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Educação, cultura e filosofia no pensamento de Nietzsche

Education, culture and philosophy in Nietzsche´s thinking

Resumo:

Este artigo explicita a compreensão que Nietzsche tem da cultura e da educação de sua época. Mostra que para esse autor cultura e educação são inseparáveis e que por isso é necessário pensar em novas perspectivas para a educação de modo que ela sirva de alicerce para uma cultura sadia.

Palavras-chave:
educação; cultura; filosofia; Estado

Abstract:

This article explains Nietzsche’s understanding of the culture and education of his time. It shows that for this author culture and education are inseparable and that it is therefore necessary to think of new perspectives for education so that it can serve as a foundation for a healthy culture.

Keywords:
education; culture; philosophy; state

Nietzsche, durante toda a sua vida, preocupou-se com a educação e a cultura, mas foi em seus primeiros anos como professor na escola secundária e na Universidade da Basiléia que se debruçou sobre os problemas concretos do ensino secundário e superior. Com fina acuidade, observou estar diante de um sistema educacional que abandonara uma formação humanista em proveito de uma formação cientificista; a consequente vulgarização do ensino tinha por objetivo formar homens tanto quanto possível úteis e rentáveis, e não personalidades harmoniosamente amadurecidas e desenvolvidas. Atento a tudo que se relacionava à educação, Nietzsche decidiu denunciar os “métodos antinaturais de educação” e as tendências que a minavam.

Antes de abordarmos o pensamento de NietzscheSämtliche Werke: Kritische Studienausgabe. Edição crítica organizada por Giogio Colli e Mazzino Montinari. 15 vols. Berlim/ Nova York: Walter de Gruyter, 1988. sobre a educação, fazem-se necessárias algumas observações. Por se tratar do estudo de um filósofo que une pensamento e vida, que tem um modo próprio de filosofar, que encontra sua alegria na busca e na transitoriedade, e que, por isso, não teme ver de diferentes pontos de vista os contrastes que a vida lhe oferece, por tudo isso, e para não perder a coerência de seu pensamento, limitaremos nossa análise ao momento em que NietzscheSämtliche Werke: Kritische Studienausgabe. Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida. Tradução de André Luís Mota Itaparica. São Paulo: Hedra, 2017. explicita de maneira mais detalhada os problemas relacionados à educação e à cultura. Privilegiaremos, assim, seus trabalhos compreendidos entre 1870 e 1874, principalmente as suas conferências Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino (1872) e as Considerações Extemporâneas - Da utilidade e desvantagem da história para a vida (1874) e Schopenhauer como educador (1874).

Para NietzscheSämtliche Werke: Kritische Studienausgabe. Schopenhauer como educador. Tradução de Clademir Araldi. São Paulo: Martins Fontes, 2020. educação e cultura são inseparáveis. Não existe cultura sem um projeto educativo, nem educação sem uma cultura que a apoie. A educação recebida nas escolas alemãs partia de uma concepção historicista e dava origem a uma pseudocultura, que nada mais era do que o simulacro de outras culturas. Para a existência de uma cultura, é necessário que os indivíduos aprendam determinadas regras, adquiram certos hábitos e comecem a educar-se a si mesmos e contra si mesmos, ou melhor, contra a educação que lhes foi inculcada.

Em suas conferências Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino, Nietzsche examina as entranhas do sistema educacional de sua época. Percebe que o Estado e os negociantes são os primeiros grandes responsáveis pela depauperação da cultura. Eles entravam a lenta maturação do indivíduo, a paciente formação de si, que deveria ser a finalidade de toda cultura, exigindo uma formação rápida, para terem a seu serviço funcionários eficientes e estudantes dóceis, que aprendam rapidamente a ganhar dinheiro. Mas isso não é tudo. Tal pressa indecorosa leva os estudantes, numa idade em que ainda não estão amadurecidos o suficiente, a se perguntarem qual profissão devem escolher e, então, a fazerem más escolhas.

Isso leva o filósofo a reconhecer a presença de duas tendências no sistema educacional de sua época que nada mais fazem do que trabalhar para o enfraquecimento da cultura - a da ampliação máxima da cultura e a da redução máxima. A primeira tendência, a da “ampliação máxima”, tem a pretensão de julgar que o direito à cultura seja acessível a todos, todavia é regulamentada pelo dogma da economia política, cuja fórmula é mais ou menos a seguinte: “tanto conhecimento e cultura quanto possível, logo, tanta produção e necessidade quanto possível, daí tanta felicidade quanto possível”. (BA/EE Uber die Zukunf unserer Bildunganstalten (Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino, KSA 1. 667.) A segunda tendência, a da “redução da cultura”, admite a possibilidade de que os indivíduos consagrem sua vida à defesa dos interesses do Estado e exige que seus servidores procurem uma especialização, isto é, sejam “fiéis às pequenas coisas” e ao Estado.

Aliada a essas duas tendências encontra-se a cultura jornalística. Para o filósofo ela é a confluência das duas tendências anteriores, o lugar onde se encontram e dão as mãos. A cultura ampliada, a cultura especializada e a cultura jornalística se completam para formar uma só e mesma incultura.

A cultura jornalística segundo Nietzsche vai substituindo aos poucos a verdadeira cultura. O jornalista, “o mestre do instante”, “o escravo dos três M: o momento presente, as maneiras de pensar (Meinungen) e a moda - passa com pressa e ligeiramente sobre as coisas” (Nachlass/FP 1874, 35 [12]). Escreve sobre artistas e pensadores e vem tomando o lugar deles; lançando por terra sua obra. Mas enquanto o jornalista vive do instante e graças ao gênio de outros homens, as grandes obras dos grandes artistas emanam do desejo de permanecer e sobrepujam o tempo pela força da criação.

Com o propósito de restaurar a cultura alemã, Nietzsche examina as instituições de ensino responsáveis pelas diferentes etapas de formação dos adolescentes - Gymnasium (equivale aos antigos ginásio e colegial, hoje 5ª a 8ª séries do 1º grau e 2º grau do currículo brasileiro), a escola técnica e a universidade -, denuncia o mal que as envenena e indica remédios para combatê-lo.

Quanto ao Gimnasium, Nietzsche tem muito a dizer. Para ele, ainda não se fizera nada por essa etapa de formação dos estudantes, talvez a mais importante, pois vai refletir-se nas fases posteriores do aprendizado. Logo, toda renovação deveria começar pelo Gimnasium.

Ele reconhece a necessidade de um maior investimento na aprendizagem da língua materna e da arte de escrever - tarefas das mais essenciais da escola secundária. A língua alemã encontrava-se nesse momento contaminada pelo “pretenso estilo elegante” do jornalismo. O acesso dos semiletrados ao poder tinha provocado uma drástica redução da riqueza e dignidade da língua. A questão, no entanto, não era apenas de pobreza vocabular - tratava-se também da má utilização dos recursos oferecidos pela língua.

A tarefa de uma escola de alta qualidade deve ser sempre a de levar o estudante a compreender a importância de estudar seriamente a língua. Se ela entrar em declínio, perder sua força vital, a cultura, consequentemente, tenderá a se degenerar. Se o professor não conseguir incutir nos jovens estudantes uma aversão física por determinadas palavras e expressões com que os habituaram os jornalistas e os maus romancistas, é melhor, adverte Nietzsche, renunciar à cultura. Para isso, é necessário analisar os clássicos, linha a linha, palavra por palavra e estimular os alunos a procurar exprimir o mesmo pensamento várias vezes e cada vez melhor.

A educação começa com hábito e obediência, isto é, disciplina. Disciplinar linguisticamente o jovem não significa acumulá-lo de conhecimentos históricos acerca da língua, mas sim fazê-lo construir determinados princípios, a partir dos quais possa crescer por si mesmo, interior e exteriormente. Significa torná-lo senhor de seu idioma e possibilitá-lo a construir uma língua artística, a partir dos trabalhos que o precederam, único caminho para revitalizar a educação e a cultura alemãs.

O crescente desprezo pela formação humanística e o aumento da tendência cientificista nas escolas, a instrução dirigida por questões históricas e científicas e não por um ensinamento prático, o abandono do ensino que vise à formação de um sentido artístico da língua, em favor de um duvidoso estilo jornalístico, a ênfase dada à profissionalização, no intuito de criar pessoas aptas a ganhar dinheiro, tudo isso impede que o sistema educacional se volte para a cultura.

Deve ser ressaltado que Nietzsche não vê com hostilidade a implantação e a proliferação na Alemanha das escolas técnicas. Pelo contrário, ali, os indivíduos aprendem a calcular convenientemente, a dominar a linguagem para a comunicação e adquirem conhecimentos naturais e geográficos. De certo modo, elas cumprem, e, com retidão, seu objetivo, que é o de formar negociantes, funcionários, oficiais, agrônomos, médicos e técnicos.

O que Nietzsche censura, entretanto, ao afirmar que “a cultura não é serva do ganha pão e da necessidade”, é o fato de o Gymnasium e a universidade se terem voltado para a profissionalização e, apesar disso, continuarem a acreditar que são lugares destinados à cultura, quando na verdade não se distinguem muito da escola técnica em seus objetivos.

Nietzsche também não poupa críticas ao ensino superior: “Uma boca que fala, muitos ouvidos e menos da metade de mãos que escrevem - eis o aparelho acadêmico aparente, eis a máquina de cultura da universidade posta em atividade”. (BA/EE Uber die Zukunf unserer Bildunganstalten: Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino, KSA.1.739-740). O professor fala. O aluno escuta. “Liberdade acadêmica” é o nome que se dá a esta dupla autonomia: de um lado, uma boca autônoma; de outro, orelhas autônomas. Atrás desses dois grupos, a uma relativa distância, está o vigilante Estado, lembrando, de tempo em tempo, que deve ser ele “o objetivo, o fim e a quinta essência desses procedimentos de fala e de audição”. (BA/EE Uber die Zukunf unserer Bildunganstalten: Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino, KSA.1. 740.)

O estilo “acroamático” de ensino que privilegia a exposição oral do professor e a audição do aluno é, justamente, o oposto do que Nietzsche entende o que deva ser a educação na universidade. Ali, onde se deveria exigir do aluno um treinamento rigoroso, inventou-se a autonomia. Tal autonomia nada mais é do que domesticação do aluno, para torná-lo uma criatura dócil e submissa aos interesses do Estado e da burguesia.

Assim é necessário conter a tendência histórico-científica e profissionalizante na universidade - tendência que exige da educação um preparo mais rápido, aprofundado apenas o bastante para transformar os indivíduos em servidores eficientes e fazer com que a instituição se volte para os problemas da cultura, ou seja, para as questões essenciais colocadas pela condição humana. Dessa forma, Nietzsche propõe que se investigue como essas questões estão colocadas no conjunto da arte e da filosofia, as únicas disciplinas capazes de moderar a feição histórico-científica que se espalha na universidade. Porém a universidade não tem nenhum comportamento que indique seu apreço pela arte. Isso não quer dizer que em seu espaço não haja professores com inclinação ou gosto pela arte. O problema é que, apesar de existirem matérias que ensinem história da arte, a universidade não pode dar ao estudante uma instrução artística.

E para que poderia servir a instrução artística para o jovem? Em uma única palavra - para a vida. A arte disciplina o “instinto desenfreado de conhecimento” que domina todos os outros instintos, a ponto de colocar a vida em perigo. Uma “instrução artística” na universidade contrabalançaria os efeitos nefastos da compulsão de saber a qualquer preço e disciplinaria o instinto de conhecimento e a própria ciência. Já que a ciência, na maioria das vezes, ao querer conhecer a vida, custe o que custar, destrói as ilusões que ajudam o homem a viver. Incapaz de dar sentido e beleza à existência, de considerar a vida em seu conjunto, coloca por terra o único ambiente em que se pode viver.

Ao instinto desenfreado da ciência, que tudo quer conhecer, que revira a vida e a vasculha em seus mínimos detalhes, Nietzsche opõe a arte. Esta, ao contrário da ciência, não se interessa por tudo o que é real, não quer tudo ver, nem tudo reter - é anticientífica. Mais importante ainda: a arte, em lugar de dissecar a vida, é fonte de dissimulação.

Numa época em que vida e cultura estão separadas, a arte tem um papel fundamental: afirma a vida em seu conjunto. Reforça certos traços, deforma outros, omite muitos outros, tudo em função da vida, da transfiguração do real. Em suma, a arte nos liberta, ao passo que a dura e cotidiana experiência do real nos submete.

Não se pode extrair da exposição de Nietzsche um projeto de instrução artística do jovem universitário, como foi feito em relação ao ensino da língua. Mas embora não indique explicitamente como deva ser realizada uma tal instrução, Nietzsche deixa bem clara a sua finalidade.

Por meio dessa educação para a arte, o jovem universitário seria capaz de, primeiro, contestar a pretensão científica de tudo conhecer; segundo, conduzir o conhecimento de modo a fazê-lo servir a uma melhor forma de vida; terceiro, devolver à vida as ilusões que lhe foram confiscadas; quarto, restituir à arte o direito de continuar a cobrir a vida com os véus que a embelezam. Todavia a universidade alemã não soube dar um ensino artístico, nem teve interesse em conter, por meio da arte, as tendências cientificistas.

Dessa forma, em vez de a arte servir como antídoto à contaminação da cultura pela ciência, o erudito serviu-se dos métodos científicos para investigar a arte. A música, diz ele, é objeto de dissecação, como se fosse possível analisar com erudição o êxtase. É desse modo que os professores universitários demonstram seu apreço pela arte - apresentando-se como seus peritos, quando na verdade gostariam de suprimi-la.

Se a universidade não abre suas portas para a arte, também não as abre para a filosofia. A esse respeito, a tese principal de Nietzsche é a seguinte: o ensino universitário da filosofia não prepara o estudante para pensar, agir e viver filosoficamente; pelo contrário, o “instinto natural filosófico” é imobilizado pela cultura histórica. Na universidade, a filosofia está “política e policialmente limitada à aparência erudita”. As questões históricas introduziram-se de tal modo na filosofia universitária que esta se resume em perguntas como: o que pensa tal ou qual filósofo? Merecerá tal lição ser realmente aprendida? É ela realmente um estudo de filosofia?

Essa maneira de tratar a matéria desenraizou a filosofia universitária de todos os problemas fundamentais. Em lugar de levar os estudantes a levantarem questões sobre a existência, preocupa-se com as minúcias da história da filosofia; assim a filosofia reduz-se a um ramo da filologia. Como consequência, do mesmo modo que a filologia está interessada apenas nas etimologias, e não em um trabalho com a palavra viva, a filosofia restringe-se a estudar o pensamento morto, que não mais serve à vida.

A crítica de Nietzsche à filosofia universitária (que aparece na mesma época das Extemporâneas e de Sobre o futuro de nossos estabelecimentos de ensino) está sob a influência de Schopenhauer, “Sobre a filosofia universitária”, que faz parte de seu livro Parerga e paraliponema, publicado em 1851.

Em breves palavras, pode-se dizer que, para Schopenhauer, não existem filósofos na universidade, mas professores que vivem da filosofia, interessados em pensar no que seus interesses materiais exigem e no que convém ao Estado e à religião.

Nietzsche retoma e aprofunda as críticas de Schopenhauer quanto à relação da filosofia com o Estado e a cultura histórica. Assim como Schopenhauer, ele acha que não existem filósofos universitários, mas apenas professores de filosofia, engrenagens úteis à sobrevivência da maquinaria do Estado. Para ele, o filósofo universitário é um anti-sábio por excelência. É um filósofo do Estado, da religião, colecionador dos valores em curso, funcionário da história que se mascara com a filosofia para sobreviver.

O que os filósofos universitários não haviam percebido é que o Estado moderno não era mais aquele idealizado por Platão. Este considerava necessária a criação de um organismo social completamente novo, no qual a formação do jovem ateniense não dependesse dos pais (que consideravam loucura a vocação filosófica dos filhos e, por isso, condenaram Sócrates a tomar cicuta, sob a acusação de “corromper a juventude”).

Se a natureza lança os filósofos como uma flecha para atingir um alvo, deveria ser dever do Estado ajudá-la nesse processo, interferindo na cultura e na organização social. Mas acontece justamente o contrário. Quem impede a produção e perpetuação dos filósofos são os próprios filósofos universitários, que vivem do Estado.

Quando o Estado promove a filosofia, favorece um certo número de homens que podem viver de sua filosofia, transformando-a num ganha-pão. Ora, como se acredita que quem vive de algum ofício também dele entende, os professores se comportam diante de um público como mestres do assunto, especialistas em filosofia, e, portanto, verdadeiros filósofos, que podem escolher e ensinar o que julgam ser digno da atenção de suas audiências.

Nietzsche crê que Platão e Schopenhauer jamais poderiam ter sido filósofos universitários - representariam um perigo para o Estado: “Em qualquer lugar em que tenha havido sociedades, governos, religiões, opiniões públicas poderosas, em resumo, em qualquer lugar onde tenha havido tirania, ela execrou o filósofo solitário, pois a filosofia oferece ao homem um asilo onde nenhuma tirania pode penetrar, a caverna da interioridade, o labirinto do coração: o que não agrada aos tiranos”. (SE/Co. Ext.III - Unzeitgmässe Bretrachtungen. Drittes Stüch: Schopenhauer als Erzieher - Schopenhauer como educador, KSA,1.353-354)

O Estado teme os filósofos e a filosofia em geral. Por isso, tenta atrair para si o maior número de filósofos universitários, “que lhe dêem a impressão de ter a filosofia a seu lado”. (SE/Co. Ext.III - Unzeitgmässe Bretrachtungen. Drittes Stüch: Schopenhauer als Erzieher Schopenhauer como educador, KSA,1.415)

Mas será que os filósofos se deram conta dos compromissos e restrições que teriam de suportar ao se submeterem? Em alguns professores, a pergunta agirá como dinamite, “(...) mas a maioria se contentará em sacudir os ombros e dizer: por acaso pode-se ser grande e puro nessa terra sem fazer concessão à baixeza humana?” ( SE/Co. Ext.III - Unzeitgmässe Bretrachtungen. Drittes Stüch: Schopenhauer als Erzieher: Schopenhauer como educador, KSA,1.415)

Esse compromisso com o Estado coloca em perigo o futuro da filosofia. Primeiro, porque é o Estado quem escolhe seus servidores filosóficos, na exata proporção de sua necessidade de preencher os quadros das instituições; além disso, outorga-se a competência de escolher quem são bons e maus filósofos; segundo, porque obriga os professores a permanecerem nos seus postos e instruírem todo jovem que deseja seus serviços, e isso em um horário fixado de antemão. Nietzsche pergunta: pode um filósofo, de boa-fé, comprometer-se a, diariamente, ensinar alguma coisa? “E a ensiná-la diante de qualquer um que queira ouvir? Ele não tem de se dar a aparência de saber mais do que sabe? Não tem de falar diante de um auditório desconhecido, sobre coisas que somente com o amigo mais próximo poderia falar sem perigo? E, em geral: não se despoja de sua esplêndida liberdade, a de seguir seu gênio, quando esse chama e para onde chama, por estar comprometido a pensar publicamente, em horas, sobre algo pré-determinado? E isso diante de jovens! Um tal pensar não está de antemão como que emasculado? Um dia, ele poderia sentir: hoje não consigo pensar em nada, não me ocorre nada que preste - e apesar disso teria de se apresentar e parecer pensar!” (SE/Co. Ext.III - Unzeitgmässe Bretrachtungen. Drittes Stüch: Schopenhauer als Erzieher: Schopenhauer como educador, KSA,1.416).

Para Nietzsche, o esquema acadêmico foi tão bem montado pelo Estado que não permite ao professor sofrer com a falta do que dizer, pois nem o professor nem o aluno pensam por si mesmos. A cultura histórica e científica foi planejada pelo sistema universitário para preencher qualquer lacuna. Há mesmo quem acredite que o filósofo universitário não precisa ser um pensador, constituindo, no máximo, “um repensador e um pós-pensador”, um conhecedor erudito de todos os pensadores, com os quais poderá contar para poder dizer algo aos seus alunos.

Esta é, segundo Nietzsche, a concessão mais perigosa que os filósofos fazem ao Estado. Comprometem-se a fazer o papel do historiador da filosofia. Ao empregar todo o seu tempo em conhecer apenas sistemas que a história apresenta como sendo dignos da atenção de todos, veneram o passado e devotam à morte as novas ideias que não receberam o selo da consagração. “A história erudita do passado nunca foi a ocupação de um filósofo verdadeiro, nem na Índia nem na Grécia; o professor de filosofia, ao se ocupar com um trabalho dessa espécie, tem de aceitar que se diga dele, no melhor dos casos: é um competente filólogo antiquário, conhecedor de línguas, historiador - mas nunca um filósofo. E isso, no melhor dos casos, pois, diante da maioria dos trabalhos de erudição feitos por filósofos universitários, um filólogo tem o sentimento de que são malfeitos, sem rigor científico e, o mais das vezes, detestavelmente fastidiosos”. (SE/Co. Ext.III - Unzeitgmässe Bretrachtungen. Drittes Stüch: Schopenhauer als Erzieher: Schopenhauer como educador, KSA,1.416-417)

Pensa-se, fala-se, escreve-se, ensina-se filosofia, mas tudo isso dentro dos limites da história da filosofia. Dessa forma, cumpre-se o desejo do Estado, que teme o desconhecido e os que pensam por si mesmos, isto é, a partir das experiências renovadoras. Segundo Nietzsche, quem, no sentido mais amplo, nasceu para a história, nunca verá as coisas pela primeira vez e nunca será ele próprio uma tal coisa vista pela primeira vez.

Em vez de educar o estudante para pensar e viver filosoficamente, disciplinando-o contra a compulsão do saber, o ensino universitário acaba por desencorajá-lo a ter opiniões próprias, em função da massa de conhecimentos históricos que é obrigado a assimilar. A universidade não está voltada para a educação filosófica, mas para a prova de filosofia. Assim, ao invés de atrair pessoas para a atividade de pensar, afasta-as.

A filosofia universitária tornou-se, nas mãos de uma multidão de pensadores puros, uma ciência pura - isto é, um pensamento concebido como universal, abstrato, neutro, desvinculado da vida e das forças vitais. E a verdade que os filósofos julgam ser a origem de todas as suas buscas não passa de uma verdade a serviço do Estado, dos valores correntes e da ordem estabelecida.

Nietzsche observa ainda que uma cultura decadente pouco pode fazer pelo pensamento, a não ser engendrar uma filosofia doente.

Mas a filosofia e o artista reclamam seus direitos. Se a filosofia deixou de ter um lugar ao sol, como restituir-lhe seus direitos? Em Schopenhauer como educador, Nietzsche propõe a instauração de um tribunal superior que vigie e julgue a cultura que a universidade desenvolve e divulga. A filosofia poderia ser esse tribunal. Sem poderes conferidos pelo Estado e sem honras, poderia prestar seu serviço livre do espírito do tempo e do temor inspirado pelo tempo.

O pior perigo que o filósofo corre numa sociedade enferma é ter o destino de um viajante solitário, forçado a abrir caminho num ambiente hostil, furtivamente ou aos empurrões e de punhos cerrados. Tem contra si o espírito gregário organizado, que teme ver abalado tudo o que o mantém vivo.

Na civilização grega, o filósofo tinha o poder de denunciar o perigo que a sociedade corria e encontrar belas possibilidades de vida. A fim de restituir-lhe esse poder, Nietzsche insiste em que a filosofia se desvincule do Estado. Pare ele, o filósofo é um centro de forças imensas, que modifica todo “o sistema das preocupações humanas” e põe em perigo o que quer se manter gregário.

Enquanto o filósofo não estiver ligado à sociedade por uma necessidade indestrutível, enquanto não tiver ao seu redor uma sociedade sadia, pouco pode fazer pela cultura, a não ser denunciar o que a torna doente e o que a destrói.

A vida precisa de uma cultura sadia, e, para isso, são imprescindíveis instituições de ensino voltadas para a cultura. Elas não existem ainda, mas devem ser criadas. Não devem ter por objetivo criar o pequeno-burguês, que aspira a um posto de funcionário ou a um ganha-pão qualquer; ao contrário, precisam voltar-se para a criação de indivíduos realmente cultos, formados a partir da necessidade interna da fusão entre vida e cultura e capazes de exercer toda a potencialidade de seu espírito. Estas instituições devem ainda ajudar a natureza na criação do filósofo e do artista e protegê-lo da “conspiração do silêncio” com que sua época o exclui. Quanto a esse aspecto, poder-se-ia perguntar por que Nietzsche vê como necessárias instituições para criar o gênio, já que o gênio, para nascer, nunca precisou delas, nem das “muletas da cultura”, crescendo no solo de uma cultura nacional, seja ela falsa ou verdadeira. A essa possível objeção, Nietzsche tem uma resposta: os que perguntam dessa maneira raciocinam historicamente e erigem dogmas para não favorecer o gênio. Não resta dúvida de que os alemães estão contentes com seus gênios, haja vista o número de monumentos com que, por todo o país, se honra a memória deles. Mas ao se deduzir daí que não é preciso fazer nada por ele, condena-se à morte tudo o que vive, e estabelece-se o raciocínio de que tudo já está feito.

Querem ouvir, pergunta Nietzsche, o canto de um solitário? Ouçam Beethoven. A música de Beethoven serve para lembrar aos alemães que os espíritos de que se orgulham foram prematuramente sufocados, por não encontrarem acolhida na cultura que os rodeava. Kleist (1777-1811), por exemplo, suicidou-se, e Hölderlin (1770-1779), o “Werther da Grécia”, morreu louco. Schopenhauer, Goethe (1749-1832), Wagner sobreviveram graças ao fato de serem da “natureza do bronze”, mas o efeito de suas lutas, de seus sofrimentos está gravado nas rugas de seus rostos. Elogiam a polivalência de Lessing - crítico e poeta, arqueólogo e teólogo, mas não levam em conta aquilo que o obrigou à universalidade: a miséria, que o acompanhou durante toda a sua vida. Como Goethe, os alemães deveriam lamentar que esse homem tenha sido obrigado a resistir num mundo de inércia, forçado a polemizar sem descanso.

Será, pergunta ainda Nietzsche, que os alemães podem pronunciar o nome de Schiller (1759-1805) sem corar? Será que a cor de sua face tingida pela morte não diz nada aos que o elogiam? Por trás dos elogios e das honrarias, Nietzsche vê esconder-se o ódio dos “filisteus” contra a grandeza que está à vista. Essa veneração serve para camuflar a incapacidade de tirar proveito do passado e para livrar-se do peso de fazer alguma coisa para o que vive e o que quer nascer.

Com todos esses argumentos, Nietzsche deixa claro o tratamento que os alemães dão aos seus gênios e quebra o dogma de que não seria preciso fazer nada por eles, já que os gênios, apesar de tudo, continuariam nascendo.

Com isso, prova a necessidade de criar instituições para educar o corpo e o espírito do indivíduo, incentivando-o a cultivar-se e tornando-o capaz de abrigar e proteger aquilo que é novo e extemporâneo. Isso significará um enorme esforço para os que se propõem a trabalhar para a cultura, pois terão de substituir um sistema educacional que tem suas raízes na Idade Média por um outro ideal de formação. Contudo deverão iniciar a tarefa sem demora, já que dela depende toda uma geração futura.

Referências

  • Sämtliche Werke: Kritische Studienausgabe. Edição crítica organizada por Giogio Colli e Mazzino Montinari. 15 vols. Berlim/ Nova York: Walter de Gruyter, 1988.
  • Sämtliche Werke: Kritische Studienausgabe. Sobre a utilidade e a desvantagem da história para a vida Tradução de André Luís Mota Itaparica. São Paulo: Hedra, 2017.
  • Sämtliche Werke: Kritische Studienausgabe. Schopenhauer como educador Tradução de Clademir Araldi. São Paulo: Martins Fontes, 2020.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    Sep-Nov 2022

Histórico

  • Recebido
    13 Jul 2022
  • Aceito
    13 Ago 2022
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