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Cecília Paiva Ximenes Rodrigues - Além da ruína: articulações da esperança na narrativa de Milton Hatoum. Fortaleza: Edições UFC, 2018

Rodrigues, Cecília Paiva Ximenes. - Além da ruína: articulações da esperança na narrativa de Milton Hatoum . Fortaleza: Edições UFC, 2018

Em tempos de ascensão do autoritarismo, no Brasil bem como em outros países, é preciso andar com fé. Não a fé cega propagada pelo neoliberalismo, que prega que se pensarmos positivamente atrairemos o sucesso, responsabilizando o indivíduo (Brown, 2015BROWN, Wendy (2015). Undoing the Demos: Neoliberalism’s Stealth Revolution. Cambridge: MIT Press.) enquanto as forças que nos enterram na injustiça social e na propagação do ódio são ignoradas. Falo aqui, sim, de uma fé consciente dos desafios ao longo do caminho, que sabe do tamanho da batalha pela frente, mas que também acredita na possibilidade de mudança, pois, do contrário, não nos impulsionaria à resistência. É com essa fé que se termina a leitura de Além da ruína: articulações da esperança na narrativa de Milton Hatoum, de Cecília Paiva Ximenes Rodrigues.

A autora começa por relacionar o tema de seu estudo e seu argumento - explicitados no próprio título do livro - à fala do próprio Hatoum, que afirma em entrevista (Hatoum, 1988 apud Rodrigues, 2018RODRIGUES, Cecília Paiva Ximenes (2018). Além da ruína: articulações da esperança na narrativa de Milton Hatoum. Fortaleza: Edições UFC.) o caráter dual de sua própria formação amazonense-libanesa; uma dualidade feita não de opostos rígidos, mas, sim, interconectados. Ao propor a sua tese, Rodrigues faz um cuidadoso e pertinente percurso pela crítica hatoumiana, articulando a fundamentação teórica a partir de importantes contribuições de vários estudiosos. Desse modo, de um lado, a autora parte das contribuições de Jacques Derrida sobre a desconstrução, de Roberto da Matta e Silviano Santiago sobre as complexidades do entre-lugar da identidade nacional brasileira; e, de outro, das reflexões de Eve Kosofsky Sedgwick sobre a ideia de leitura reparativa, e das propostas de Denilson Lopes e Oliveira Neto sobre um gesto de resgate de valores éticos e estéticos na literatura brasileira do século XXI. A partir desse aparato teórico, na contramão da crítica que o trabalho de Hatoum tem recebido (Carneiro, 2010CARNEIRO, Jéssica de Souza (2010). O instinto de nacionalidade em Órfãos do Eldorado. Revista Tucunduba, Belém, v. 1, n. 1, p. 46-53.; Fantini, 2004FANTINI, Marli (2004). Águas turvas, identidades quebradas: hibridismo, heterogeneidade, mestiçagem & outras misturas. In: ABDALA JUNIOR, Benjamin (ed.). Margens da cultura: mestiçagens, hibridismos e outras misturas. São Paulo: Boitempo.; Francisco, 2007FRANCISCO, Denis Leandro (2007). A ficção em ruínas: Relato de um certo Oriente. 122f. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) - Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.), Rodrigues propõe um vislumbre da esperança em meio à ruína. Como o título do livro revela, há um esforço na narração dos romances analisados1 1 Estes compreendem a obra romanesca de Hatoum anterior a seu último livro, A noite da espera, publicado em 2017. para a recuperação e a construção de um futuro possível. Assim, a esperança se destaca “para além da ruína” por meio da proposição de reconstrução, seja dos destroços da família ou do país. Isso ocorre por meio de um esforço contemplativo das personagens que empreendem uma jornada reflexiva pelas próprias histórias.

O argumento central da autora começa a ser construído no primeiro capítulo, que tem objetivo duplo, com a análise de Relato de um certo Oriente. Primeiramente, explora o vínculo entre o primeiro binômio do qual a autora trata: a linguagem verbal (tanto oral, relacionada à cultura indígena, como escrita, relacionada à cultura ocidental) e o silêncio. No caso deste último (o silêncio), Rodrigues explora a construção da identidade individual de várias personagens do romance em questão, mostrando que é na relação entre os dois polos do binômio que essas identidades se constroem, de maneira que o silêncio comunica uma série de ideias e processos positivos, tais como a reflexão, o respeito, a confidência, o acolhimento e a transcendência. A autora se apoia na perspectiva de Max Picard sobre o silêncio, segundo a qual este teria potencial criativo, para além de representar mera desumanização e impossibilidade. Dentre os vários exemplos elencados, é de particular força a interpretação da personagem Soraya Ângela, a criança surda-muda, a qual é comumente interpretada pela crítica como uma personificação da impossibilidade de comunicação na contemporaneidade. Em consonância com o viés da esperança, Rodrigues sugere, no entanto, que a personagem seja vista como possibilidade, presença e liberdade. Essa leitura poética e empática de Soraya Ângela apresenta um importante contraponto na narrativa àquelas personagens que têm dificuldade de aceitar essa outra forma de existência representada pela menina. Assim, é possível que não seja Soraya Ângela que experiencie ausência na sua falta de linguagem verbal, e, sim, que os outros ao seu redor experienciem ausência de silêncio nos seus medos de se confrontarem consigo mesmos (Rodrigues, 2018RODRIGUES, Cecília Paiva Ximenes (2018). Além da ruína: articulações da esperança na narrativa de Milton Hatoum. Fortaleza: Edições UFC., p. 56-57).

O segundo objetivo do primeiro capítulo consiste em analisar o processo autorreflexivo da narradora, o qual tem lugar na imbricação entre as categorias de tempo e de espaço, entendidos nos termos bakhtinianos a partir da noção de cronotopo. Ao analisar a construção identitária individual da narradora, Rodrigues argumenta que esta se dá a partir de um deslocamento espacial - a viagem a Manaus - que por sua vez leva a narradora a um deslocamento temporal, fazendo-a regressar à sua infância e, nesse processo, refletir sobre si mesma ao apreender, junto ao tio, pedaços da história familiar, enquanto busca seguir em frente com a própria vida.

O segundo capítulo é dedicado a uma análise detalhada de Dois irmãos, concentrando-se em dois aspectos do romance: a (im)possibilidade da experiência e a discussão da identidade nacional em relação a dualidades como atraso/modernidade, norte/sul, patrões/empregados. No caso do primeiro aspecto, o estudo se concentra na natureza da narração construída por Nael e como o narrador hatoumiano se encaixa (ou não) nos paradigmas do narrador pós-moderno tal como delineado por Silviano Santiago em O narrador pós-moderno (1989)SANTIAGO, Silviano (1989). O narrador pós-moderno. In: SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das letras. p. 38-52.. Após fazer um apanhado sobre vários posicionamentos teóricos relevantes ao tema do narrador no mundo contemporâneo, Rodrigues argumenta que leituras críticas de Dois irmãos, preocupadas em discutir se Nael funciona como um narrador benjaminiano ou não, perdem de vista que o cerne da questão está na ambiguidade do lugar de Nael como narrador. Isso ocorre por meio dos diálogos que ele tem com o avô sem uma evidente relação hierárquica, transcendendo o que Santiago caracteriza como o narrador pós-moderno. Em outras palavras, para Rodrigues, Nael condensa os narradores contemporâneo e tradicional, operando entre a experiência que absorve do avô e sua própria vivência no presente, entrelaçando oralidade e escrita.

No que diz respeito ao segundo aspecto, relativo à construção da identidade nacional, Rodrigues tece algumas considerações sobre a relação de conflito e complementariedade entre os personagens gêmeos da obra e a consequente ambiguidade da voz narrativa, cuja individualidade condensa aspectos tanto de um gêmeo quanto do outro. Essa ambiguidade se estende ao nível da identidade nacional, sendo transmitida através das particularidades do cotidiano das personagens do romance.

Rodrigues também analisa o romance Cinzas do norte, argumentando que, para além da percepção da crítica de que o romance em questão é o mais pessimista da obra de Hatoum, pode-se vislumbrar em Cinzas também uma possibilidade de esperança na forma como a narrativa retrata a amizade duradoura entre Mundo e Lavo, perpassada, por sua vez, pela relação entre a escrita e as artes visuais. Na primeira parte do capítulo três, há uma concentração na relação entre Mundo, seu pai, e o artista Arana, explorando a forma como a arte tanto aproxima como distancia esses personagens. Por um lado, Mundo se inspira em Arana e sua arte; por outro lado, se decepciona com o fato de que Arana cede às pressões econômicas e ideológicas do regime militar, passando a se dedicar a uma arte conservadora. Em contrapartida, é através da sua arte desafiadora que Mundo confronta a autoridade do pai - e sua preferência por uma arte considerada por Mundo “pedante” - e, por extensão, a autoridade do regime militar.

Passando à análise do papel da arte na trajetória de Mundo, na segunda parte do capítulo, Rodrigues emprega o conceito de écfrase para construir seu argumento de que o romance apresenta a possibilidade de construção da identidade por meio de uma reflexão pela arte, conferindo, assim, um tom esperançoso à narrativa.

À leitura de Órfãos do Eldorado é dedicado o capítulo cinco. Nele, Rodrigues parte da intertextualidade da obra em questão com o poema “A cidade” de Konstantinos Kaváfis, citado por Hatoum. Para a autora, a história funcionaria como uma resposta às limitações do poema impostas ao interlocutor pela voz poética. À sentença “não há barco nem caminho para ti”, o protagonista de Órfãos responde com a busca pelo seu Eldorado pessoal. Em outras palavras, com a busca pela amada, Dinaura, ele demonstra uma ousadia que renega os planos materiais traçados para ele pela família. Desta forma, ao contrário das leituras críticas do romance que o veem como uma narrativa distópica, é proposto que, na ambiguidade do destino do protagonista, há uma pulsão de esperança. Essa esperança se traduz não só no possível encontro entre o protagonista e Dinaura, mas no abandono deste dos interesses materiais da família, ao renegar a busca do pai e do avô pela riqueza dos negócios em nome de um Eldorado transcendente na forma de afeto e de amor. Ademais, o capítulo apresenta um rico mapeamento dos vários símbolos do mito do Eldorado e da Cidade Encantada presentes no romance, os quais conduzem à fluidez e à ambiguidade da história, em uma reconstrução contemporânea de mitos indígenas que cria uma zona de sfumato em várias instâncias do romance.

Na conclusão, além de fazer um resumo dos temas abordados no livro e reiterar o objetivo da análise, Rodrigues faz algumas considerações sobre a relação entre a linguagem e os temas da narrativa hatoumiana. Conclui-se que “Hatoum não só demonstra um posicionamento crítico diante dos desafios e das precariedades do momento contemporâneo, mas também propõe um reencantamento do mundo por meio de uma atitude reparativa imbuída de esperança” (Rodrigues, 2018RODRIGUES, Cecília Paiva Ximenes (2018). Além da ruína: articulações da esperança na narrativa de Milton Hatoum. Fortaleza: Edições UFC., p. 196).

Ao terminar a leitura do livro, vê-se que são alcançados os objetivos traçados como chaves para compreender a obra de Hatoum como condutora de esperança em um mundo estilhaçado pela deterioração das relações sociais, marcado pelo autoritarismo do regime militar e pelo individualismo de práticas capitalistas predatórias. Na liquidez da realidade social de que fala Zygmunt Bauman (2012BAUMAN, Zygmunt (2012). Liquid Modernity. Cambridge: Polity.; 2017BAUMAN, Zygmunt (2017). Liquid Times. Living in an Age of Uncertainty. Cambridge: Polity.), caracterizada por um nível de instabilidade alucinante trazido pelo neoliberalismo, Além da ruína se oferece como uma âncora ao delinear uma leitura que nos instiga a buscar outras perspectivas sobre a narrativa brasileira no século XXI. Acredito que esse olhar seja crucial para que possamos enfrentar a profunda crise na qual nos encontramos. Deste modo, o livro de Rodrigues nos inspira a “roubar sementes” (Lisboa, 2018LISBOA, Adriana (2018). Roubar sementes. In: AMERICAN PORTUGUESE STUDIES ASSOCIATION INTERNATIONAL CONFERENCE, 11., University of Michigan, 18-20 out. 2018. Paper.), ou seja, a buscar nas brechas, nos cantos, nas ruínas, formas de começar de novo, taticamente burlando o sistema no qual temos que existir (Certeau, 1984CERTEAU, Michel de (1984). The Practice of Everyday Life. Tradução de Steven Rendall. Berkeley: University of California Press.). Entrelaçando várias dualidades presentes na obra de Hatoum, Rodrigues articula uma leitura dialética que permite ao leitor refletir sobre a experiência da contemporaneidade, despertando para “uma percepção de delicadeza e esperança, possibilitada pela arte literária” (Rodrigues, 2018RODRIGUES, Cecília Paiva Ximenes (2018). Além da ruína: articulações da esperança na narrativa de Milton Hatoum. Fortaleza: Edições UFC., p. 34).

Referências

  • BAUMAN, Zygmunt (2012). Liquid Modernity. Cambridge: Polity.
  • BAUMAN, Zygmunt (2017). Liquid Times. Living in an Age of Uncertainty. Cambridge: Polity.
  • BROWN, Wendy (2015). Undoing the Demos: Neoliberalism’s Stealth Revolution. Cambridge: MIT Press.
  • CARNEIRO, Jéssica de Souza (2010). O instinto de nacionalidade em Órfãos do Eldorado. Revista Tucunduba, Belém, v. 1, n. 1, p. 46-53.
  • CERTEAU, Michel de (1984). The Practice of Everyday Life. Tradução de Steven Rendall. Berkeley: University of California Press.
  • FANTINI, Marli (2004). Águas turvas, identidades quebradas: hibridismo, heterogeneidade, mestiçagem & outras misturas. In: ABDALA JUNIOR, Benjamin (ed.). Margens da cultura: mestiçagens, hibridismos e outras misturas. São Paulo: Boitempo.
  • FRANCISCO, Denis Leandro (2007). A ficção em ruínas: Relato de um certo Oriente. 122f. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) - Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte.
  • LISBOA, Adriana (2018). Roubar sementes. In: AMERICAN PORTUGUESE STUDIES ASSOCIATION INTERNATIONAL CONFERENCE, 11., University of Michigan, 18-20 out. 2018. Paper.
  • RODRIGUES, Cecília Paiva Ximenes (2018). Além da ruína: articulações da esperança na narrativa de Milton Hatoum. Fortaleza: Edições UFC.
  • SANTIAGO, Silviano (1989). O narrador pós-moderno. In: SANTIAGO, Silviano. Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das letras. p. 38-52.
  • 1
    Estes compreendem a obra romanesca de Hatoum anterior a seu último livro, A noite da espera, publicado em 2017.
Editor de seção: Milton Colonetti

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jan 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    01 Fev 2019
  • Aceito
    28 Out 2019
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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