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Reificação da experiência na cidade inteligente: notas para uma crítica da economia política do espaço urbano

Reification of the experience in the smart city: notes for a critique of the political economy of urban space

Resumo

O presente artigo tem como objetivo investigar os modos pelos quais o desenvolvimento das cidades contemporâneas, no contexto da produção capitalista do espaço, implica a reificação da experiência subjetiva. A investigação consiste na crítica da economia política das cidades inteligentes, com o horizonte da proposição de estratégias políticas de reapropriação coletiva da experiência alienada.

Palavras-chave:
Reificação; Cidades Inteligentes; Sociedade do Controle

Abstract

This article aims to investigate the ways in which the development of contemporary cities, in the context of the capitalist production of space, implies the reification of subjective experience. The investigation consists in the critique of the political economy of smart cities, with the horizon of the proposition of political strategies of collective reappropriation of the alienated experience.

Keywords:
Reification; Smart Cities; Society of Control

O espaço é uma representação necessária a priori que serve de fundamento a todas as intuições externas. Ninguém pode jamais representar-se que não há espaço, mesmo podendo perfeitamente pensar que nenhum objeto se encontra no espaço. Ele é considerado, assim, como a condição de possibilidade dos fenômenos, e não como uma determinação deles dependente; e é uma representação a priori que, necessariamente, serve de fundamento a todos os fenômenos externos.

(KANT, 2013KANT, Immanuel. “Crítica da Razão Pura”. São Paulo: Vozes, 2013. 3 ed., p. 74)

Introdução

A representação do espaço consiste na formação de um conjunto de coordenadas e abstrações capazes de organizar e conferir sentido ao fluxo da experiência subjetiva. Assim, toda a atividade prática dos sujeitos é determinada pela capacidade de localização (LYNCH, 1990LYNCH, Kevin. “The Image of the City. Cambridge”. Massachusetts, Londres: The MIT Press, 1990. 20 ed., p, 125). Ao circular no espaço urbano, portanto, os sujeitos são acometidos por esta mesma necessidade. É preciso portar uma representação da cidade para engajar-se nela de forma orientada. É possível falar, em uma adaptação da formulação kantiana reproduzida na epígrafe deste artigo, na representação do espaço nas cidades como uma representação a priori. Mas se a representação do espaço não é mero produto da experiência individual, mas antes a sua condição, pode-se perguntar pelos processos que a engendram e pelos fatores que condicionam sua determinação. O objetivo deste artigo é investigar, de forma inicial e preliminar, as determinações materiais do espaço urbano no modo de produção capitalista, investigando como essas determinações condicionam a experiência subjetiva da vida urbana. Em certa medida, pretendemos submeter o diagnóstico kantiano a uma virada materialista: a experiência subjetiva do espaço urbano é - tal como a consciência (Lukácks), a linguagem (Jameson) e o próprio pensamento teórico (Adorno & Horkheimer) - condicionada pela reprodução material da cidade.

Assim, ao compreender o condicionamento da experiência subjetiva específico à cidade capitalista o artigo pretende localizar os modos de reificação da experiência urbana na tradição de crítica da reificação e do fetichismo que, na esteira de Marx, encontrou seu desenvolvimento mais expressivo na teoria crítica da Escola de Frankfurt. Tal qual na forma-mercadoria, o desenvolvimento da forma urbana implica não apenas o controle dos fluxos da cidade, mas a captura e objetivação de um conhecimento produzido de forma coletiva. A cidade inteligente, no século XXI, consiste em uma nova virada histórica na apropriação privada do produto social dos corpos que circulam de modo difuso no espaço urbano. O cidadão encontra na cidade capitalista o produto de seu trabalho, material e imaterial, que se volta a ele como que dotado de vida própria. A cidade inteligente aparece, assim, como nova figura de reificação, como estratégia de alienação da inteligência viva produzida pelo indivíduo na cidade.

Pretende-se, nesse sentido, erigir um aparato conceitual capaz de fundamentar investigações futuras, erguendo, assim, um marco teórico apropriado para a apreensão das especificidades da reificação da experiência individual engendrada pela reprodução da forma urbana no capitalismo neoliberal, bem como localizar essa virada histórica diacronicamente, isto é, em relação às formas de reificação que caracterizaram os desdobramentos pretéritos do sistema capitalista.

Formas da experiência e a forma urbana

Para Fredric Jameson, o capitalismo engendra, a cada etapa do processo de seu desdobramento histórico, diferentes lógicas de organização da experiência espacial (JAMESON, 1988JAMESON, Fredric. “Cognitive Mapping”. In: NELSON, Cary; GROSSBERG, Lawrence (orgs.). Marxism and the Interpretation of Culture. Londres: Macmillan Education, 1988, pp. 347-360., p. 348). Nesse sentido, o capitalismo de mercado, no momento de sua implantação, precisa dissolver a representação do espaço concebida pelas sociedades tradicionais. Nestas, o espaço é heterogêneo e altamente saturado pelo sagrado e pela força da tradição. Assim, a penetração da forma mercadoria e da lógica da equivalência reorganiza a experiência do espaço segundo os fundamentos de uma geometria cartesiana, ortogonal (ibid., p. 349). Os espaços diferenciados segundo o valor de uso concreto são colonizados pela forma abstrata do valor de troca.

Marx, em suas intervenções na Gazeta Renana acerca da criminalização da coleta de madeira, sumarizou esse processo de forma precisa:

Os direitos consuetudinários dos pobres baseavam-se no fato de que certo tipo de propriedade tinha um caráter incerto, que não a definia em absoluto como propriedade privada, mas tampouco decididamente como propriedade comum, sendo uma mistura de direito privado e direito público o que encontramos em todas as instituições da Idade Média. O órgão com o qual as legislações empreenderam tais formulações ambíguas foi o entendimento, e o entendimento não só é unilateral como sua atividade essencial é tornar o mundo unilateral (MARX, 2017MARX, Karl. “Os Depossuídos”. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 88).

Se nesse primeiro momento a lógica imanente ao processo de desenvolvimento do capitalismo reorganiza o espaço pela dissolução do heterogêneo, do concreto, do individual, substituindo-o pela lógica do abstrato, do fungível, da troca de equivalentes formais; o capitalismo em sua etapa monopolista faz crescer o fosso que separa a dimensão fenomenológica, isto é, a dimensão da experiência individual vivida e as estruturas subjacentes que condicionam essa experiência (JAMESON, 1988JAMESON, Fredric. “Cognitive Mapping”. In: NELSON, Cary; GROSSBERG, Lawrence (orgs.). Marxism and the Interpretation of Culture. Londres: Macmillan Education, 1988, pp. 347-360., p. 348). A interligação dos processos econômicos desloca as causas estruturais das condições apreendidas pelo sujeito em sua experiência individual, assim, o que se verifica nesse processo é o divórcio entre experiência individual e totalidade das condições que a determinam. Não há, portanto, uma experiência individual autêntica que não seja falsa (ibid.).

Se a troca de mercadorias é marcada pelo fetichismo, como ainda veremos, isto é, pela autonomização de algo que é fruto do trabalho humano, é preciso reconhecer que essa inversão ocorre no espaço urbano: a cidade é, por excelência, o locus do comércio. E se a troca de mercadorias (e, com ela, a inversão de posições entre produtor e produto) reformatam a relação entre o homem e o produto de seu trabalho, é preciso investigar como essa lógica reformata igualmente o espaço em que essa inversão ocorre.

É possível apontar, seguindo Theodor Adorno, a manifestação expressiva dessa lógica a partir das transformações da posição do narrador nos grandes romances. Assim, no Dom Quixote, símbolo da formação de um mundo desencantado, “a capacidade de dominar artisticamente a mera existência continuou sendo o seu elemento (…) [e] o realismo era-lhe imanente” (ADORNO, 2003______. “Notas de Literatura I”. São Paulo: Duas Cidades/Editora 34, 2003., p. 55). A pretensão de objetividade do romance burguês torna-se, no entanto, à partir do final do século XIX, uma impossibilidade. É por isso que o momento modernista se caracteriza pelo avanço contra a linguagem em sua função de mero relato, “o romance precisa se concentrar naquilo de que não é possível dar conta por meio do relato” (ibid., p. 56).

Não se trata, portanto, de um desenvolvimento simplesmente imanente à arte, como se o realismo tivesse caído fora de moda, ou como se a pretensão de retratar objetivamente a realidade do mundo burguês tivesse sido superada. O que se tornou obsoleto foi uma estratégia de apresentação da verdade do mundo burguês, isto porque “o que se desintegrou foi a identidade da experiência, a vida articulada e em si mesmo contínua” (ibid.).

O salto qualitativo que o capitalismo empreende na passagem para sua nova lógica de acumulação, o capitalismo tardio, significa a reorientação da lógica de determinação das representações espaciais. Para Jameson, apesar do aprofundamento da distância que separa a densa rede multinacional articulada pelo sistema capitalista, a nova lógica que organiza a experiência individual tem como fundamento a supressão da experiência individual de distanciamento e alienação, produzindo novas formas de imediaticidade e novas estratégias de saturação do espaço da experiência individual (JAMESON, 1988JAMESON, Fredric. “Cognitive Mapping”. In: NELSON, Cary; GROSSBERG, Lawrence (orgs.). Marxism and the Interpretation of Culture. Londres: Macmillan Education, 1988, pp. 347-360., p. 351).

Diferente da forma de alienação produzida pela lógica organizacional do capitalismo monopolista, em sua forma tardia, o capitalismo, segundo Jameson, produz uma experiência de desorientação pela saturação do mundo vivido (ibid.) Assim, se a figuração da realidade social no momento modernista passava pela dissolução subjetivista do realismo burguês - em Proust, Pesssoa ou Gide, por exemplo -, esse procedimento já não é capaz de figurar a lógica dos processos de produção da realidade social. Em sua configuração mais tardia, o capitalismo engendra uma lógica de produção das representações espaciais na qual o espaço é reduzido ao absolutamente imediato, “o corpo pós-moderno (…) é agora exposto a uma barragem perceptiva de imediaticidade da qual todas as camadas de proteção e mediações intermediárias foram removidas” (ibid.)

É possível apreender a lógica que enquadra esse processo de dissolução da distância entre a perspectiva individual e a maquinaria das estruturas sociais pela análise da condição estética que Jameson designa como “pós-moderna”. Pois se o modernismo figurava a experiência da alienação pela estilização de estratégias de desvio com relação ao realismo burguês, na experiência estética do capitalismo tardio desaparece o modelo, e as formas expressivas se multiplicam em uma “explosão em um bando de estilos privados e maneirismos distintos” (JAMESON, 1985______. “Pós-Modernidade e Sociedade de Consumo”. Novos Estudos, São Paulo, n. 12, 1985, pp. 16-26., p. 18).

Gilles Deleuze foi capaz de captar essa mudança de época, processo que ele caracterizou como a passagem da sociedade da disciplina para uma sociedade do controle (DELEUZE, 2013DELEUZE, Giles. “Conversações”. São Paulo: Editora 34, 2013. 3 ed., p. 223). Assim, a experiência do sujeito cindido entre sua perspectiva individual e seu lugar na massa caracterizava as sociedades disciplinares, isto é, “as disciplinas nunca viram incompatibilidade entre os dois, e é ao mesmo tempo que o poder e massificante e individuante” (ibid., p. 226). Na sociedade do controle, no entanto

os controles são modulações, como uma moldagem autodeformante que mudasse continuamente, a cada instante, ou como uma peneira cujas malhas mudasse de um ponto a outro. Isso se vê claramente na questão dos salários: (…) Sem dúvida a fábrica já conhecia o sistema de prêmios, mas a empresa se esforça mais profundamente em impor uma modulação para cada salário, num estado de perpétua metaestabilidade (ibid., p. 225).

A sociedade do controle aponta para uma nova lógica de exercício do poder, que individualiza às estratégias de controle, tornando aquele sujeito ao poder cúmplice do mecanismo que lhe oprime (ibid., p. 230). É a partir dessa estrutura de modulação do controle que se pode compreender a produção de uma nova experiência de imediaticidade, que apaga até mesmo os traços da alienação. E a compreensão da lógica de produção das representações espaciais e das formas de alienação a ela correlatas deve fundar-se em uma análise dos dispositivos de controle operantes na configuração das cidades. As técnicas de controle, no entanto, não envolvem apenas o exercício de um comando sobre a direção dos fluxos na cidade. É preciso compreender em que medida os dispositivos de controle implicam a apropriação de um saber produzido imanentemente pelos fluxos controlados. Assim, ao analisar o movimento da “força de trabalho que circula por um sistema de catracas chamado cidade” (ARANTES, 2014______. “O Novo Tempo do Mundo”. São Paulo: Boitempo, 2014., p. 424), o que se revela é a operação de dispositivos que ao mesmo tempo conduzem e capturam a experiência difusa produzida pelos corpos que circulam. De modo a precisar a natureza desse mecanismo, é preciso reconstruir o conceito de reificação e a genealógica das técnicas concretas que a sustentam.

Fetichismo e reificação em Marx e as tecnologias retencionais

Segundo Bernard Stiegler, todo produto técnico consiste em uma materialização de certo aprendizado e, por este motivo, pode ser descrito como uma operação de espacialização de certa passagem do tempo (STIEGLER, 2010STIEGLER, Bernard. “For a New Critique of Political Economy”.. Cambridge: Polity Press, 2010., p. 9). A construção de um objeto técnico ou de uma técnica implica a captura dos gestos por meio de uma sequência de operações que tornam discreto o seu fluxo, viabilizando sua reprodutibilidade (ibid., p. 10).

Assim, para Stiegler, é possível recolocar a análise de Marx e Engels da proletarização, como formulada no Manifesto Comunista, de 1848, como um episódio no curso histórico dos processos de gramatização e retenção terciária dos gestos do corpo (ibid., p. 11).

O crescente emprego de máquinas e a divisão do trabalho despojaram a atividade do operário de seu caráter autônomo, tirando-lhe todo o atrativo. O operário tornar-se um simples apêndice da máquina e dele só se requer o manejo mais simples, mais monótono, mais fácil de aprender. (…) As diferenças de idade e de sexo não têm mais importância social para a classe operária. Nã há senão instrumentos de trabalho, cujo preço varia segundo a idade e o sexo (MARX, ENGELS, 2005______; ENGELS, Friederich. “O Manifesto Comunista”. São Paulo, Boitempo, 2005., p. 46).

À medida que a máquina comanda o processo produtivo e a divisão do trabalho disciplina o tempo do trabalhador, mais este se assemelha a um instrumento de trabalho. Segundo Marx e Engels, desaparecem, portanto, as condições particulares que singularizam cada indivíduo humano e o valor se converte no verdadeiro sujeito dos processos históricos.

Na modernidade capitalista, o trabalho produtor de mercadorias adquire um caráter tautológico. Isso significa que o trabalho que produz mercadorias já não pode ser compreendido apenas como trabalho produtor de valores de uso, apresentando-se, agora como “transformação de certa quantidade de trabalho morto e abstrato em outra quantidade maior de trabalho morto e abstrato” (KURZ, 1993KURZ, Robert. “O Colapso da Modernização”. São Paulo: Paz e Terra, 1993., p. 27).

As transformações do trabalho na modernidade capitalista, a partir das quais ele adquire o caráter dual (trabalho concreto e trabalho abstrato) e tautológico (como plataforma de autovalorização do valor) devem ser, em última instância, remetidas a condições materiais concretas nas formas de vida das sociedades capitalistas.

A mercadoria, a partir de Marx, é o conceito fundamental para análise da sociedade capitalista. Toda mercadoria apresenta-se sob um duplo aspecto: possui um valor de uso que lhe é inerente e um valor de troca que, ao contrário, é fundamentalmente contingente, e que funciona por ocasião da troca de mercadorias como critério quantitativo de reciprocidade. Enquanto o valor de uso se expressa como característica qualitativa, o valor de troca é característica meramente quantitativa. No mercado, somente entra em questão a equivalência quantitativa entre as mercadorias trocadas e não a utilidade que elas representam: “Deixando de lado então o valor de uso dos corpos das mercadorias, resta a elas apenas uma propriedade, que é a de serem produtos do trabalho” (MARX, 1988______. “O Capital: Crítica da Economia Política”. São Paulo: Nova Cultural, 1988., p. 47).

A troca mercantil permite a troca de “quantidades de trabalho humano” equivalentes entre si que, enquanto tais, são individuais e particulares, mas, uma vez abstraída a utilidade da mercadoria, abstrai-se também a utilidade do trabalho humano que lhes é inculcada, revelando as atividades concretas meramente como trabalho humano abstrato. Portanto, resta apenas uma “objetividade fantasmagórica” que submete todo trabalho concreto a essa abstração, uma objetividade artificial e, portanto, ideológica, pois oculta a real natureza das relações sociais:

O misterioso da forma mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens as características sociais do seu próprio trabalho como características objetivas dos próprios produtos do trabalho, como propriedades naturais sociais dessas coisas e, por isso, também reflete a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social existente fora deles, entre objetos. (...) Não é mais nada que determinada relação social entre os próprios homens que para eles aqui assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. (...) Isso eu chamo o fetichismo que adere aos produtos de trabalho, tão logo são produzidos como mercadorias. (Ibid., p. 71. Grifos nossos).

Essa clássica passagem de Marx ilustra o cerne conceitual da categoria da reificação. Daí então é preciso analisar como a forma mercadoria influencia toda a sociedade, externa e internamente. A estrutura social mercantil, na origem, uma relação contingente, torna-se estrutural com o capitalismo: é cada vez mais difícil perceber o caráter pessoal das relações sociais, oculto sob a forma mercadoria. Tal mercantilização da vida social ocorre tanto no plano objetivo quanto subjetivo: no primeiro, uma configuração dada do mundo aparece como sendo um espaço de relações entre coisas, um mundo de mercadorias circulando no mercado; no segundo, aparece como objetivação da própria atividade humana em relação ao homem, pois o trabalho se torna uma mercadoria regida por leis de mercado, sem qualquer relação com o homem - a produção se autonomiza e se torna seu próprio instrumento de reprodução.

É fundamental, nesse processo, a divisão social do trabalho e sua racionalização baseada no cálculo. Esses dois fatores combinam-se gerando, de um lado, a fragmentação do objeto da produção, na medida em que a unidade do produto como mercadoria já não coincide com sua unidade como valor de uso; e, de outro lado, a fragmentação do sujeito da produção, vez que o homem aparece como parte automatizada, mecanizada, incorporada pela linha de montagem.

Stiegler busca em Platão, pela releitura de Jacques Derrida, o par categorial anamnesis e hipomnesis para inscrever o processo de proletarização em uma história do desenvolvimento das técnicas. Nesse sentido, em Platão, no Fedro, é preciso traçar uma distinção entre a rememoração filosófica da verdade - anamnesis - e a técnica sofística de produção de ilusões - hipomnesis. Assim Sócrates, no diálogo platônico, exteriorização técnica da memória consiste inexoravelmente na perda do conhecimento (STIEGLER, 2010STIEGLER, Bernard. “For a New Critique of Political Economy”.. Cambridge: Polity Press, 2010., p. 29).

Stiegler sugere a possibilidade de compreender o processo de proletarização, isto é, de constituição de uma subjetividade especificamente proletária, como a difusão de uma hipomnesis industrial, na qual a passagem histórica do trabalho artesanal para o trabalho industrial envolve uma passagem do conhecimento do trabalhador para a máquina e para o conjunto de técnicas de organização do trabalho (ibid., p. 30).

Os desdobramentos desse processo podem ser acompanhados na tendência a tornar-se interativo que impregna todos os materiais, substâncias e produtos de uso cotidiano. Smartphones, redes sociais, barcodes, o sistema de GPS e a Nuvem. Para Stiegler o desenvolvimento da cidade inteligente é o resultado inevitável dessa escalada (STIEGLER, 2018______. “New Urban Engineering, New Urban Genius”. Xangai, 22 nov 2018. Disponível em: https://www.academia.edu/37849730/Bernard_Stiegler_New_Urban_Engineering_New_Urban_Genius_2018_
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, p. 2). Essa transformação da experiência dos sujeitos nas cidades, no entanto, implica a necessidade de se repensar o significa contemporâneo da cidadania (ibid., p. 3).

Reificação e dominação: lições da Escola de Frankfurt

A gênese do processo de reificação das relações sociais, bem como a descrição de suas conseqüências para o intelecto individual foi primeira e perfeitamente identificada por Simmel, embora sem considerar a perversidade da situação. Para Simmel, as relações humanas, quando tornadas relações de troca, são as formas mais desenvolvidas de interação humana, pois a mediação pelo dinheiro dá uma expressão autônoma às relações de troca, “purificadas” de todos os aspectos não estritamente econômicos - as conseqüências são inegáveis, atestadas pelo embotamento da percepção e da experiência individual expresso na atitude blasé:

A economia monetária e o domínio do intelecto estão intrinsecamente vinculados. Eles partilham uma atitude que vê como prosaico o lidar com homens e coisas. (…) Esse estado de ânimo é fiel reflexo subjetivo da economia do dinheiro completamente interiorizada (SIMMEL, 1963SIMMEL, George. “A Metrópole e a Vida Mental”. In: VELHO, Otávio Guilherme (org.). O Fenômeno Urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1963., p. 1518).

Esse processo de reificação, notadamente incrementado na passagem do précapitalismo para o capitalismo industrial, exigiu a transformação concomitante de todas as expressões subjetivas da vida social. Assim, é possível tomar como paradigma, seguindo Lukács, a teoria da racionalização de Max Weber, na medida em que o caráter específico do capitalismo ocidental é o cálculo racional do trabalho, conforme a famosa Einleitung de 1920.

Na era moderna, o ocidente desenvolveu um tipo completamente diverso de capitalismo nunca antes encontrado: a organização capitalista racional do trabalho livre (formalmente pelo menos). (...) A organização industrial racional, orientada para um mercado real, e não para oportunidades políticas ou especulativas de lucro, não é, entretanto, a única criação peculiar do capitalismo ocidental. A moderna organização racional da emprêsa capitalista não teria sido viável sem a presença de dois importantes fatôres de seu desenvolvimento: a separação da emprêsa da economia doméstica, que hodiernamente domina por completo a vida econômica, e, associado de perto a êste, a criação de uma contabilidade racional. (...) Seu significado atual, entretanto, só foi alcançado pelo capitalismo ocidental, com sua associação à organização capitalística do trabalho. (WEBER, 1967WEBER, Max. “Introdução do Autor”. In: ______. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1967., p. 11-12).

Nesse passo, Lukács desenvolve um dos aspectos mais importantes para toda a teoria marxista posterior, ao fundir, na categoria da reificação, o fetichismo da mercadoria de Marx com a teoria da racionalização de Max Weber e com traços da sociologia de Georg Simmel; e, no que tange à tomada de consciência de classe, pela fusão de sujeito e objeto no proletariado, o par dialético fundamental de Hegel. Assim, a fusão teórica de Lukács - de maneira alguma linear e não-problemática mas que, entretanto, não é objeto deste artigo - de elementos da sociologia clássica alemã e do idealismo alemão no quadro metodológico dialético-materialista produziu, apesar das críticas e problemas que suscitou, um instrumental crítico muito valioso para o marxismo recente, e que seria levada ao paroxismo pela teoria crítica da sociedade.

A racionalização formal do Direito, do Estado, da Administração, etc., implica, objectiva e realmente, uma idêntica decomposição de todas as funções sociais nos seus elementos, uma idêntica busca das leis racionais e formais que regem estes sistemas parciais rigorosamente separados uns dos outros; por conseguinte, subjectivamente, idênticas repercussões na consciência, resultantes da separação entre o trabalho e as capacidades e necessidades individuais daquele que o executa - implica, pois, uma divisão do trabalho, racional e desumana, exactamente idêntica à que encontramos na empresa, no plano da técnica e do maquinismo. (...) Assim como o sistema capitalista se produz e reproduz economicamente a uma escala cada vez mais alargada, também, no decurso da evolução do capitalismo, a estrutura da reificação penetra cada vez mais profundamente, fatalmente, constitutivamente, na consciência dos homens (LUKÁCS, 1974LUKÁCS, George. “História e Consciência de Classe”. Porto: Escorpião, 1974., p. 113 e p. 108. Grifos acrescidos).

Na obra seminal da Escola de Frankfurt (JAY, 1974, p. 413), Dialética do Esclarecimento, Adorno e Horkheimer elaboram uma das mais contundentes crítica à razão e ao racionalismo ocidental (como sinônimo de esclarecimento, desencantamento do mundo: Aufklärung), bem como à relação entre homem e natureza, no contexto do chamado “capitalismo de Estado” (POLLOCK, 1941POLLOCK, Frederik. “State Capitalism: its Possibilities and Limitations”. Zeitschrift für Sozialforschung: Studies in Philosophy and Social Science, Nova Iorque, n. 9, 1941.). A tarefa fora assim formulada: tratava-se de “descobrir por que a humanidade, em vez de entrar em um estado verdadeiramente humano, está se afundando em uma nova espécie de barbárie” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985ADORNO, Theodor; HORKHEIMER, Max. “Dialética do Esclarecimento”. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985., p. 10), representada fundamentalmente na significativa expressão “mundo administrado” (ibid., p. 11) O juízo de valor que orienta toda a investigação é o de que “a liberdade na sociedade é inseparável do pensamento esclarecedor”.

A crítica da razão atinge na Dialética do Esclarecimento seu ponto mais desenvolvido. A tarefa é, justamente, distinguir dois conceitos de “esclarecimento”, vale dizer, é necessário desmistificar o esclarecimento para que, assim, ele assuma a posição de uma razão emancipadora efetivamente racional, em toda a significação do termo. De fato, o “medo que o bom filho da civilização moderna tem de afastar-se dos fatos (...) é exatamente o mesmo medo do desvio social” (ibid., p. 14), o que torna o pensamento, a linguagem, a ciência, conformados ao modelo vigente, numa palavra, reificados:

O indivíduo se vê completamente anulado em face dos poderes econômicos. Ao mesmo tempo, estes eleva o poder da sociedade sobre a natureza a um nível jamais imaginado. Desaparecendo diante do aparelho a que serve, o indivíduo se vê, ao mesmo tempo, melhor do que nunca provido por ele. (...) Sua verdadeira aspiração é a negação da reificação. (Ibid.)

Essa passagem paradigmática pode ser considerada como uma síntese do trabalho de Adorno e Horkheimer, pois conjura todos os pontos fundamentais de suas considerações, vale dizer, a racionalidade instrumental permite o domínio intensificado da natureza pelo homem que, pela via da estrutura social moldada pela troca mercantil, submete o próprio homem ao poder de uma administração totalizante que destrói o indivíduo enquanto tal.

Se a aplicação da técnica, segundo a racionalidade instrumental, tem como finalidade a dominação do mundo natural, é preciso reconhecer que ela produz, inversamente, a objetificação da experiência individual. A reificação pode ser compreendida, portanto, como um processo que se expressa para além do espaço restrito da produção fabril. Assim, a expansão do domínio técnico implica um movimento no qual

o pensar reifica-se num processo automático e autônomo, emulando a máquina que ele próprio produz para que ela possa finalmente substituí-lo. O esclarecimento pôs de lado a exigência clássica de pensar o pensamento (...) O procedimento matemático tornou-se, por assim dizer, o ritual do pensamento (ibid., p. 49).

A cidade inteligente deve ser redimensionada, portanto, como episódio no desenvolvimento de uma racionalidade técnica que encontra na dialética do esclarecimento raízes muito mais profundas. Se a cidade é um artefato técnico, cada vez mais sua estrutura vem a ser o registro de uma história da dominação. De modo a desdobrar essa hipótese, é necessário então compreender os mecanismos a partir dos quais a experiência individual é objetificada na reprodução técnica da forma urbana e os dispositivos pelos quais os gestos e os saberes são capturados na morfogênese da cidade capitalista como etapa no processo de valorização do valor.

Fetichismo e Reificação do Espaço Urbano

A riqueza das cidades inteligentes apresenta-se como uma imensa acumulação de softwares. Mas a cidade inteligente somente se desenvolve a partir do saber concreto produzido pelo movimento dos corpos no espaço urbano. Essa experiência urbana, no entanto, é apropriada de forma privada pelas empresas de tecnologia e retorna aos sujeitos, na forma de um suporte técnico, como um elemento a eles estranho. Esse processo é análogo à reificação, nos termos descritos por Karl Marx ainda com relação ao capitalismo industrial do século XIX. É preciso, portanto, compreender qual a natureza específica da alienação engendrada pelo avanço da maquinização das cidades de modo a, por fim, estabilizar condições que possam sustentar novas formas de ação política no espaço urbano.

George Canguilhem, ao tratar da “assimilação usual, ora científica, ora vulgar, da sociedade a um organismo” (CANGUILHEM, 2005CANGUILHEM, Georges. “O Problema das Regulações no Organismo e na Sociedade”. In: ______. Escritos Sobre Medicina. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005., p. 71), sugere que uma imagem superior a esta poderia ser encontrada na compreensão da sociedade como algo “da ordem da máquina ou da ferramenta” (ibid., p. 85).

Para Canguilhem, a sociedade, diferente do organismo, não encontra seu fim imanente em si mesma, mas se realiza como um meio, como um instrumento. Desse modo, a organização e regulação da sociedade são, em última instância, artefatos técnicos. “Não sendo nem um indivíduo nem uma espécie, a sociedade (…) é máquina (…) e, não estando seu fim nela própria, ela representa simplesmente um meio, ela é uma ferramenta” (ibid.).

Se é correto afirmar que a sociedade consiste em um artefato técnico, então é preciso admitir que toda organização social implica, à luz da noção de técnica de Stiegler, uma forma de alienação. Nas cidades inteligentes, contudo, a analogia entre a sociedade e a máquina se torna cada vez mais literal (STIEGLER, 2018______. “New Urban Engineering, New Urban Genius”. Xangai, 22 nov 2018. Disponível em: https://www.academia.edu/37849730/Bernard_Stiegler_New_Urban_Engineering_New_Urban_Genius_2018_
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, p. 5). A apreensão técnica das cidades pelos sistemas de computação envolve a digitalização do complexo de experiências concretas produzido nas cidades e a redução das localidades que compõem o espaço urbano a meras posições (ibid., p. 6).

A experiência individual concreta das localidades no espaço é reduzida a “padrões que são algoritmicamente extraídos das populações” (ibid.). Esse processo se realiza a partir da transnacionalização do capitalismo que opera a construção de um complexo sistema de acumulação em diferentes escalas. A gestão algorítmica do capitalismo é, desse modo, um produto da necessidade de gestão de plataformas de valorização do valor em múltiplas escalas. A redução dos territórios a um conjunto padronizado de informações é o desdobramento lógico de uma economia capitalista monopolista de dimensões globais (ibid.).

Fredric Jameson diagnosticou a dissolução da experiência estética característica do período modernista, isto é, a experiência de descompasso entre a perspectiva individual e a totalidade social. É possível, a partir dos desdobramentos da transnacionalização do capitalismo identificados por Stiegler, reencontrar o fundamento material desse andamento. A redução algorítmica da experiência individual dissolve, em um sistema de computação ubíquo, a singularidade da experiência urbana. A dualidade indivíduo e sociedade é, portanto, um produto da organização fordista e da disciplina do trabalho do capitalismo industrial. Talvez o mais significativo desenvolvimento do capitalismo neoliberal no campo da experiência seja a dissolução completa da sociedade em um complexo atomizado de singularidades isoladas. O máximo empobrecimento da singularidade da experiência individual coincide com a máxima atomização dos indivíduos.

Se existe um novo sujeito, ele deve ser distinguido nas práticas discursivas e institucionais que, no fim do século XX, engendraram a figura do homem- empresa ou do “sujeito empresarial”, favorecendo a instauração de uma rede de sanções, estímulos e comprometimentos que tem o efeito de produzir funcionamentos psíquicos de um novo tipo. Alcançar o objetivo de reorganizar completamente a sociedade, as empresas e as instituições pela multiplicação e pela intensificação dos mecanismos, das relações e dos comportamentos de mercado implica necessariamente um devir-outro dos sujeitos. O homem benthamiano era o homem calculador do mercado e o homem produtivo das organizações industriais. O homem neoliberal é o homem competitivo, inteiramente imerso na competição mundial. Foi dessa transformação que se falou nas páginas precedentes. Trataremos agora de descrever mais sistematicamente suas múltiplas formas. (DARDOT; LAVAL, 2016DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. “A Nova Razão do Mundo”. São Paulo: Boitempo, 2016., p. 322).

Para que o sistema escalonado de gestão algorítmica do capitalismo transnacional opere, é necessário arregimentar a cooperação dos próprios dominados. A gestão neoliberal opera segundo uma racionalidade que não é a da repressão pura e simples dos comportamentos. O indivíduo convertido em sujeito-empresa aparece como resultado da calibração dos gestos realizada por emaranhado de dispositivos catalisadores da participação. A participação se mostra, nesse regime, a nova face da “parte sem parte”, a nova forma de vida que floresce regada pela malha dos aparatos do capitalismo de algoritmos. Segundo a descrição de Paulo Arantes:

O segredo desse negócio é a mobilização enquanto tal, tanto faz se movida a editais, ONGs oficiais, isso ou aquilo em rede, programas assim ou assado de alguma secretaria ou ministério, e por aí vamos, entra ano, sai ano, nessa espantosa fábrica de consensos e consentimentos (...) E de baixo para cima, desde o chão da fábrica social. Numa sociedade-empresa, tudo se mobiliza a partir da matriz, e pelo envolvimento através do zelo dos esfolados, pois não há outro jeito de tolerar o intolerável do que participando, e não há melhor escola de cooperação do que o próprio trabalho. (ARANTES, 2014______. “O Novo Tempo do Mundo”. São Paulo: Boitempo, 2014., p. 426)

Esse metabolismo se expressa nas cidades como uma “onda de movimentos que reivindicam a cidade por meio de organizações, no geral em rede” (ibid.). Essa citação de Arantes é colhida de sua análise das técnicas de gestão de populações que se configuraram no Brasil no período logo anterior aos protestos de Junho de 2013. O alcance de seu diagnóstico, no entanto, não se restringe às condições singulares daquele acontecimento. É possível extrair dessa leitura um conjunto de indicações para a compreensão da nova lógica de reprodução capitalista das formas urbanas. Assim, devese atentar para o fato de que a gestão pela participação consiste em uma figura de dominação característica de um “novo tempo do mundo”.

Para Arantes, esse novo tempo é caracterizado pela emergência de “uma nova era que se poderia denominar das expectativas decrescentes” (ibid., p. 67, grifos no original). O horizonte histórico das narrativas do Progresso é anulado pela racionalidade das técnicas gestionárias exercidas sob o signo da urgência. À medida que, no plano da experiência temporal, o futuro se cola ao presente, a experiência do espaço também se transforma, de modo que se pode falar em uma “colonização do Lugar pelo Fluxo” (ibid., p. 62).

E se assim é, tudo se passa como se a tensão constitutiva entre Lugar-Experiência e Fluxo-Horizonte (admitida a possível correspondência), além de baixar a zero, mudasse de sinal: evocando como modelo a “colagem temporal”, característica da mídia contemporânea. (Ibid.)

De alto a baixo, o desdobramento de um novo momento na história da acumulação capitalista deve ser analisado não segundo a forma de uma estrutura hierárquica de comando. Do sujeito-empresa que povoa a cidade neoliberal inteligente às alturas do capitalismo algorítmico transnacional, o que se configura é uma densa rede de mediações. Assim, é possível acompanhar seu desenho para reconstituir, através de diferentes escalas, a forma específica de reificação da experiência nas cidades inteligentes. O esvaziamento dos lugares, sua conversão algorítmica em um sistema de posições, é correlato à transnacionalização do capital, e as tecnologias que tornam essa operação possível servem de suporte material a um novo modelo de subjetividade, o sujeito-empresa, que é instigado pelos dispositivos de poder a cumprir o ritual vazio de participação na rotina de sua própria dominação.

Contra essa configuração da gestão capitalista das cidades não faz sentido, no entanto, proclamar o resgate de uma experiência autêntica do indivíduo no espaço. O discurso da autenticidade, como expressão de uma pulsão anti-urbana, tem talvez sua expressão mais característica na decisão heideggeriana de “permanecer na província”. Contra a inautenticidade da vida urbana, Heidegger contrapõem o horizonte daquele que é

simplesmente deslocado para dentro da própria vibração do trabalho (…). Frequentemente os habitantes da cidade ficam admirados com o longo e monótono isolamento dos camponeses entre as montanhas. Mas não é isolamento, é solidão. Nas grandes cidades, o Homem pode com facilidade ser tão só como dificilmente estaria em qualquer outro lugar. Mas lá ele nunca é solitário. Pois, a solidão tem o poder específico não de nos isolar, mas o de projetar todo ser-aí [Dasein] na proximidade da ampla essência de todas as coisas. (HEIDEGGER, 2014HEIDEGGER, Martin. “Paisagem Criativa: Por que Permanecemos na Província?”. Ideias, v. 5, n. 2, 2014, pp. 275-280. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/ideias/article/view/8649440
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
, p. 278)

Mas o discurso anti-urbano no qual se assenta o pensamento heideggeriano promove a autenticidade como falso antídoto à alienação, no mesmo sentido a celebração do “trabalho manual” do camponês apresenta uma falsa alternativa à reificação. Segundo Paulo Arantes

esse acanhado refúgio da filosofia alemã é a um tempo consequência social e horizonte histórico de um tipo de pensamento que proclama a estreiteza de espírito como via de acesso à verdade. Isso não é tudo: a apoteose da pobreza de espírito deve-se em última instância ao caráter autoritário da existência - responsável (…) pela coloração fascista do jargão existencial, que o tingiu sem lhe fazer violência nos idos de 30. (ARANTES, 1996ARANTES, Paulo. “O Ressentimento da Dialética”. São Paulo: Paz e Terra, 1996. p. 357)

Qual é, portanto, o significado possível do direito à cidade no interior desse paradigma de acumulação? Trata-se, antes de tudo, de um direito à cidade que não se reduz a uma expressão do anti-urbanismo heideggeriano, de um direito à cidade que não reclama para si a nostalgia humanista da vida autêntica. “Não há vida certa na falsa” (ADORNO, 2008________. “Minima Moralia”. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008., p. 36). Se o fundamento tecnológico da cidade inteligente nada mais é que a expressão de um novo regime de acumulação que, por meio de de novos dispositivos, arregimenta os movimentos na cidade como plataforma de autovalorização do valor, o direito à cidade possível só pode tomar a configuração da instituição de um comum para além da forma-valor. O além-do-valor consiste, portanto, no enigma a que o direito à cidade deve responder.

Considerações Finais

O estudo sócio-técnico dos mecanismos de controle, apreendidos em sua aurora, deveria ser categorial e descrever o que já está em vias de ser implantado no lugar dos meios de confinamento disciplinares, cuja crise todo mundo anuncia. Pode ser que meios antigos, tomados de empréstimo às antigas sociedades de soberania, retornem à cena, mas devidamente adaptados. O que conta é que estamos no início de alguma coisa (…)[,] o que se entende por crise das instituições, isto é, a implantação progressiva e dispersa de um novo regime de dominação. (…) Será que já se pode apreender esboços (…) [de formas de resistência] capazes de combater as alegrias do marketing? Muitos jovens pedem estranhamente pare serem “motivados”, e solicitam novos estágios e formação permanente; cabe a eles descobrir a que estão sendo levados a servir, assim como seus antecessores descobriram, não sem dor, a finalidade das disciplinas. (DELEUZE, 2013DELEUZE, Giles. “Conversações”. São Paulo: Editora 34, 2013. 3 ed., p. 225-226)

O presente artigo tomou como horizonte a criação de condições conceituais para a apresentação categorial da cidade inteligente como produto social que se manifesta na “história interna progressiva do fetiche do capital” (KURZ, 2014______. “Dinheiro sem Valor: Linhas Gerais para uma Transformação da Crítica da Economia Política”. Lisboa: Antígona, 2014. p. 10). Para tanto, executou-se o desdobramento historicamente situado da categoria marxiana da reificação, no sentido de um acrescimento progressivo de concretude das categorias. Segundo o argumento de Stiegler, o desenvolvimento de técnicas de retenção da memória em suportes materiais acompanha o curso da história humana. Assim, a escrita e o sistema numeral consistem em produtos técnicos que permitem a exteriorização de faculdades cognitivas, espacializando o conteúdo interior da experiência individual. Tal qual a fala, o gesto é também passível de exteriorização. A máquina proporciona, desse modo, a redução analítica do fluxo contínuo dos gestos, discretizando o seu tempo e exteriorizando sua potência. Para Stiegler, Marx e Engels teriam, no Manifesto Comunista, diagnosticado as estratégias de captura dos gestos do trabalhadores pelo modo capitalista de produção, que alienaria os movimentos de seus corpos a partir da disciplina fabril e da máquina. A retenção terciária da experiência subjetiva deve ser compreendida, portanto, como uma forma de proletarização e a disseminação da tecnologia proprietária como uma expressão do domínio dos sistemas retencionais privados. A analítica de Stiegler do desenvolvimento das mnemotécnicas viabiliza a compreensão dos processos descritos por Jameson acerca da alienação da experiência individual nas cidades. Assim, se a cognição da totalidade das estruturas sociais não pode ocorrer no espaço da experiência subjetiva, isso não significa que esse processamento não ocorra ainda em outro plano: as técnicas e tecnologias que organizam o espaço nas cidades passam a realizar a cognição no lugar dos sujeitos. Na cidade do século XXI, a inteligência difusa produzida pelos usuários do espaço urbano passa a ser controlada por uma inteligência embutida nas coisas, isso porque a estratégia de controle dos sujeitos não se dá mais pela disciplina dos corpos nos espaços confinados das instituições de sequestro, mas pela vetorialização dos fluxos no espaço abstrato.

A cidade neoliberal não é, portanto, um conjunto de espaços de confinamento e de produção de disciplina, mas um sistema de regulagem de fluxo e de gramatização de técnicas gestuais e cognitivas que impulsiona novas formas de proletarização e que, paradoxalmente, produz um vasto processo de perda de conhecimento (savoir-faire, savoir-vivre e savoir-theoriser). De acordo com Mackenzie Wark, isso explicaria porque as TICs (tecnolgias de informação e comunicação), do telégrafo à rede mundial de computadores, têm sido centrais no suporte ao colonialismo e à globalização dos últimos séculos (WARK, 2001WARK, Mackenzie. “Telegram from Nowhere”. In: KOOLHAAS, Rem (org.). Mutations. Bordeaux: Actar, 2001.). A cidade inteligente consiste em um dispositivo de calibragem e captura dos gestos e saberes produzidos pelo sujeito-empresa no espaço de acumulação flexível do capitalismo neoliberal.

A presente investigação pretendeu, em caráter preliminar, sugerir algumas linhas a partir das quais elaborar um diagnóstico da reificação da experiência na cidade neoliberal. Encontrou-se, assim, um complexo de correlações categoriais, que permite a localização da cidade inteligente na densa rede de relações produzidas pela gestão da vida urbana no capitalismo neoliberal. O direito à cidade, como estratégia de resistência e de reapropriação dos saberes perdidos na forma das tecnologias de controle deve, portanto, passar longe da reivindicação de formas autênticas da vida urbana, que serviriam de antídoto à complexificação dos sistemas sócio-técnicos. Antes, reconstruir o comum nas cidades significa pensar estratégias políticas para a reapropriação coletiva da experiência alienada, construindo uma cultura política de insubordinação direcionada contra a subjetividade-empresa que é ofertada, e que possam impulsionar uma interação entre os sistemas técnicos e sociais diferente da lógica corporativa e proprietária de controle dos sistemas retencionais das cidades inteligentes.

  • Errata

    No artigo Reificação da experiência na cidade inteligente: notas para uma crítica da economia política do espaço urbano, com número de DOI: https://doi.org/10.1590/2179-8966/2020/48205, publicado no periódico Revista Direito e Práxis, 11(1):591-611, nas páginas 591 e 611, e no rodapé das páginas 591-611:
    Onde se lia:
    “Luís Fernando Massoneto”
    Leia-se:
    “Luís Fernando Massonetto”

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2020

Histórico

  • Recebido
    03 Fev 2020
  • Aceito
    11 Fev 2020
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