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Sentidos produzidos acerca do cotidiano por estudantes de terapia ocupacional durante a pandemia de COVID-19

Resumo

Este estudo visa compreender como estudantes refletem sobre o cotidiano vivido durante a pandemia de COVID-19 considerando os conhecimentos advindos da graduação em terapia ocupacional. A amostra do estudo foi composta por 235 estudantes de graduação em terapia ocupacional de diferentes períodos do curso, de diferentes instituições de ensino superior localizadas de norte a sul do país. Os dados foram coletados por meio de aplicação de formulário on-line (Google Forms) utilizando-se o Questionário de Vivências Acadêmicas em Terapia Ocupacional (QUESVATO) elaborado pelas autoras deste estudo. Os dados qualitativos foram analisados com auxílio do software IRaMuTeQ (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires). As classes lexicais resultantes da análise receberam as seguintes nomeações: classe 1: Atenção aos familiares; classe 2: Acreditar na terapia ocupacional; classe 3: Adaptando e organizando o dia a dia; classe 4: Certezas e vivências e classe 5: Interrupção do cotidiano e a saúde mental. Foi possível acompanhar diferentes formas de apropriação do conceito pelas participantes: aplicando-o em possíveis intervenções no cotidiano do outro; por meio de uma abordagem práxica, onde a teoria possibilita um processo de crítica e avaliação para transformar o cotidiano; através de uma abordagem pragmática, onde fazem a passagem imediata da leitura da situação para a ação; como forma segura de análise do contexto cheio de incertezas e mudanças que vivemos na contemporaneidade; mudanças e interrupções do cotidiano destacam-se como aspectos/questões que têm efeitos negativos na saúde mental das pessoas.

Palavras-chave:
Terapia Ocupacional; Ensino; Saúde Mental; Estudante; COVID-19

Abstract

This study aims to understand how students reflected on their daily lives during the COVID-19 pandemic, considering the knowledge gained from graduation in occupational therapy. The study sample consisted of 235 occupational therapy undergraduate students from different periods of the course, from different higher education institutions located from North to South of the country. Data were collected by applying an on-line form (Google Forms) using the Questionnaire of Academic Experiences in Occupational Therapy (QUESVATO) elaborated by the authors of this study. Qualitative data were analyzed using the IRaMuTeQ software (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires). The lexical classes resulting from the analysis received the following nominations: class 1: Attention to family members; class 2: Believing in Occupational Therapy; class 3: Adapting and organizing everyday life; class 4: Certainties and experiences; and class 5: Interruption of everyday life and mental health. It was possible to follow different forms of appropriation of the concept by the participants: applying it in possible interventions in the everyday lives of others; through a practical approach, where theory enables a process of criticism and evaluation to transform everyday life; through a pragmatic approach, where the immediate transition from reading the situation to acting on it is made; as a safe way of analyzing the context full of uncertainties and changes that we are experiencing in contemporary times; changes and interruptions in everyday life stand out as aspects/issues that have negative effects on people's mental health.

Keywords:
Occupational Therapy; Teaching; Mental Health; Students; COVID-19

Introdução

A pandemia de COVID-19 é um marco na mudança do cotidiano das pessoas que tem afetado a vida coletiva e individual. São muitas as transformações advindas de medidas de prevenção da propagação do vírus que imprimem transformações na cultura urbana, introduzindo elementos inéditos no cotidiano das cidades, como ruas ocupadas por pessoas usando máscaras e verificação de temperatura corporal como pré-requisito para adentrar alguns espaços públicos (Beiguelman, 2020Beiguelman, G. (2020, Agosto 10). Covid-19 transformou o cotidiano da cultura urbana. Rádio USP/Ouvir Imagens. Recuperado em 22 de agosto de 22, de https://jornal.usp.br/radio-usp/covid-19-transformou-o-cotidiano-da-cultura-urbana/
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).

Essas medidas, especialmente as de distanciamento social, refletem nas rotinas e hábitos cotidianos, trazendo maior permanência em casa - a quem isso é possível, com mudanças nas atividades de trabalho e estudo, além daquelas nos padrões de relacionamento e de trocas afetivas. Além da introdução de novos elementos - como uso de máscara, álcool gel e de medidas de higiene nem sempre realizadas anteriormente à pandemia, as medidas de isolamento/distanciamento social trazem também a necessidade de desenvolver habilidades que passam a ser requeridas em algumas situações, como cozinhar, limpar a casa e dominar tecnologias no trabalho/estudo remoto (Alzueta et al., 2020Alzueta, E., Perrin, P., Baker, F. C., Caffarra, S., Ramos‐Usuga, D., Yuksel, D., & Arango‐Lasprilla, J. D. (2020). How the COVID‐19 pandemic has changed our lives: a study of psychological correlates across 59 countries. Journal of Clinical Psychology, 77(3), 556-570. http://dx.doi.org/10.1002/jclp.23082.
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). Piguet & Montebello (2020)Piguet, M., & Montebello, C. (2020, Abril 25). Covid-19: pour une mémoire ordinaire de l’extraordinaire . Recuperado em 22 de agosto de 22, de https://www.liberation.fr/debats/2020/04/25/covid-19-pour-une-memoire-ordinaire-de-l-extraordinaire_1786299/
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destacam a importância de experiências contrastantes, múltiplas e únicas da pandemia de acordo com o lugar, sexo e idade. Para essas autoras, é importante escrever uma história comum do extraordinário, das experiências de quem administra as crises no dia a dia.

Estamos diante de um momento em que se coloca em evidência a relação entre o homem comum e uma situação universal, em que se faz necessário a apropriação de instrumentos e produtos, costumes e linguagem para lidar com os acontecimentos. Neste momento, vivemos uma situação pandêmica que exige novas formas de lidar com as atividades do dia a dia que é interpretada e vivida de diferentes modos nas particularidades de vida de cada indivíduo, refletindo em ações que tecem a vida cotidiana. É importante destacar que a crise do dia a dia imposta pela COVID-19 evidencia as desigualdades sociais, principalmente no nosso país, onde as classes populares enfrentam situações ainda mais precárias de vida e trabalho neste momento (Bregalda et al., 2020Bregalda, M. M., Correia, R. L., Amado, C. F., & Okuma, K. M. (2020). Ações da Terapia Ocupacional frente ao coronavírus: reflexões sobre o que a Terapia Ocupacional não deve fazer em tempos de pandemia. Revista Interinstitucional Brasileira de Terapia Ocupacional, 4(3), 269-271.; Falcão et al., 2020Falcão, I. V., Jucá, A. L., Vieira, S. G., & Almeida, A. C. K. (2020). A Terapia Ocupacional na atenção primária a saúde reinventando ações no cotidiano frente as alterações provocadas pelo COVID-19. Revista Interinstitucional Brasileira de Terapia Ocupacional, 4(3), 333-350.).

Utilizando o conceito de cotidiano de Heller (1991)Heller, A. (1991). Sociología de la vida cotidiana. Barcelona: Península. - filósofa que traz contribuições voltadas para as relações entre a vida comum das pessoas comuns e as vicissitudes da história, sem perder as especificidades das ações envolvidas na tessitura da vida cotidiana (Patto, 1993Patto, M. H. S. (1993). O conceito de cotidianidade em Agnes Heller e a pesquisa em educação. Perspectivas, 16, 119-141.) - podemos afirmar que, neste processo, há constituição e reprodução dos indivíduos e da própria sociedade por meio da vida cotidiana. Salles & Matsukura (2013, pSalles, M. M., & Matsukura, T. S. (2013). Estudo de revisão sistemática sobre o uso do conceito de cotidiano no campo da terapia ocupacional no Brasil. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar, 21(2), 265-273. http://dx.doi.org/10.4322/cto.2013.028.
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. 268) apontam que o conceito de cotidiano “se estabelece na relação do micro com o macro, se constrói na articulação entre o zoom focado na vida do sujeito e a grande ocular que capta os processos de produção social”.

Para Galheigo (2020, pGalheigo, S. M. (2020). Terapia ocupacional, cotidiano e a tessitura da vida: aportes teórico-conceituais para a construção de perspectivas críticas e emancipatórias. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 28(1), 5-25. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoAO2590.
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. 8), por meio da leitura do cotidiano podemos “conhecer os modos de pensar, agir e sentir de indivíduos e coletivos; as representações que fazem suas experiências em meio à ideologia hegemônica que cria instituídos e resulta na instrumentalização da vida diária”. Para essa autora, os produtores de conhecimento sobre o cotidiano revelam a tessitura da vida e apresentam

(...) as camadas duras da repetição e do sofrimento no dia a dia: mostram a delicadeza dos afetos e o encantamento de pequenos gestos e fazeres; visibilizam a diferença, a discriminação, os preconceitos e as injustiças; e oferecem testemunho das possibilidades de criação, reinvenção, cooperação e transformação de si e do mundo (Galheigo, 2020, pGalheigo, S. M. (2020). Terapia ocupacional, cotidiano e a tessitura da vida: aportes teórico-conceituais para a construção de perspectivas críticas e emancipatórias. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 28(1), 5-25. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoAO2590.
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. 8).

Considerando que a vida cotidiana, a vida comum do homem comum, é o centro do evento histórico, a verdadeira essência da substancia social que é construída individualmente e socialmente (Heller, 1991Heller, A. (1991). Sociología de la vida cotidiana. Barcelona: Península.), quando um evento histórico como a pandemia de COVID-19 irrompe, há tensionamento do imediatismo, pluralidade de significados, mas também promove novas formas de lidar com o continuum da vida (Rico & Plata, 2020Rico, D. A. P., & Plata, G. E. Z. (2020). Reinvención de la vida cotidiana en mujeres cucuteñas en tiempos de COVID-19. Psicoperspectivas, 19(3), 1-11.). Assim, a pandemia e fatores relacionados, como perdas em massa de vidas humanas, de conexões sociais, de estabilidade financeira, entre outros, impactam o dia a dia das pessoas e trazem desvios de rota que as convocam a novas construções de cotidiano, com mudanças no dia a dia e a necessidade de lidar com certa imprevisibilidade em relação ao futuro (Crepaldi et al., 2020Crepaldi, M. A., Schmidt, B., Noal, D. D. S., Bolze, S. D. A., & Gabarra, L. M. (2020). Terminalidade, morte e luto na pandemia de COVID-19: demandas psicológicas emergentes e implicações práticas. Estudos de Psicologia, 37, e200090.).

Diante da complexidade desta pandemia, diferentes categorias profissionais têm se esforçado para enfrentar este momento. A terapia ocupacional tem participado deste processo e, em diferentes manifestações, tem buscado contribuir para a atenção ao cotidiano dos indivíduos que está estruturado em torno da COVID-19 (Malfitano et al., 2020Malfitano, A. P. S., Cruz, D. M. C., & Lopes, R. E. (2020). Terapia ocupacional em tempos de pandemia: seguridade social e garantias de um cotidiano possível para todos. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 28(2), 401-404.; Silva, 2020Silva, D. B. (2020). Terapia Ocupacional, cotidiano e pandemia COVID-19: inquietações acerca do ocupar o tempo-espaço. Revista Interinstitucional Brasileira de Terapia Ocupacional, 4(3), 529-553.).

Nos diversos campos de atuação profissional, as ações junto às novas demandas populacionais, a organização de pessoas com deficiência, o movimento de desinstitucionalização, a luta pelos direitos e emancipação social, fomentaram um olhar mais atento dos terapeutas ocupacionais sobre o cotidiano das pessoas (Drumond, 2007Drumond, A. F. (2007). Fundamentos da Terapia Ocupacional. In A. Cavalcanti & C. Galvão (Eds.), Terapia Ocupacional: fundamentação & prática (pp. 10-16). Rio de Janeiro: Guanabara Koogan.; Galheigo et al., 2018Galheigo, S. M., Braga, C. P., Arthur, M. A., & Matsuo, C. M. (2018). Produção de conhecimento, perspectivas e referências teórico-práticas na terapia ocupacional brasileira: marcos e tendências em uma linha do tempo. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 26(4), 723-738. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoAO1773.
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). Para Galheigo (2020)Galheigo, S. M. (2020). Terapia ocupacional, cotidiano e a tessitura da vida: aportes teórico-conceituais para a construção de perspectivas críticas e emancipatórias. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 28(1), 5-25. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoAO2590.
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, cotidiano é conceito-chave para o desenvolvimento de perspectiva crítica na terapia ocupacional no Brasil. A autora explica que a terapia ocupacional crítica é a perspectiva que faz suas práticas emancipatórias para além do que existe, que “busca entender e desvelar alternativas de lidar com as condições concretas da vida cotidiana dos sujeitos e coletivos para quem dedica seus esforços e conhecimentos” (Galheigo, 2020, pGalheigo, S. M. (2020). Terapia ocupacional, cotidiano e a tessitura da vida: aportes teórico-conceituais para a construção de perspectivas críticas e emancipatórias. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 28(1), 5-25. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoAO2590.
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. 12).

Assim, o cotidiano como conceito e categoria de análise compõe o campo teórico-prático da terapia ocupacional no Brasil. Uma revisão preliminar de Projetos Pedagógicos de Cursos1 1 Alguns cursos utilizam a nominação Projeto Político Pedagógico (PPP) para seus projetos. (PPC) de graduação no país mostra que o estudo do cotidiano está inserido na formação de terapeutas ocupacionais, estando presente como disciplina curricular e/ou como conteúdo programático das disciplinas (Cid et al., 2015Cid, M. F. B., Lourenço, G. F., Silva, C. R., Marcolino, T. Q., Barba, P. C. D., & Sudan, A. M. (2015). Projeto pedagógico do curso de graduação em Terapia Ocupacional. São Carlos: Universidade Federal de São Carlos. Recuperado em 22 de agosto de 22, de http://www.prograd.ufscar.br/cursos/cursos-oferecidos-1/terapia-ocupacional/Terapia%20Ocupacional%20Projeto%20Pedagogico.pdf
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; Fiorati et al., 2021Fiorati, R. C., Carretta, R. Y. D., Oliveira, A. S., Santana, C. S., Kebbe, L. M., Pinto, M. P. P., Carlo, M. M. R. P., Chaves, T. C., & Elui, V. M. C. (2021). Projeto político pedagógico curso de graduação em Terapia Ocupacional Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto. Ribeirão Preto: Universidade de São Paulo. Recuperado em 22 de agosto de 22, de http://cg.fmrp.usp.br/wp-content/uploads/sites/369/2021/02/Projeto-Pedag%C3%B3gico-T.O.-2021.pdf
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; Guarany et al., 2018Guarany, N. R., Costa, C. O., & Lindôso, Z. C. L. (2018). Projeto pedagógico do curso de Terapia Ocupacional da Universidade Federal de Pelotas. Pelotas: Universidade Federal de Pelotas. Recuperado em 22 de agosto de 22, de https://wp.ufpel.edu.br/terapiaocupacional/files/2014/03/PPP-2013-TO.pdf
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; Leão et al., 2015Leão, A., Macedo, M. D. C., Cunha, A. C., Garcia, A. L., Marinho, F. D., Coutinho, G. C., & Constantinidis, T. C. (2015). Projeto político pedagógico do curso de Terapia Ocupacional da Universidade Federal do Espírito Santo. Vitória: Universidade Federal do Espírito Santo. Recuperado em 22 de agosto de 22, de https://terapiaocupacional.ufes.br/sites/terapiaocupacional.ufes.br/files/PPC%20-%20Inicio%202015.pdf
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).

Entende-se a formação como um diálogo entre o ideal e o real que visa alcançar o possível nas ações e que resulta em processo de transformação que se dá entre a realidade considerada e o modelo idealizado (Constantinidis & Cunha, 2013Constantinidis, T. C., & Cunha, A. C. (2013). A formação em Terapia Ocupacional: entre o ideal e o real. Revista de Terapia Ocupacional da Universidade de São Paulo, 24(2), 149-154.). Acredita-se que o momento pandêmico e de distanciamento social é um momento de excelência para se analisar como estes alunos e alunas equacionam a teoria sobre cotidiano mediante a realidade de seu próprio cotidiano e o cotidiano de outras pessoas com as quais se relacionam. Nesse sentido, o objetivo deste estudo é compreender como estudantes de terapia ocupacional vivem o conceito de cotidiano na existência real do dia a dia, nas intersecções com as relações sociais, com as emoções e pensamentos diante do momento pandêmico e de distanciamento social que atravessa a vida de todos. Em outras palavras, visa-se compreender os sentidos subjetivos produzidos por estudantes de terapia ocupacional em relação ao conhecimento sobre cotidiano durante a pandemia de COVID-19.

Método

Trata-se de um estudo não experimental, transversal, exploratório-descritivo, com amostra de conveniência segundo a participação voluntária de 235 estudantes de terapia ocupacional de diferentes instituições de ensino superior localizadas de norte a sul do país. A grande maioria dessas2 2 O curso de Terapia Ocupacional tem predominância de mulheres entre seu grupo de estudantes, com 90% de alunas do sexo feminino (Brasil, 2004), por isso optou-se por adotar o gênero feminino na redação do artigo. estudantes (99,05%) é oriunda de Instituição de Ensino Superior (IES) pública e apenas 0,05% de IES particular. Em relação ao período de formação no curso, 34,9% encontram-se nos períodos iniciais (entre o primeiro e o terceiro semestre), 34% nos períodos intermediários (entre o quarto ao sexto semestre) e 31% nos períodos finais (entre o sétimo e décimo semestre) de estudo.

A caracterização sociodemográfica dos participantes é apresentada na Tabela 1 de acordo com sexo, cor, situação civil e renda média do núcleo familiar.

Tabela 1
Caracterização sociodemográfica dos participantes.

Os procedimentos foram iniciados após aprovação do projeto, sob parecer nº 4.022.960, pelo Conselho de Ética em Pesquisa do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Todas as coordenações de curso de terapia ocupacional, de norte a sul do país, foram contatadas, assim como centros acadêmicos, para solicitação de auxílio na divulgação da pesquisa entre as estudantes.

A coleta de dados se deu por meio de aplicação de formulário on-line (Google Forms) composto de três questionários. Os resultados de um deles foram utilizados no presente estudo. O link de acesso para o formulário foi enviado aos participantes pelos colaboradores por meio de e-mail, WhatsApp ou redes sociais. A coleta foi realizada durante dois meses, entre outubro e dezembro de 2020. Para o preenchimento do formulário, o participante preencheu o termo de consentimento esclarecido e teve garantido o anonimato e a confidencialidade dos dados. O único critério de inclusão utilizado foi ser estudante de curso de terapia ocupacional.

O questionário utilizado, Questionário de Vivências Acadêmicas em Terapia Ocupacional (QUESVATO), foi desenvolvido pelas autoras deste estudo e avaliado e validado por pesquisadores na área de saúde mental. Tal instrumento consiste em perguntas de resposta única, de múltipla escolha ou abertas que abordam questões relativas a sexo, cor/etnia, situação socioeconômica, além de questões relativas ao afastamento social, percurso acadêmico na terapia ocupacional, fatores positivos e negativos do ensino remoto e o impacto da COVID-19 na vida das estudantes de terapia ocupacional.

Para responder ao objetivo deste estudo, além dos dados sociodemográficos fornecidos pelo QUESVATO, foram utilizados os dados da seguinte questão aberta: “O conhecimento que você adquiriu no curso até o momento fez com que você compreendesse ou pensasse sobre as mudanças no seu cotidiano e no cotidiano das pessoas neste período de pandemia/isolamento social? Fale sobre isso”.

Os dados qualitativos, resultantes das respostas à questão aberta do QUESVATO foram analisados com auxílio do software IRaMuTeQ (Interface de R pour les Analyses Multidimensionnelles de Textes et de Questionnaires), que consiste em um “programa informático gratuito, que permite diferentes formas de análises estatísticas sobre corpus textuais e sobre tabelas de indivíduos por palavras” (Camargo & Justo, 2013, pCamargo, B. V., & Justo, A. M. (2013). IRAMUTEQ: um software gratuito para análise de dados textuais. Temas em Psicologia, 21(2), 513-518. http://dx.doi.org/10.9788/TP2013.2-16.
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. 513). O material textual obtido por meio da questão aberta foi transcrito em um corpus e submetido a uma Classificação Hierárquica Descendente (CHD), análise realizada pelo software IRaMuTeQ, resultando na construção de um dendrograma (Camargo & Justo, 2013Camargo, B. V., & Justo, A. M. (2013). IRAMUTEQ: um software gratuito para análise de dados textuais. Temas em Psicologia, 21(2), 513-518. http://dx.doi.org/10.9788/TP2013.2-16.
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) que informa, entre outras análises, a distribuição das classes, classificando os segmentos de texto de acordo com seus vocabulários. Além disso, o software permite que os segmentos de texto associados a cada classe sejam recuperados no corpus original.

Resultados e Discussão

O corpus elaborado a partir das respostas apresentou 6.647 ocorrências com 1.013 palavras. A palavra “cotidiano” foi a mais frequente nas respostas (n =87), seguida de “pessoa” (n =73), “rotina” (n=63), “pensar” (n=39) e “forma e saúde” (n=38). A composição dessas palavras aponta para o cotidiano como central na leitura desta estudante do momento de pandemia, como ponto de atenção para produção de saúde, no cuidado de si e do outro, conforme ilustrado em uma de suas respostas:

Sim, acredito que estamos vivenciando uma experiência que muitas pessoas que atendemos vivenciam ao enfrentarem rupturas do cotidiano, como está acontecendo agora neste momento de pandemia. Isso nos fez pensar e nos convocou a uma reformulação do nosso cotidiano, adaptação da nossa rotina, das nossas atividades e o desenvolvimento de mecanismos de manutenção da saúde.

A análise de CHD das palavras ativas produziu cinco classes lexicais, que estão apresentadas na Figura 1.

Figura 1
Dendrograma das cinco classes lexicais obtidas a partir da classificação hierárquica descendente (CHD).

O dendrograma mostra que, em um primeiro momento, o corpus foi dividido (1ª partição) em dois subcorpus, ficando de um lado a classe 1 e do outro as classes 2, 3, 4 e 5. Em um segundo momento, o primeiro subcorpus foi dividido em dois (2ª partição), ficando de um lado a classe 5, e de outro as classes 2,3 e 4. Em um terceiro momento, o segundo subcorpus foi dividido em dois (3ª partição), de um lado a classe 4 e de outro as classes 2 e 3. Finalmente, o terceiro subcorpus foi dividido em dois (4a partição), de um lado a classe 2 e de outro a classe 3.

As classes lexicais receberam as seguintes nomeações: classe 1: Atenção aos familiares; classe 2: Acreditar na terapia ocupacional; classe 3: Adaptando e organizando o dia a dia; classe 4: Certezas e vivências e classe 5: Interrupção do cotidiano e a saúde mental. Os nomes das classes foram elaborados de forma subjetiva pelas pesquisadoras com base na composição das palavras predominantes, buscando-se representar as ideias de cada classe (Carvalho et al., 2020Carvalho, T. S., Mota, D. M., & Saab, F. (2020). Utilização do software IRaMuTeQ na análise de contribuições da sociedade em processo regulatório conduzido pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária. Vigilância Sanitária em Debate: Sociedade, Ciência & Tecnologia, 8(1), 10-21. http://dx.doi.org/10.22239/2317-269x.01429.
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). Cada classe será analisada separadamente, conforme a apresentação a seguir.

Atenção aos familiares

A Classe 1 traz as palavras familiar, dificuldade, lidar, TO, que corresponde à abreviação de Terapia Ocupacional, empatia e maior. Essa classe é a mais representativa, destaca-se das demais na primeira partição e totaliza 28,47% dos segmentos de texto. Essa classe se opõe às demais, mostrando a atenção voltada para o outro em contraste com outras classes que mostram a atenção das estudantes voltada para si mesmas, para seus sentimentos e emoções.

A Classe 1 indica que os conhecimentos adquiridos no curso de terapia ocupacional acrescentam qualidade ao cuidado dispensado aos seus familiares e amigos diante das dificuldades enfrentadas pela ruptura do cotidiano advinda das medidas de prevenção da COVID 19, como exemplifica o seguinte segmento de texto:

Sim, percebi uma mudança no olhar em relação a como eu poderia ajudar meus familiares em suas dificuldades no cotidiano dentro das limitações que a pandemia provocou, como, por exemplo, ajudar meus avós, que sentiram falta de ver os amigos e tiveram um sentimento de inutilidade.

Em alguns momentos, o ambiente doméstico passa a ser utilizado como um “cenário de prática” pelas estudantes. Nesse processo, o acolher as necessidades e o cuidar suscita reflexões não só sobre o cotidiano do outro e o deles mesmos, mas também sobre o lugar de terapeuta, colocando em prática a empatia:

Fez com que eu olhasse para os outros com empatia e segurança. É um momento único que muda os hábitos e costumes, que modifica todo o contexto em que estamos inseridos.

Segundo Kestenberg et al. (2006)Kestenberg, C. C. F., Reis, M. M. S. A., Motta, W. C., Caldas, M. F., & Rodrigues, D. M.C. (2006). Cuidando do estudante e ensinando relações de cuidado de enfermagem. Texto & Contexto Enfermagem , 15(Spe), 193-200. https://doi.org/10.1590/S0104-07072006000500024.
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, uma relação de cuidado pressupõe atenção, empatia, escuta ativa e segurança, que são conhecimentos técnico-científicos adquiridos na formação profissional. A empatia situa-se, em sua dimensão afetiva, como a capacidade de colocar-se no lugar do outro no sentido de buscar vivências e sentimentos da outra pessoa, de identificar-se com aquele que sofre (Moreto & Blasco, 2012Moreto, G., & Blasco, P. G. (2012). A erosão da empatia nos estudantes de medicina: um desafio educacional. Revista Brasileira de Medicina, 69(1), 12-17.). Uma revisão de literatura realizada por Carmo et al. (2020)Carmo, E. D., Mendonça, S. M. H., Gonnelli, F. A. S., & Almeida, D. M. (2020). Promoção do desenvolvimento de empatia e humanização na formação superior em saúde: revisão da literatura. Atas de Ciências da Saúde, 9(3), 3-11. aponta efeitos positivos da empatia e da humanização em diversos aspectos da vida pessoal e profissional das estudantes da área da saúde. Para os autores, a aplicação da empatia e da humanização na rotina diária de estudantes é fundamental para a atuação profissional, na relação do profissional com as pessoas que buscam cuidado.

No entanto, nesta experiência solitária, em território doméstico, sem o respaldo de professores e colegas, como seria em campo de prática de ensino, a colocação em prática dos conhecimentos adquiridos nem sempre é exitosa, conforme evidenciado nos seguintes segmentos de texto:

Temos uma maior noção sobre organização de uma rotina saudável. Um pouco no começo, me cobrei muito por não manter minha rotina. O estresse familiar me deixava desanimada, pois irei trabalhar com pessoas e não consigo lidar nem com meus parentes.

Santo de casa não faz milagre. Por mais que tente planejar, para mim e meus familiares, rotina e implementação de atividades substitutivas, não consegui.

Segundo Moreto & Blasco (2012), oMoreto, G., & Blasco, P. G. (2012). A erosão da empatia nos estudantes de medicina: um desafio educacional. Revista Brasileira de Medicina, 69(1), 12-17. desenvolvimento da empatia envolve as emoções da própria estudante, que pode manifestar-se por meio de resposta emotiva inadequada, quando ela percebe sua própria vulnerabilidade diante da situação, gerando medo, ansiedade e sentimento de impotência. Nesse sentido, estamos diante de estudantes que estão lidando com o momento pandêmico, em um ambiente onde os sentimentos e vivências misturam-se com as experiências dos familiares, onde a identificação com eles pode impedir a relação técnica/profissional/terapêutica. É importante destacar, nestes tempos de curso remoto não presencial, a importância do suporte acadêmico para que as estudantes possam lidar com este tipo de questão, que pode gerar frustração e ansiedade entre elas.

Acreditar na terapia ocupacional

A Classe 2, nominada “Acreditar na terapia ocupacional”, é representada pelas palavras acreditar, ruptura, vivenciar, mesmo, importante e corresponde a 21,9% dos segmentos de texto. Fazendo parte da última partição, essa classe tangencia e relaciona-se proximamente às outras classes.

As palavras dessa classe vinculam-se ao crédito dado pelas estudantes ao objeto de estudo e prática profissional vinculados à terapia ocupacional, ou seja, atividade humana e cotidiano. Reconhecem um campo de conhecimento que dá sentido e/ou contribui para melhorar o cotidiano em momento de pandemia e distanciamento social, conforme os exemplos a seguir:

Acredito que, com os conhecimentos do curso de terapia ocupacional, eu pude compreender ainda melhor nossa relação com o corpo, com o outro e com as atividades humanas nesse período de isolamento.

Acredito que a terapia ocupacional, em tempos de isolamento social, pode desempenhar papel importante como mediadora e potencializadora na ressignificação do cotidiano das pessoas, uma vez que pode contribuir para as diversas áreas que englobam as atividades e relações humanas.

O segmento de texto apresentado a seguir sugere que acreditar na terapia ocupacional vai além de suposições respaldadas em conhecimentos teóricos. O conhecimento da terapia ocupacional também se sustenta nas próprias vivências cotidianas das estudantes, que, a partir do momento pandêmico, trazem para suas realidades a experiência de mudanças na forma de viver o cotidiano - que é chamado por elas de ruptura de cotidiano - até então vista como acontecimento na vida das pessoas atendidas pela terapia ocupacional:

Acredito que estamos vivenciando o que muitas pessoas que atendemos vivenciam ao enfrentarem rupturas no cotidiano como está acontecendo agora, nesse momento de pandemia, que nos convocou a reformular nosso cotidiano, a adaptar nossas atividades e a desenvolver mecanismos de manutenção de saúde.

Para essas estudantes, a teoria sobre o cotidiano não ficou “simplesmente a reboque da prática” (Ramos, 2010, pRamos, M. (2010). Práxis e pragmatismo: referências contrapostas dos saberes profissionais. In M. R. G. B. Sá & V. L. B. Fartes (Orgs.), Currículo, formação e saberes profissionais: a (re) valorização epistemológica da experiência (pp. 85-104). Salvador: EDUFBA.. 206), não apenas constatação e confirmação dos fatos, mas assumem uma função prática de transformação da realidade.

Segundo Ramos (2010, pRamos, M. (2010). Práxis e pragmatismo: referências contrapostas dos saberes profissionais. In M. R. G. B. Sá & V. L. B. Fartes (Orgs.), Currículo, formação e saberes profissionais: a (re) valorização epistemológica da experiência (pp. 85-104). Salvador: EDUFBA.. 206), “a atividade transformadora no contexto da realidade depende da atividade realizada no contexto da teoria”, ou seja, o contexto é examinado em seus componentes, reordenados em suas relações que configuram a realidade. Assim, o processo de compreender a realidade, o cotidiano e suas rupturas, a partir da pandemia de COVID-19 e o movimento de transformá-lo, foi facilitado pela sua apropriação teórica, pelos conhecimentos a partir da terapia ocupacional, possibilitando um processo de crítica, interpretação e avaliação dos fatos e o retorno a eles com propostas de “reformulação do cotidiano” e/ou “ressignificação do cotidiano”, conforme os relatos.

Adaptando e organizando o dia a dia

A Classe 3 traz as palavras dia, adaptar, social, realizar, afetar e organizar, corresponde a 18,2% dos segmentos de texto e, assim como a Classe 2, faz parte da última partição, tangencia e relaciona-se proximamente às outras classes. No entanto, opõe-se à Classe 2 na partição. Enquanto a Classe 2 mostra uma compreensão teórica do cotidiano, que se volta à realidade, na Classe 3, as palavras indicam menção feita pelas estudantes a ações práticas de organização de seu próprio cotidiano, com respaldo na terapia ocupacional, conforme ilustram os segmentos de texto:

Permite pensar em algumas estratégias de organização da rotina e dos significados do nosso dia a dia. Me fez pensar muito e procurar maneiras possíveis de diminuir os prejuízos e adaptar minha rotina ao novo cotidiano.

Na minha rotina, pude identificar os momentos que produzia melhor e organizar meu dia de maneira a conseguir realizar tudo que precisava. Principalmente em relação à importância da organização da rotina diária para desenvolver diferentes papéis ocupacionais.

Neste momento em que estamos vivendo, estou conseguindo organizar minha rotina, potencializar meu tempo realizando as atividades e organizar os pensamentos para este novo momento.

Enquanto a Classe 2 traz uma perspectiva de conhecimento por meio da práxis, onde a teoria é fundamental na transformação da realidade, na Classe 3 a perspectiva é prática, ou seja, “existe uma unidade imediata do pensamento e da ação” (Patto, 1993, pPatto, M. H. S. (1993). O conceito de cotidianidade em Agnes Heller e a pesquisa em educação. Perspectivas, 16, 119-141.. 126), que é própria da atividade cotidiana, que também é pragmática (Patto, 1993Patto, M. H. S. (1993). O conceito de cotidianidade em Agnes Heller e a pesquisa em educação. Perspectivas, 16, 119-141.).

A organização de rotina, a organização do dia a dia e adaptação à nova rotina, diferentes papéis, são elementos presentes nos segmentos de texto e que vão na direção do cotidiano na perspectiva de Heller (1991)Heller, A. (1991). Sociología de la vida cotidiana. Barcelona: Península., para quem o cotidiano é o lugar da rotina, da espontaneidade, do hábito, de desempenho automático de papéis, lugar onde se apreende o mundo e nele se objetiva.

Salles & Matsukura (2013)Salles, M. M., & Matsukura, T. S. (2013). Estudo de revisão sistemática sobre o uso do conceito de cotidiano no campo da terapia ocupacional no Brasil. Cadernos de Terapia Ocupacional da UFSCar, 21(2), 265-273. http://dx.doi.org/10.4322/cto.2013.028.
http://dx.doi.org/10.4322/cto.2013.028...
, ao analisarem a produção bibliográfica sobre cotidiano por terapeutas ocupacionais, apontam que o conceito de cotidiano serve como reflexão da organização da vida das pessoas. Para essas autoras, o que interessa para a terapia ocupacional é o que as pessoas fazem e como o contexto social facilita ou dificulta o engajamento delas em diferentes atividades. Além disso, o advento de uma doença gera a necessidade de atividades cotidianas que priorizem o tratamento. Para essas autoras, o cotidiano é elemento centralizador na análise da influência do contexto social na transformação da vida das pessoas, sendo possível identificar os desdobramentos que se dão a partir dessa transformação. Relacionando ao presente estudo, o cotidiano das participantes, assim como o de todas as pessoas, está sujeito a mudanças impostas pela COVID-19, cuja prevenção é priorizada neste momento. Utilizando a linha de pensamento dessas autoras, temos como premissa que a análise da organização, adaptação e realização de atividades na transformação necessária do cotidiano dessas alunas, nos traria dados sobre o seu contexto de vida e os impactos a partir dessas transformações. Assim, indica-se a importância de novas pesquisas que analisem as mudanças/adaptações ocorridas no cotidiano dessas estudantes, conforme mencionadas neste tópico, para que se conheça o impacto da COVID-19 em suas vidas. Impactos que podem gerar quadros de adoecimento, conforme citado no segmento abaixo:

Neste período de pandemia, ficou claro o quanto é complexa a estruturação de uma nova rotina, a dificuldade de adaptar-se a um novo contexto social, e como essa dificuldade, somada a outros fatores pessoais e ambientais, pode promover quadros de adoecimento.

Esse segmento denota que ser estudante de terapia ocupacional nem sempre garante o reconhecimento das dificuldades, impossibilidades, fragilidades e/ou necessidade de adaptação na realização de atividades cotidianas ou criação de um novo cotidiano diante das imposições da realidade. Além disso, marca a importância de se considerar, na abordagem do cotidiano, o indivíduo em sua complexidade, ou seja, conforme explica Galheigo (2020)Galheigo, S. M. (2020). Terapia ocupacional, cotidiano e a tessitura da vida: aportes teórico-conceituais para a construção de perspectivas críticas e emancipatórias. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 28(1), 5-25. http://dx.doi.org/10.4322/2526-8910.ctoAO2590.
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, os processos vividos pelos indivíduos devem ser analisados em meio à conjuntura sócio-histórica, com suas contradições, e considerando a singularidade da experiência de vida.

Certezas e vivências

A Classe 4, representada por 15,3% dos segmentos do texto, faz parte da terceira partição, juntamente com as Classes 2 e 3, mas opõem-se a elas. É representada pelas palavras certeza, viver, impacto, necessidade, quarentena.

Os segmentos dessa classe referem-se à segurança dos conhecimentos sobre cotidiano aplicados às vivências no momento de pandemia, conforme os seguintes relatos:

Com certeza, nós estudamos sobre rotina e cotidiano e, desde o início da pandemia, consegui enxergar em mim e na minha família os impactos da alteração na nossa rotina.

Com certeza, pois além de ter entendido o porquê de as pessoas estarem tão impactadas com a interrupção do cotidiano, por entender tudo isso, também me fez pensar nos impactos no meu cotidiano.

Se na Classe 2 aparece o acreditar, dar crédito aos conhecimentos da terapia ocupacional, a Classe 3 apresenta a certeza, a segurança que tais conhecimentos oferecem de sua verdade. No entanto, é importante ressaltar que, como aponta Sandoval (2014, pSandoval, R. (2014). Sobre a certeza nos juízos sintéticos a priori. Pólemos, 3(6), 181-197.. 182), a “certeza é restritiva e ilusória; de poucas coisas pode-se ter suficiente segurança ao qual se pode arrogar um conhecimento certo”.

A certeza apontada pelas estudantes diz respeito a leitura dos impactos causados pelo momento pandêmico no cotidiano. A certeza, para essas estudantes, surge em meio a tantas incertezas, como as que vivemos no momento atual de pandemia; além do que, como afirma Bauman (2001)Bauman, Z. (2001). Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Editora Schwarcz., os problemas contemporâneos podem ser sintetizados na trinca insegurança, incerteza e falta de garantia.

Assim, essa certeza traz um alento neste momento:

Provavelmente sem esse pensamento prévio, sobre o que é cotidiano, sua construção e a importância do mesmo para os indivíduos, para mim seria mais difícil do que foi viver nesta conjuntura. Entender minhas necessidades e melhor encaminhá-las, como começar a me envolver em atividades possíveis.

É importante destacar que as vivências referidas nos segmentos de texto não se resumem às vivências particulares das estudantes, mas trazem também aquilo que Heller (1991)Heller, A. (1991). Sociología de la vida cotidiana. Barcelona: Península. chamou de superação do cotidiano, ou seja, conforme explica Guimarães (2002, pGuimarães, G. T. D. (2002). Aspectos da teoria do cotidiano: Agnes Heller em perspectiva. Porto Alegre: EDIPUCRS.. 19): “é um cotidiano que tem que extrapolar sua particularidade, sua umbilicalidade, sua centralidade”. A superação do cotidiano pressupõe que as atividades realizadas pelo sujeito se relacionam ao “humano genérico”, à espécie humana. Perder a dimensão humano-genérica é alienar-se, e o elemento fundamental para tal processo é a consciência humana (Guimarães, 2002Guimarães, G. T. D. (2002). Aspectos da teoria do cotidiano: Agnes Heller em perspectiva. Porto Alegre: EDIPUCRS.). Como exemplo, no segmento a seguir, observamos que a dimensão humano-genérica não é perdida de vista:

Pessoas pobres não estão de quarentena pela essência da demanda de trabalho, os espaços que essa população vive, como se desloca, como são os locais de trabalho e afins. Foram minhas primeiras e, até o momento, as principais preocupações.

Além disso, essas estudantes compreendem que a pandemia trouxe uma tomada de consciência de pessoas que viviam no âmbito da particularidade, do automatismo, a partir da desestruturação do cotidiano, mudando a forma do sujeito significar a própria vida:

A estruturação das ocupações, do fazer cotidiano, foram extremamente prejudicadas nesta quarentena e, em geral, pessoas que viviam no automático ou só viviam para o trabalho, que é o caso da maioria das pessoas que conheço, tiveram uma desestruturação muito grande que desestabilizou a forma de enxergar um significado de seus viveres.

As mudanças impostas podem colocar em evidência uma certa dependência da rotina e/ou hábitos. Guimarães (2002)Guimarães, G. T. D. (2002). Aspectos da teoria do cotidiano: Agnes Heller em perspectiva. Porto Alegre: EDIPUCRS. chama a atenção para os “escravos do cotidiano”, ou seja, pessoas sutilmente amarradas a tipos de dependência, muitas vezes inconscientemente. Para Heller (1982, pHeller, A. (1982). Para mudar a vida. São Paulo: Brasiliense.. 190), “devemos desenvolver formas de vida generalizáveis”, ou seja, buscar diversidade naquilo que fazemos.

Interrupção do cotidiano e a saúde mental

A Classe 5 totaliza 16,1% dos segmentos de texto e é representada pelas palavras saúde, mental, medo, reorganizar, interromper, abalado e ansiedade. Faz parte da segunda partição, ficando em lado oposto às classes 2, 3 e 4, que, como discutido até aqui, dizem respeito à relação das estudantes com os conhecimentos sobre cotidiano e à perspectiva prática do cotidiano, construídos no curso de terapia ocupacional.

Trata-se do entendimento das estudantes sobre os impactos da mudança de cotidiano, imposta pela pandemia, na saúde mental das pessoas. O distanciamento/isolamento social e/ou o medo da contaminação e da morte imprimiram mudanças no cotidiano das pessoas. Essas mudanças podem ser vividas como uma interrupção que demanda uma reorganização que pode resultar em sofrimento psíquico.

O cotidiano desestruturado abre fendas profundas em nossa saúde mental, ainda mais se já existir um sofrimento prévio. Por isso a importância de bases fortes, redes de apoio, laços de afeto e tudo que falamos até aqui.

Diante disso, o cotidiano de todos mudou repentinamente, trazendo angústia, intensificando medos, manias e ansiedade. Muitas pessoas tiveram que interromper suas ocupações principais (trabalho, faculdade, estágio) e reorganizar seu cotidiano para realizar novas atividades dentro de suas casas.

Desta forma, segundo estudantes de terapia ocupacional, os impactos trazidos pela COVID-19 no cotidiano prejudicam a saúde mental. Essa premissa das participantes deste estudo coaduna-se com Lima (2020)Lima, R. C. (2020). Distanciamento e isolamento sociais pela Covid-19 no Brasil: impactos na saúde mental. Physis, 30(2), 1-10. http://dx.doi.org/10.1590/s0103-73312020300214.
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, que destaca que o distanciamento social vem afetando a vida coletiva ou individual, com repercussões na saúde mental da população, e que o número de pessoas afetadas psicologicamente, que podem apresentar consequências psicológicas ou psiquiátricas, costuma ser maior que o de pessoas acometidas pela infecção.

Concluindo, as estudantes fizeram uso do conhecimento do cotidiano, construído no curso de terapia ocupacional, segundo várias perspectivas. A primeira apresentada foi aquela em que se apropriam do conhecimento sobre cotidiano e o aplicam para lidar com dificuldades cotidianas do outro, de familiares e/ou de pessoas próximas. A apropriação desse conhecimento as leva a utilizar o espaço doméstico como espaço de prática - experiência nem sempre bem-sucedida vista a complexidade das relações e a falta de acompanhamento didático.

Para Ramos (2010), aRamos, M. (2010). Práxis e pragmatismo: referências contrapostas dos saberes profissionais. In M. R. G. B. Sá & V. L. B. Fartes (Orgs.), Currículo, formação e saberes profissionais: a (re) valorização epistemológica da experiência (pp. 85-104). Salvador: EDUFBA. subjetivação de saberes é resultado de experiências que, como resultado, podem gerar condutas pragmáticas (prática utilitária) ou integradas à apreensão conceitual da realidade, produzindo conhecimento pela compreensão sobre relação teoria-prática. Nesse sentido, as participantes abordam e aplicam o conceito do cotidiano em suas próprias vivências, seja pela apropriação teórica, resultando em crítica, avaliação ou reformulando e adaptando o cotidiano, ou de forma mais direta e imediata, passando do pensamento à ação, à adaptação do cotidiano. Dessa forma, mostram tipos de abordagem que poderiam ser classificadas, a primeira como abordagem por meio da práxis e a segunda de forma pragmática.

As estudantes utilizam os conceitos sobre cotidiano e os conhecimentos adquiridos no curso de terapia ocupacional como referência de compreensão das incertezas colocadas pela situação pandêmica. Os conhecimentos possibilitam que elas façam alguma leitura possível diante de mudanças radicais no cotidiano das pessoas, onde o medo e a insegurança as acompanham. Nesse sentido, sentem-se norteadas pelos conceitos, que lhes dão segurança e alento neste momento.

Finalmente, relacionam as mudanças do cotidiano impostas pelo momento pandêmico ao sofrimento psíquico, a danos nocivos à saúde mental das pessoas. Dessa forma, trazem o sofrimento psíquico como impacto da interrupção do cotidiano.

Considerações Finais

Este estudo discutiu as produções subjetivas de estudantes de cursos de terapia ocupacional a respeito do conceito de cotidiano no contexto de isolamento social durante período pandêmico. Dessa forma, foi possível acompanhar diferentes formas de apropriar-se do conceito: aplicando-o em possíveis intervenções no cotidiano do outro; por meio de uma abordagem práxica, onde a teoria possibilita um processo de crítica e avaliação para transformar o cotidiano; através de uma abordagem pragmática, onde fazem a passagem imediata da leitura da situação para a ação; como forma segura de análise do contexto cheio de incertezas e mudanças que vivemos na contemporaneidade; mudanças e interrupções do cotidiano destacam-se como aspectos/questões que têm efeitos negativos na saúde mental das pessoas.

Foi possível compreender que as estudantes se encontram frustradas e ansiosas diante das mudanças em seus cotidianos, com a vivência em ambiente restrito ao domicílio, com familiares. O conhecimento adquirido a respeito do cotidiano traz segurança em alguns momentos, principalmente na leitura do contexto, mas traz dificuldades ao lidarem com a realidade mais próxima, como a relação com os familiares. Ressalta-se a importância de novas pesquisas que analisem as mudanças/adaptações ocorridas no cotidiano dessas estudantes para que se conheça o impacto da COVID-19 em suas vidas.

Como limitação deste estudo, aponta-se a coleta de dados realizada por meio de informações autorreferidas fornecidas pelas estudantes, podendo haver a ocorrência de viés em razão da interpretação das questões pelas participantes.

  • 1
    Alguns cursos utilizam a nominação Projeto Político Pedagógico (PPP) para seus projetos.
  • 2
    O curso de Terapia Ocupacional tem predominância de mulheres entre seu grupo de estudantes, com 90% de alunas do sexo feminino (Brasil, 2004), por isso optou-se por adotar o gênero feminino na redação do artigo.
  • Como citar: Constantinidis, T. C., & Matsukura, T. S. (2022). Sentidos produzidos acerca do cotidiano por estudantes de terapia ocupacional durante a pandemia de COVID-19. Cadernos Brasileiros de Terapia Ocupacional, 30, e3249. https://doi.org/10.1590/2526-8910.ctoAO248332491

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Editado por

Editora de seção

Profa. Dra. Beatriz Prado Pereira

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Dez 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    26 Jan 2022
  • Revisado
    19 Fev 2022
  • Revisado
    06 Jun 2022
  • Aceito
    22 Ago 2022
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