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Literatura Comparada e suas encruzilhadas (políticas, discursivas e interculturais)

No cenário contemporâneo, na encruzilhada de saberes e de diferentes epistemologias, a literatura se impõe como importante campo de transformação de valores e revisitação da história, revendo conceitos naturalizados, denunciando preconceitos e desfazendo nós em tecidos sociopolíticos, na busca por interpretações plurais, no encontro com diversas áreas de conhecimento e na interface com outras manifestações artísticas. Assim, a literatura emerge, nesse século, atenta a uma ecologia de saberes, ciente da necessidade de abertura de espaço para diversas vozes silenciadas, na partilha de reivindicações de minorias (étnicas, sexuais e de gênero), considerando que o próprio termo “partilha” presume a presença da comunidade, de corpos em comuna e em comunicação, como também requer a presença de singularidades no ato de divisão de bens socioculturais.

Nessa conjuntura, a literatura comparada mostra-se atenta a outros modelos de racionalidade, já que o da racionalidade moderna e ocidental (hegemônica) produzia ausência, invisibilidade e ocultação de vidas. Nesse aspecto, nos seus estudos comparados, a literatura segue com a órbita aberta a diferentes chamados da atualidade, imersa em redes sociais e ciente de outras formas de controle e de silenciamento de saberes. Na trama e no transe das diversas manifestações artísticas, a experiência literária visa dar visibilidade à riqueza dos diversos territórios culturais, dilatando o presente e ampliando o mundo, fora de uma dimensão excludente e totalizadora. São campos dialógicos, acessíveis a diferentes processos de subjetivação e de atuação social.

O desafio de colocar a literatura em perspectivas múltiplas foi assumido por vários intelectuais e pesquisadores neste número da Revista de Literatura Comparada. Assim, esta publicação constrói redes de compartilhamento de saberes e de análises, com olhares díspares e poéticas diversificadas, a produzir uma zona de conhecimento articuladora dos estudos universitários com a sociedade, ressignificando lugares teóricos e exercitando posições críticas quanto ao nosso presente. Na organização desse volume, apresenta-se um conjunto de textos com o propósito de reunir uma visão caleidoscópica sobre os estudos voltados para o literário e suas interfaces com outras linguagens artísticas e com outras formas de produção de saber, com o intuito de alargar dimensões discursivas, libertando o foco investigativo sobre o literário de um viés fechado, unilateral e homogêneo. Nesse aspecto, surgem vertentes interpretativas diferenciadas, sobre diversos escritores da contemporaneidade, permitindo a elaboração de uma teia comunicativa bem urdida de vozes de diversas partes do Brasil e em âmbito internacional. Desse modo, a Revista de Literatura Comparada cumpre seu papel no sentido de possibilitar diálogos entre diferentes pesquisadores que contribuem para enriquecer o debate sobre o literário numa encruzilhada de saberes.

O primeiro artigo, tatiana nascimento, pensamento amefricano no presente, de Alcione Correa AlvesALVES, Alcione Corrêa. Tatiana Nascimento, pensamento amefricano no presente. Revista Brasileira de Literatura Comparada, v.25, n.48, p. 11-27, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2596-304x20232548aca
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, propõe uma reflexão a partir do pensamento de Tatiana Nascimento, tendo como chave de leitura a relação entre dor/resistência/denúncia, no tratamento científico a textos literários amefricanos. Nesse enfoque, busca-se um diálogo entre o ensaio de Tatiana Nascimento e um corpus de obras literárias amefricanas, com destaque ao conto "El espíritu africano en Parque Capurro", de Mónica dos Santos. Como uma de suas hipóteses, ressalta-se o quanto algumas interpretações, a partir da referida chave de leitura, correm o risco de realizar um gesto de violência epistêmica, no âmbito de uma prática científica, quando literaturas amefricanas são lidas como literaturas de nossos Outros.

Intitulado “Além da antropofagia de Oswald de Andrade: heranças e reapropriações indígenas decoloniais”, o artigo, de Alessia Di EugenioDI EUGENIO, Alessia. Eredità e riappropriazioni indigene decoloniali dell’antropofagia di Oswald de Andrade. Revista Brasileira de Literatura Comparada, v.25, n.48, p. 28-38, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2596-304x20232548ae
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, analisa o sucesso e o longo percurso da Antropofagia cultural de Oswald de Andrade e constrói uma reflexão sobre a forma como ela foi recentemente redesenhada a partir de contribuições teóricas e artísticas indígenas. Considerando as críticas elaboradas por essas reapropriações, o texto pretende ler a Antropofagia como uma proposta onto-política de aliança e transformação decolonial, em conexão com produções e escritas contemporâneas.

Já “ As multidões da meia-noite: vida e época de Saleem SinaiMARTINS, Anderson Bastos. Midnight’s multitudes: the life and times of Saleem Sinai. Revista Brasileira de Literatura Comparada, v.25, n.48, p. 39-51, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2596-304x20232548abm
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” propõe uma leitura de Os filhos da meia-noite (1981), de Salman Rushdie, ao lado de Multidão: guerra e democracia na era do Império (2004), de Michael Hardt e Antonio Negri, numa tentativa de adentrar a discussão proposta pelos autores do segundo volume de que a multidão necessita de um novo Rabelais que possa captar sua monstruosidade revolucionária em ação rumo a uma nova concepção de democracia.

O quarto artigo dessa publicação, “ Trilogia da miséria: a literatura de João do Rio e o Brasil de hojeDOMINGUES, Chirley; JULIANO, Dilma Beatriz Rocha. Trilogia da miséria. A literatura de João do Rio e o Brasil de hoje. Revista Brasileira de Literatura Comparada, v.25, n.48, p. 52-64, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2596-304x20232548cddj
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” revela o quanto a escrita de João do Rio, cem anos após sua morte, ainda se mostra um importante testemunho literário de um Brasil no qual a violência se manifesta de formas diversas em seus modos mais desiguais de convivência social. A pesquisa volta-se para três textos de João do Rio, intitulados “A peste”, “A galeria superior” e “Crimes de amor”, temas que evidenciam, em pleno século XXI, traços de um Brasil atrasado e anacrônico, ainda marcado pela desigualdade social, pelo racismo e pela violência contra as mulheres, evidenciando o que se denomina de trilogia da miséria: desproteção de crianças e adolescentes pobres, vitimização dos homens nos crimes passionais e privilégios de classe em períodos de crises sanitárias. Ressalta-se o vigor e importância da crônica, como relevante documento histórico: um retrato, um ponto de vista de seu tempo capaz de reverberar no presente. Nessa perspectiva, propõe-se a leitura de João do Rio, considerado como um dos maiores cronistas do fim do século XIX e início do XX. Conciliando ficção e realidade, ou ainda, imaginação e informação, ele esculpe a sociedade brasileira, em sua obra, permitindo imagens nítidas do que, no presente, pode ser apontado como a estrutura política e social do Brasil, com uma crítica evidente da sociedade brasileira do início do século XX.

Já em “Literatura de trânsito e transformações da percepção”, Dionei Mathias MATHIAS, Dionei. Literatura de trânsito e transformações da percepção. Revista Brasileira de Literatura Comparada, v.25, n.48, p. 65-80, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2596-304x20232548dm
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debruça-se sobre as diferentes modalidades da literatura de trânsito: literatura de viagem, literatura pós-colonial, literatura de fluxos migratórios nacionais ou internacionais ou literaturas transnacionais. Investiga-se como essas literaturas encenam contatos com alteridade. Esses encontros podem ocorrer com outras configurações culturais, mas também podem ser experiências dentro do próprio contexto de socialização. Em ambos os casos, há um deslocamento que propicia encontros, nos quais as redes de sentido interagem. Nessa interação, destaca-se a forma da condução do olhar para o mundo. O indivíduo pode buscar a manutenção de suas redes primárias de sentido, sua revisão ou mesmo uma confluência, em que os sentidos alheios são reciprocamente absorvidos. Implícita às diferentes formas de trânsito, portanto, encontra-se sempre uma atitude diante da diferença com a qual o indivíduo se depara. Nessa esteira, este artigo discute a emergência de percursos da percepção na literatura de trânsito e, na sequência, analisa sua representação nos romances Europastraße 5 (‘Rodovia Europa 5’), de Güney Dal e Die juristische Unschärfe einer Ehe (‘A indeterminação jurídica de um matrimônio”) de Olga Grjasnowa.

Eduardo F. CoutinhoCOUTINHO, Eduardo F. Da representação à busca de expressão: visões do indígena na produção literária brasileira1. Revista Brasileira de Literatura Comparada, v.25, n.48, p. 81-93, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2596-304x20232548efc
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, professor e pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro, no artigo “Da representação à busca de expressão: visões do indígena na produção literária brasileira”, elabora uma reflexão sobre essa passagem da representação do indígena à sua busca de uma expressão própria, que vem sendo conhecida como “Literatura indígena contemporânea no Brasil” e uma tentativa de desconstrução da ideia de integração e assimilação dos povos indígenas ao padrão nacional, mostrando que suas manifestações literárias, mesmo quando produzidas através dos códigos de comunicação dominantes, contribuem para o fortalecimento de suas lendas e tradições. Habitante das terras brasileiras à época de seu descobrimento pelos portugueses, o ameríndio sempre esteve presente, enquanto tema, na produção literária do Brasil, tendo inclusive ocupado posto de relevo em alguns momentos, como nos períodos arcádico e romântico, e em algumas expressões do século XX, como na obra de Antônio Callado e Darcy Ribeiro. No entanto, a despeito do papel que desempenhou nessas narrativas, e dos esforços dos últimos escritores de aproximar-se de sua cultura, ele nunca deixou de ser tratado por uma ótica externa a si mesmo. Nas últimas décadas, contudo, graças em grande parte ao diálogo que vem sendo estabelecido entre os estudos literários e correntes do pensamento como os Estudos Culturais e Pós-Coloniais, descendentes de índios, versados em português, estão buscando recuperar suas tradições ancestrais narrando as estórias de suas tribos e publicando-as em livros. Esta nova expressão, marcada por alto teor de resistência à dominação da cultura hegemônica, já tem dado frutos importantes tanto no que diz respeito à literatura e à cultura brasileira quanto no que se refere ao papel do indígena no quadro político e social do país.

Em “Clave de Vupes: lições de comunicação e escuta em Grande sertão: veredas”, Gustavo Castro SilvaOLIVEIRA, Danielle Naves de; SILVA, Gustavo Castro. Clave de Vupes ou lições de comunicação e escuta em Grande Sertão: Veredas. Revista Brasileira de Literatura Comparada, v.25, n.48, p. 94-110, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2596-304x20232548gsdo
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, da Universidade de Brasília (UnB), e Danielle Naves OliveiraOLIVEIRA, Danielle Naves de; SILVA, Gustavo Castro. Clave de Vupes ou lições de comunicação e escuta em Grande Sertão: Veredas. Revista Brasileira de Literatura Comparada, v.25, n.48, p. 94-110, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2596-304x20232548gsdo
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, da Universidade de Brasília (UnB) investigam a personagem Vupes, o alemão, do Grande sertão: veredas (1956). Para isso são considerados, a partir da narração de Riobaldo, aspectos históricos, poetológicos e sonoros que possam trazer informações sobre o personagem e sobre a escuta de Riobaldo. Vupes e Riobaldo são estudados a partir da dimensão comunicacional da alteridade, da escuta e da condição de estrangeiro. Para o estudo da personagem alemão, os autores fazem um levantamento da relação de Guimarães Rosa com a Alemanha, analisando cartas, diários, cadernetas, mapas, a biblioteca pessoal e papéis burocráticos do escritor no Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (IEB-USP).

No texto “Abionan e Exu se encontram no meio do caminho: o desdobramento do romance em trilogia, em Antonio Olinto”, Luís Henrique da Silva Novais NOVAIS, Luís Henrique da Silva. Abionan e Exu se encontram no meio do caminho: o desdobramento do romance em trilogia, em Antonio Olinto. Revista Brasileira de Literatura Comparada, v.25, n.48, p. 111-124, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2596-304x20232548lhsn
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investiga os mecanismos que, a partir de uma exigência da linguagem narrativa olintiana, operam o desdobramento do romance em trilogia, resultando na série literária Alma da África. Seguindo a trilha indicada por Pereira (2017) e Sodré (2017), buscou-se a aproximação teórico-crítica entre a operação da dobra (Deleuze, 1991) e elementos específicos da mitologia e da cultura iorubá, fortemente presentes na trilogia. Foi analisado o modo como se estrutura a relação entre os três romances, partindo da função desempenhada pelo segundo livro, O rei de Keto (Olinto, 2007b). Com isso, considerando particularmente as conexões entre a protagonista Abionan e o Orixá Exu (Prandi, 2020) (Verger, 2018), identificou-se uma economia narrativa pautada pelos princípios de ambivalência, repetição e expansão responsáveis, entre outras coisas, pela afirmação de certa experiência existencial relativa à visão de mundo iorubá. Tais princípios, que as figuras de Exu e de Abionan condensam especialmente, promovem a força expansiva da linguagem narrativa olintiana.

O pesquisador Marcos Flamínio PeresPERES, Marcos Flamínio. Hagiografia de uma cortesã: idílio, modo romanesco e legenda em Lucíola, de José de Alencar. Revista Brasileira de Literatura Comparada, v.25, n.48, p. 125-145, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2596-304x20232548mfp
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, da Universidade de São Paulo, em “Hagiografia de uma cortesã: idílio, modo romanesco e legenda em Lucíola, de José de Alencar”, mostra como, desde seu lançamento, Lucíola (1862) tem sido objeto de análises que abordam especialmente o paralelo com a A dama das camélias (Alexandre Dumas Filho) e Paulo e Virgínia (Bernardin de St-Pierre). Porém, raramente as questões ali presentes foram tratadas em seu conjunto, de modo a constituírem uma narrativa única e coerente. Pois, a despeito da linguagem erótica dos capítulos iniciais, as imagens idílicas ou “analogia da inocência” (Frye) acabam por se sobrepor gradualmente na construção de cenas, diálogos e situações, assim como nas remissões à obra de St. Pierre, a Atala (Chateaubriand) e aos idílios de Teócrito. Assim, Lucíola sofre uma modificação crucial em seu mythos, que passa a orbitar em torno do conceito de idílio, não apenas enquanto locus amoenus (Curtius), mas sobretudo no sentido moderno atribuído a ele por Schiller (1800), segundo o qual trata-se de um vir-a-ser que só se realiza plenamente na chave da transcendência. Tal reorientação, da imanência à transcendência, aproxima-o de uma das chamadas “formas simples” (Jolles), que é a legenda cristã. A partir de tais premissas teóricas, o artigo propõe que a crítica a Lucíola revelou profunda incompreensão quanto ao papel discursivo de G.M., a digna senhora responsável por publicar as cartas a ela entregues por Paulo, o amante da heroína. G.M. compreende a construção do romance enquanto vita e exemplum - algo que o narrador não chega a entender.

Contemplando uma proposta na linha das interartes, Sara del Carmen Rojo de la RosaROSA, Sara del Carmen Rojo de la. Visualidades: Nocturno de Chile, de Roberto Bolaño. Revista Brasileira de Literatura Comparada, v.25, n.48, p. 146-155, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2596-304x20232548scrr
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, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em seu texto “Visualidades: Nocturno de Chile, de Roberto Bolaño”, analisa Nocturno de Chile (2000), do romancista chileno Roberto Bolaño (1953-2003), a partir da forma visual da narração. A extensa produção deste escritor tem um caráter imagético inegável que é abordado a partir de sua correlação com as formas de produção do teatro e do cinema. A hipótese é a de que o diálogo interartes oferece uma nova forma de aproximação à sua obra e, principalmente, ao romance abordado. As imagens de Nocturno de Chile transitam entre o fim da democracia e a ditadura por meio do delírio de um moribundo que revisa sua vida emocional-literária como resposta a um ataque intelectual.

Sueleny Ribeiro CarvalhoCARVALHO, Sueleny Ribeiro. Carmen, do estereótipo ao desafio: a personagem para além da obra de Prosper Mérimée. Revista Brasileira de Literatura Comparada, v.25, n.48, p. 156-169, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2596-304x20232548src
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, em “Carmen, do estereótipo ao desafio: a personagem para além da obra de Prosper Mérimée”, discute a possibilidade de subversão dos estereótipos atribuídos à mulher por meio da análise da representação da personagem Carmen entre o texto fonte e as adaptações cinematográficas inspiradas na narrativa de Mérimée e/ou na ópera de Bizet, a fim de perceber os mecanismos utilizados para a construção da personagem com base em Uma teoria da adaptação de Hutcheon, além de outros autores.

Na abertura seção Vária, segunda parte da Revista de Literatura Comparada, encontra-se o ensaio de Edson Ribeiro da SilvaSILVA, Edson Ribeiro da. O diário como possibilidade para a antificção romanesca. Revista Brasileira de Literatura Comparada, v.25, n.48, p. 170-187, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2596-304x20232548ers
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, intitulado “O diário como possibilidade para a antificção romanesca”, no qual o autor discute o conceito de antificção, que tem sido usado por teóricos como Lejeune e Alberca para explicar a demanda por gêneros não-ficcionais, como o diário e a autobiografia. A proposta do texto pretende estender o conceito de antificção às estéticas que se definem como romanescas. Entre essas estéticas estão algumas possibilidades da autoficção, como a praticada pelo francês Hervé Guibert, ou a forma romanesca desenvolvida pelo brasileiro Ricardo Lísias, em que o ensaio sobre o presente é categorizado como um gênero ficcional. Os dois autores partem de diários para a elaboração de seus romances. Tornada romance e ainda mantendo o relato de realidade, a forma do diário é uma forma notável do que se pode definir como antificção romanesca.

A partir da tríade ensino, pesquisa e extensão e de seus desdobramentos particulares na área dos estudos literários, André Cechinel e Fabio Akcelrud DurãoCECHINEL, André; DURÃO, Fabio Akcelrud. Emburrecimento e estudo. Revista Brasileira de Literatura Comparada, v.25, n.48, p. 188-198, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2596-304x20232548acfd
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, no artigo “Emburrecimento e estudo”, discutem o tema do emburrecimento, na esfera do campo acadêmico, como resultado de vários fatores, dentre os quais a hiperatividade ininterrupta e o empreendimento incessante tomados como fins em si mesmos. Com os olhares voltados para a prática universitária, o texto aborda a centralidade do didatismo e do tempo obrigatório exigido em sala de aula, o caráter produtivista da universidade neoliberal e a naturalização da forma artigo como veículo fundamental de escrita, bem como o recente caso da curricularização da extensão, propondo a ênfase no estudo como único antídoto possível para esse estado de coisas. Nesse contexto, avalia-se o lugar dedicado à literatura.

Bomba atômica, guerra, cartas, literatura e tecnologia são palavras-faróis para se adentrar no texto A “Tecnificação” da “alma” e a bomba: apontamentos sobre a correspondência entre Günther Anders e Claude Eatherly, de Nicola GavioliGAVIOLI, Nicola. A “tecnificação” da “alma” e a bomba: apontamentos sobre a correspondência entre Günther Anders e Claude Eatherly. Revista Brasileira de Literatura Comparada, v.25, n.48, p. 199-214, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2596-304x20232548ng
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, da Florida International University. Explosões atômicas e radiações - os grandes temores da Guerra Fria periodicamente repropostos pela literatura e pelo cinema ao imaginário coletivo - são temas deste ensaio, inspirado pela leitura de Burning Conscience (1961), coletânea de cartas trocadas entre o filósofo Günther Anders e Claude Eatherly, um dos pilotos responsáveis ​​pela destruição de Hiroshima. Para tanto, são revisitadas posições reflexivas de Elsa Morante, João Guimarães Rosa, Albert Camus e Günther Anders, entre outros, sobre as ligações entre tecnologia de guerra e mutações da "alma" humana. A parte central do texto concentra-se na troca de cartas entre Anders e Eatherly e analisa características estilísticas e temáticas dessa correspondência. A parte final do ensaio propõe alguns pontos de reflexão sobre retórica nacionalista, educação para a guerra, testemunho das vítimas e tema do perdão, instigados pela leitura de Burning Conscience.

Completando o elenco de textos da Secção Varia, tem-se o texto “Como Contar 80 tiros? A questão do primeiro disparo, segundo Clarice Lispector”, de Victor HermannHERMANN, Victor. Como contar 80 tiros? A questão do primeiro disparo, segundo Clarice Lispector. Revista Brasileira de Literatura Comparada, v.25, n.48, p. 215-230, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2596-304x20232548vh
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. O artigo debruça-se sobre a célebre crônica Mineirinho, de Clarice Lispector, para atualizar uma discussão sobre a Necropolítica no Brasil. Partindo de uma indagação sobre o tema da violência nas ruas e esquinas brasileiras, constata que, em 2019, membros das Forças Armadas desferiram mais de oitenta tiros contra uma família da zona oeste do Rio de Janeiro, assassinando Evaldo Rosa e Luciano Macedo. Para dar conta de mais outro episódio de violência policial, muitos intérpretes buscaram na crônica “Mineirinho”, de Clarice Lispector, uma maneira de se fazer da “contagem” dos disparos uma “contação” da história da necropolítica brasileira. No presente artigo, propõe-se uma leitura “jusliterária” do caso. O texto de Clarice mostra-se como ponto de partida de uma breve análise das mudanças na dinâmica da violência policial no Rio de Janeiro, desde o caso Mineirinho até a morte de Evaldo.

A terceira e última seção da revista intitula-se Resenhas e é composta por dois textos. O primeiro volta-se para a importante intelectual brasileira: Eneida Maria de Souza. Em “Eneida Maria de Souza e o hic et nunc de suas narrativas impuras”, Ana Lígia Leite e Aguiar LEITE E AGUIAR , Ana Lígia. Eneida Maria de Souza e o hic et nunc de suas Narrativas impuras. Revista Brasileira de Literatura Comparada, v.25, n.48, p. 231-234, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2596-304x20232548alla
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volta-se para o livro de ensaios Narrativas impuras, da escritora e pensadora mineira, lançado pela Companhia Editora de Pernambuco (Cepe editora), com escritos que vão de 2002 a 2019. Esses escritos contemplam uma gama extremamente variada de assuntos sobre os quais a autora se deteve nas últimas décadas, de modo que o exercício da crítica biográfica servisse não apenas como forma, mas que este campo crítico fosse igualmente conceituado. Pela perspectiva ubíqua dos artigos encontrados no volume, reveladora do olhar impuro com o qual Eneida Souza examinava o campo literário, ressalta-se o quão necessário se faz a leitura desses ensaios sobre culturas, no plural, especialmente na conjuntura sociopolítica atual do Brasil, na qual se constata, em muitos momentos, um retorno às formas rígidas de identitarismos e de nação.

Por fim, para fechar a revista e a última seção de Resenhas, encontra-se o texto “Uma obra necessária”, de Laura BrandiniBRANDINI, Laura. Uma obra necessária. Revista Brasileira de Literatura Comparada, v.25, n.48, p. 235-238, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2596-304x20232548lb
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. Nele, a autora debruça-se sobre a obra A Literatura Comparada no Brasil Hoje, organizada por Edgar Cézar Nolasco. Segundo a pesquisadora, o livro oferece um importante panorama das inquietações e das produções comparatistas atuais, que reforçam o caráter indisciplinado da disciplina. Constata que a obra, em questão, possui relevância, pois não se restringe a temas e a métodos pré-determinados, expandindo suas possibilidades analíticas a outros campos e saberes, fazendo-se, portanto, necessária como fundamentação teórica de grande parte dos estudos literários brasileiros neste momento.

Com esta coletânea de textos e perspectivas analíticas, a Revista de Literatura Comparada apresenta reflexões atuais sobre o campo literário e seus desdobramentos críticos, consoante as abordagens provenientes de olhares e lugares múltiplos, com enfoques teóricos diversificados. Diante disso, o volume não apenas traduz o vasto campo dos estudos comparados no Brasil e em outros países, com suas diversas pesquisas e profícuos debates sobre as inúmeras veredas literárias, como também possibilita conexões com outras áreas de saber, numa abordagem de cunho interdisciplinar, nomeadamente os estudos de caráter sociopolítico, biográfico, de narrativas em suas mais variadas faces, atentas às questões de gênero, classe e etnia. São desenhados, em cada artigo, rastros de pesquisas realizadas no âmbito das esferas acadêmicas, mas em constante diálogo com as demandas de nosso tempo e das sociedades atuais. A Revista de Literatura Comparada mostra-se, portanto, um importante documento de resistência acadêmica, que não se subjugou aos ataques políticos vividos nos últimos anos na direção das universidades brasileiras.

Referências

  • ALVES, Alcione Corrêa. Tatiana Nascimento, pensamento amefricano no presente. Revista Brasileira de Literatura Comparada, v.25, n.48, p. 11-27, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2596-304x20232548aca
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  • BRANDINI, Laura. Uma obra necessária. Revista Brasileira de Literatura Comparada, v.25, n.48, p. 235-238, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2596-304x20232548lb
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  • CARVALHO, Sueleny Ribeiro. Carmen, do estereótipo ao desafio: a personagem para além da obra de Prosper Mérimée. Revista Brasileira de Literatura Comparada, v.25, n.48, p. 156-169, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2596-304x20232548src
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  • CECHINEL, André; DURÃO, Fabio Akcelrud. Emburrecimento e estudo. Revista Brasileira de Literatura Comparada, v.25, n.48, p. 188-198, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2596-304x20232548acfd
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  • COUTINHO, Eduardo F. Da representação à busca de expressão: visões do indígena na produção literária brasileira1. Revista Brasileira de Literatura Comparada, v.25, n.48, p. 81-93, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2596-304x20232548efc
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  • DI EUGENIO, Alessia. Eredità e riappropriazioni indigene decoloniali dell’antropofagia di Oswald de Andrade. Revista Brasileira de Literatura Comparada, v.25, n.48, p. 28-38, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2596-304x20232548ae
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Editado por

editor-chefe: Rachel Esteves Lima
editor executivo: Cássia Lopes Jorge Hernán Yerro

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    15 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2023
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