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A BUSCA ECUMÊNICA POR COMUNIDADES SUSTENTÁVEIS COM JUSTIÇA, PAZ E INTEGRIDADE DA CRIAÇÃO

The Ecumenical Search for Sustainable Communities with Justice, Peace and Integrity of Creation

RESUMO

O movimento ecológico, em especial a partir dos anos 1970, chamou a atenção do mundo para o grito de socorro da Terra. O movimento ecumênico internacional, representado especialmente pelo Conselho Mundial de Igrejas (CMI), foi fundamental nesse período na construção dos conceitos de sustentabilidade e de comunidades sustentáveis, no contexto das articulações da Organização das Nações Unidas (ONU) em torno da responsabilidade de governos e agentes públicos e privados pelo meio ambiente. Este artigo, assentado em metodologia exploratório-descritiva, tem por objetivos recuperar a memória desta participação e o pioneirismo que ela carrega, e ressaltar o significado do engajamento cristão nos esforços de cuidado com o planeta diante do quadro de grave degradação ambiental e atuais desafios no cuidado planetário. Para isso, foi utilizada pesquisa bibliográfica e documental, com ênfase nos documentos do CMI que tratam do desafio ecológico, especialmente aqueles voltados para os conceitos de sustentabilidade e de comunidades sustentáveis.

PALAVRAS-CHAVE
Movimento Ecumênico; Conselho Mundia de Igrejas; Sustentabilidade; Comunidades Sustentáveis; Meio Ambiente

ABSTRACT

The environmental movement, especially since the 1970s, has drawn the world’s attention to the Earth’s cry for help. The international ecumenical movement, especially represented by the World Council of Churches (WCC), was fundamental in this period in the construction of the concepts of sustainability and sustainable communities, in the context of the articulations of the United Nations (UN) regarding the responsibility of governments and public and private agents for the environment. The present article, based on an exploratory-descriptive methodology, aims to recover the memory of this participation and the pioneering spirit it carries, and to emphasize the importance of Christian engagement in efforts to care for the planet in the face of serious environmental degradation. For this, bibliographical and documentary research was used, with emphasis on documents from the WCC that deal with ecological challenges, especially those focused on the concepts of sustainability and sustainable communities.

KEYWORDS
Ecumenical Movement; World Council of Churches; Sustainability; Sustainable Communities; Environment

Introdução

O movimento ecológico, em especial a partir dos anos 1970, chamou a atenção do mundo para o grito de socorro da Terra. O movimento ecumênico internacional, representado especialmente pelo Conselho Mundial de Igrejas (CMI), foi fundamental nesse período na construção dos conceitos de sustentabilidade e de comunidades sustentáveis, no contexto das articulações da Organização das Nações Unidas (ONU) em torno da responsabilidade de governos e agentes públicos e privados pelo meio ambiente.

Este artigo, assentado em metodologia exploratório-descritiva, tem por objetivos recuperar a memória desta participação e o pioneirismo que ela carrega e ressaltar o significado do engajamento cristão nos esforços de cuidado com o planeta diante do quadro de grave degradação ambiental. Para isso, foi utilizada pesquisa bibliográfica e documental, com ênfase nos documentos do CMI que tratam do desafio ecológico, especialmente aqueles voltados para os conceitos de sustentabilidade e de comunidades sustentáveis.

Apesar de cristãos e cristãs serem alertados para um chamado de Deus para o cuidado com a Criação (FRANCISCO, 2015FRANCISCO, Papa. Carta Encíclica Laudato Si´. sobre o cuidado da casa comum. 2015. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html Acesso em: 15 mar 2023.
https://www.vatican.va/content/francesco...
; RIBEIRO, 2016RIBEIRO, C. O. (Org.). Evangélicos e o Papa: olhares de lideranças evangélicas sobre a Encíclica Laudato Si’, do Papa Francisco. São Paulo: Reflexão, 2016.), a atenção a ele, mesmo diante dos alarmantes índices de destruição da vida e dos meios de subsistência dos habitantes da Terra, não se mostrou correspondente. Pelo contrário, ao longo da história, as igrejas e suas lideranças, de forma significativa, depositaram apoio e participação em projetos de exploração e maltrato da Criação. A participação das igrejas da Europa nos processos de colonização das Américas, da África e da Ásia é o mais marcante exemplo, somada à adesão a outros eventos globais chamados “civilizatórios” (ELIAS, 1994ELIAS, N. O processo civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. v. 1.).

Há, porém, o registro histórico da existência de cristãos e cristãs sensíveis ao chamado divino para o cuidado com o meio ambiente. Alguns escritos e ações sobre a temática foram produzidos entre grupos confessionais. Memórias como o de Francisco de Assis, no século XIII, no valor e cuidado com os animais; o chamado do inspirador do metodismo John Wesley, no século XVIII, para a responsabilidade ambiental cristã, são exemplos de posturas e iniciativas que deixaram marcas em muitos destes grupos religiosos, cultivadas até o presente (CASTRO, 2003CASTRO, C. P. (Org.) Meio ambiente e missão: a responsabilidade ecológica da Igreja. São Bernardo do Campo: Editeo, 2003).

Esta abordagem é significativa para as reflexões em torno de uma teologia ecológica ou da Criação, tendo em vista as grandes demandas do tempo presente no que diz respeito ao cuidado com o meio ambiente. A humanidade parece ter alcançado um ponto em sua trajetória no qual homens e mulheres se tornaram a própria ameaça à Terra que habitam, por meio da exploração abusiva dos seus recursos, do maltrato aos demais seres e do descaso com os seus iguais. Isto representa a consolidação de um modelo de desenvolvimento mundial baseado na ganância, na competição e no consumo excessivo, no lucro gerador de injustiça e ausência de paz, a despeito da necessidade de sobrevivência para todos, com ameaças, em especial, às pessoas mais pobres.

Habitantes da Terra chegaram ao século XXI depois de experimentarem um século XX que sofreu duramente os efeitos dos modelos desenvolvimentistas pós-Revolução Industrial. A consolidação do capitalismo e a proliferação de guerras, criaram um rastro de destruição na biodiversidade e na saúde dos seres que dela extraem vida. O resultado é a redução das florestas; degradação do solo por exploração e ocupação desequilibrada com atividades econômicas e habitações; contaminação do ar, de nascentes, lagos, rios e mares; matança de animais; privatização de bens naturais essenciais à sobrevivência dos seres vivos, como água e vegetação; crise climática, com aumento da temperatura da Terra e maior incidência de desastres ambientais; proliferação de bactérias e vírus causadores de doenças, epidemias e pandemias, entre muitas outras situações (POTT; ESTRELA, 2017POTT, C. M.; ESTRELA, C. C. Histórico ambiental: desastres ambientais e o despertar de um novo pensamento. Estudos Avançados, São Paulo, v. 31, n. 89, p. 271-283, jan-abr 2017.).

É neste contexto que é construída uma memória do movimento ecumênico internacional, representado pelo CMI, que, em sintonia com as iniciativas da ONU na articulação de governos e agentes públicos e privados, busca responder a estes enormes desafios, com bases cristãs. A pesquisa exploratória, que passa ser exposta nas três partes que compõem este artigo, indica que as igrejas, por intermédio do CMI, tiveram papel preponderante na construção dos conceitos de sustentabilidade e, em perspectiva crítica, de comunidades sustentáveis.

1 Sustentabilidade: as transformações de uma noção

De acordo com os registros da ONU, a noção de sustentabilidade começou a ser gestada na Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em Estocolmo (Suécia), em 1972 (UNITED..., s.d.UNITED NATIONS. Conference on the Human Environment (Stockholm Conference), s.d. Disponível em: https://sdgs.un.org/events/united-nations-conference-human-environment-stockholm-conference-24552 Acesso em: 10 mar 2023.). Esta reunião marcou a entrada dos países e seus governos na discussão sobre as contradições entre desenvolvimento e o meio ambiente.

As questões ambientais não foram grande preocupação da ONU no período após a sua criação, em 1948. Uma Conferência Científica foi realizada em 1949, em Lake Success, Nova York, para tratar sobre a conservação e a utilização de recursos. Foi o primeiro evento da ONU a abordar o esgotamento desses recursos ambientais e seu uso.

Somente em 1968 as questões ambientais passaram a receber maior atenção por parte dos principais órgãos da ONU. O Conselho Econômico e Social, reunido naquele ano, foi o primeiro a incluir a temática em sua agenda, como item específico, e decidiu – com o endosso da Assembleia Geral — realizar a primeira Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano.

Esta conferência aconteceu, então, em Estocolmo e reuniu 113 países e mais 400 instituições governamentais e não governamentais, entre elas o CMI. A Conferência Científica, também conhecida como o primeiro Earth Summit [Cúpula da Terra], tornou-se a primeira conferência sobre meio ambiente da ONU. Lá foram tratados temas como a preservação da biodiversidade, riscos da chuva ácida e a necessidade de ações para evitar um agravamento dos problemas ambientais da Terra que já estavam em curso, como o controle da poluição do ar. Esta conferência se destaca ainda porque, primeira vez, países em bloco dedicaram-se à discussão sobre o meio ambiente em relação à situação da população no mundo, à poluição atmosférica e à desenfreada exploração dos recursos naturais.

Estocolmo estabeleceu uma pauta que, dez anos depois, em 1983, resultou na criação da Comissão Mundial de Meio Ambiente e Desenvolvimento, pela Assembleia Geral da ONU, presidida por Gro Harlem Brundtland, na época primeira-ministra da Noruega, e Mansour Khalid. O objetivo da Comissão era promover audiências em todo o mundo, em avaliação aos dez anos da Conferência de Estocolmo, e oferecer um resultado das discussões para futuros encaminhamentos.

A Comissão apresentou, em 1987, o documento “Our common future” [Nosso futuro comum], que ficou conhecido como Relatório Brundtland (WORLD COMMISSION ON ENVIRONMENT AND DEVELOPMENT, 1987WORLD COMMISSION ON ENVIRONMENT AND DEVELOPMENT. Report of the World Commission on Environment and Development: Our Common Future. United Nations, 4 ago 1987. Disponível em https://digitallibrary.un.org/record/139811?ln=en#record-files-collapse-header Acesso em 10 mar 2023.
https://digitallibrary.un.org/record/139...
). O documento lista vários desafios ecológicos, econômicos e sociais, considerados como graves ameaças ao ambiente natural e à paz no mundo. É nele que, pela primeira vez, será registrada a ideia de desenvolvimento sustentável e se destaca a responsabilidade crítica da humanidade para as gerações seguintes.

O relatório Brundtland entende o desenvolvimento sustentável como o “desenvolvimento que atende às necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras satisfazerem as suas próprias necessidades” (WORLD COMMISSION ON ENVIRONMENT AND DEVELOPMENT, 1987WORLD COMMISSION ON ENVIRONMENT AND DEVELOPMENT. Report of the World Commission on Environment and Development: Our Common Future. United Nations, 4 ago 1987. Disponível em https://digitallibrary.un.org/record/139811?ln=en#record-files-collapse-header Acesso em 10 mar 2023.
https://digitallibrary.un.org/record/139...
, p. 54, tradução nossa). Desta forma, o conceito pode ser aplicado a uma grande parte dos sistemas econômicos, sociais e políticos, levando-se em conta questões que estão interrelacionadas: (1) sustentabilidade é fundamentalmente oposta à cultura do consumismo desenfreado; (2) sustentabilidade requer um novo modelo econômico que não seja baseado em crescimento tão-só. Sustentabilidade considera tanto o crescimento econômico como um meio de atender às necessidades humanas, quanto as restrições impostas a este mesmo crescimento econômico, de forma a atenuar o impacto dele no ambiente natural e permitir a integridade do tecido da sociedade.

O Relatório Brundtland define desenvolvimento sustentável como “um processo de mudança no qual a exploração recursos, a direção dos investimentos, a orientação do desenvolvimento tecnológico; e a mudança institucional estão todos em harmonia e aprimoram tanto o atual quanto o potencial futuro para satisfazer as necessidades e aspirações humanas” (WORLD COMMISSION ON ENVIRONMENT AND DEVELOPMENT, 1987WORLD COMMISSION ON ENVIRONMENT AND DEVELOPMENT. Report of the World Commission on Environment and Development: Our Common Future. United Nations, 4 ago 1987. Disponível em https://digitallibrary.un.org/record/139811?ln=en#record-files-collapse-header Acesso em 10 mar 2023.
https://digitallibrary.un.org/record/139...
, p. 54, tradução nossa)

Foi no contexto deste documento que a ideia de desenvolvimento sustentável passou a ser considerada uma referência para os objetivos da ONU, tomando-se em conta relações sociais mais justas e pacíficas em relação ao melhor cuidado com ambiente natural. A noção de sustentabilidade do desenvolvimento foi considerada a partir de uma perspectiva ecológica e não prioritariamente econômica, como vinha sendo até então, durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento (Earth Summit – ECO-92), no Rio de Janeiro, Brasil, em 1992. Como resultado, foi criada a Comissão de Desenvolvimento Sustentável da ONU.

Naquele mesmo ano, a Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC) foi adotada, com o objetivo final de prevenir a interferência humana perigosa no sistema climático. O Protocolo de Kyoto, de 1997, e o Acordo de Paris, de 2015, se baseiam na Convenção. O Acordo de Paris foi uma conquista considerável para a comunidade internacional. Pela primeira vez, um acordo sobre mudanças climáticas levou todos os países a um compromisso ambicioso de combater as mudanças climáticas, limitando o aumento da temperatura global bem abaixo de dois graus Celsius e lutando por 1,5 graus Celsius.

Todos os anos, as partes da Convenção se reúnem em Conferências das Partes (COPs), bem como em reuniões técnicas ao longo do ano, para promover os objetivos e ambições do Acordo de Paris e obter progresso em sua implementação (JACKSON, 2007JACKSON, P. From Stockholm to Kyoto: A Brief History of Climate Change. United Nations, jun 2007. Disponível em: https://www.un.org/en/chronicle/article/stockholm-kyoto-brief-history-climate-change. Acesso em 12 mar 2023
https://www.un.org/en/chronicle/article/...
).

À medida que ocorreram estas plataformas promovidas pela ONU e por outras articulações conscientes da questão ambiental como um tema crucial para a sobrevivência do planeta, o escopo da ideia de desenvolvimento sustentável relacionado às demandas ecológicas em torno da integridade do desenvolvimento econômico foi se expandindo.

O segundo milênio trouxe novas demandas e urgências, uma vez que o mundo não experimentou as transformações necessárias para a sobrevivência da Terra, apregoadas desde a primeira conferência do meio ambiente da ONU em Estocolmo, 1974. Nestas quase duas décadas e meia dos anos 2000 os esforços se voltaram ao enfrentamento da pobreza e da exclusão social como uma questão ambiental. As Metas de Desenvolvimento Sustentável (Agenda 2030 da ONU) foram aprovadas pela Assembleia Geral neste contexto (TRANSFORMIG..., 2015TRANSFORMING our world: the 2030 Agenda for Sustainable Development. United Nations, 25 set 2015. Disponível em: https:// https://sdgs.un.org/publications/transforming-our-world-2030-agenda-sustainable-development-17981. Acesso em: 15 mar 2023.
https:// https://sdgs.un.org/publication...
).

A superação da pobreza passou a ser considerada uma das prioridades mais urgentes da comunidade política internacional, e a consideração do lugar das comunidades humanas, e não só dos governos e dos agentes econômicos, na busca da sustentabilidade. A Meta 16 expressa bem a mudança de ênfases experimentada na ONU: “Promover sociedades pacíficas e inclusivas para o desenvolvimento sustentável, proporcionar acesso à justiça para todos e construir um sistema eficaz, responsável e instituições inclusivas em todos os níveis” (TRANSFORMIG..., 2015TRANSFORMING our world: the 2030 Agenda for Sustainable Development. United Nations, 25 set 2015. Disponível em: https:// https://sdgs.un.org/publications/transforming-our-world-2030-agenda-sustainable-development-17981. Acesso em: 15 mar 2023.
https:// https://sdgs.un.org/publication...
, p. 25, tradução nossa).

O movimento ecumênico, por meio do CMI esteve presente no nascimento da ONU e teve papel destacado neste processo de transformação da consciência ambiental da instituição. A próxima parte deste artigo ressaltará as bases desta memória.

2 Justiça, Paz e Integridade da Criação: em busca de comunidades sustentáveis

O CMI é a mais importante expressão do movimento ecumênico, o testemunho conjunto, consolidado no início do século XX, das igrejas na oikoumene (ecumene, casa comum), da busca por diálogo e unidade visível de cristãos e cristãs e da unidade na promoção da vida que envolve também as outras confissões de fé. Fundado em 1948, o CMI é uma associação fraterna, resultante dos esforços de unidade cristã; mais de 350 igrejas anglicanas, batistas, luteranas, metodistas e reformadas, a maior parte das igrejas ortodoxas bem como muitas igrejas unidas e independentes (WHAT..., s.d.WORLD COUNCIL OF CHURCHES. What is the World Council of Churches?, s.d. Disponível em: https://www.oikoumene.org/about-the-wcc. Acesso em: 10 mar 2023.
https://www.oikoumene.org/about-the-wcc...
).

Quando o CMI foi formalmente inaugurado em 1948, o processo representava o encontro de densas e profundas vertentes dos movimentos pela unidade das igrejas, desde o século 19, que remontam ao Evangelho Social e aos movimentos Vida e Ação, com a atenção voltada à responsabilidade cristã com as questões sociais. Como a organização de maior expressão no ecumenismo mundial, o CMI desde o início atuou em consonância com estas bases (CUNHA; RIBEIRO, 2013CUNHA, M. N; RIBEIRO, C. O. O rosto ecumênico de Deus. São Paulo: Fonte Editorial, 2013.).

A preocupação com os projetos desenvolvimentistas e seus efeitos sobre a vida do mundo tornou-se tema das reuniões ecumênicas dos anos 1960. A Conferência Mundial de Igreja e Sociedade, realizada pelo CMI, em 1966, estudou a questão que destacava a ameaça sobre as populações, em especial as mais pobres e vulneráveis. A partir daí foi inevitável chegar ao tema do meio-ambiente. Após a Conferência da ONU em Estocolmo, 1972, o CMI realizou a Consulta sobre Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento Humano, em Bucareste (Romênia), 1974, onde teólogos, cientistas e economistas de todo o mundo propuseram o conceito de sustentabilidade (grifo nosso):

Por um curto período da história recente, algumas sociedades cultivaram o sonho da riqueza ilimitada, de superar a pobreza não primariamente pela partilha da riqueza, mas pelo seu aumento para que houvesse o suficiente para todos. Agora enfrentamos um retorno preocupante à realidade. Começamos a perceber que o futuro exigirá uma economia de recursos e uma redução das expectativas de crescimento global crescimento econômico. Não esperamos que a humanidade possa viver como os mais extravagantes têm vivido, e não acreditamos mais que o transbordamento de riqueza do topo significará prosperidade para todos. Pode haver uma ironia divina no fato de que as próprias vitórias tecnológicas que antes sustentavam a visão de riqueza, agora — por sua contribuição para aumento do consumo de recursos, aumento da população e poluição — estão trazendo um acabar com o sonho de um futuro despreocupado e rico. O objetivo deve ser um sistema robusto e sustentável de sociedade, onde cada indivíduo possa se sentir seguro de que sua qualidade de vida será mantida ou melhorada

(WORLD COUNCIL OF CHURCHES, 1974WORLD COUNCIL OF CHURCHES. ROBRA, M. Climate Change. Genebra:, jan 2005. Disponível em: https://www.oikoumene.org/sites/default/files/Document/Climate_Change_Brochure_2005.pdf Acesso em 10 mar 2023.
https://www.oikoumene.org/sites/default/...
, apud VISCHER, 1997VISCHER, L. Climate Change, Sustainability and Christian Witness. The Ecumenical Review, v. 49, n. 2, p. 142-161, 1997. Disponível em https://www.lukasvischer.unibe.ch/pdf/1997_climate_change_sustainability_christian_witness.pdf Acesso em 15 mar 2023
https://www.lukasvischer.unibe.ch/pdf/19...
, p. 143, tradução nossa).

Já na contramão da tendência global, que colocava a ênfase desenvolvimentista no crescimento econômico, e ouvindo os grupos interessados nos efeitos dessas práticas na vida do planeta, a 5ª Assembleia do CMI, realizada em Nairóbi (Quênia), em 1975, estabeleceu a criação de um programa denominado “A Busca de uma Sociedade Justa, Participativa e Sustentável”. O encaminhamento contribuiu para fortalecer o conceito de sustentabilidade para o reconhecimento global, com ênfase na participação dos diferentes agrupamentos populacionais. O Programa, que passou a trabalhar o tema com igrejas em todos os continentes, incluía a compreensão de “limites para o crescimento” (VISCHER, 1997VISCHER, L. Climate Change, Sustainability and Christian Witness. The Ecumenical Review, v. 49, n. 2, p. 142-161, 1997. Disponível em https://www.lukasvischer.unibe.ch/pdf/1997_climate_change_sustainability_christian_witness.pdf Acesso em 15 mar 2023
https://www.lukasvischer.unibe.ch/pdf/19...
).

Nos círculos ecumênicos se aprofundava a avaliação crítica de que a ideia de desenvolvimento não atendia às expectativas e a consciência de que crise mundial se aprofundou. Ela se dava pela crescente desigualdade social entre ricos e pobres e também à crescente demanda ecológica diante das catástrofes, que serviam de base para que os ativistas ecumênicos demandassem outras soluções de governos e instituições internacionais.

Desta forma, é importante destacar, que o conceito de desenvolvimento sustentável surgiu no contexto do movimento ecumênico, participante dos diálogos sobre o cuidado com o meio ambiente desde os anos 60, doze anos antes de ser usado no Relatório Brundtland.

Como resultado de seu engajamento nestas questões, e como desafio ao testemunho cristão no mundo, o CMI destacou o tema do cuidado com a Criação na sua 6ª Assembleia, realizada em Vancouver, Canadá, em 1983. As igrejas membros foram convidadas a se “unirem em um processo conciliar de compromisso mútuo com a justiça, a paz e a integridade de toda a criação” (GILL, 1983GILL, D. (Ed.). Gathered for life. Official Report, VI Assembly of the World Council of Churches, Vancouver, Canada, 24th July — 10th August, 1983. Geneva: World Council of Churches, 1983. Disponível em: https://archive.org/stream/wcca20/wcca20_djvu.txt Acesso em: 15 mar 2023
https://archive.org/stream/wcca20/wcca20...
, p. 255, tradução nossa). A tarefa foi considerada urgente e a ela foi dada alta prioridade.

Como consequência, foi estabelecido o “Processo Justiça, Paz e Integridade da Criação” (JPIC), um aprofundamento do Programa Sociedade Justa, Participativa e Sustentável. Nesse sentido, a questão ambiental foi definitiva e integralmente incorporada à preocupação e às ações ecumênicas nos processos de desenvolvimento. Escritórios especiais foram criados para realizar e promover o programa descrito como um “processo conciliar”. Um esforço foi estabelecido para envolver as igrejas e pessoas em estudo e ação.

Em desdobramento, foi realizada, em 1990, a Convocatória Justiça, Paz e Integridade da Criação, em Seul (Coréia do Sul), com a participação de todas as igrejas-membros do CMI e outras igrejas convidadas, bem como personalidades e organizações de defesa do meio ambiente.

Desde os seus primórdios o movimento ecumênico, e o CMI, por conseguinte, enfatizava em suas ações as noções de paz e justiça. Atravessando guerras mundiais e conflitos localizados, defrontando-se com buscas humanitárias intensas, o movimento ecumênico foi aprendendo que justiça e paz são elementos inseparáveis e deveriam estar na raiz de todo testemunho cristão neste mundo. Esta ênfase marcou a Convocatória de Seul JPIC.

A reunião teve por objetivo traçar projetos para uma ação ecumênica que possibilite a superação dos problemas causados pela injustiça, violência e pela degradação do meio ambiente (NILES, 2002NILES, D. P. “Justice, Peace and the Integrity of Creation”. In: LOSSKY, N. et al (Eds). Dictionary of the Ecumenical Movement. 2 ed. Genebra: World Council of Churces, 2002, p. 631-633.). A preocupação com a mudança climática esteve em destaque. Foram feitas dez afirmações da parte das igrejas: (1) o exercício do poder como prestação contas a Deus, (2) a opção de Deus pelos pobres, (3) o valor igual de todas as etnias e povos, (4) homens e mulheres como seres criados à imagem de Deus, (5) a verdade está na base de uma comunidade de pessoas livres, (6) a paz de Jesus Cristo, (7) a criação como amada de Deus, (8) a terra é do Senhor, (9) a dignidade e o compromisso da geração mais jovem, (10) os direitos humanos como dádivas de Deus.

Os participantes de Seul também firmaram um pacto sobre quatro questões concretas (NILES, 2002NILES, D. P. “Justice, Peace and the Integrity of Creation”. In: LOSSKY, N. et al (Eds). Dictionary of the Ecumenical Movement. 2 ed. Genebra: World Council of Churces, 2002, p. 631-633.): (1) uma ordem econômica justa e libertação da escravidão da dívida externa; (2) a verdadeira segurança de todas as nações e povos e uma cultura de não-violência, (3) a construção de uma cultura que viva em harmonia com a integridade da criação e a preservação do dom da atmosfera da terra (o clima) para cultivar e sustentar a vida do mundo, (4) a erradicação do racismo e da discriminação em todos os níveis, para todos os povos, e o desmantelamento dos padrões de comportamento que perpetuam o pecado do racismo.

Na 7ª Assembleia, posterior à Convocatória de Seul, realizada em Canberra, Austrália, em 1991, o CMI abraçou definitivamente o Processo JPIC e uma Unidade Programática denominada Justiça, Paz e Criação foi criada. Naquele mesmo ano foi iniciado o Estudo sobre Teologia da Vida, construído a partir de experiências de 22 grupos locais ao redor do mundo, cada um refletindo sobre cada uma das dez afirmações da Convocatória de Seul. A intenção era consolidar uma teologia para o CMI que fosse mais vinculada às experiências das comunidades locais nos diferentes continentes. O CMI trabalhava para incentivar as igrejas, no seu caminho de diálogo entre si, com as demais religiões e com todos os demais grupos que atuam pela vida, que desenvolvessem um testemunho vivo de sua resposta ao chamado divino do cuidado com a Criação. Incluída aí se colocava a tarefa profética da denúncia dos processos de ambição desmedida de nações e grupos privados resultantes na exploração e na destruição do meio ambiente. Assim se enfatizava a responsabilidade das igrejas com o cuidado com o meio ambiente, com a Criação (VISCHER, 1997VISCHER, L. Climate Change, Sustainability and Christian Witness. The Ecumenical Review, v. 49, n. 2, p. 142-161, 1997. Disponível em https://www.lukasvischer.unibe.ch/pdf/1997_climate_change_sustainability_christian_witness.pdf Acesso em 15 mar 2023
https://www.lukasvischer.unibe.ch/pdf/19...
).

Foi a partir dessa dinâmica que o movimento ecumênico, particularmente o CMI, esteve oficialmente presente na Conferência da ONU Rio-92 (ECO-92), interagindo com chefes de Estado e autoridades político-econômicas. A Rio-92 contou com uma programação paralela promovida por organizações ecumênicas e por organizações não-governamentais de todo o mundo, a Expo Rio-92, entre elas uma Tenda Inter-Religiosa que discutia a relação meio-ambiente-religiões e a realização da celebração inter-religiosa “Um novo dia para a Terra”.

Além deste programa, o CMI promoveu um encontro paralelo que reuniu 150 representantes das igrejas de todos os continentes (mais de 100 países) e foi intitulado “Em busca de um novo céu e uma nova terra”. A peculiaridade desse evento residiu no fato de que, por uma opção teológica, ele foi realizado não no Aterro do Flamengo, zona sul do Rio de Janeiro, ao lado dos demais eventos paralelos programados pela Expo Rio-92, mas com imersão em comunidades e em uma casa de encontros da Igreja Católica, na cidade de Nova Iguaçu, Baixada Fluminense.

Na Carta às Igrejas, produzida ao final desse encontro, os participantes declararam a singularidade daquela situação histórica, em que, pela primeira vez, se reconhecia que os sistemas que sustentam a vida no planeta poderiam ser destruídos pela ação humana. As igrejas reconheceram que houve “conquistas e limitações” na ECO-92 e que os resultados deveriam ser tomados como ponto de partida para maior cooperação internacional. O encontro de Nova Iguaçu representou a renovação do compromisso ecumênico profético de 20 anos, por meio do CMI. Como desdobramento, o CMI publicou, em 1994 a obra “Ecoteologia:

Vozes do Sul e do Norte, uma antologia de pensamento teológico e ético criativo de todo o mundo sobre os temas meio ambiente e desenvolvimento” (HALLMANN, 2002HALLMANN, D. G. Environment/Ecology. In: LOSSKY, N. et al (Eds). Dictionary of the Ecumenical Movement. 2 ed. Genebra: World Council of Churches, 2002a. p. 396-398.).

Outro desdobramento foi o lançamento, em 1992, do Programa do CMI sobre Mudanças Climáticas com três grandes ênfases: análise teológica e ética que resultassem em defesa da causa; declarações públicas e recursos educativos (ROBRA, 2005WORLD COUNCIL OF CHURCHES. ROBRA, M. Climate Change. Genebra:, jan 2005. Disponível em: https://www.oikoumene.org/sites/default/files/Document/Climate_Change_Brochure_2005.pdf Acesso em 10 mar 2023.
https://www.oikoumene.org/sites/default/...
).

A partir da ECO-92, o movimento ecumênico passou a questionar fortemente o termo “desenvolvimento sustentável”, considerado mal utilizado, legitimador de abordagens econômicas baseadas no crescimento econômico ilimitado e de uma expansão de produção e de consumo contínua e desregulada para os ricos do mundo. Na compreensão das lideranças religiosas, medir o progresso pelo desenvolvimento sustentável neste contexto seria evitar desafiar as dinâmicas que aumentam a desigualdade entre ricos e pobres no mundo, que causam destruição ambiental (HALLMANN, 2002bHALLMANN, D. G. Report on the World Summit on Sustainable Development (WSSD). World Council of Churches, 4 set 2002b. Disponível em: https://www.oikoumene.org/resources/documents/report-on-the-world-summit-on-sustainable-development-wssd Acesso em: 10 mar 2023.
https://www.oikoumene.org/resources/docu...
).

O CMI passou a integrar todas as conferências e plataformas promovidas pela ONU e por articulações internacionais. O agravamento da situação do planeta, em especial com as mudanças climáticas, provocou novos alertas para o cuidado com o meio ambiente por parte da comunidade internacional e do movimento ecumênico.

Dez anos depois, ao relatar os resultados da Rio+10, a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável, em Joanesburgo, África, 2002, o coordenador do Programa de Mudanças Climáticas do CMI David Hallman, representante do organismo na reunião, registrou a crescente decepção dos organismos ecumênicos com a noção de desenvolvimento sustentável. No documento apresentado ao CMI, com data de 4 de setembro de 2002, Hallmann avalia que apesar de governos e organizações da ONU envolvidos na conferência terem falado, com frequência, sobre o que chamam de três pilares do desenvolvimento sustentável: o social, o ambiental e o econômico – uma importante interligação, no seu entender — houve pouca evidência de qualquer crítica fundamental do modelo explorador de desenvolvimento econômico (HALMANN, 2002bHALLMANN, D. G. Report on the World Summit on Sustainable Development (WSSD). World Council of Churches, 4 set 2002b. Disponível em: https://www.oikoumene.org/resources/documents/report-on-the-world-summit-on-sustainable-development-wssd Acesso em: 10 mar 2023.
https://www.oikoumene.org/resources/docu...
).

Para o representante do CMI, a falta de crítica à exploração econômica, na reunião de Joanesburgo, enfraquece os três pilares e aumenta a disparidade no mundo e desacredita ainda mais o fundamento ecológico da vida. Hallmann propõe, então, em seu relatório, uma nova categoria de ensinamento social ecumênico, a ideia de comunidade sustentável:

Em vez de “desenvolvimento sustentável”, falamos cada vez mais de “comunidade sustentável”. Embora continue a levar a perspectiva de longo prazo da sustentabilidade, ele se afasta do termo “desenvolvimento” e se concentra em “comunidade”, onde pode ocorrer o cultivo de relações equitativas tanto dentro da família humana quanto entre os seres humanos e o resto do mundo. comunidade ecológica — em outras palavras, justiça dentro de toda a criação de Deus.

Entendemos comunidade em um sentido amplo. Inclui a centralidade do ambiente local no qual as pessoas atendem às suas necessidades e encontram significado. Além disso, buscamos discernir princípios de comunidade que se aplicam às relações entre nações onde somos lembrados de que vivemos em uma aldeia global. Além disso, a comunidade abrange nossos relacionamentos além da família humana — a teia da vida na qual somos apenas um dos muitos membros inter-relacionados

(HALLMANN, 2002bHALLMANN, D. G. Report on the World Summit on Sustainable Development (WSSD). World Council of Churches, 4 set 2002b. Disponível em: https://www.oikoumene.org/resources/documents/report-on-the-world-summit-on-sustainable-development-wssd Acesso em: 10 mar 2023.
https://www.oikoumene.org/resources/docu...
, on line).

Destaca-se aí, mais uma vez, o pioneirismo do movimento ecumênico internacional, representado no CMI, na reflexão sobre a responsabilidade com o meio ambiente e no chamado à responsabilidade, não só das igrejas como também dos poderes políticos e econômicos neste cuidado, com uma compreensão ancorada na justiça social. David Hallmann justifica teologicamente a apresentação da noção de comunidade sustentável:

Deus criou todo o cosmos para ser bom; é uma herança comum para todos os povos, para todos os tempos, a ser desfrutada em relacionamentos justos, amorosos e responsáveis uns com os outros. Esse entendimento é fundamental em nossa visão de uma economia justa e moral onde: a) as pessoas têm o poder de participar plenamente na tomada de decisões que afetam suas vidas, b) as instituições e empresas públicas e privadas são responsáveis pelos impactos sociais e ambientais e as consequências de suas operações, e c) a Terra e toda a ordem criada são nutridas com o máximo respeito e reverência, em vez de serem exploradas e degradadas.

(...)

Em nossa visão de comunidade, a suficiência é um elemento-chave — há o suficiente para todos e todos têm o suficiente. Essa visão inclui saúde física, mental e espiritual, segurança alimentar em quantidade e qualidade, ar e água limpos, boas moradias, oportunidades educacionais e transporte adequado. As relações de justiça e suficiência produzem um alto grau de contentamento, celebração e realização espiritual que contrasta marcadamente com a pobreza espiritual do consumismo compulsivo que tanto faz parte de muitas sociedades contemporâneas

(HALLMANN, 2002bHALLMANN, D. G. Report on the World Summit on Sustainable Development (WSSD). World Council of Churches, 4 set 2002b. Disponível em: https://www.oikoumene.org/resources/documents/report-on-the-world-summit-on-sustainable-development-wssd Acesso em: 10 mar 2023.
https://www.oikoumene.org/resources/docu...
, on line).

Estas são as bases com as quais o movimento ecumênico, com a liderança do CMI, adentrou o século 21 e suas novas demandas.

3 Novos trajetos na caminhada ecumênica pela justiça, a paz e a integridade da Criação em comunidades sustentáveis

Nos anos 2000, a defesa da justiça ambiental tomou espaço privilegiado nas ações do CMI. O organismo ecumênico reconhece que os impactos destrutivos sobre a Terra são históricos na trajetória da humanidade mas o momento nunca foi tão grave. Um novo e grande mal que afeta a Criação é a cultura global do consumo exacerbado, do mercado sem fronteiras, amplamente vivido e estimulado por e para países ricos e países em desenvolvimento. A vida, na sua integralidade, vem sendo afetada por isto.

O documento “AGAPE (Alternative Globalization Addressing Peoples and Earth [Globalização Alternativa Dirigida aos Povos e à Terra]), de 2005, já aprofundava este aspecto do contexto global (JUSTICE, PEACE AND CREATION TEAM, 2005). Foi o resultado de um estudo sobre globalização econômica estabelecido entre a 8ª Assembleia do CMI (Harare, Zimbabue, 1998) e a 9ª (Porto Alegre, Brasil, 2006). O texto foi preparado pela Comissão de Justiça, Paz e Integridade da Criação, sob a coordenação do Comitê Central do CMI. Ele cita o espaço privilegiado do Fórum Social Mundial e denuncia que a globalização econômica e as estruturas do mercado financeiro estão ampliando cada vez mais as diferenças entre ricos e pobres e causando maior ameaça à paz na Terra. A globalização é reconhecida como um processo perverso para o meio ambiente, por meio de amplo caminho para a exploração e menos espaço para a solidariedade. As igrejas são chamadas a agir unidas para transformar a injustiça econômica.

Com base nessas concepções da longa trajetória que enfatiza as relações entre justiça, paz e integridade da criação, o CMI procurou responder às demandas indicadas pelo documento AGAPE e aos desafios globais mais urgentes. Sob o Programa “Testemunho Público e Diaconia”, o organismo ecumênico desenvolveu o que denomina “trabalho de eco-justiça” por meio da Rede Ecumênica da Água, do Projeto de Justiça Climática e do Projeto Pobreza, Riqueza e Ecologia. São muitas as ações entre materiais de estudo para as igrejas e eventos de formação para práticas ecumênicas pelo cuidado com a Criação.

É nesse sentido que o CMI desenvolve, desde 2009, uma campanha denominada “Season of Creation” [Tempo da Criação], realizada de 1 de setembro a 4 de outubro (SEASON, s.d). O período da campanha tem relação com a preocupação com a Criação da parte de tradições cristãs orientais e ocidentais. O 1º de setembro é o Dia de Oração pelo Meio Ambiente estabelecido pelo Patriarca Ecumênico, em 1989. O ano da Igreja Ortodoxa começa nesse dia com a comemoração da Criação do Mundo por Deus. Em 4 de outubro, católicos romanos e outros grupos cristãos ocidentais celebram o Dia de São Francisco de Assis, nas tradições católica romana e anglicana. O CMI considerou importante ressaltar o testemunho de Francisco de Assis para com a Criação, conhecido pela composição do hino, cantado em muitas igrejas “Cântico das Criaturas/da Criação”.

O tema da campanha “Tempo para a Criação” é apresentado como uma oportunidade de jejuar pelo clima; de orar durante o período; de refletir e chamar as igrejas para a mudança, para a conversão do ser humano como cuidador da Casa Comum. É também tempo de renovar a esperança e reafirmar a responsabilidade com a Criação e todas as possibilidades de sua redenção.

O Papa Francisco, na Encíclica Laudato Si’ acompanha esta ênfase, no destaque ao aporte do Patriarcado Ortodoxo Ecumênico. Ele cita no documento o chamamento do Patriarca Ecumênico Bartolomeu, a quem se refere como “amado”, “à necessidade de cada um se arrepender do próprio modo de maltratar o planeta, porque ‘todos, na medida em que causamos pequenos danos ecológicos’, somos chamados a reconhecer ‘a nossa contribuição – pequena ou grande – para a desfiguração e destruição do ambiente’” (FRANCISCO, 2015FRANCISCO, Papa. Carta Encíclica Laudato Si´. sobre o cuidado da casa comum. 2015. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html Acesso em: 15 mar 2023.
https://www.vatican.va/content/francesco...
, n. 8). Na trilha dos esforços ecumênicos, Francisco instituiu o 1º de setembro como o Dia Mundial de Oração pelo Cuidado com a Criação. Esta ação faz parte do chamado à conversão feito na Encíclica:

Convido todos os cristãos a explicitar esta dimensão da sua conversão, permitindo que a força e a luz da graça recebida se estendam também à relação com as outras criaturas e com o mundo que os rodeia, e suscite aquela sublime fraternidade com a criação inteira que viveu, de maneira tão elucidativa, São Francisco de Assis”

(FRANCISCO, 2015FRANCISCO, Papa. Carta Encíclica Laudato Si´. sobre o cuidado da casa comum. 2015. Disponível em: https://www.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html Acesso em: 15 mar 2023.
https://www.vatican.va/content/francesco...
, n. 221).

A 10ª Assembleia do CMI, realizada em Busan (Coreia do Sul), em 2013, reconheceu as mudanças climáticas como “uma das ameaças globais mais desafiadoras, afetando especialmente os mais vulneráveis” (WORLD COUNCIL OF CHURCHES, 2013WORLD COUNCIL OF CHURCHES. Minute on Climate Justice. World Council of Churches, 8 nov 2013. Disponível em https://www.oikoumene.org/resources/documents/minute-on-climate-justice Acesso em 10 mar 2023.
https://www.oikoumene.org/resources/docu...
, on line, tradução nossa). A Assembleia de Busan observou que, apesar do crescente consenso científico sobre as mudanças climáticas antropogênica se a gravidade de suas consequências, as negociações em nível internacional não produziram respostas efetivas para enfrentar o desafio. Nesse sentido, a Assembleia clamou por eco-justiça e pediu às igrejas e organizações ecumênicas para instarem que seus respectivos governos a “olharem além dos interesses nacionais, a fim de serem responsáveis para com a criação de Deus e o nosso futuro comum, e exortá-los a salvaguardar e promover os direitos humanos básicos daqueles que são ameaçados pelos efeitos das mudanças climáticas” (WORLD COUNCIL OF CHURCHES, 2013WORLD COUNCIL OF CHURCHES. Season of Creation (s.d.). Disponível em: https://www.oikoumene.org/node/6282#:~:text=The%20beginning%20and%20the%20end,October%20is%20Season%20of%20Creation. Acesso em: 15 mar 2023.
https://www.oikoumene.org/node/6282#:~:t...
, on line, tradução nossa).

A 11ª Assembleia do CMI, reunida em Karlshure, Alemanha, 2022, meses antes da Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP 27), no Egito, produziu a declaração “O Planeta Vivo: em busca de uma comunidade global justa e sustentável” (WORLD COUNCIL OF CHURCHES, 2022WORLD COUNCIL OF CHURCHES, 18 jun 2022. Disponível em: https://www.oikoumene.org/resources/documents/wcc-central-committee-statement-on-the-imperative-for-effective-response-to-the-climate-emergency. Acesso em 15 mar 2023.
https://www.oikoumene.org/resources/docu...
, on line, tradução nossa). O texto ressalta uma urgente preocupação das igrejas em assembleia e demanda numa “corrida contra o tempo”.

Quando as igrejas se reuniram em Kalrshure, reconheceram estar em um tempo equivalente à metade da Agenda 2030 para o desenvolvimento sustentável (2016-2030), tornando-se cada vez mais claro que muitos dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) estão seriamente fora do caminho, devido à convergência e-crises relacionadas ao clima, à covid-19, aos conflitos, à alimentação, à energia, às finanças e à desigualdade.

Essa assembleia foi convocada como

a última assembleia ecumênica global dentro da janela de oportunidade restante para ação para evitar os piores impactos da mudança climática”, para servir como uma plataforma “para promover a metanoia ecológica que necessidade no movimento ecumênico e em todo o mundo, através do encontro de igrejas de nações ricas e pobres, de privilegiados e em perigo

(CENTRAL COMMITTEE, 2022, on line, tradução nossa).

A liderança do CMI encorajou todas as igrejas membros do organismo e parceiros ecumênicos

a participarem da Assembleia preparados para ouvir e aprender com as histórias de luta e resiliência das comunidades afetadas, para compartilhar seus compromissos e iniciativas, e combinar suas palavras com ações, para ajudar a garantir um futuro sustentável para o mundo vivo que Deus criou com tanta abundância e complexidade

(CENTRAL COMMITTEE, 2022, on line, tradução nossa).

Portanto, na declaração “O Planeta Vivo: em busca de uma comunidade global justa e sustentável”, a 11ª Assembleia do CMI chama

todas as igrejas membros e parceiros ecumênicos em todo o mundo a dar à emergência climática a atenção prioritária que uma crise de dimensões tão abrangentes e sem precedentes merece, tanto em palavras quanto em ações, e a ampliem seus esforços para exigir a ação necessária de seus respectivos governos dentro do prazo necessário para limitar o aquecimento global a 1,5°C e cumprir responsabilidades históricas com nações e comunidades mais pobres e vulneráveis e de arrependimento e ação por um planeta justo e próspero

(WORLD COUNCIL OF CHURCHES, 2022WORLD COUNCIL OF CHURCHES. The Living Planet: Seeking a Just and Sustainable Global Community. World Council of Churches, 8 set 2022. Disponível em https://www.oikoumene.org/resources/documents/the-living-planet-seeking-a-just-and-sustainable-global-community Acesso em: 10 mar 2023.
https://www.oikoumene.org/resources/docu...
, on line, tradução nossa).

Neste documento Assembleia registra que solicitou ao CMI o estabelecimento de uma nova Comissão sobre Mudanças Climáticas e Desenvolvimento Sustentável em colaboração com parceiros ecumênicos, para de monitorar os avanços em relação ao tema e aconselhar sobre medidas para acelerar os esforços para a proteção da Criação e para a promoção de comunidades justas e sustentáveis. Outra ação demandada é o estabelecimento de uma Década Ecumênica de arrependimento e ação por um planeta justo e próspero.

Considerações finais

Uma das maiores emergências que colocam em risco a humanidade e sua sobrevivência na Terra, sua casa comum (oikoumene), é a degradação ambiental. Como foi referido acima, apesar dos alarmes da comunidade internacional e de todas as iniciativas empreendidas, em especial, pela ONU, ao lado de organizações não-governamentais e ativistas ambientalistas, o nível de destruição do planeta, neste século XXI, tem alcançado níveis nunca antes observados.

Danos ambientais provocados pelo ser humano, como a poluição do ar e das águas, as ocupações e as explorações territoriais desenfreadas, o desmatamento, entre outras situações, geram desequilíbrio da biosfera e comprometem a biodiversidade. Com isso, as reações da própria Terra, com as catástrofes das inundações, secas, furacões, terremotos, proliferação de epidemias e outros fenômenos, provocam prejuízos dramáticos aos seres vivos que a habitam. Os efeitos atingem seriamente, muito especialmente, as populações empobrecidas, nas periferias dos países, povos indígenas e outras comunidades tradicionais que têm sua sobrevivência atrelada aos recursos que a Terra oferece.

Se a preocupação dos poderes do mundo segue priorizando o desenvolvimento econômico na discussão da sustentabilidade ambiental, organizações, grupos e indivíduos comprometidos com a vida e os direitos que lhe são devidos, enfatizam a necessidade da defesa de direitos ambientais para uma vida digna e justa nas diversas comunidades espalhadas pelo planeta (DIREITOS..., 2021).

É entre os propagadores desta ênfase que se encontra o movimento ecumênico internacional, representado pelo CMI. Este artigo buscou recuperar a memória da emergência da preocupação do cuidado com o meio ambiente em perspectiva ecumênica na trajetória do CMI e o comprometimento deste organismo com ações cristãs baseadas na defesa da vida e da justiça. Como foi possível observar, nas três partes que compõem o estudo exploratório, a noção de sustentabilidade do desenvolvimento econômico nasceu no contexto ecumênico muito antes de ser explicitada em um relatório da ONU. Da mesma forma, a crítica às limitações desta noção, em especial no tocante à defesa da vida, em todas as suas dimensões, acima da lógica da economia capitalista globalizada, também foi cultivada em espaços ecumênicos, que forjaram o conceito de “comunidades sustentáveis”.

Como exposto, isto se explica pelas raízes do movimento ecumênico, no qual se destaca o CMI, fincadas nas noções de paz e justiça com base na fé cristã. Com a construção do conceito de comunidades sustentáveis, o movimento ecumênico trouxe articulação inseparável para a relação com o meio ambiente.

A memória da atuação do CMI e o pioneirismo que ela carrega, tal como apresentados neste trabalho, ressalta o significado do engajamento cristão nos esforços de cuidado com o planeta diante do quadro de grave degradação ambiental e atuais desafios no cuidado planetário.Vale destacar que, entre a 10ª e a 11ª Assembleias do CMI (2013 a 2022) passaram-se nove anos e o organismo reconheceu que as evidências científicas da gravidade da ameaça representada pelas mudanças climáticas tornaram-se cada vez mais dramáticas. Eventos climáticos extremos e incêndios tornaram-se mais frequentes e destrutivos em quase todas as partes do mundo, e os impactos, especialmente sobre comunidades mais pobres e vulneráveis tornaram-se cada vez mais desastrosas. Ao mesmo tempo, a ameaça à biodiversidade da Terra devido à negligência da administração humana da natureza aumentou.

Houve algumas oportunidades positivas de mudança, como o Acordo de Paris de 2015, mas, segundo as igrejas associadas ao CMI, persistiu o fracasso humano coletivo em responder efetivamente a esses desafios existenciais sem precedentes e em garantir justiça para os mais vulneráveis — e menos responsáveis pela crise ecológica global, enquanto o tempo restante para a ação necessária diminuiu rapidamente. Há demasiados prejuízos à vida humana e às demais espécies animais e vegetais, ao ar e às águas, porém o CMI destaca nos estudos que realizou no período que a mudança climática agrava sobremaneira as dificuldades já enfrentadas pelas comunidades indígenas, incluindo marginalização política e econômica, perda de terras e recursos, violações dos direitos humanos, discriminação e desemprego.

A declaração da 11ª Assembleia do CMI, em Karlshure (Alemanha),“O Planeta Vivo: em busca de uma comunidade global justa e sustentável”, como descrito acima, é importante convocação às igrejas-membros, mas também a todos os cristãos e pessoas de boa vontade. É um clamor forte para uma atenção prioritária à crise ambiental, em especial, com palavras de denúncia e com ações que pressionem governos a se arrependerem e assumirem responsabilidade com a vida no planeta.

Esta memória com elementos do tempo presente inspira e desafia igrejas-membros do CMI, demais instituições religiosas, os governos dos países que compõem o mundo, comunidades, famílias e indivíduos para “fazerem o que dizem” e assumir toda e qualquer ação possível para a condução de um futuro sustentável. Como consta nos Evangelhos da Bíblia Cristã: “quem tem ouvidos para ouvir, ouça”.

Siglas
  • AGAPE  = Globalização Alternativa Dirigida aos Povos e à Terra
  • CMI  = Conselho Mundial de Igrejas
  • COPs  = Conferências das Partes
  • ECO-92  = Conferência da ONU Rio-92
  • JPIC  = Processo Justiça, Paz e Integridade da Criação
  • ONU  = Organização das Nações Unidas
  • UNFCCC  = Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima

Referências

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    20 Mar 2023
  • Aceito
    14 Ago 2023
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