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Imaginário afro-ameríndio e utopia política em Torto arado

Afro-Amerindian imaginary and political utopia in Torto arado

Imaginario afroamerindio y utopía política en Torto arado

Resumo

O romance Torto arado (2019), de Itamar Vieira Junior, organiza sua trama com base na confluência de tempos, vozes e imaginários afro-ameríndios. Sustentamos que a narrativa dá forma às violências do passado colonial brasileiro, ao passo que se constitui como ficção política e utópica, valendo-se de sistemas simbólicos e cosmologias ancestrais como elementos de resistência e força reconfiguradora da história.

Palavras-chave:
Torto arado ; política; utopia; imaginários afro-ameríndios

Abstract

The novel Torto arado (2019), by Itamar Vieira Junior, organizes its plot from the confluence of Afro-Amerindian times, voices, and imaginaries. The narrative is argued here to shape the violence of the Brazilian colonial past, at the same time that it constitutes itself as a political and utopian fiction, using symbolic systems and ancestral cosmologies as elements of resistance and reconfigurative force of history.

Keywords:
Torto arado ; politics; utopia; Afro-Amerindian imaginaries

Resumen

La novela Torto arado (2019), de Itamar Vieira Junior, organiza su trama a partir de la confluencia de tiempos, voces e imaginarios afroamerindios. Argumentamos que la narrativa da forma a la violencia del pasado colonial brasileño, al tiempo que se constituye como una ficción política y utópica, utilizando sistemas simbólicos y cosmologías ancestrales como elementos de resistencia y fuerza de reconfiguración de la historia.

Palabras clave:
Torto arado ; política; utopía; imaginarios afroamerindios

OS FIOS DA HISTÓRIA

Torto arado, de Itamar Vieira Junior (2019)VIEIRA JUNIOR, Itamar (2019). Torto arado. São Paulo: Todavia., surgiu no cenário da literatura brasileira contemporânea como um acontecimento, mobilizando a atenção de um vasto público, nos meios acadêmico, jornalístico e das redes sociais. Publicado em Portugal em 2018, após conquistar o Prêmio Leya, e lançado em 2019 no Brasil, o romance segue uma trajetória prestigiosa, verificada ainda no sucesso de vendas, nas inúmeras traduções, na concessão de direitos de adaptação para a TV e o cinema.

Se iniciamos a apresentação do livro pelos dados de seu êxito nos campos cultural, midiático e comercial, fenômeno típico das sociedades urbanizadas, da comunicação instantânea e do consumo de massa, é para contrastarmos com o universo trazido à tona na obra: um Brasil arcaico, onde pessoas vivem em casas de barro, trabalham na lavoura em regime de escravidão, conservam costumes e tradições de um tempo longínquo. Nessa aparente contradição reside a contemporaneidade de Torto arado, romance que testemunha uma relação simultânea com o passado e o presente, revelando sua pertinência histórica, sensível aos impasses do nosso tempo.

O romance situa a ação na Fazenda Água Negra, no sertão baiano, onde trabalhadores, remanescentes quilombolas, repetem o destino análogo ao das populações afrodiaspóricas, trazidas ao continente americano na condição de escravizadas. Nesse contexto, em meio à violência do regime de exploração capitalista do trabalho na terra, a narrativa articula temporalidades e imaginários culturais, fazendo confluir práticas e experiências vinculadas a memórias ancestrais de cosmologias africanas e indígenas.

As feridas do processo de modernização colonial expostas no tecido narrativo confrontam a concepção linear da história, nos termos da crítica de Walter Benjamin (1985)BENJAMIN, Walter (1985). Sobre o conceito de história. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense. p. 222-232. v. 1. (Obras Escolhidas). ao devir histórico, lido a contrapelo do triunfo do progresso e das classes dominantes. Em suas Teses sobre o conceito de história (1985), o autor contrapõe-se ao sentido progressivo da marcha histórica, pensada nos termos da civilização burguesa e da expansão infinita do capital, mostrando que esse ideal de progresso tem conduzido à destruição da natureza, à aniquilação e ao apagamento da memória dos sujeitos mortos e excluídos da modernidade reinante. Essa crítica da história, na original formulação benjaminiana, continua iluminando o nosso tempo, precisamente porque os casos de violência, injustiças, miséria, racismo, autoritarismos e destruição ambiental não cessaram de se acumular. A barbárie contemporânea aprofunda-se em novas faces, como parte do mesmo projeto de desenvolvimento capitalista excludente e desigual que se constrói na recusa da pluralidade de mundos e experiências não conformadas à lógica da produção de mercadorias e da acumulação financeira.

Conforme propõe Benjamin (1985)BENJAMIN, Walter (1985). Sobre o conceito de história. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense. p. 222-232. v. 1. (Obras Escolhidas)., em sua tese VI, o tecido contínuo e linear da história pode ser rompido em algum ponto fugidio, na fixação de uma reminiscência do passado, “tal como ela lampeja no momento de um perigo” (Benjamin, 1985BENJAMIN, Walter (1985). Sobre o conceito de história. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense. p. 222-232. v. 1. (Obras Escolhidas)., p. 224). Esses momentos de perigo manifestam-se na premência dos fascismos, dos totalitarismos e das forças reacionárias que trabalham para suplantar as ideias utópicas e libertárias. Nesses termos, a tarefa crítica consiste, primeiramente, em compreender a associação poderosa entre o progresso técnico e a produção da catástrofe, que ocorre na esteira da supressão dos movimentos de resistência. Em segundo lugar, exige a capacidade de ver, nas heranças sufocadas, a riqueza caleidoscópica de potências revolucionárias a ser recuperada no presente.

Passados pouco mais de 80 anos da publicação das teses, em 1940, mesmo ano da morte de seu autor, a reivindicação de outra história, na voz dos vencidos, dos excluídos, dos marginais, dos párias e dos “selvagens”, tem dado sinais cada vez mais potentes de sua atualidade, reacendendo a necessidade de “despertar no passado as centelhas da esperança” (Benjamin, 1985BENJAMIN, Walter (1985). Sobre o conceito de história. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense. p. 222-232. v. 1. (Obras Escolhidas)., p. 224). Na história narrada em Torto arado, vislumbramos a configuração de pequenas e frágeis brechas capazes de instaurar uma temporalidade outra, carregada de potências transformadoras. O romance dá forma às catástrofes da história colonial que moldaram a formação da sociedade brasileira, iluminando regiões de sombras do passado, como pequenas fulgurações capazes de alimentar as lutas do presente e projetar imagens da utopia.

A utopia não se confunde com um lugar distante e perfeito, um paraíso perdido; seu horizonte é histórico, configura-se como uma hipótese de mudança, implicando tripla articulação: a memória acesa das lutas passadas, a resistência organizada ao presente indigno e o projeto de um mundo por vir. Neste artigo, propomo-nos a explicitar a dialética que preside a organização de Torto arado enquanto narrativa tecida na confluência de tempos, vozes e imaginários. Importa mostrar o modo como se articulam no romance imagens do passado colonial brasileiro à experiência dos trabalhadores rurais da Fazenda Água Negra, em vista do futuro como afirmação política de um mundo melhor, outro mundo.

AS FERIDAS DA HISTÓRIA

Em Torto arado, a história começa com o acidente com a faca, acontecimento decisivo que atravessa o tecido narrativo de ponta a ponta, nas três partes que compõem o romance. O ferimento causado nas irmãs Bibiana e Belonísia pela faca encontrada na mala da avó marca o destino das personagens e funciona como “fio de corte” (título da primeira parte da obra), ou seja, abre uma rasura na história, uma ferida no discurso, pondo à mostra a violência sufocada do processo colonizador. Uma das irmãs tem a língua decepada; o corte atinge o corpo e a fala da personagem Belonísia, aquela que herda do pai os saberes da terra ferida pelo “torto arado” (título da segunda parte), instrumento “que penetrava a terra de tal forma a deixá-la infértil, destruída e dilacerada” (Vieira Junior, 2019VIEIRA JUNIOR, Itamar (2019). Torto arado. São Paulo: Todavia., p. 98).

Retirada de um verso de Tomás Antônio Gonzaga do poema Marília de Dirceu, publicado em 1792, a imagem do “torto arado” condensa uma memória histórica e literária, situando-se na gênese do romance1 1 O próprio autor esclarece que havia escrito as primeiras páginas da obra aos 16 anos de idade, reescrevendo-a muitos anos depois com o mesmo título originalmente atribuído ao manuscrito: “Escrevi 80 páginas, mas essas páginas se perderam numa mudança de casa. Ainda bem que se perderam. Mas fiquei com uma pequena frustração de querer contar uma história e não ter conseguido contar. Carreguei isso, carreguei pacificamente, nada que me perturbasse não. A vida me ensinou tantas coisas, chegou o momento certo e contei”, relembra (apud Cruz, 2022). . Atravessando o tempo, a imagem persiste com sentido deslocado: se na lírica árcade o instrumento de plantio que arranca da terra “os brancos ossos”2 2 Para uma melhor compreensão do contexto em que a imagem aparece, transcrevemos a estrofe da “Lira XIV”, da primeira parte de Marília de Dirceu: “A devorante mão da negra Morte / Acaba de roubar o bem, que temos; / Até na triste campa não podemos / Zombar do braço da inconstante sorte. / Qual fica no sepulcro, / Que seus avós ergueram, descansado; / Qual no campo, e lhe arranca os brancos ossos / Ferro do torto arado” (Gonzaga, 2004, p. 41). funciona como elemento apaziguador de tensões, convidando ao carpe diem e ao idílio amoroso, já que tudo passa e a morte é inevitável, na poética de Itamar Vieira Junior o locus amoenus é desestabilizado, uma vez que os ossos revolvidos pelo “ferro do torto arado” trazem à tona histórias de violência, a memória do trabalho escravo nas lavouras, situação que se repete no presente e segue lacerando o corpo da terra e a própria carne dos trabalhadores.

O arado é uma imagem carregada de historicidade, associa-se a uma paisagem que não fala de uma realidade nacional homogênea, e sim que fere a ideia de uma “nação brasileira”, que à altura dos versos do poeta inconfidente, no século XVIII, estava em formação. O arado não é um índice realista da paisagem, um mero instrumento para cultivar a terra, de onde as personagens tiram o seu sustento; o objeto ocupa um lugar estético, dá forma à subjetividade das personagens. Belonísia gostava de lembrar-se do som “redondo, fácil e ruidoso” da palavra, em expressões que ouvia o pai dizer: “Vou trabalhar no arado”; “Vou arar a terra”; “Seria bom ter um arado novo, esse arado está troncho e velho” (Vieira Junior, 2019VIEIRA JUNIOR, Itamar (2019). Torto arado. São Paulo: Todavia., p. 98). Não à toa, é essa a palavra que escolhe tentar falar depois de ter a língua decepada, no entanto

O som que deixou minha boca era uma aberração, uma desordem, como se no lugar do pedaço perdido da língua tivesse um ovo quente. […] Tentei outras vezes, sozinha, dizer a mesma palavra, e depois outras, tentar restituir a fala ao meu corpo para ser a Belonísia de antes, mas logo me vi impelida a desistir. Nem mesmo quando o edema se desfez consegui reproduzir uma palavra que pudesse ser entendida por mim mesma (Vieira Junior, 2019VIEIRA JUNIOR, Itamar (2019). Torto arado. São Paulo: Todavia., p. 98).

O arado é portador de uma linguagem sem tradução. Sua mensagem é imprecisa; a história que ele conta é incompleta, interrompida pelos traumas sociais de uma nação invisível. Cabe a Belosínia articular uma voz que faça falar “o arado velho e retorcido” (Vieira Junior, 2019VIEIRA JUNIOR, Itamar (2019). Torto arado. São Paulo: Todavia., p. 98), recuperando a memória das feridas mal curadas do passado:

Aquele arado sobre o qual ninguém falava, um objeto da paisagem, que chegou muito antes dos pioneiros, que ninguém sabia de onde tinha vindo, manejado pelas mãos dos trabalhadores mais antigos, dos que vieram de muito longe e sobre os quais não havia nenhuma história. Dos que abriram a mata muito antes e em suas mãos conduziram o arado para preparar o campo para a semeadura. Com suas mãos que talvez tivessem os mesmos nós, as mesmas feridas que o povo da fazenda escondiam. Mãos que abriam a cova com a enxada, arrancando grandes pedaços de solo e ervas, para nela florescer a mandioca ou para enterrar um corpo (Vieira Junior, 2019VIEIRA JUNIOR, Itamar (2019). Torto arado. São Paulo: Todavia., p. 198).

O romance lança outra perspectiva sobre a terra, que está longe de ser um elemento inerte, simples paisagem de deleite ou campo de exploração de riquezas. A terra obedece a ritmos e fluxos próprios, é fonte da energia vital que faz crescer frutos, grãos, óleos e raízes, alimentando física e espiritualmente a existência coletiva. É toda uma linguagem que o romance faz falar da terra, transformada em solo fértil da escrita. Há uma profusão de nomes de lugares, rios, plantas, pássaros, peixes, fenômenos da natureza, tudo em múltipla e complexa comunicação com os modos de vida das personagens, habitantes do sertão do Brasil, dedicadas ao plantio dos vários tipos de alimentos e ervas medicinais, aos rituais religiosos, aos festejos, aos cantos e às danças que vêm de tradições ancestrais.

Esse universo das formas tradicionais de relação com a terra e suas culturas, incluindo o cultivo das plantas e os modos de vida das populações rurais, entra em choque com o sistema de produção capitalista que rege as relações de trabalho na Fazenda Água Negra. O presente reproduz o processo histórico de desenvolvimento da modernidade colonial no continente latino-americano, baseado no controle do trabalho, na hierarquização racial da população, no padrão de poder que estabelece a superioridade do homem branco sobre negros e indígenas, na imposição de uma visão eurocêntrica como matriz de conhecimento do mundo, conforme bem analisa Aníbal Quijano (2020)QUIJANO, Aníbal (2020). Colonialidad del poder, eurocentrismo y América Latina. In: LANDER, Edgardo (org.). La colonialidad del saber: eurocentrismo y ciencias sociales: perspectivas latinoamericanas. Buenos Aires: Fundación CICCUS. p. 219-264..

Torto arado, por sua vez, reflete a imagem de outra história, dando corpo e voz à população excluída dos direitos políticos pela brutal concentração de poder e capital nas mãos dos senhores da família patriarcal. Romper o curso que perpetua o domínio das classes brancas dominantes, associadas às promessas do progresso e aos ideais modernizadores, não deixa de ser uma estratégia política da utopia, como aponta Edson Souza (2022)SOUZA, Edson Luiz André de (2022). Furos no futuro: psicanálise e utopia. Porto Alegre: Artes & Ecos., ao afirmar que a utopia “rompe com a paixão da analogia ao propor um não lugar. A forma utópica, fundamentalmente, num primeiro momento coloca em cena um ‘não’ ao presente. A utopia introduz a categoria do possível e por isso faz uma fratura na história” (Souza, 2022SOUZA, Edson Luiz André de (2022). Furos no futuro: psicanálise e utopia. Porto Alegre: Artes & Ecos., p. 91).

A consciência utópica, no romance, ganha forma na ação política organizada de Severo e Bibiana, que mobilizam esperanças na criação do futuro. A intervenção das personagens impõe resistência à sanha proprietária do senhor, que, além de proibir aos moradores a construção de casas duradouras, não lhes concede o direito de enterrar seus mortos no Cemitério da Viração, que existia há mais de 200 anos, em terras da fazenda, lugar “onde estavam as dores e as lembranças de muitas famílias que nos acompanhavam. Onde estavam os que morreram de doença e do esgotamento que advinha da labuta. Os que morreram de feitiço ou porque Deus assim o quis, como ouvia” (Vieira Junior, 2019VIEIRA JUNIOR, Itamar (2019). Torto arado. São Paulo: Todavia., p. 172).

Os moradores de Água Negra sofrem a ameaça de expulsão da fazenda; sua presença era incômoda ao novo dono, “talvez porque soubesse que, pelo tempo que tínhamos ali, a justiça nos reservava algum direito” (Vieira Junior, 2019VIEIRA JUNIOR, Itamar (2019). Torto arado. São Paulo: Todavia., p. 196), narra Belonísia. A liderança política de Severo enfrenta as opressões do presente, em respeito também ao sofrimento dos antepassados que “migraram para as terras de Água Negra porque só restou aquela peregrinação permanente a muitos negros depois da abolição” (Vieira Junior, 2019VIEIRA JUNIOR, Itamar (2019). Torto arado. São Paulo: Todavia., p. 197). Por mais que mire o futuro, o devir utópico exige fixar os olhos na escuridão do presente, ciente de que, a cada movimento de resistência, “as tiranias surgiam com mais força” (Vieira Junior, 2019VIEIRA JUNIOR, Itamar (2019). Torto arado. São Paulo: Todavia., p. 197). A morte de Severo a tiros não deixa dúvidas acerca da força do inimigo, abrindo na terra uma fenda sobre a qual corre um “rio de sangue”, título da terceira parte do romance, que descreve a luta de resistência da população quilombola, mediante a recuperação de seu passado ancestral e a potencialização das forças de recriação do mundo.

ANCESTRALIDADE E DEVIR

A força política da comunidade de Água Negra é indissociável das formas de vida tradicionais, fortemente ligadas ao cultivo da terra, à conexão com a natureza e às práticas do jarê3 3 O jarê é uma religião que chegou ao Brasil por meio de africanos da etnia nagô, à qual pertenciam as principais lideranças que levaram adiante seus cultos, mulheres escravizadas e alforriadas trazidas para a região da Chapada Diamantina. Caracteriza-se por uma “síntese particular que aglutinou o espiritismo kardecista e as influências africanas e indígenas, representadas pelos índios Cariris e Maracás com suas performances xamânicas” (Carmo, 2021). . Os cultos religiosos aparecem na sua dimensão ritualística, nas festividades e cerimônias de possessão, em que santos e orixás se manifestam por meio de cantos e danças, nos rituais de cura e no cotidiano da comunidade, nas relações sociais de solidariedade e harmonia com a natureza. Zeca Chapéu Grande é o pai espiritual da população de Água Negra; ele detém poderes de cura, de restituir a saúde do corpo e do espírito aos que necessitam dela: “O curador Zeca Chapéu Grande tudo podia. Se transformava em muitos encantados nas noites de jarê. Mudava a voz, cantava, rodopiava ágil pela sala, investido dos poderes dos espíritos das matas, das águas, das serras e do ar” (Vieira Junior, 2019VIEIRA JUNIOR, Itamar (2019). Torto arado. São Paulo: Todavia., p. 126).

O jarê é um território/terreiro de confluências, em que se dá uma diversidade de encontros, desestabilizando quaisquer noções de autenticidade ou pureza cultural e religiosa. Praticado por uma comunidade rural do interior do Brasil, distante das grandes concentrações urbanas, o jarê comporta, em si, variações e transformações, ilustrando um tipo de formação histórica que não se prende a uma ideia de origem, mas surge da junção de uma pluralidade de imaginários culturais mutuamente afetados e transformados no processo de colonização. A Fazenda Água Negra constitui um território de relações no qual culturas, tempos e espaços coexistem em tensão.

A heterogeneidade é indissociável da proposição estética do romance, aproximando-se do que Édouard Glissant (2005)GLISSANT, Édouard (2005). Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora: Editora da UFJF. denomina de “poética da relação”, conceito que abarca a complexidade e a multiplicidade das culturas. A narrativa circunscreve espaços heterogêneos, articula diferenças, compondo uma teia de relações que “contempla a pulsão poética da linguagem e a dimensão política de denúncia da violência” (Glissant, 2005GLISSANT, Édouard (2005). Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora: Editora da UFJF., p. 13). Desse modo, o romance percorre os caminhos emaranhados da colonização, valendo-se de vozes carregadas de sabedoria ancestral, que falam de outra dimensão do saber, como fica evidente nessa última parte do romance, conduzida pela voz de Santa Rita Pescadeira, entidade espiritual que vaga errante pelo mundo, sem um corpo para se encarnar. Depois da morte de seu cavalo4 4 Nas religiões de matriz africana, os cavalos de santo são “suportes corporais” nos quais a sabedoria dos orixás se incorpora. Segundo Luiz Rufino (2019, p. 5), “os conhecimentos são como orixás, forças cósmicas que montam nos suportes corporais, que são feitos cavalos de santo; os saberes, uma vez incorporados, narram o mundo através da poesia, reinventando a vida enquanto possibilidade”. , a entidade já não era mais invocada, suas cantigas não mais eram lembradas, e seu poder restava desacreditado: “Sem abastança de água para pescar já não tinham porque pedir nada a Santa Rita Pescadeira” (Vieira Junior, 2019VIEIRA JUNIOR, Itamar (2019). Torto arado. São Paulo: Todavia., p. 205).

Com o poder de viajar no tempo e no espaço, a entidade tem a visão da história como uma imagem constelar que conecta passado, presente e futuro. O espírito vaga em um céu de muitas nuvens e ar pesado, vendo a crueldade e a vileza que se acumulam ao longo dos séculos. Seguindo o rastro do “rio de sangue” que banha a história de barbárie da colonização, contempla o corpo de Severo, “caído na terra com oito furos feitos à bala” (Vieira Junior, 2019VIEIRA JUNIOR, Itamar (2019). Torto arado. São Paulo: Todavia., p. 206), ouvindo ainda o “grito de Bibiana, prostrada no chão com a cabeça do marido no colo” (Vieira Junior, 2019VIEIRA JUNIOR, Itamar (2019). Torto arado. São Paulo: Todavia., p. 206). O grito atravessa o espaço como um “sabre afiado”, abrindo um rasgo no tempo, uma brecha por onde a encantada contempla a visão do horror:

Vi senhores enforcarem seus escravos como castigo. Cortarem suas mãos no garimpo por roubarem um diamante. Acudi uma mulher que incendiou seu próprio corpo por não querer ser mais cativa de seu senhor. Mulheres que retiravam seus filhos ainda no ventre para que não nascessem escravos. Que davam a liberdade aos que seriam cativos, e muitas delas morreram também por isso. Mulheres que enlouqueceram porque as separaram dos filhos que seriam vendidos. Vi um senhor cruel deitar com mulheres negras e abandonar seus corpos castigados à morte, como se quisesse expurgar o mal que o fazia cair. Outro fez do corpo de seu escravo um reparo para o barco imprestável em que navegava. Entrava água na embarcação. O barco chegou ao seu destino com o homem afogado. Vi homens e mulheres venderem seus pedaços de terra por uma saca de feijão ou uma arroba de carne, porque não suportavam mais a fome da seca. Severo morreu porque pelejava pela terra de seu povo. Lutava pelo livramento da gente que passou a vida cativa. Queria apenas que reconhecessem o direito das famílias que estavam há muito tempo naquele lugar, onde seus filhos e netos haviam nascido. Onde enterraram seus umbigos, no largo de terra dos quintais das casas. Onde construíram casas e cercas (Vieira Junior, 2019VIEIRA JUNIOR, Itamar (2019). Torto arado. São Paulo: Todavia., p. 207).

Santa Rita Pescadeira move-se nas encruzilhadas do tempo, levada por uma força que conecta passado e presente, o mundo dos vivos e dos mortos, as dimensões divina e terrena. A existência da entidade é mais bem compreendida na perspectiva de uma cosmologia que concebe os seres como forças vitais, com poderes de ação e transformação sobre a realidade. Existindo em um mundo regido por outra temporalidade e uma racionalidade distinta, a entidade põe em evidência a dimensão simbólica implicada nas experiências de transe, próprias dos rituais religiosos afro-ameríndios.

A visão de Santa Rita Pescadeira como entidade narradora transcende os limites do tempo e do espaço, não se atém a uma origem nem a um fim. Seu conhecimento suspende os sentidos da técnica e da racionalização, reforçando os poderes da imaginação. A voz e a perspectiva de Santa Rita Pescadeira são a figuração da linguagem como potência criadora. Nesse aspecto, a entidade é comparável a exu, “princípio ontológico, epistêmico e semiótico negro-africano […] que se manifesta como prática de saber e filosofia da ancestralidade”, segundo afirma Luiz Rufino (2019RUFINO, Luiz (2019). Pedagogia das encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula., p. 29). Para o autor, “exu emerge como potência para examinarmos os fenômenos constituídos no campo da linguagem, uma vez que é o comunicador por excelência” (Rufino, 2019RUFINO, Luiz (2019). Pedagogia das encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula., p. 56). Além de elemento fundamental para o conhecimento e a comunicação, exu não se ajusta a limites impostos: “Não é nem o eu, nem o outro, ele comporta em si o eu e o outro e toda a possibilidade de encontro/conflito/diálogo entre eles” (Rufino, 2019RUFINO, Luiz (2019). Pedagogia das encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula., p. 56).

A narrativa de Torto arado, tecida nos fios das cosmologias africanas, performa o transe dos encantados. Santa Rita Pescadeira é uma espécie de voz errante, capaz de cruzar fronteiras, abrir caminhos e passagens no corpo da escrita. Qual exu, impregna-se do poder da linguagem, “síntese de todas as forças que regem o universo e possibilitam a existência” (Lopes, 2015LOPES, Nei (2015). Dicionário Afro-brasileiro. São Paulo: Selo Negro., p. 65). Movida nos passos de exu, a voz de Santa Rita Pescadeira ganha uma entonação francamente política e revolucionária. No seu trânsito sem obstáculos pelas encruzilhadas da história, desordena a linearidade, ecoando o aforismo: Exu matou um pássaro ontem com uma pedra que só jogou hoje. O enunciado só é concebível, na sua complexidade filosófica, segundo explica Muniz Sodré (2017SODRÉ, Muniz (2017). Pensar nagô. Petrópolis: Vozes., p. 222-223):

Se o presente ou o agora funda o tempo (temporaliza) por meio da ação/acontecimento (a pedrada mitológica) e assim pode coexistir com o passado — pode tornar simultâneo o que não é contemporâneo. Com Exu, não há começo nem fim, porque tudo é processo e, ao se constituir, cada realidade afeta outra para além do espaço-tempo. Em termos cíclicos ou solares, a nascente coexiste com o poente por causa da força do agora.

Não é o caso de se deduzir daí a concepção de uma cultura moralmente orientada para o passado. Aquilo para o que sinaliza o aforismo é, antes, a ideia de que a ação de Exu abriu uma possibilidade que não lhe preexistia em termos reais, mas foi tornada possível por um evento feito metonímia do acontecimento (a pedrada enquanto começo de uma transformação). O que está sendo mostrado é que todo acontecimento vem junto com os seus possíveis.

Fazer o presente transitar para o passado implica uma concepção de tempo que não comporta a existência de acontecimentos pré-dados linearmente no passado, no presente e no futuro. O que o aforismo nos diz é que o passado engendra diferentes possibilidades de futuro, que o passado é um acontecimento tornado possível pela força da imaginação do presente. No romance de Itamar Vieira Junior, Santa Rita Pescadeira viaja no tempo, refazendo os rumos da história. Os movimentos da entidade estão associados à ação de Bibiana e Belonísia, que se transformam em cavalos que incorporam a energia combativa contra o inimigo.

No plano da resistência política organizada da comunidade, Bibiana enfrenta as investidas do fazendeiro Salomão, tomada pela revolta: escarra sobre a sombra do proprietário projetada no chão “o veneno que guardava na boca” (Vieira Junior, 2019VIEIRA JUNIOR, Itamar (2019). Torto arado. São Paulo: Todavia., p. 222). O arbítrio de Salomão gera o acirramento do conflito, culminando com a sua morte; ele “havia aparecido quase degolado, caído numa vereda no meio da mata” (Vieira Junior, 2019VIEIRA JUNIOR, Itamar (2019). Torto arado. São Paulo: Todavia., p. 251). O corpo do fazendeiro fora encontrado na mata, próximo a uma cova grande, que nunca havia sido vista. O assassinato é cercado de mistério, aparecendo simbolicamente associado à caça da onça.

A onça é uma personagem com presença relevante ao longo da narrativa de Torto arado. Ela faz parte das visões de vó Donana; também protege Zeca Chapéu Grande por semanas no mato quando, na juventude, fora acometido de loucura; é também um animal que está sempre à espreita, amedrontando os moradores da comunidade de Água Negra. A importância conferida à onça no universo narrativo do romance remete ao lugar central que esse animal ocupa no ritual antropofágico. Manuela Carneiro da Cunha e Eduardo Viveiros de Castro (2017)CUNHA, Manuela Carneiro; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo (2017). Vingança e temporalidade: os Tupinambá. In: CUNHA, Manuela Carneiro. Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Ubu. p. 78-101. esclarecem que a onça ocupa no sistema tupinambá posição singular, conforme observam já nos primeiros relatos dos viajantes europeus que passaram pela terra brasilis, como é o caso de Fernão Cardim, anotando que a onça podia, como um inimigo, ser morta em terreiro, com tomada de nome; e André Thevet, contando como, depois de morta na armadilha, a onça é trazida para o terreiro e paramentada “como um prisioneiro que irá ser comido” (Carneiro da Cunha; Viveiros de Castro, 2017CUNHA, Manuela Carneiro; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo (2017). Vingança e temporalidade: os Tupinambá. In: CUNHA, Manuela Carneiro. Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Ubu. p. 78-101., p. 91).

Já tendo sido humana em outro tempo, a onça é vista como um ser canibal por excelência, capaz de perfurar o crânio da vítima com suas presas, tal qual o matador executa no ritual antropófago, ao dar uma pancada no crânio do prisioneiro a ser devorado. Matar uma onça, tanto quanto um inimigo humano, assegura aos povos tupinambás o cumprimento da vingança em nome dos seus parentes devorados no passado e daqueles que o serão no futuro. No romance, o episódio da caçada à onça é narrado em dois momentos. No primeiro, Santa Rita Pescadeira encarna no corpo de Bibiana, iniciando a construção da armadilha para capturar o animal:

A cada noite atravesso os caminhos, vejo a ruína da casa em que reinavam os encantados. Deslizo, como uma semente encontrando a terra arada, para o corpo de Bibiana. Retomo seu fôlego. Retorno ao mesmo lugar onde vai surgindo um fojo. O lugar mais escuro de nossas noites. A enxada desce sobre a cova, que ganha contornos definidos. A terra pode ser uma armadilha. Vamos caçar um animal feroz que anda à solta, apavorando a gente de Água Negra. A onça que sua avó via, só ela via, e por isso pedia para terem cuidado. A onça era uma lembrança daquele passado tão distante e havia retornado para amedrontar os moradores. Não era a onça que havia protegido seu pai louco no meio da mata. A onça que passamos a caçar havia derramado sangue e estava disposta a rasgar a carne de mais gente, até conseguir o que queria.

São tantas noites cavando a terra para o fojo que as mãos de Bibiana estão laceradas. Quando deixo seu corpo pela manhã, ela cuida das palmas dormentes e castigadas com bolhas e feridas surgidas de nossa guerra (Vieira Junior, 2019VIEIRA JUNIOR, Itamar (2019). Torto arado. São Paulo: Todavia., p. 260).

Em um segundo passo, a entidade une-se ao corpo de Belonísia, para completar a vingança, matando o inimigo:

Foi na manhã fria, antes que o povo seguisse agasalhado para o trabalho, que seu corpo ardeu como uma labareda. Sabia que a onça fazia sua ronda pela estrada. […] A onça caiu sobre a borda do fojo, sustentando o corpo com as garras para não ser lançada em definitivo para o buraco. Assustou-se com a armadilha escondida no meio da mata, coberta de taboa seca e palha de buriti. Há quem jure que capatazes usaram as mesmas armadilhas de caça para capturar escravos fugidos no passado. A onça caiu com as presas enterradas no chão. Retirou uma porção de terra da boca. Não, era uma armadilha tola para capturar uma caça. Mas, antes que levantasse, se abateu sobre seu pescoço um único golpe carregado de uma emoção violenta, que até então desconhecia.

Sobre a terra há de viver sempre o mais forte (Vieira Junior, 2019VIEIRA JUNIOR, Itamar (2019). Torto arado. São Paulo: Todavia., p. 261-262).

Na cosmovisão antropófaga, a vingança está em íntima relação com o tempo e a memória: “A vingança não é outra coisa senão um elo entre o que foi e o que será, os mortos do passado e os mortos por vir ou, o que dá no mesmo, os vivos pretéritos e os vivos futuros” (Carneiro da Cunha; Viveiros de Castro, 2017CUNHA, Manuela Carneiro; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo (2017). Vingança e temporalidade: os Tupinambá. In: CUNHA, Manuela Carneiro. Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Ubu. p. 78-101., p. 95). Os antropólogos afirmam ainda que “a vingança é a herança deixada pelos antepassados e, por isso, abandonar a vingança é romper com o passado; mas é, também e sobretudo, não ter mais futuro” (Carneiro da Cunha; Viveiros de Castro, 2017CUNHA, Manuela Carneiro; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo (2017). Vingança e temporalidade: os Tupinambá. In: CUNHA, Manuela Carneiro. Cultura com aspas e outros ensaios. São Paulo: Ubu. p. 78-101., p. 95).

Ao evocar princípios das cosmologias africanas e ameríndias, o romance aproxima imaginários ancestrais colocados a serviço da continuidade da vida e da reinvenção do mundo. Em termos políticos, a vingança não é sinônimo de ressentimento nem de ódio, e sim “fonte de ação, de revolta ativa, de práxis revolucionária”, nos termos da interpretação que Michael Löwy (2005LÖWY, Michel (2005). Walter Benjamin: aviso de incêndio. São Paulo: Boitempo., p. 112) dá à tese XII de Walter Benjamin. Desse modo, Torto arado constitui-se como ficção política utópica, valendo-se de forças ancestrais afro-ameríndias como elementos de reconstrução da história passada e presente, com vistas a transformações futuras.

FICÇÃO POLÍTICA E UTÓPICA

A obra de Itamar Vieira Junior torna visível a violência que forjou a nação brasileira, escancarando conflitos agudos do modelo colonial de civilização. Ao mesmo tempo, elabora estratégias de luta política, na relação com cosmologias ancestrais portadoras de futuro.

No romance, a experiência dos trabalhadores da Fazenda Água Negra relaciona-se a formações culturais e sistemas simbólicos que situam a utopia em um horizonte histórico. Nessa medida, Itamar Vieira Junior transforma a ficção em um espaço de reflexão sobre a história como princípio de esperança. Numa época em que o futuro se dissipa diante do medo e das inseguranças do presente, conforme diagnóstico de Marc Augé (2012)AUGÉ, Marc (2012). Para onde foi o futuro? Campinas: Papirus., a narrativa abre trilhas que escapam às imagens midiatizadas que encobrem a realidade nas telas virtuais, dada sua capacidade simbólica de construir relações com a história, tornando presentes, em sua fatura, os efeitos do atravessamento do tempo nas formas de existência comum. Ao estruturar a narrativa na voz de narradoras mulheres — Bibiana, Belonísia e Santa Rita Pescadora —, que “incorporam” a voz coletiva, o autor manifesta uma tomada de posição no que tange ao destino de toda uma comunidade, restituindo o futuro àqueles esquecidos e massacrados, raramente presentes na historiografia do nosso país.

Os povos que sofreram a violência do processo de colonização, destituídos de território e cidadania, são assim recolocados no tecido das relações sociais, com suas crenças religiosas, seus sistemas filosóficos e as concepções metafísicas de sua cultura. Vieira Junior potencializa esse conhecimento no romance, ao formalizar na linguagem os vínculos entre o passado e o presente, sob as tensões e pressões da história. A pertinência e a presença do romance revelam-se na sua vontade de resistência às versões de um mundo global, da comunicação generalizada das mídias e da resignação ao mercado. Mais do que isso, sua forma contém ressonâncias, vestígios da história e da sociedade, expressando a utopia de um futuro comum que inclua, sobretudo, os sujeitos herdeiros de um passado a ser redimido.

A utopia de Torto arado está nas aberturas, nas brechas por onde é capaz de fazer ver/imaginar uma história outra, que comporta uma pluralidade de mundos e alteridades. No romance, a relação de compromisso com o passado se dá ao escolher os restos de esperança com os destroços dos sonhos, os corpos ensanguentados e destroçados nas lutas por um mundo outro, com o discurso de defesa da vida, do território e da cultura das comunidades quilombolas e indígenas. Nesse sentido, a prosa de Vieira Junior estabelece uma linguagem que desperta o potencial infinito de criação de sentidos, propondo a compreensão da história como explosão do continuum do tempo homogêneo e vazio, para dar lugar à utopia do mundo depurado de injustiça e sofrimento (Benjamin, 1985BENJAMIN, Walter (1985). Sobre o conceito de história. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense. p. 222-232. v. 1. (Obras Escolhidas).).

Torto arado deixa claro que não haverá um futuro de justiça sem que de fato façamos justiça aos que vivem e aos que morreram. Não haverá futuro de esperança se o presente for de espera e o passado ignorado. Não haverá futuro promissor sem que o presente seja de lembrança, e o passado, de dívida. Há uma dívida com aqueles que vieram antes e que sonharam futuros outros, e o romance aponta a dádiva de sonhos e desejos a fazer e partilhar com os que vivem agora.

  • 1
    O próprio autor esclarece que havia escrito as primeiras páginas da obra aos 16 anos de idade, reescrevendo-a muitos anos depois com o mesmo título originalmente atribuído ao manuscrito: “Escrevi 80 páginas, mas essas páginas se perderam numa mudança de casa. Ainda bem que se perderam. Mas fiquei com uma pequena frustração de querer contar uma história e não ter conseguido contar. Carreguei isso, carreguei pacificamente, nada que me perturbasse não. A vida me ensinou tantas coisas, chegou o momento certo e contei”, relembra (apud Cruz, 2022CRUZ, Márcia Maria. Itamar Vieira Junior defende as cotas raciais para efetivar a abolição. Estado de Minas, 13 maio 2022. Disponível em https://www.em.com.br/app/noticia/diversidade/2022/05/13/noticia-diversidade,1366366/itamar-vieira-junior-defende-as-cotas-raciais-para-efetivar-a-abolicao.shtml. Acesso em: 7 jul. 2022.
    https://www.em.com.br/app/noticia/divers...
    ).
  • 2
    Para uma melhor compreensão do contexto em que a imagem aparece, transcrevemos a estrofe da “Lira XIV”, da primeira parte de Marília de Dirceu: “A devorante mão da negra Morte / Acaba de roubar o bem, que temos; / Até na triste campa não podemos / Zombar do braço da inconstante sorte. / Qual fica no sepulcro, / Que seus avós ergueram, descansado; / Qual no campo, e lhe arranca os brancos ossos / Ferro do torto arado” (Gonzaga, 2004GONZAGA, Tomás Antônio (2004). Marília de Dirceu. São Paulo: Martin Claret., p. 41).
  • 3
    O jarê é uma religião que chegou ao Brasil por meio de africanos da etnia nagô, à qual pertenciam as principais lideranças que levaram adiante seus cultos, mulheres escravizadas e alforriadas trazidas para a região da Chapada Diamantina. Caracteriza-se por uma “síntese particular que aglutinou o espiritismo kardecista e as influências africanas e indígenas, representadas pelos índios Cariris e Maracás com suas performances xamânicas” (Carmo, 2021CARMO, Wendal (2021). Jarê, o candomblé de caboclos típico da Chapada Diamantina. Carta Capital, 2021. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/jare-o-candomble-de-caboclos-tipico-da-chapada-diamantina/. Acesso em: maio 2022.
    https://www.cartacapital.com.br/sociedad...
    ).
  • 4
    Nas religiões de matriz africana, os cavalos de santo são “suportes corporais” nos quais a sabedoria dos orixás se incorpora. Segundo Luiz Rufino (2019RUFINO, Luiz (2019). Pedagogia das encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula., p. 5), “os conhecimentos são como orixás, forças cósmicas que montam nos suportes corporais, que são feitos cavalos de santo; os saberes, uma vez incorporados, narram o mundo através da poesia, reinventando a vida enquanto possibilidade”.
  • ERRATA

    https://doi.org/10.1590/2316-40186703erratum
    No artigo “Imaginário afro-ameríndio e utopia política em Torto arado”, com número de DOI 10.1590/2316-40186703, publicado no periódico Estud. Lit. Bras. Contemp., n. 67, e6703, 2022, na página 1, seção:
    Onde se lia:
    SEÇÃO TEMÁTICA
    Leia-se:
    UTOPIA E IMAGINAÇÃO UTÓPICA

REFERÊNCIAS

  • AUGÉ, Marc (2012). Para onde foi o futuro? Campinas: Papirus.
  • BENJAMIN, Walter (1985). Sobre o conceito de história. In: BENJAMIN, Walter. Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense. p. 222-232. v. 1. (Obras Escolhidas).
  • CARMO, Wendal (2021). Jarê, o candomblé de caboclos típico da Chapada Diamantina. Carta Capital, 2021. Disponível em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/jare-o-candomble-de-caboclos-tipico-da-chapada-diamantina/ Acesso em: maio 2022.
    » https://www.cartacapital.com.br/sociedade/jare-o-candomble-de-caboclos-tipico-da-chapada-diamantina/
  • CRUZ, Márcia Maria. Itamar Vieira Junior defende as cotas raciais para efetivar a abolição. Estado de Minas, 13 maio 2022. Disponível em https://www.em.com.br/app/noticia/diversidade/2022/05/13/noticia-diversidade,1366366/itamar-vieira-junior-defende-as-cotas-raciais-para-efetivar-a-abolicao.shtml Acesso em: 7 jul. 2022.
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  • CUNHA, Manuela Carneiro; VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo (2017). Vingança e temporalidade: os Tupinambá. In: CUNHA, Manuela Carneiro. Cultura com aspas e outros ensaios São Paulo: Ubu. p. 78-101.
  • GLISSANT, Édouard (2005). Introdução a uma poética da diversidade Juiz de Fora: Editora da UFJF.
  • GONZAGA, Tomás Antônio (2004). Marília de Dirceu São Paulo: Martin Claret.
  • LOPES, Nei (2015). Dicionário Afro-brasileiro São Paulo: Selo Negro.
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  • SODRÉ, Muniz (2017). Pensar nagô Petrópolis: Vozes.
  • SOUZA, Edson Luiz André de (2022). Furos no futuro: psicanálise e utopia. Porto Alegre: Artes & Ecos.
  • VIEIRA JUNIOR, Itamar (2019). Torto arado São Paulo: Todavia.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    03 Jul 2022
  • Aceito
    27 Nov 2022
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade de Brasília (UnB) Programa de Pós-Graduação em Literatura, Departamento de Teoria Literária e Literaturas, Universidade de Brasília , ICC Sul, Ala B, Sobreloja, sala B1-8, Campus Universitário Darcy Ribeiro , CEP 70910-900 – Brasília/DF – Brasil, Tel.: 55 61 3107-7213 - Brasília - DF - Brazil
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