato-das-maes-solo-na-pandemia.
  • 5
    Refiro-me às pesquisas “Imagens de São Paulo: moradia e luta em regiões centrais e periféricas da cidade a partir de representações imagéticas criadas por crianças (Fapesp)” e “Crianças e mulheres em luta por moradia: na lida cotidiana, as escolas frequentadas e representadas”. Projeto a ser desenvolvido no ano sabático de 2020, realizado no Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA-USP).
  • 6
    A palavra casa será grafada com a letra “c” maiúscula sempre que referir-se à Casa da Mãe Solo.
  • 7
    Optou-se por escrever a palavra ocupação com a letra “o” em maiúsculo a cada vez que tratar-se da Ocupação Jardim da União.
  • 8
    Redes de comunidades do extremo sul de São Paulo-São Paulo. 2010. Rede Extremo Sul. Acessado em 11 jun. 2022. https://redeextremosul.wordpress.com.
  • 9
    As mulheres optaram pela manutenção de seus nomes reais.
  • 10
    Festa é a denominação usada para o momento em que um terreno ou edifício que não cumpre a função social da moradia é ocupado.
  • 11
    Busca-se o uso do gênero neutro na escrita deste texto.
  • 12
    Bueno, Samira, coord. 2022. Violência contra mulheres em 2021. Forum Brasileiro de Segurança Pública. Acessado em 10 jul. 2022. https://forumseguranca.org.br/publicacoes_posts/violencia-contra-mulheres-em-2021. Segundo o Atlas de Violência contra mulheres, publicado pelo Forum Brasileiro de Segurança Pública, tivemos entre março de 2020, mês que marca o início da pandemia de COVID-19 no país, e dezembro de 2021, último mês com dados disponíveis, 2.451 feminicídios e 100.398 casos de estupro e estupro de vulnerável de vítimas do gênero feminino.
  • 13
    Fala proferida em entrevista dada para a autora deste artigo por Dona Maria dos Doces, em 2018.
  • 14
    Assegurado pela Constituição Federal de 1988, o direito à moradia é uma competência comum da União, dos estados e dos municípios.
  • 15
    O registro imagético dessas práticas encontra-se no site www.entrimagens.com.br criado pela autora deste artigo e grupo de pesquisa Crianças, práticas urbanas, gênero e imagens.
  • Os textos deste artigo foram revisados pela Poá Comunicação e submetidos para validação do(s) autor(es) antes da publicação.

Referências

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    » https://doi.org/10.1590/18094449201800520002
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    18 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    20 Nov 2021
  • Aceito
    24 Jan 2022
  • Publicado
    21 Jul 2023
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