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O feitiço em relação: notas etnográficas sobre agressão e morte numa comunidade Magüta (Alto Solimões - Brasil)

THE SPELL IN REGARDING: ETHNOGRAPHIC NOTES ON AGGRESSION AND DEATH IN A MAGÜTA COMMUNITY (ALTO SOLIMÕES – BRAZIL)

EL HECHIZO EN RELACIÓN: APUNTES ETNOGRÁFICOS SOBRE LA AGRESIÓN Y LA MUERTE EN UNA COMUNIDAD MAGÜTA (ALTO SOLIMÕES – BRASIL)

RESUMO

Este artigo aborda as acusações de feitiçaria, bem como as técnicas utilizadas em supostos enfeitiçamentos, num grande aldeamento da etnia Ticuna, autodenominada Magüta (Alto Solimões, Brasil). Será explorada a figura do pajé, yuücü, em seu potencial ambíguo, que pode implicar tanto em cura, quanto em morte. Em seguida, a partir de um momento particular de crise vivenciado no contexto etnográfico, qual seja uma série de mortes por enforcamento ocorridas em um curto período, objetiva-se esboçar uma teia de relações composta por agentes diversos, que podem surgir na tentativa de se encontrar o autor do feitiço. Entra em cena aqui uma “nova” técnica de enfeitiçamento que estaria sendo praticada através de um objeto exógeno, o livro de magia de São Cipriano. Por fim, buscar-se-á avançar em uma reflexão acerca do contexto em que se dão tais acusações de feitiçaria e suas implicações na contemporaneidade ticuna.

PALAVRAS CHAVE:
Amazônia; cosmologia; feitiçaria; xamanismo

ABSTRACT

This article intends to address the accusations of witchcraft, as well as the techniques used in alleged bewitching, in a large village of the Ticuna ethnic group, that identify themselves as Magüta (Alto Solimões, Brazil). The figure of the shaman, yuücü, will be explored in his ambiguity, which can imply both healing and death. Then, having as reference a particular moment of crisis experienced in the ethnographic context, which is a series of deaths by hanging that occurred in a short period, the objective is to outline a web of relationships composed of different agents in attempt to find the author of the spell. Here comes a “new” bewitching technique that was supposedly being practiced through an exogenous object, the São Cipriano magic book. Finally, the aim is to reflect on the context in which such accusations of witchcraft are made and their implications for contemporary Ticuna.

KEYWORDS :
Amazonia; cosmology; sorcery; shamanism

ABSTRACT

Este artículo aborda las acusaciones de brujería, así como las técnicas utilizadas en el supuesto hechizo, en una gran aldea de la etnia ticuna, autodenominada Magüta (Alto Solimões, Brasil). La figura del chamán, yuücü, será explorada en su potencial ambiguo, que puede implicar tanto la curación como la muerte. En seguida, a partir de un momento particular de crisis vivido en el contexto etnográfico - una serie de muertes por ahorcamiento ocurridas en un período corto -, el objetivo es perfilar una trama de relaciones compuesta por diferentes agentes, que pueden surgir en un intento de encontrar al autor del hechizo. Aquí surge una “nueva” técnica de hechizo que se practica a través de un objeto exógeno, el libro mágico de São Cipriano. Finalmente, se intentará reflexionar sobre el contexto en el que se realizan tales acusaciones de brujería y sus implicaciones para los ticuna contemporáneos.

PALABRAS CLAVE:
Amazonía; cosmología; brujería; chamanismo

UMA COSMOPOLÍTICA ESPECÍFICA

Entre os Ticuna - ou Magüta1 1 Os Magüta habitam a tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia, no Alto Rio Solimões. No estado do Amazonas, a população seria de cerca de 53.544 pessoas, enquanto na Colômbia e no Peru, 8.000 e 6982, respectivamente, segundo dados do Instituto Socioambiental (TICUNA, 2018). , como se autodenominam - o yuücü, ou pajé2 2 Na maioria das vezes, opto por empregar o termo “pajé”, sendo fiel à forma nativa de traduzir para o português a figura do xamã Ticuna. Mais à frente, a depender do contexto, utilizo os termos compostos pajé-feiticeiro e pajé-curador para marcar a intencionalidade do indivíduo referido num determinado contexto, o que ficará mais claro adiante. Vale apontar que outro termo que ouvi para pajé foi yüu’ĩ. , na tradução nativa no lado brasileiro, se relaciona com os espíritos das árvores e/ou com os ngo’ogü3 3 Categoria de seres nefastos que, desde os tempos primevos causam morte aos Magüta, conforme relatam diversos mitos. de uma forma dúbia, podendo tal relação ser de predação ou não, ou seja, se pautar tanto na intenção de provocar a morte, quanto na de promover a cura. Em outras palavras, um mesmo yuücü pode matar uma pessoa e curar outra. Entretanto, o fato de ele possuir o conhecimento - ou seja, a capacidade de introduzir espinhos ou flechinhas carregadas de doenças no corpo de sua vítima - não significa que faça uso dele. Por outro lado, se não possui esse poder, pode adquiri-lo em qualquer momento de sua vida. Essa dubiedade é central para abordarmos, no presente artigo, algumas das relações que podem atravessar acusações de feitiçaria no grande aldeamento em questão. Estaetnografia4 4 O trabalho de campo foi majoritariamente realizado entre os anos de 2009 e 2012, na aldeia Campo Alegre, cujo território é pertencente ao município de São Paulo de Olivença, Amazonas, na ocasião de meu processo de doutoramento concluído no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA-IFCS-UFRJ) no ano de 2014, sob orientação da Profª Dra. Els Lagrou, a quem sou profundamente grata (Cf. SILVA-BUENO, 2014). O presente artigo apresenta o argumento central defendido na referida tese publicada naquele ano. Campo Alegre é uma das grandes comunidades ticuna do lado brasileiro, contando com um contingente populacional de aproximadamente 2.734, segundo dados do ano de 2013, da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), disponíveis no Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena (SIASI) (cf. SIASI, 2013). busca, nesse sentido, compreender o xamanismo ticuna e suas transformações a partir, especialmente, de um momento de crise, em que ocorreram uma série de mortes por enforcamento, que teriam sido causadas por enfeitiçamento, conforme a percepção predominante. É preciso ressaltar, desde já, que o contexto referido implica também uma modalidade contemporânea de (acusação de) feitiçaria, qual seja aquela realizada pelo livro de magia de São Cipriano, como veremos.

Nas palavras do célebre etnólogo alemão Curt Nimuendaju (1952NIMUENDAJU, Curt. 1952. The Tukuna. Berkeley and Los Angeles, University of California Press.), “one may constantly observe that among the Tukuna no shaman is ever free from suspicion”. Justamente para desviar e desambiguar essa suspeita iminente é que existem também os termos “curador” (ngietacü5 5 Ngie significa “chupar”, enquanto ta+cü significa “aquele que”. ) e “feiticeiro” (yuücü), que diferenciam as intenções daquele que detém em seu corpo o poder xamânico. Em português, ouvi a referência a outrem como “meio pajé”, tanto no sentido de ser curador, quanto no de (poder) saber fazer o mal. Tal menção evidencia que, em determinadas situações, ser um “pajéinteiro” possa ser bastante perigoso6 6 Na literatura etnológica a posição ambígua do pajé é antes a regra do que uma exceção. O fato de ser pajé se tratar antes de uma condição, uma virtualidade e um processo do que uma instituição é visível, por exemplo, na literatura pano (Ver Lagrou, 1998, 2007). . É corriqueiro, ao se comentar o conhecimento maléfico de um yuücü, se sustentar que o próprio já tenha se gabado do seu saber e dos seus feitos, o que ocorre, geralmente, num momento de desavença causado por embriaguez, durante ou depois de uma festa. O suposto feiticeiro pode também carregar uma fama adquirida em outras aldeias onde já tenha morado e causado supostos danos. Conheci uma senhora, vinda de uma comunidade do lado peruano7 7 Entre os Ticuna com quem convivi, era usual a associação de coisas consideradas pouco ou nada virtuosas com o Peru. Essa associação não é acidental. Conforme conta o relato mítico, após a separação dos gêmeos primordiais, o irmão nada virtuoso Ipi rumou para o lado peruano. Nessas condições, frequentemente se relacionava ao Peru alguns aspectos de Ipi, como o nariz grande e o aspecto “sujo”, além de práticas e fenômenos condenáveis, como por exemplo um pequeno surto de gripe, os maus hábitos de cultivar coca para a venda ou, o que é visto como mais grave, a proveniência do livro de magia de São Cipriano. com sua família, que carregava essa fama de feiticeira - dela contava-se casos em que, embriagada, teria confessado seus atos prévios e formulado ameaças a alguns de seus desafetos.

Uma vendeta contemporânea provinda de uma acusação de feitiçaria busca identificar o autor do feitiço e, possivelmente, revidá-lo num contrafeitiço, mobilizando agentes diversos, numa ampla rede de relações: o acusado, a vítima, as famílias, o(s) pajé(s) acionado(s) para identificar o agressor, a parcela de não-humanos acionados pelo feitiço (os ngo’ogü, dentre outros), o(s) cacique(s), o pastor da Igreja Batista, profetas, a polícia indígena8 8 Um fenômeno recente - e com ampla veiculação midiática -, presente em diversas aldeias ticuna, foi o surgimento de uma “polícia nativa”, a PIASOL (Polícia Indígena do Alto Solimões). A organização foi criada em meados de 2008 com o objetivo de diminuir as ocorrências de episódios de violência (como brigas e furtos) em virtude do uso de álcool e drogas, principalmente nos grandes aldeamentos ticuna, como Umariaçu I e II e Belém do Solimões (Tabatinga - AM); Feijoal (Benjamin Constant -AM) e Campo Alegre (São Paulo de Olivença - AM). Em 2009, a PIASOL foi bastante divulgada por causa do assassinato de dois índios, uma dessas mortes tendo sido creditada a ela, mas essa autoria não foi comprovada. A vítima teria sido um pajé acusado de enviar feitiços para membros de Campo Alegre e que, e, por isso, foi morto carbonizado. Esses casos chamaram a atenção da Polícia Federal, que abriu inquérito para investigá-los. Vale notar que, em 2010, pude verificar a presença de um policiamento nativo na aldeia de Arara, do lado colombiano, mas que não era da mesma organização do lado brasileiro. Sobre a trajetória dessa polícia, ver Mendes (2014), pesquisadora ticuna que esmiuça a rede de relações dos indivíduos que se posicionavam politicamente quando decidiram criar a guarda-indígena. e seu delegado, dentre outros. Aliás, tendo em vista a forte presença da igreja nesse contexto específico, é possível incluir também, naquela parcela de seres não-humanos, o Espírito Santo e o Diabo, em especial quando o mal causado tem como veículo as receitas do livro de São Cipriano.

Neste trabalho, pretendemos mostrar como o contexto em que se configuram as acusações aponta para diversas elaborações acerca das mudanças sociais que os ticuna vivenciam na contemporaneidade. Em estudo comparativo a partir das etnografias sobre o xamanismo nas Guianas, Renato Stutzman (2005: 153) retoma uma elaboração de Manuela Carneiro da Cunha (1998CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. 1998. “Pontos de vista sobre a floresta amazônica: xamanismo e tradução”. Mana, v. 4, n. 1: 7-22. https://doi.org/10.1590/S0104-93131998000100001.
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) na qual a autora afirma que o xamanismo é uma atividade de tradução, que pode ser transposta do nível sobrenatural ao nível sociopolítico, na medida em que pode implicar um ponto de vista sobre uma rede de relações mais global. O xamanismo, nesse sentido, se mostra como mais uma fonte privilegiada de ação política. O que discorre Stutzman em referência ao contexto guianense cabe para as transformações sofridas por diversas etnias ameríndias na atualidade:

A referência a um tal mundo repleto de inimigos ferozes, agentes patogênicos e xerimbabos metafísicos é por demais presente nas cosmologias das populações guianenses, mesmo quando essas vêem-se fortemente atadas a universos religiosos alheios, como o do catolicismo e do protestantismo, e mesmo quando os xamãs, verdadeiros diplomatas do sobrenatural, têm o seu lugar eclipsado, por exemplo, por pastores protestantes ou médicos ocidentais. Com efeito, comunicar-se e negociar com esses agentes consiste num meio de assegurar a qualidade da vida social que se vê não raro assaltada por ameaças de ataques ou agressões, expressas como na possibilidade do patamar celeste desabar sobre a terra e, assim, dizimar a humanidade atual ou na irrupção de epidemias capazes de assolar populações inteiras (Stutzman, 2005: 152).

O risco de um fim trágico para a atual humanidade é iminente também entre os Magüta. Aponta o relato mítico que foram diversos os cataclismos ocorridos nos tempos de seus ancestrais. Os atuais Magüta descenderiam das populações dizimadas pelas catástrofes, tais como grandes inundações e incêndios, provocadas pela sucessão de incestos. Acerca dos vestígios de tempos de destruição que resistem sob novas capas geológicas, o antropólogo francês Jean-Pierre Goulard, que há décadas realiza pesquisa etnológica entre os Ticuna, destaca que:

el temor actual de los ticuna no es outro que el de la repetición de un cataclismo. Este peligro está evocado particularmente durante unos ritos de puberdade cuya ausencia de celebración provocaria una catástrofe. (...) La mayoría de los ticuna considera hoy en día que el na-ane9 9 Em linhas gerais, Naane pode ser traduzido como universo, cosmo. O linguista ticuna Abel Angarita (2013: 11-12), em sua dissertação de mestrado, define naane como, num plano macro, espaço ou território, que inclui tudo que existe no universo, no cosmos e na natureza, incluindo o ser humano. Já numa perspectiva micro, se trata de espaços ou territórios específicos e determinados que são pequenos (como a roça, lugar de cultivo dos alimentos) e estão integrados a um macro naane. Existem os naane paralelos invisíveis, como os territórios habitados pelos seres ü’üne, imortais, como veremos logo a seguir. Cada ser/corpo conforma um naane e dentro de cada ser/corpo existem outros naane. “Eso significa que Naane es humano vivo que se transforma en todo momento. Concebir este modo de existencia es negarse a separarse de la naturaleza, lo que conlleva a la adaptación y a la coexistencia en un Naane amazónico” (ANGARITA, 2013:12). Para mais desdobramentos da acerca da relação entre corpo e território, tal qual esboçado por Angarita (2013), ver Matarezio Filho (2017). es “viejo” y se desgastó debido a la falta de respeto a las prohibiciones. Concluyen que por consecuencia, si “el mundo es viejo... este mundo se va a caer encima de nosostros” (Goulard, 2009GOULARD, Jean-Pierre. 2009. Entre mortales e Immortales: el ser según los Ticuna dela Amazonía. Lima, Caaap-Ifea.: 50).

As proibições mencionadas acima se relacionam, especialmente, aos modos de conjugalidade magüta ensinadas, segundo o relato mítico, pelo gêmeo virtuoso Yo’i ao pescar seu povo nas águas do Eware, no igarapé Tunetü (igarapé São Jerônimo). O relato mítico apresenta a origem da organização da sociedade em clãs (cüa) que se agrupam em duas metades e da regra matrimonial que prescreve ocasamento entre membros de cada uma delas, ou seja, preconiza que membros das “nações de pena” (ãtchiü) devem se casar com membros das “nações sem pena” (ngetchiü). Goulard (2009GOULARD, Jean-Pierre. 2009. Entre mortales e Immortales: el ser según los Ticuna dela Amazonía. Lima, Caaap-Ifea.) menciona também a negligência em relação ao cumprimento da reclusão da menina quando tem sua menarca. Vários mitos narram histórias de meninas que burlaram a reclusão e tiveram encontros desastrosos com algum ngo’o, que fora atraído pelo forte odor do sangue menstrual. Quando a reclusão é concluída com sucesso, é realizado o ritual, yüü, momento em que toda a comunidade consegue um acesso controlado ao mundo dito ü’üne10 10 Segundo a cosmologia ticuna, antigamente o mundo era encantado ou, como afirma Goulard (2009), a terra era imatura, “verde”, em contínua transformação e habitada por uma só população ü’üne, imortal. “Tal situación implica que existía un solo modo de vivir fundamentado en una indistición ontológica que produce que todos los Seres se confundan” (Goulard, 2009: 43). , marcado pela condição de imortalidade, característica dos tempos primevos, mas ainda presente nos tempos atuais em locais e seres não-humanos referidos também, em português, como “encantados”. No aldeamento em que esta pesquisa se concentrou, pouco se estava realizando rituais de moça nova, muito em virtude da presença evangélica. Não foram poucas as vezes em que vários interlocutores creditaram à desobediência às regras de Yo’i o fato de os humanos se encontrarem cada vez mais distantes de locais e seres que ainda conservam seu estado imortal, os quais - em um tempo não tão distante - podiam encontrar mais frequentemente não só nos rituais, mas também em excursões ao “centro do mato”, ou seja, à densa floresta além das roças. Ainda sobre a nostalgia que envolve o acesso mais facilitado ao estado ü’üne, é interessante notar sua presença também nos movimentos messiânicos ocorridos nas primeiras décadas do século XX, narrados por Curt Nimuendaju (1952NIMUENDAJU, Curt. 1952. The Tukuna. Berkeley and Los Angeles, University of California Press.) e Maurício Vinhas de Queiroz (1963VINHAS DE QUEIROZ, Mauricio. 1963. “’Cargo Cult’ na Amazônia: observações sobre o milenarismo Tukuna”. América Latina, v. 4: 43-61.). Nimuendaju (1952NIMUENDAJU, Curt. 1952. The Tukuna. Berkeley and Los Angeles, University of California Press.) relaciona quatro características principais que servem de base para os movimentos messiânicos entre os Ticuna:

(1) A personalidade de dyoi’11 11 Neste artigo grafado como Yo’i, como já citado anteriormente. , o criador e fundador da cultura tribal; (2) o sentimento de havê-lo ofendido através da corrupção da cultura espiritual primitiva (não material!) devido às influências da civilização; (3) a possibilidade de repetição dos cataclismas dos tempos primevos; (4) a existência de imortais e sua tendência a aparecerem para pessoas em idade pubertária (Nimuendaju, 1952NIMUENDAJU, Curt. 1952. The Tukuna. Berkeley and Los Angeles, University of California Press.: 137, traduzido pela autora). Tal explicação do etnólogo alemão, apesar de sucinta em seu didatismo, contém em si várias questões que já mencionamos e que ainda permearão a presente reflexão. Não à toa, no momento de crise instalada pelos casos de morte por enforcamento, entremeados pelas acusações de feitiçaria, que será descrito mais a frente, o trecho da Bíblia mais citado pelos profetas batistas ticuna - e repetidos à exaustão por vários fiéis que tentavam dar conta dos acontecimentos- foi o Evangelho Segundo Matheus, capítulo 24, que anuncia as guerras entre as nações, seguidas pelo fim do mundo.“Logo após estes dias de tribulação, o sol escurecerá, a lua não terá claridade, cairão dos céus as estrelas e as potências dos céus serão abaladas. Então aparecerá no céu o sinal do Filho do homem” (Mt, 24, 29-30, BÍBLIA, 2000BÍBLIA Sagrada. 2000. São Paulo, Editora Ave Maria. 25ed.: 1314). Como veremos, o diagnóstico xamânico, corroborado pelas profecias batistas, aponta que o aparecimento dos espíritos maléficos ngo’ogü, causadores dos enforcamentos, era prova também do afastamento do grupo do modo de vida ensinado por Yo’i, que orientava o povo pescado na forma correta de se casar, de se alimentar, de se vestir, de se relacionar com os familiares, e assim por diante. A seguir, buscarei esboçar algo da construção do corpo do pajé e a ambiguidade inerente à sua potência agentiva, antes de adentrar o mencionado momento de crise.

A CONSTRUÇÃO DO YUÜCÜ

O conhecimento12 12 Goulard (2009: 82) aponta que o termo yuücü implica em alguém que possui um (ou vários) yuü, que se refere a um conhecimento ou propriedade de uma espécie, planta, animal ou “dono” ( -cü, marcando a terceira pessoa). Segundo Matarezio Filho (2019: 219), em recente reflexão sobre o xamanismo ticuna, os yuü após serem ingeridos pelo iniciando vão se reproduzindo dentro do pajé, “criando filhos dentro dele”, sendo guardados numa espécie de paneirinho (wotüra ou paturuna) invisível localizado em seus flancos. do xamã emerge de suas relações com os espíritos das árvores, mas nem todas as árvores têm espíritos. Também, espíritos das árvores mortas podem estar presentes em qualquer lugar e ferir aqueles com quem se encontram. Uma pessoa com febre sente a flecha de um espírito adentrar seu organismo, como num impulso dado com as pontas dos dedos. A terapêutica xamânica visa não só a cura, mas a identificação da causa e/ou causador da doença. O pajé-curador traz de volta a alma da pessoa enferma através da experiência onírica: ele realiza a cura através de seus sonhos, viajando até o espírito maléfico e trazendo a alma do doente de volta. Além disso, pode retirar do corpo do doente diversos objetos patogênicos através de sucção.

Assim como entre diversos grupos amazônicos, entre os Ticuna toda doença tem um causador. Ou, como afirma Chaumeil (1993CHAUMEIL, Jean-Pierre. 1993. “Del Proyectil al vírus: el complejo de dardos-mágicos en el xamanismo del oeste amazónico”. In: PINZON, C.; SUAREZ, R.; GARAY, G. (orgs.). Cultura y salude en la contruccion de las Americas. Bogotá, Instituto Colombiano de Cultura, pp. 261-277.: 263) em seus estudos sobre os Yagua, vizinhos do lado peruano, a maioria das sociedades tradicionais ao redor do mundo tende para concepções exógenas ou exteriorizantes para a enfermidade, acentuando mais as causalidades sociais e intencionais, que as etiologias impessoais e não sociais. Entre os Ticuna, quando é tida como certa a introdução de um corpo estranho no organismo de um paciente, em que a dor localizada permite determinar o lugar do impacto do mal, o diagnostico xamânico é feitiçaria. Assim, um pajé é acionado para retirar o feitiço e descobrir quem é o responsável por enviar o mal, o motivo de ele estar fazendo isso e, por fim, negociar com ele o término do conflito. Vale destacar que, muitas vezes, o pajé não trabalha sozinho, mas conta com a ajuda dos chamados em português de “banqueiros”, seus ajudantes-pupilos que o auxiliam no processo de cura. Às vezes o pajé cobra deles pelo conhecimento. Eles ajudam o pajé segurando o tabaco, soprando em algumas partes do seu corpo para o espírito auxiliar vir e ir embora, para que não aconteça de a entidade ficar. Mas tem pajé que nem precisa disso para se comunicar com os espíritos, pois consegue de forma espontânea, tamanho seu poder. O processo de investigação, diagnóstico e negociação pode resultar na morte do acusado da autoria do suposto feitiço pelos parentes da vítima.

Qualquer pessoa que deseje se tornar um xamã deve ser colocada em contato com os espíritos de certas árvores, que possuam espinhos, como a pupunheira, por outra pessoa já iniciada. Os dados colhidos por Nimuendaju (1952NIMUENDAJU, Curt. 1952. The Tukuna. Berkeley and Los Angeles, University of California Press.: 101) apontam que alguns xamãs começam a educar seus filhos quando os meninos têm seis anos de idade. Geralmente, no entanto, o aspirante se encaminha para um mestre de fama reconhecida, a quem ele paga por instrução. Esse professor começa suas instruções somente depois que o sol se põe. Dentro de apenas dois meses, o discípulo adquire o conhecimento necessário para curar através de sucção e da aplicação de ervas. Durante esse período de instrução, ele deve se abster de intercurso sexual e deve seguir uma dieta específica, não podendo comer qualquer ave, apenas peixes que não sejam de couro liso, e bananas verdes que sejam retas em seu formato. Toda sua comida deve conter muito pouco sal e deve se abster completamente de pimenta, gorduras, doces e bebidas alcoólicas. Deve também evitar a exposição ao sol. Atualmente, segundo aponta Goulard (2009GOULARD, Jean-Pierre. 2009. Entre mortales e Immortales: el ser según los Ticuna dela Amazonía. Lima, Caaap-Ifea.: 82), os candidatos a yuücü são muitas vezes ex-doentes que se recuperaram depois de um período de cura. O xamã que o curou se propõe a iniciá-lo por notar certa aptidão para tal. Além disso, o então paciente já terá tido contato com pelo menos um espírito que poderá vir a seu assistente futuro, podendo adquirir seu conhecimento de forma mais facilitada.

Como descreve Nimuendaju (1952NIMUENDAJU, Curt. 1952. The Tukuna. Berkeley and Los Angeles, University of California Press.: 101-102), a iniciação se dá em duas partes: na primeira, o mestre apresenta ao discípulo uma porção de substâncias consideradas xamânicas alojadas em seu corpo; na segunda, ele o coloca em contato com os espíritos das árvores. O discípulo deve beber uma cuia de infusão de tabaco para vomitar todas as impurezas adquiridas através do contato sexual, depois ele deve lavar sua boca. A infusão o deixa em estado de letargia. O mestre, massageando seu próprio corpo, direciona para sua boca todas as substâncias mágicas que possui, vomitando-as na forma de takaka (ou ataka; na grafia do autor: ta:’kaka), um preparado de mandioca. Segurando o takaka na palma de sua mão, ele o mostra para seu discípulo, convidando-o a escolher o poder que deseja. No dia seguinte, o mestre ensina ao pupilo os cantos dos espíritos das árvores, convocando um deles para visitar o neófito durante à noite. O espírito aparece em sonho na forma de uma criança de cerca de quatro anos de idade, lhe dando uma pequena porção de infusão de tabaco a ser ingerida. Então, o discípulo indica ao espírito seu desejo de tê-lo como assistente e aprende seu canto. Quando a iniciação é completada, o mestre aconselha o aprendiz para que ele nunca abuse de seus poderes, utilizando-os exclusivamente contra “inimigos”, isto é, contra feiticeiros do mal - agindo desse modo, retardaria sua morte.

Para um xamã, entretanto, a tentação de empregar seus poderes contra qualquer objeto de desafeto pessoal seria grande e, se não recebeu ainda qualquer substância mágica de efeito maligno, ele pode requisitá-la para um dos espíritos das árvores espinhosas. No pé de uma dessas árvores, o pajé/feiticeiro faz uma clareira, e, em cima dela, coloca uma pequena cuia com um tabaco enrolado na casca mais interior do tauari. Na manhã seguinte, ele encontra no pote o takaka, que contém (num estado alterado) o espinho requerido, que ele engole. Os espinhos - as “flechas” do feiticeiro - são colocados no seu antebraço direito; o arco no esquerdo. Mas ele não atira seus projéteis como um lançamento de um arco, ele concentra a substância mágica em seu polegar direito e, dando uma pancada com a unha, envia os espinhos na direção da vítima. Uma interlocutora me descreveu esse processo como um “sopro” do feiticeiro que faz com que o espinho (ou outro objeto, como um pedaço de pau) siga uma linha invisível (como a linha de fumaça que o avião deixa no ar, como ela exemplificou) e vá parar dentro do corpo da vítima. Alguns xamãs vomitam o takaka, lançando-o com sua mão. Os espinhos, sempre masculinos e femininos, penetram o corpo invisivelmente e, geralmente, de forma que não se sinta; lá eles se reproduzem em grande número, se espalhando por todo o corpo, causando a morte, a menos que outro pajé consiga intervir a tempo. O pajé também pode provocar a morte fazendo aparecer uma cobra ou ele mesmo se transformando em uma, ou causando a loucura e provocando o que os não-indígenas costumam chamar de “suicídios”13 13 Várias elaborações recentes em Etnologia estão revisando a utilização do termo “suicídio” para o contexto ameríndio, tendo em vista que essa categoria não se mostra adequada para esse contexto específico (Cf. Aráuz e Aparicio, 2017). Entre os Ticuna, como veremos, tal modalidade de morte é, a partir do diagnóstico xamânico, tomada como homicídio, um ataque espiritual via enfeitiçamento.Tendo em vista os objetivos do presente texto, não desenvolverei aqui a temática dos suicídios-homicídios, que foram desenvolvidos em outro trabalho (Silva-Bueno, 2017a). Também sobre esse tema entre os Ticuna, ver Erthal (1998, 2001) e Magalhães (2014). .

O relato de um ancião, Seu Adolfo, ajuda a ilustrar a iniciação e construção do corpo de um pajé, tendo como referência o tempo mítico. Segundo ele, nos tempos primevos, quando o mundo era sagrado, o único interesse do pajé era a cura. Sobre a iniciação do yüucü, ele conta que a mãe da criança pode decidir se o filho será pajé quando crescer. Caso ela queira, deverá procurar o pajé, que colocará o tataka no leite para a criança tomar. Pegará uma sardinha comprida (u’pa) assada e uma banana reta, enfiada no meio de um pau pequeno, e dará para a criança comer, sem que o peixe perca a escama e sem se quebrar nenhum espinho; e a banana deverá ser comida por inteiro, sem ser quebrada com a mão. Se sobrar banana ou sardinha, os restos devem ser levados para a casa do pajé. No porto (turewa), o pajé lança os resíduos na água e a sardinha se transforma novamente em peixe e a banana se transforma em traíra (pongó). Nesse momento de metamorfose da banana e da sardinha, a criança já é considerada pajé, está “formada”. Esse é o considerado “pajé verdadeiro”, que vai curar as pessoas e que sabe de tudo: é o pajé bom. Segundo Seu Adolfo, esse pajé não precisa “chupar” a doença, nem lança mão de grandes recursos - como a cachaça, que é muito utilizada atualmente-, para curar uma pessoa enferma. Ele só precisa de um pequeno towari (tabaco pequeno enrolado num pedaço de tauari). Na terapêutica empregada pelo “pajé verdadeiro”, basta entoar os cantos, soprar a fumaça do tabaco e fazer os gestos, como se estivesse medindo o corpo do doente.

Assim como qualquer um pode ser pajé, qualquer pajé pode deixar de sê-lo. Para abandonar esse ofício, é preciso pedir para o mestre que o iniciou que desfaça o processo, tirando de seu corpo o takaka. Outra opção é comer muita pimenta para expelir essa substância. Além do takaka, o pajé também pode possuir em seu corpo tchũta, que é aquilo que “entra na vítima”, que pode provocar enfermidade e levar à morte. Nimuendaju (1952NIMUENDAJU, Curt. 1952. The Tukuna. Berkeley and Los Angeles, University of California Press.) não cita esse termo, mas é possível afirmar que a categoria engloba os “espinhos”, “flechas” e demais objetos patogênicos. Matarezio Filho (2019MATAREZIO FILHO, Edson Tosta. 2019. “Do resgate de almas à execução do feiticeiro: notas sobre o xamanismo Ticuna”. Sociedade e Cultura, v. 22, n. 1: 218-239. https://doi.org/10.5216/sec.v22i1.49691
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224) ressalta a importância, no processo de cura14 14 O autor, em seu artigo, apresenta dois interessantes relatos: o primeiro, uma sessão xamânica de retirada do feitiço do corpo de uma enferma; o segundo, o caso do desaparecimento de um homem na floresta e o empenho xamânico - e evangélico, em concorrência -- para resgatar a alma do mesmo (Matarezio Filho, 2019). , da ingestão da cachaça e do canto para o amolecimento do espinho causador do mal no corpo do doente. Segundo ele,“ao amolecer o ‘espinho’, ele sai com mais facilidade. Tanto assobiar, quanto cantar dão no mesmo, têm o mesmo efeito sobre o feitiço. O álcool é passado no corpo do paciente para o tchũta ficar de porre e sair mais facilmente”.

A presença de tais objetos é bastante estendida nas terras baixas amazônicas. Sobre a grande variedade de representações possíveis dos objetos patogênicos, Chaumeil (1993CHAUMEIL, Jean-Pierre. 1993. “Del Proyectil al vírus: el complejo de dardos-mágicos en el xamanismo del oeste amazónico”. In: PINZON, C.; SUAREZ, R.; GARAY, G. (orgs.). Cultura y salude en la contruccion de las Americas. Bogotá, Instituto Colombiano de Cultura, pp. 261-277.: 263-4) atenta para as flechas (em seus termos, “dardos”), que constituem objetos de elaborações simbólicas muito complexas em certos grupos, chegando a aparecer como a modalidade essencial de agressão e de enfermidade (“por penetração” e por “rapto de almas”), assim como de terapia. O papel do xamã está em interceptar esses “projéteis teledirigidos”, que somente estão visíveis aos seus olhos, capturá-los, destruí-los ou devolvê-los ao seu presumido lugar de origem.

Nota-se, portanto, que as flechas, enquanto objetos estendidos do corpo do xamã, são entidades impregnadas de agência e intencionalidade, suscetíveis de crescer, reproduzir-se e deslocar-se rapidamente em grandes distâncias - não à toa são comparadas com raios ou aviões, conforme me foi narrado. Ao serem iniciados, os xamãs obtêm substâncias patogênicas (e terapêuticas) de instâncias sobrenaturais, as quais são elas mesmas fontes de enfermidades, já que possuem flechas-espinhos15 15 O mesmo ocorre entre os Matsiguegua (Peru oriental) como etnografou Baer (1994: 221). O “bruxo”, matsika’nari, carrega em seu peito sua i’matsika, substâncias patogênicas mágicas que aparecem tanto como elementos visíveis (pedras, espinhos, folhas, ossos), quanto como potências espirituais ou como espíritos portadores da morte, aspecto sob o qual são invisíveis, “parecidas com o vento”. O matsika’nari sopra esta substância e a aloja no peito da vítima, matando-a. Ele obtém a capacidade de enfeitiçar através de sua estreita relação com a alma da samaumeira (wotchine): ele bebe a seiva dessa árvore, o que lhe confere poder, além de beber ayahuasca. .

Entre os Yágua, o contato com os espíritos é realizado a partir de alucinógenos, especialmente a ayahuasca. Entre os Ticuna também é possível adquirir poderes patogênicos através da iniciação direta via contato com os espíritos das árvores, incluindo dentre tais árvores as da ayahuasca e as do sanango. Segundo me relatou um interlocutor, uma pessoa pode fazer mal para uma outra de diversas formas através da ingestão da infusão de certas ervas. Ela nem precisa pedir para o “dono” da erva para que direcione o mal a alguém: basta ingeri-la com os pensamentos voltados para tal. Quando se toma sanango, o “dono” da planta aparece e pergunta ao iniciando se ele quer fazer o bem ou o mal. A partir de sua escolha, o “dono” lhe confere tal poder. O sanango também possui grande potencial curativo e quem o toma sustenta seu poder para o resto da vida. Já a ayahuasca serve para a purificação de quem a ingere. Se a pessoa leva uma vida de bebedeiras, de conflitos familiares e incestos clânicos, a ingestão da cocção da raiz limpará seu corpo - tanto é que a fará vomitar, urinar e defecar. Através dessa bebida alucinógena, o iniciando encontra também o“dono” desse cipó, que o confrontará com essa má conduta e o livrará da “sujeira” do seu corpo16 16 Normalmente a ayahuasca é produzida da cocção do cipó psychotria viridis com a folha da chacruna. É a combinação destas duas espécies a responsável pelo forte efeito visionário da bebida (ver, entre outros, Lagrou, 2007). .

Um pajé pode mandar um mal para uma pessoa, uma família ou para uma aldeia inteira. Pode-se afirmar que o sentimento primeiro que motiva a feitiçaria é a inveja17 17 A associação entre a ação do feiticeiro e o sentimento de inveja foi igualmente notado entre os Jê (ver, por exemplo, Carneiro da Cunha, 1978) e entre os Pano (Kensinger, 1995; Lagrou, 2007) com relação ao dauya. Segundo Barcelos Neto (2004), entre os Wauja do Xingu, os feiticeiros são movidos pela raiva e pela inveja, e não pelo desejo de poder político. - de algum bem que a vítima possa ter adquirido (casa nova, moto, pequena mercearia na aldeia, entre outros) ou por algum cargo remunerado (professor, agente de saúde, etc.). A raiva, que pode se desdobrar em vingança, também pode motivar a feitiçaria. Uma pessoa pode se encolerizar em relação a outra por uma atitude que tenha considerado sovina, por exemplo, e resolver se vingar do mesmo. Esses sentimentos também estão entre aqueles que, na maioria das vezes, são apontados como causadores de outro tipo de enfeitiçamento que viria sendo realizado nos últimos tempos: aquela oriunda do livro de magia de São Cipriano18 18 O livro de São Cipriano é um livro de bruxedos e encantamentos de grande circulação no Brasil, desde antes sua urbanização, segundo Ferreira (1992: XVI-XVII). Nos grandes centros urbanos, a presença desse livro se vincula à umbanda, tendo bastante inserção entre os migrantes que chegavam às grandes cidades do centro-sul em busca de uma vida melhor. Por isso mesmo, seus leitores seriam os “de rodoviária”. A ampla circulação desse livro pode ser notada a partir da presença do ex-Bruxo, convertido ao cristianismo, na literatura de cordel nordestina. . Para entender algo do contexto em que podem ocorrer acusações de feitiçaria desses dois tipos, opto por descrever uma situação de crise vivenciada num momento específico, no final do ano de 2011.

POLÍCIA, PAJÉS E PROFETAS: UM MOMENTO DE CRISE

Quando cheguei ao campo, em setembro de 2011, soube de um rapaz que havia sido encontrado enforcado numa árvore no mês anterior. Em 26 de setembro, uma menina de 13 anos foi encontrada da mesma maneira numa aldeia anexa à que eu me encontrava. Uma das versões que circulavam sobre sua morte atestava que seu tio, irmão do seu pai, estaria combinando seu casamento com um rapaz. Ela teria brigado com o tio, que teria lhe batido. À noite, ela teria se enforcado perto de sua casa. Dois dias depois do ocorrido, ouço comentários de que a morte da menina teria a ver com o livro de São Cipriano19 19 Desenvolvi reflexões sobre a presença desse livro e as relações que ele aciona alhures. Ver Silva-Bueno, 2017b e Silva-Bueno, 2018. , resultado de uma magia de amor: escreveram seu nome nas páginas do livro, para que ela só pensasse num homem bem mais velho. O resultado dessa magia foi sua loucura e morte.

Em 30 de setembro, outra menina foi encontrada morta, enforcada, ao amanhecer. Os profissionais do Polo Base de Saúde disseram que ela tinha brigado com o tio. Outra versão apontava que teria sido vítima de feitiço, ou seja, que alguém a tinha levado à forca. A gestora e os professores da escola que a menina frequentava acreditavam que havia uma intenção de matar seus alunos, pensamento compartilhado pelos pais da vítima. Conforme relatado, uma de suas alunas estaria se mostrando um tanto perturbada, dizendo que estaria ouvindo sua mãe ordenando que ela pegasse uma corda. Seria um ngo’o, enviado por alguém, que estava tentando enganá-la. Seus parentes a levaram para uma comunidade no Rio Jandiatuba, onde ainda há seguidores de José da Cruz20 20 Irmandade de Santa Cruz, movimento que, a partir de 1972, atingiu mais da metade dos Ticuna (cerca de 12.000 dos 20.000 Ticuna da época). O líder do movimento, o messias José Francisco da Cruz, nascido em Minas Gerais, chegou ao Alto Solimões, vindo do Peru, sendo recebido como um “santo”, sobretudo pelos Ticuna. Viveu durante dez anos na região, organizando seu movimento e difundindo sua mensagem de salvação. Inicialmente, a mensagem era fortemente escatológica: o fim dos tempos era associado a catástrofes diversas. A salvação estaria em torno das cruzes que ele benzia e espalhava ao longo do rio e alguns afluentes. No entanto, Irmão José mudava seu discurso de acordo com as necessidades de seus fiéis. “Ele passou então a promulgar uma série de normas e regras que, embora sejam de motivação religiosa, atingem todos os setores da vida cotidiana” (Oro, 1990: 39). A concepção de “salvação” também sofre uma mutação, pois se antes tinha uma conotação mais religiosa e voltada para o além, agora se volta também para o plano terreno e material. Segundo Almeida (2000: 167), devido a uma correspondência na tradição Ticuna - já que esta também prevê punição pelos deuses em momentos de intensa desagregação cultural e social - e ao apoio das principais lideranças políticas da região - os antigos patrões dos tempos da empresa seringalista, que buscavam contornar a crise de autoridade pela qual passavam -, as ideias cruzistas vingaram facilmente. Após a morte do seu líder, em 1982, a Irmandade foi apresentando sinais de enfraquecimento. , que afirmaram que a escola da menina estava se sobressaindo em relação às demais- tinha, inclusive, sido vencedora no concurso do 19 de abril, data comemorativa do Dia do Índio, daquele ano - e que, por isso, muitas pessoas queriam acabar com os seus alunos por inveja. Os malefícios viriam por feitiços de pajé(s) e/ ou pela magia provinda do livro, não se sabia ao certo. Ao todo, até aquele momento, haviam sido 7 enforcamentos que resultaram em morte (sem contar as diversas tentativas “frustradas”), sendo 4 de alunos da mencionada escola. A terceira vítima fatal foi um rapaz de 14 anos, num domingo, dia 16 de outubro, enquanto a família tinha ido ao culto da igreja. Foi encontrado enforcado numa frágil corda feita de trapos de pano. Alguns disseram que ele tinha “trejeitos” de homossexual, o que era muitas vezes relacionado ao uso do livro21 21 Muitos interlocutores, especialmente os mais afetados pela Igreja Batista, relacionaram a homossexualidade às receitas do livro de São Cipriano. Aquele que age de má fé através do livro, escreveria o nome de suas vítimas nas páginas, o que as levaria a mudarem seu comportamento. Ouvi casos em que o pastor da igreja conseguiu orientar um rapaz e fazer com que ele “melhorasse”. Não ouvi relatos de tentativas de “cura” de meninas homossexuais, ainda que soubesse de, pelo menos, uma que se assumisse lésbica em Campo Alegre. A culpa de uma suposta “onda” de homossexualidade masculina na comunidade também foi atribuída a um antigo professor não-indígena, que veio à comunidade para dar aulas no ensino médio. Alguns jovens teriam começado a imitá-lo, mas alguns também já teriam parado de fazê-lo depois de orientados em casa, na escola e na igreja. A antropóloga Patrícia Rosa (2015) desenvolveu uma investigação sobre as micropolíticas dos afetos envolvidos no parentesco ticuna, enquanto processo que prevê modalidades diversas de relacionamentos. Como categorias êmicas, a autora cita: “casar certo ou errado, com e sem papel, ficar, namoros e romances”. Sob a categoria descritiva “problemas dos afetos” estão caracterizados outros conteúdos constitutivos das alianças não previstas pelas regras matrimoniais tradicionais. Aqui, estão em jogo as negociações, as relações e as posições de gênero na conformação dos matrimônios. .

Um sentimento de “crise” se instaurou na aldeia. Os pais estavam temerosos de que os filhos saíssem à noite, voltassem sozinhos da escola e fossem surpreendidos por algum ngo’o. Estes espíritos poderiam aparecer sob diversos disfarces. Aqueles que conseguem enxergá-los, os descrevem como seis crianças que atraem a vítima com a corda e depois se transformam em adultos. Diziam que poderiam aparecer também na forma de uma mulher dos cabelos compridos (tchatchatü) ou através do barulho de choro de bebê, que atrairia a vítima até eles. A gestora da escola relatou que certo dia um aluno desmaiou, à noite, no caminho de volta para casa após a aula. Ele viu dois homens querendo enforcá-lo e gritou pedindo ajuda. Os colegas não conseguiam enxergar os agressores. Sentindo que algo segurava seu pescoço, ele desmaiou e foi levado para casa, onde sua mãe, que é “meio pajé”, rezou sobre ele, que melhorou.

Muitos diziam que famílias de vítimas já estavam acionando pajés para descobrirem quem estaria enviando os feitiços. No entanto, ainda não se sabia com certeza quem estaria provocando essas mortes. Além dos “vampiros”, uma forma corrente de se chamar os usuários do livro, muitos afirmavam que os enforcamentos eram resultados de vingança de uma daquelas mortes que aconteceram em 2009, tal qual foi noticiado em vários veículos midiáticos que denunciaram a “milícia” entre os Ticuna (ver nota vii). O culpado seria o filho do feiticeiro que foi encontrado carbonizado numa ilha do Solimões, supostamente morto pela polícia indígena. Ele já teria ido à aldeia para tomar satisfações sobre a morte do pai e, nessa ocasião, teria prometido vingança. Algumas teorias diziam que a “maldição” enviada só terminaria com a morte de dez jovens, outras afirmavam que seriam trinta, sendo quinze jovens de cada sexo. É interessante entender como se deu o processo de acusação de feitiçaria desse homem que fora morto em 2009. Segundo uma das versões22 22 Matarezio Filho (2019: 235-236), que fez seu trabalho de campo na aldeia ticuna de Nazaré, no Rio Camatiã (também pertencente a São Paulo de Olivença) nota a semelhança entre o caso que repercutiu na mídia e o de Augusto Basílio, antigo morador daquela comunidade. Segundo relatos colhidos pelo antropólogo, o suposto feiticeiro seria o responsável pela morte de diversas pessoas. Segundo narra, “[...] enquanto Augusto ainda morava em Nazaré sempre apareciam onças de noite, eram ‘bichos’ (ngo’o) dele. As crianças viviam doentes, principalmente com desinteria. [...] Conforme seu poder foi aumentando, a fama de feiticeiro de Augusto cresceu também”. Assim como ouvi em Campo Alegre sobre como teria sido a prisão e execução do feiticeiro, em 2010, esse autor aponta que, segundo seus dados, Augusto foi atraído a Santa Rita do Weil, onde supostamente realizaria uma cura. Durante o trajeto, na canoa, cacetaram-no e atearam-lhe fogo. Em Silva-Bueno (2014: 185) esboço, rapidamente, uma relação entre essa opção por carbonizar o corpo do feiticeiro com o fato de ser esse o tratamento dado àqueles que provocam a morte dos Ticuna e impedem o crescimento do grupo no tempo mítico, como é o caso dos ngo’ogü, os inimigos primordiais Tutchuru e Witchicü, monstros canibais comedores de carne humana. , um professor de uma aldeia do rio Camatiã, sobrinho do acusado, estava com toda a sua família doente, desenganada pelos médicos. Ele levou os filhos para a cidade e, assim que lá chegaram, os meninos começaram a melhorar. Logo depois, assim que seu tio chegou à cidade também, seus filhos tornaram a adoecer. O professor veio atrás da polícia indígena em Campo Alegre e pediu que prendessem seu tio feiticeiro. Nenhum trabalho de outro pajé conseguia combater os feitiços dele, então a solução era matá-lo. Segundo muitos afirmaram, quem o matou teriam sido seus próprios parentes, após a captura orquestrada pela polícia indígena. Outra versão para o motivo da morte do suposto feiticeiro é bastante discrepante em relação à anterior. Segundo o relato, o professor do Camatiã se casou com a filha do acusado. Depois de um tempo, a mesma teria falecido e, passado mais um tempo, o professor se casou novamente e se elegeu quatro vezes vereador, causando a inveja do suposto feiticeiro, seu ex-sogro, que teria começado a lhe fazer muito mal e, por isso, teria sido morto. Então, a família do homem morto, querendo vingança, mas sem saber ao certo quem era culpado pela morte de seu parente, jogou feitiço em toda a comunidade23 23 Essas duas versões nos levam a pensar na tese de Vanzolini (2010) sobre os Aweti do Xingu de que “o feiticeiro é sempre um parente”, as acusações de feitiçaria se dão entre pessoas em relação. No caso dos Ticuna, essas relações podem extrapolar o limite de uma aldeia, como aconteceu com o “feiticeiro” morto. .

As opiniões acerca da origem do mal que se instaurou sobre a comunidade variavam muito. É preciso dizer que, em muitos casos, as opiniões diferiam de acordo com o tipo de envolvimento da pessoa com os acusados pelas mortes. Aquelas pessoas cujos parentes foram acusados de terem alguma ligação com o livro, por vezes negavam a existência do mesmo. Já aquelas que se envolveram de alguma maneira com a morte do “feiticeiro” do Camatiã, afirmavam que as mortes dos jovens eram culpa dos ditos vampiros. De toda maneira, era patente a necessidade de se identificar a “autoria dos suicídios”. A reação da comunidade para identificar os culpados e combater as mortes começou por uma reunião geral realizada pelo cacique, cuja pauta principal foi o seguinte questionamento: deve-se recorrer a pajé(s) ou a um grupo de oração “forte” da igreja Batista para descobrir quem está provocando esses suicídios? Em votação, decidiu-se pela oração da igreja: chamariam uma profeta, segundo a designação nativa, da comunidade Vera Cruz e outra da comunidade Belém do Solimões.

Como me contou um membro da igreja, um diácono casado com uma profeta de outra comunidade, um(a) profeta recebe do Espírito Santo uma mensagem - se uma pessoa está em pecado e sofrerá as consequências por meio de doença, por exemplo. Quando busca curar uma doença, o profeta pode utilizar um óleo para unção ou um remédio caseiro para massagear o doente, junto com a oração. Mas o doente tem que ter fé naquela terapia específica, não podendo recorrer também a algum pajé. No caso de a profecia vir para identificar o culpado de estar mandando algum mal, a técnica utilizada pelo mediador se resume a jejum e oração, que fazem com que o Espírito Santo fale por meio da profecia. A oração e o jejum podem também levar os culpados ao arrependimento, fazendo com que eles confessem o que fizeram.

No fim das contas, só foi possível trazer uma profeta, da comunidade de Belém do Solimões, que já teria “salvado” essa comunidade de uma onda de suicídios. Nessa ocasião, ela teria apontado que o culpado seria um rapaz que usava o livro. Tendo ele negado a acusação, ela teria prosseguido com o seu jejum e o Espírito Santo, então, teria indicado onde ele havia enterrado uma caixa grande com roupa de quase todos da comunidade, com o objetivo de matar um por um. Após a descoberta dessa prova, ele teria confessado e mostrado uma lista onde constaria o nome de cada um, sendo que os das vítimas “assassinadas” já estariam riscados. Uns ele não teria conseguido matar, pois tinham muita fé. A profeta explicou que o rapaz já havia se transformado em ngo’o, por isso não conseguiam pegá-lo nunca, pois ele era dotado de grande capacidade transformativa. Segundo a mulher que me narrou essa história, a alma dele já tinha ido embora com os espíritos malignos, o que restava era apenas a sua porção bicho.

A profeta chegou à aldeia e ocorreram duas reuniões. Na primeira, pela manhã, foi dito que tudo o que estava acontecendo era resultado do não seguimento dos preceitos da igreja, mas, ao mesmo tempo, a mesma afirmou que era em virtude de os Ticuna estarem abrindo mão da “cultura” e querendo “virar branco”, usando as “coisas de brancos” (os jovens pintando o cabelo, por exemplo). Os pais não estariam cuidando direito dos seus filhos. Além disso, muitos dos frequentadores da igreja se relacionariam com espíritos malignos, estariam amaldiçoados pelo livro de São Cipriano. À noite, ela fez sua revelação definitiva: os culpados eram tanto o feiticeiro do rio Camatiã, quantos os vários - impossíveis de nominar - que utilizavam o livro de São Cipriano na comunidade. Segundo ela, os feitiços com o livro não seriam tão fortes a ponto de causar tantos suicídios. A profecia indicou que a família do feiticeiro morto teria pagado cerca de dez mil reais para que um pajé enviasse o mal para toda a aldeia, e não apenas à polícia indígena. No mais, muitas orações seriam direcionadas para acabarem com as mortes - uma reação mais contundente só seria realizada caso não se obtivesse êxito. Em último caso, o que aconteceria seria o que está escrito na Bíblia, no Evangelho Segundo Matheus, capítulo 24, que prevê a guerra entre as nações. Como me narrou um interlocutor, o que a Bíblia conta já tinha sido dito por Yo’i: se não obedecessem a suas regras, o fim do mundo chegaria, o rio mudaria de curso e haveria uma grande inundação. Os depoimentos e as revelações da profeta trouxeram alguma calma, mas trata-se de uma calma de certa forma instável.

Um tempo depois que voltei do campo, soube que as suspeitas e acusações já haviam sido atualizadas e reformuladas. Outra informação obtive em meados de 2014, acerca das relações com uma comunidade bastante próxima. Durante os meses de agosto e setembro de 2013, tal comunidade presenciou uma série de eventos que diziam envolver a circulação e uso das “receitas” do livro de São Cipriano, levando-a a uma espécie de estado de sítio e controle de relações locais superintensas com a comunidade em que vivi. Com a recente pavimentação da estrada que liga as duas aldeias, o temor de aproximação e troca entre os jovens locais com os ditos feiticeiros de lá, acusados de serem os responsáveis pela circulação do livro, foi tema de reuniões políticas e de intervenções bilaterais entre autoridades das duas comunidades vizinhas.

Vimos que o diagnóstico nativo para as mortes por enforcamento passa pela acusação de feitiçaria. Em outras palavras, o que se tem são homicídios (e não suicídios) via enfeitiçamento(s), sendo que o responsável pelas mortes, movido por sentimentos de inveja, amor e/ou raiva, deve ser apontado para que se dê fim às mortes. É certo que, par a par com tal diagnóstico profético, existe um discurso em que o (agora sim) suicídio é justificado por um conflito familiar intergeracional, somado a uma falta de controle de sentimentos como raiva e amor por parte da vítima, que opta por resolver tal conflito pondo fim à sua vida.

Nessas condições, para além das respostas xamânica e profética que buscam elucidar um momento de crise, como o exposto acima, outras dimensões contribuem para a compreensão do fenômeno do suicídio-homicídio entre os Ticuna. Sendo a população jovem masculina mais suscetível a esse tipo de morte24 24 Segundo o Relatório de Gestão da FUNASA referente ao ano de 2009, ocorreram 21 óbitos por suicídio da etnia Ticuna, sendo 18 masculinos e 3 femininos. O documento aponta que no DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena) Alto Rio Solimões foi realizada uma coleta de dados retrospectiva sobre os casos de suicídio. Os dados de casos de suicídio no período de 1990 a 1997 foram obtidos de fontes secundárias, mas não foi possível precisar as taxas devido à falta de dados confiáveis sobre o total da população. Somente a partir de 2000 foi possível contabilizar os casos. Em 2009, a taxa obtida foi de 48 por 100.000 habitantes, sendo que em 2002 houve um surto que chegou a 80 por 100.000 habitantes. , o relato mítico nos dá pistas da vulnerabilidade em que os rapazes se encontram. Assim como as moças que passam pela menarca, eles também estão mais suscetíveis ao encontro com os ngo’ogü, estando sujeitos a receberem, por exemplo, mensagens de cunho salvacionista, como mostram os movimentos messiânicos registrados entre os Ticuna. Além disso, são afetados por questionamentos em torno dos estudos e da profissão a seguir, as cobranças em torno de sua preparação para o casamento “certo” e o período de bride-service, que pode ser bastante conflituoso na relação com o sogro e o(s) cunhado(s), em virtude da regra de uxorilocalidade.

Outra questão que compõe o contexto etnográfico envolvendo o fenômeno do suicídio-homicídio entre os Ticuna com os quais convivi é a da construção do corpo. Para além dos rituais (feminino e masculino) que (quase) não se fazem mais em alguns aldeamentos, o modo de alimentar-se contemporâneo enfraquece o corpo e o deixa aberto aos infortúnios. Tudo isso leva os Ticuna para cada vez mais longe dos lugares encantados no centro do mato, onde outrora era possível encontrar potes de miçangas coloridas e brilhantes como pedras preciosas, e ouvir os imortais realizando grandes festas de moça nova. O tempo do mito era um tempo de predação, em que os Ticuna precisavam resistir aos ataques de diversos ngo’ogü, mas contavam com heróis culturais para aniquilarem os mesmos. A contemporaneidade os impõe que busquem suas próprias formas de defesa quanto aos desafios que ela apresenta, como o consumo de álcool e drogas que ameaçam sua juventude.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É necessário lançarmos, finalmente, um olhar mais sociológico acerca dos supostos enfeitiçamentos e sua complexidade, tal como descritos acima. São diversos os questionamentos que entram em relevo a partir do contexto etnográfico descrito: haveria um aumento das acusações de enfeitiçamento na contemporaneidade ticuna? Como e por que entra em cena a agência do livro de São Cipriano? Um caminho que se apresenta é o das relações entre xamanismo e colonialismo e a presença do evangelismo - mas seriam esses os únicos responsáveis ou essa equação seria mais complexa? É preciso adiantar que, evidentemente, não é prudente afirmar de forma categórica que as acusações de feitiçaria e os “suicídios” tenham aumentado com o contato com os não-indígenas e com o cristianismo, tendo em vista que não há notificação da incidência de acusações nos tempos anteriores que respaldem tal afirmação. Entretanto, parece convincente a hipótese de que os relatos atuais de feitiçaria assumam contornos que se relacionam às mudanças advindas do contato colonial e suas atualizações.

Seguindo essa via, uma reflexão que se mostra profícua para nos ajudar a pensar nosso caso é a desenvolvida por Santos-Granero (2004SANTOS-GRANERO, Fernando. 2004. “The Enemy Within: Child Sorcery, Revolution, and the Evils os Modernization em Eastern Peru”. In: WHITEHEAD, N. L.; WRIGHT, R (orgs.). In Darkness and Secrecy: The anthropology of assault sorcery and witchcraft in Amazonia. Durham, Duke University Press.) em trabalho onde percorre diversas fontes acerca do delicado tema das acusações de feitiçaria recaídas sobre crianças entre alguns grupos Arawak do Peru. Perpassando referências às supostas “crianças feiticeiras” desde o século XIX, destrincha alguns casos que, segundo o autor, se passam em contextos de pressão externa, violência, epidemias, ruptura social, e movimentos coletivos de resistência ou evasão, frequentemente com conotações messiânicas. Santos-Granero (2004SANTOS-GRANERO, Fernando. 2004. “The Enemy Within: Child Sorcery, Revolution, and the Evils os Modernization em Eastern Peru”. In: WHITEHEAD, N. L.; WRIGHT, R (orgs.). In Darkness and Secrecy: The anthropology of assault sorcery and witchcraft in Amazonia. Durham, Duke University Press.) descreve o delicado período de grande mudança e tensão entre os Yanesha e Ashéninka do Alto rio Perene. Em 1920, chegaram à região colonos britânicos empenhados na plantação de café ao longo do rio, desalojando as famílias nativas e importando mão-de-obra andina. Em seguida, um missionário adventista instala uma missão na região. A missão é bem-sucedida, em parte, devido à sintonia entre elementos messiânicos e apocalípticos do discurso adventista e as crenças nativas tradicionais, o que muito nos remete ao contexto ticuna. Em suma, o contexto de tensão das relações com os colonos britânicos e andinos, somado à pandemia de gripe em cenário mundial, foram tomados pelo discurso nativo e reforçado pelas pregações adventistas, como sinais do iminente fim do mundo. Mesmo que a adesão aos missionários não tenha sido unânime, as profecias do pastor ganharam força e impulsionaram um movimento messiânico entre os Ashaninka e os Ashéninka, que acreditavam que a vinda de Cristo culminaria num cataclisma em que a Terra queimaria e somente os crentes se salvariam. Segundo Santos-Granero (2004SANTOS-GRANERO, Fernando. 2004. “The Enemy Within: Child Sorcery, Revolution, and the Evils os Modernization em Eastern Peru”. In: WHITEHEAD, N. L.; WRIGHT, R (orgs.). In Darkness and Secrecy: The anthropology of assault sorcery and witchcraft in Amazonia. Durham, Duke University Press.: 284), todo esse contexto proporcionou um aumento nos casos de acusação de feitiçaria infantil, como atestam relatos de missionários e historiadores.

Esse antropólogo também perpassa casos mais recentes, do final da década de 1990 e do início dos anos 2000, que também se desenrolam num contexto de extrema violência composto pelo assédio de grupos paramilitares (Sendero Luminoso e Movimento Revolucionário Túpac Amaru), em contrapartida da polícia e das forças militares peruanas e da atuação de narcotraficantes na região. Entretanto, se o autor afirma que as acusações de feitiçaria são intensificadas em períodos de grandes pressões externas - sobre as terras, recursos, trabalho, corpos, representações, valores e práticas -, ele destaca que não são uma simples resposta direta à dominação colonial ou neocolonial. Pelo contrário, se ligam ao fato de a presença dos agentes externos criar polaridade dentre os indígenas, entre defensores e oponentes à modernização e à mudança. Como num movimento pendular, inicialmente haveria uma fase de receptividade às novidades trazidas por missionários franciscanos, pastores adventistas, grupos paramilitares e oficiais do Estado, para em seguida atingirem uma fase de desapontamento, hostilidade e defesa de um retorno “tradicionalista” ao status quo - este podendo ser bem parecido com as utopias por vezes promovidas pelos estrangeiros em um período anterior. Um ponto interessante que Granero (2004: 297) aponta é que as crianças acusadas, tanto nos casos antigos, quanto nos mais recentes, pertenciam a famílias que de alguma forma se aliaram à estrangeiros (não-indígenas) ou manifestavam uma inclinação pessoal por coisas estrangeiras.

Assim como notamos nos casos descritos entre os Ticuna sobre os quais nos referimos, Santos-Granero (2004SANTOS-GRANERO, Fernando. 2004. “The Enemy Within: Child Sorcery, Revolution, and the Evils os Modernization em Eastern Peru”. In: WHITEHEAD, N. L.; WRIGHT, R (orgs.). In Darkness and Secrecy: The anthropology of assault sorcery and witchcraft in Amazonia. Durham, Duke University Press.: 298) afirma que, se no passado, os xamãs detinham exclusividade na prerrogativa de identificar feiticeiros, atualmente outros agentes podem participar desse processo. Os períodos de intensificação das acusações de feitiçaria infantil promovem uma verdadeira “caça às bruxas”, o que invariavelmente ocorre em contextos de rápidas mudanças sociais permeadas por conflitos ideológicos que afetam a sociedade como um todo, ou conflitos interpessoais e suas decorrências. A “caça às bruxas”, segundo o autor, sempre carrega o clamor pela manutenção da ordem social ou da estrutura de poder, o que explica, de certa maneira, as acusações sobre sujeitos que de alguma forma aceitaram ou se relacionaram mais intimamente com a mudança. Interessante recordar que as acusações de feitiçaria descritas no aldeamento ticuna, tanto via yuücü, quanto via livro, envolveram frequentemente discursos acerca das “coisas de branco”: inveja de cargos políticos de vereador na cidade e/ou professor na aldeia e atratividade a bens ditos “civilizados”.

Assim como na região da Amazônia peruana, o contexto ticuna também é de tensões postas em relevo, principalmente, pela proximidade com o distrito de Santa Rita do Weil, um povoado onde residem indígenas ticuna e cocama, não indígenas brasileiros e peruanos. Estes últimos, referidos como “paisanos”, eram proprietários de pequenas lojas de mantimentos, bebidas e outros artigos de consumo, como roupas e utilidades domésticas. O trânsito entre os moradores de Santa Rita - em especial dos “mascates” peruanos- e a comunidade, e vice-versa, era intenso. Muitos Ticuna iam até Santa Rita para adquirir bens ditos “civilizados”. Entretanto, essa ligação com o distrito é motivo de diversos conflitos, visto que possibilita o acesso, em especial dos jovens, a álcool e drogas, causando muitas brigas entre parentes. Diversos interlocutores, especialmente os mais velhos, enfatizavam a proximidade com Santa Rita como causadora de conflitos dentro da aldeia, que levava à ação da polícia indígena. Os problemas trazidos por esse contato motivavam, frequentemente, discursos nostálgicos de um tempo anterior e críticos aos que gostariam que a grande aldeia virasse, um dia, cidade. No caso ticuna, o movimento pendular tal como formulado por Santos-Granero (2004SANTOS-GRANERO, Fernando. 2004. “The Enemy Within: Child Sorcery, Revolution, and the Evils os Modernization em Eastern Peru”. In: WHITEHEAD, N. L.; WRIGHT, R (orgs.). In Darkness and Secrecy: The anthropology of assault sorcery and witchcraft in Amazonia. Durham, Duke University Press.) parece presente de forma aproximada. Os momentos de abertura e fechamento ao que vem de fora não parecem funcionar enquanto “fases”, mas como uma “chave” que aciona discursos e afetos que coexistem e mudam de lugar a todo tempo. Por exemplo, ao mesmo tempo em que pastores e profetas nativos são eles mesmos representantes de uma ideologia exógena, eles apontam o distanciamento aos valores tradicionais e a influência do comportamento dos brancos, e a atratividade das “coisas” de seu mundo (como roupas, motos, pequenas lojas na aldeia, dentre outros) como capazes de transformá-los em não-humanos nefastos, “vampiros”, através do uso do livro de São Cipriano. Simultaneamente ao abraçar o discurso evangelizador, condenam o que vem de fora, rechaçando, inclusive, a presença de pastores brancos na aldeia. Nessas condições, é possível pensar a presença desse livro como expressão do conflito entre abrir-se e fechar-se para o mundo de fora, pois, como vimos, através desse objeto- exógeno por si só-, pretender-se-ia conseguir as coisas dos “civilizados”; mas os efeitos perigosos de seu uso estimulam os discursos de negação dessa alteridade dos brancos, ainda que pela via do evangelismo e sua mensagem profética, no que parece ser uma atualização do discurso milenarista que perdura entre os Ticuna.

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  • VINHAS DE QUEIROZ, Mauricio. 1963. “’Cargo Cult’ na Amazônia: observações sobre o milenarismo Tukuna”. América Latina, v. 4: 43-61.
  • 1
    Os Magüta habitam a tríplice fronteira entre Brasil, Peru e Colômbia, no Alto Rio Solimões. No estado do Amazonas, a população seria de cerca de 53.544 pessoas, enquanto na Colômbia e no Peru, 8.000 e 6982, respectivamente, segundo dados do Instituto Socioambiental (TICUNA, 2018TICUNA. Instituto Socioambiental. Disponível em: Disponível em: https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:Ticuna . Acesso em: 17 set 2018.
    https://pib.socioambiental.org/pt/Povo:T...
    ).
  • 2
    Na maioria das vezes, opto por empregar o termo “pajé”, sendo fiel à forma nativa de traduzir para o português a figura do xamã Ticuna. Mais à frente, a depender do contexto, utilizo os termos compostos pajé-feiticeiro e pajé-curador para marcar a intencionalidade do indivíduo referido num determinado contexto, o que ficará mais claro adiante. Vale apontar que outro termo que ouvi para pajé foi yüu’ĩ.
  • 3
    Categoria de seres nefastos que, desde os tempos primevos causam morte aos Magüta, conforme relatam diversos mitos.
  • 4
    O trabalho de campo foi majoritariamente realizado entre os anos de 2009 e 2012, na aldeia Campo Alegre, cujo território é pertencente ao município de São Paulo de Olivença, Amazonas, na ocasião de meu processo de doutoramento concluído no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA-IFCS-UFRJ) no ano de 2014, sob orientação da Profª Dra. Els Lagrou, a quem sou profundamente grata (Cf. SILVA-BUENO, 2014SILVA-BUENO, Maria Isabel Cardozo da. 2014. Sobre encantamento e terror: imagens das relações entre humanos e sobrenaturais numa comunidade Ticuna (Alto Solimões, Amazonas, Brasil). Rio de Janeiro, tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro.). O presente artigo apresenta o argumento central defendido na referida tese publicada naquele ano. Campo Alegre é uma das grandes comunidades ticuna do lado brasileiro, contando com um contingente populacional de aproximadamente 2.734, segundo dados do ano de 2013, da Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI), disponíveis no Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena (SIASI) (cf. SIASI, 2013SIASI - Sistema de Informação da Atenção à Saúde Indígena. Disponível em: Disponível em: http://www.saude.gov.br/saude-indigena/gestao/siasi . Acesso em: 21 out. 2019.
    http://www.saude.gov.br/saude-indigena/g...
    ).
  • 5
    Ngie significa “chupar”, enquanto ta+cü significa “aquele que”.
  • 6
    Na literatura etnológica a posição ambígua do pajé é antes a regra do que uma exceção. O fato de ser pajé se tratar antes de uma condição, uma virtualidade e um processo do que uma instituição é visível, por exemplo, na literatura pano (Ver Lagrou, 1998LAGROU, Els. 1998. Caminhos, Duplos e Corpos: uma abordagem perspectivista da identidade e alteridade entre os Kaxinawa. São Paulo, tese de doutorado, Universidade de São Paulo., 2007LAGROU, Els. 2007. A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawa, Acre). Rio de Janeiro, Topbooks.).
  • 7
    Entre os Ticuna com quem convivi, era usual a associação de coisas consideradas pouco ou nada virtuosas com o Peru. Essa associação não é acidental. Conforme conta o relato mítico, após a separação dos gêmeos primordiais, o irmão nada virtuoso Ipi rumou para o lado peruano. Nessas condições, frequentemente se relacionava ao Peru alguns aspectos de Ipi, como o nariz grande e o aspecto “sujo”, além de práticas e fenômenos condenáveis, como por exemplo um pequeno surto de gripe, os maus hábitos de cultivar coca para a venda ou, o que é visto como mais grave, a proveniência do livro de magia de São Cipriano.
  • 8
    Um fenômeno recente - e com ampla veiculação midiática -, presente em diversas aldeias ticuna, foi o surgimento de uma “polícia nativa”, a PIASOL (Polícia Indígena do Alto Solimões). A organização foi criada em meados de 2008 com o objetivo de diminuir as ocorrências de episódios de violência (como brigas e furtos) em virtude do uso de álcool e drogas, principalmente nos grandes aldeamentos ticuna, como Umariaçu I e II e Belém do Solimões (Tabatinga - AM); Feijoal (Benjamin Constant -AM) e Campo Alegre (São Paulo de Olivença - AM). Em 2009, a PIASOL foi bastante divulgada por causa do assassinato de dois índios, uma dessas mortes tendo sido creditada a ela, mas essa autoria não foi comprovada. A vítima teria sido um pajé acusado de enviar feitiços para membros de Campo Alegre e que, e, por isso, foi morto carbonizado. Esses casos chamaram a atenção da Polícia Federal, que abriu inquérito para investigá-los. Vale notar que, em 2010, pude verificar a presença de um policiamento nativo na aldeia de Arara, do lado colombiano, mas que não era da mesma organização do lado brasileiro. Sobre a trajetória dessa polícia, ver Mendes (2014MENDES, Mislene Metchacuna Martins. 2014. A Trajetória da Polícia Indígena do Alto Solimões: política indigenista e etnopolítica entre os Ticuna. Manaus, dissertação de mestrado, Universidade Federal do Amazonas.), pesquisadora ticuna que esmiuça a rede de relações dos indivíduos que se posicionavam politicamente quando decidiram criar a guarda-indígena.
  • 9
    Em linhas gerais, Naane pode ser traduzido como universo, cosmo. O linguista ticuna Abel Angarita (2013ANGARITA, Abel Antonio Santos (Wachiãükü). 2013. Percepción tikuna de Naane y Naüne: territorio y cuerpo. Leticia, dissertação de mestrado, Universidad Nacional de Colombia.: 11-12), em sua dissertação de mestrado, define naane como, num plano macro, espaço ou território, que inclui tudo que existe no universo, no cosmos e na natureza, incluindo o ser humano. Já numa perspectiva micro, se trata de espaços ou territórios específicos e determinados que são pequenos (como a roça, lugar de cultivo dos alimentos) e estão integrados a um macro naane. Existem os naane paralelos invisíveis, como os territórios habitados pelos seres ü’üne, imortais, como veremos logo a seguir. Cada ser/corpo conforma um naane e dentro de cada ser/corpo existem outros naane. “Eso significa que Naane es humano vivo que se transforma en todo momento. Concebir este modo de existencia es negarse a separarse de la naturaleza, lo que conlleva a la adaptación y a la coexistencia en un Naane amazónico” (ANGARITA, 2013ANGARITA, Abel Antonio Santos (Wachiãükü). 2013. Percepción tikuna de Naane y Naüne: territorio y cuerpo. Leticia, dissertação de mestrado, Universidad Nacional de Colombia.:12). Para mais desdobramentos da acerca da relação entre corpo e território, tal qual esboçado por Angarita (2013ANGARITA, Abel Antonio Santos (Wachiãükü). 2013. Percepción tikuna de Naane y Naüne: territorio y cuerpo. Leticia, dissertação de mestrado, Universidad Nacional de Colombia.), ver Matarezio Filho (2017MATAREZIO FILHO, Edson Tosta. 2017. “O amadurecimento dos corpos e do cosmos: mito, ritual e pessoa ticuna”. Revista de Antropologia, v. 60, n. 1: 193-215. https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.2017.132073
    https://doi.org/10.11606/2179-0892.ra.20...
    ).
  • 10
    Segundo a cosmologia ticuna, antigamente o mundo era encantado ou, como afirma Goulard (2009GOULARD, Jean-Pierre. 2009. Entre mortales e Immortales: el ser según los Ticuna dela Amazonía. Lima, Caaap-Ifea.), a terra era imatura, “verde”, em contínua transformação e habitada por uma só população ü’üne, imortal. “Tal situación implica que existía un solo modo de vivir fundamentado en una indistición ontológica que produce que todos los Seres se confundan” (Goulard, 2009GOULARD, Jean-Pierre. 2009. Entre mortales e Immortales: el ser según los Ticuna dela Amazonía. Lima, Caaap-Ifea.: 43).
  • 11
    Neste artigo grafado como Yo’i, como já citado anteriormente.
  • 12
    Goulard (2009GOULARD, Jean-Pierre. 2009. Entre mortales e Immortales: el ser según los Ticuna dela Amazonía. Lima, Caaap-Ifea.: 82) aponta que o termo yuücü implica em alguém que possui um (ou vários) yuü, que se refere a um conhecimento ou propriedade de uma espécie, planta, animal ou “dono” ( -cü, marcando a terceira pessoa). Segundo Matarezio Filho (2019MATAREZIO FILHO, Edson Tosta. 2019. “Do resgate de almas à execução do feiticeiro: notas sobre o xamanismo Ticuna”. Sociedade e Cultura, v. 22, n. 1: 218-239. https://doi.org/10.5216/sec.v22i1.49691
    https://doi.org/10.5216/sec.v22i1.49691...
    : 219), em recente reflexão sobre o xamanismo ticuna, os yuü após serem ingeridos pelo iniciando vão se reproduzindo dentro do pajé, “criando filhos dentro dele”, sendo guardados numa espécie de paneirinho (wotüra ou paturuna) invisível localizado em seus flancos.
  • 13
    Várias elaborações recentes em Etnologia estão revisando a utilização do termo “suicídio” para o contexto ameríndio, tendo em vista que essa categoria não se mostra adequada para esse contexto específico (Cf. Aráuz e Aparicio, 2017ARÁUZ, Lorena Campo; APARICIO, Miguel (orgs.). 2017. Etnografías del suicidio em América del Sur. Quito, Editorial Universitaria Abya-Yala.). Entre os Ticuna, como veremos, tal modalidade de morte é, a partir do diagnóstico xamânico, tomada como homicídio, um ataque espiritual via enfeitiçamento.Tendo em vista os objetivos do presente texto, não desenvolverei aqui a temática dos suicídios-homicídios, que foram desenvolvidos em outro trabalho (Silva-Bueno, 2017aSILVA-BUENO, Maria Isabel Cardozo da. 2017a. “Suicídio ou homicídio? Os múltiplos sentidos das mortes por enforcamento entre os Ticuna (Alto Solimões, Brasil)”. In: ARAUZ, Lorena Campo; APARICIO, Miguel. (orgs.). Etnografías del suicidio en América del Sur. Quito: Editorial Universitaria Abya-Yala, pp. 123-147.). Também sobre esse tema entre os Ticuna, ver Erthal (1998ERTHAL, Regina Maria de Carvalho. 1998. O suicídio Ticuna na região do Alto Solimões - AM. Rio de Janeiro, tese de doutorado, Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz., 2001ERTHAL, Regina Maria de Carvalho. 2001. “O suicídio Tikúna no Alto Solimões: uma expressão de conflitos”. Caderno de Saúde Pública, v. 17, n. 2: 299-311. https://doi. org/10.1590/S0102-311X2001000200005
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    ) e Magalhães (2014MAGALHÃES, Aline Moreira. 2014. Esquecer-se de si: morte, emoções e autoridades em uma comunidade Ticuna. Rio de Janeiro, tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro.).
  • 14
    O autor, em seu artigo, apresenta dois interessantes relatos: o primeiro, uma sessão xamânica de retirada do feitiço do corpo de uma enferma; o segundo, o caso do desaparecimento de um homem na floresta e o empenho xamânico - e evangélico, em concorrência -- para resgatar a alma do mesmo (Matarezio Filho, 2019MATAREZIO FILHO, Edson Tosta. 2019. “Do resgate de almas à execução do feiticeiro: notas sobre o xamanismo Ticuna”. Sociedade e Cultura, v. 22, n. 1: 218-239. https://doi.org/10.5216/sec.v22i1.49691
    https://doi.org/10.5216/sec.v22i1.49691...
    ).
  • 15
    O mesmo ocorre entre os Matsiguegua (Peru oriental) como etnografou Baer (1994BAER, Gerhard. 1994. Cosmologia y shamanismo de los Matsinguenga. Quito, Ediciones Abya-Yala.: 221). O “bruxo”, matsika’nari, carrega em seu peito sua i’matsika, substâncias patogênicas mágicas que aparecem tanto como elementos visíveis (pedras, espinhos, folhas, ossos), quanto como potências espirituais ou como espíritos portadores da morte, aspecto sob o qual são invisíveis, “parecidas com o vento”. O matsika’nari sopra esta substância e a aloja no peito da vítima, matando-a. Ele obtém a capacidade de enfeitiçar através de sua estreita relação com a alma da samaumeira (wotchine): ele bebe a seiva dessa árvore, o que lhe confere poder, além de beber ayahuasca.
  • 16
    Normalmente a ayahuasca é produzida da cocção do cipó psychotria viridis com a folha da chacruna. É a combinação destas duas espécies a responsável pelo forte efeito visionário da bebida (ver, entre outros, Lagrou, 2007LAGROU, Els. 2007. A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawa, Acre). Rio de Janeiro, Topbooks.).
  • 17
    A associação entre a ação do feiticeiro e o sentimento de inveja foi igualmente notado entre os Jê (ver, por exemplo, Carneiro da Cunha, 1978CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. 1978. Os Mortos e os Outros. Uma Análise do Sistema Funerário e da Noção de Pessoa entre os Índios Krahó. São Paulo, Editora Hucitec.) e entre os Pano (Kensinger, 1995KENSINGER, Kenneth. 1995. How Real People Ought to Live: The Cashinahua of Eastern Peru. Illinois, Waveland Press.; Lagrou, 2007LAGROU, Els. 2007. A fluidez da forma: arte, alteridade e agência em uma sociedade amazônica (Kaxinawa, Acre). Rio de Janeiro, Topbooks.) com relação ao dauya. Segundo Barcelos Neto (2004BARCELOS NETO, Aristóteles. 2004. Apapaatai: rituais de máscaras no Alto Xingu. São Paulo, tese de doutorado, Universidade de São Paulo.), entre os Wauja do Xingu, os feiticeiros são movidos pela raiva e pela inveja, e não pelo desejo de poder político.
  • 18
    O livro de São Cipriano é um livro de bruxedos e encantamentos de grande circulação no Brasil, desde antes sua urbanização, segundo Ferreira (1992FERREIRA, Jerusa Pires. 1992. O livro de São Cipriano: uma legenda de massas. São Paulo, Perspectiva.: XVI-XVII). Nos grandes centros urbanos, a presença desse livro se vincula à umbanda, tendo bastante inserção entre os migrantes que chegavam às grandes cidades do centro-sul em busca de uma vida melhor. Por isso mesmo, seus leitores seriam os “de rodoviária”. A ampla circulação desse livro pode ser notada a partir da presença do ex-Bruxo, convertido ao cristianismo, na literatura de cordel nordestina.
  • 19
    Desenvolvi reflexões sobre a presença desse livro e as relações que ele aciona alhures. Ver Silva-Bueno, 2017bSILVA-BUENO, Maria Isabel Cardozo da. 2017b. “Inimigos agora, inimigos outrora: sobre algumas relações perigosas entre sujeitos humanos e sobrenaturais entre os Ticuna (Alto Solimões/Amazonas- Brasil)”. Revista Ñanduty, v. 5, n. 6: 37-52. https://doi.org/10.30612/nty.v5i6.6872
    https://doi.org/10.30612/nty.v5i6.6872...
    e Silva-Bueno, 2018SILVA-BUENO, Maria Isabel Cardozo da. 2018. “O livro de São Cipriano e as relações entre os Magüta e os brancos”. In: Anais do 42º Encontro Anual da ANPOCS, Caxambu..
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    Irmandade de Santa Cruz, movimento que, a partir de 1972, atingiu mais da metade dos Ticuna (cerca de 12.000 dos 20.000 Ticuna da época). O líder do movimento, o messias José Francisco da Cruz, nascido em Minas Gerais, chegou ao Alto Solimões, vindo do Peru, sendo recebido como um “santo”, sobretudo pelos Ticuna. Viveu durante dez anos na região, organizando seu movimento e difundindo sua mensagem de salvação. Inicialmente, a mensagem era fortemente escatológica: o fim dos tempos era associado a catástrofes diversas. A salvação estaria em torno das cruzes que ele benzia e espalhava ao longo do rio e alguns afluentes. No entanto, Irmão José mudava seu discurso de acordo com as necessidades de seus fiéis. “Ele passou então a promulgar uma série de normas e regras que, embora sejam de motivação religiosa, atingem todos os setores da vida cotidiana” (Oro, 1990ORO, Ari Pedro. 1990. “O Messianismo Tukuna”. Comunicações ISER, v. 9, n. 35: 35-51.: 39). A concepção de “salvação” também sofre uma mutação, pois se antes tinha uma conotação mais religiosa e voltada para o além, agora se volta também para o plano terreno e material. Segundo Almeida (2000ALMEIDA, Fábio Vaz de. 2000. “Tatchiüãne: ‘nossa terra de muito longe’”. Amazônia em cadernos, v. 6: 159-177.: 167), devido a uma correspondência na tradição Ticuna - já que esta também prevê punição pelos deuses em momentos de intensa desagregação cultural e social - e ao apoio das principais lideranças políticas da região - os antigos patrões dos tempos da empresa seringalista, que buscavam contornar a crise de autoridade pela qual passavam -, as ideias cruzistas vingaram facilmente. Após a morte do seu líder, em 1982, a Irmandade foi apresentando sinais de enfraquecimento.
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    Muitos interlocutores, especialmente os mais afetados pela Igreja Batista, relacionaram a homossexualidade às receitas do livro de São Cipriano. Aquele que age de má fé através do livro, escreveria o nome de suas vítimas nas páginas, o que as levaria a mudarem seu comportamento. Ouvi casos em que o pastor da igreja conseguiu orientar um rapaz e fazer com que ele “melhorasse”. Não ouvi relatos de tentativas de “cura” de meninas homossexuais, ainda que soubesse de, pelo menos, uma que se assumisse lésbica em Campo Alegre. A culpa de uma suposta “onda” de homossexualidade masculina na comunidade também foi atribuída a um antigo professor não-indígena, que veio à comunidade para dar aulas no ensino médio. Alguns jovens teriam começado a imitá-lo, mas alguns também já teriam parado de fazê-lo depois de orientados em casa, na escola e na igreja. A antropóloga Patrícia Rosa (2015ROSA, Patrícia Carvalho. 2015. Das misturas de palavras e histórias: Etnografia das micropolíticas de parentesco e os “muitos jeitos de ser Ticuna. Campinas, tese de doutorado, Universidade Estadual de Campinas.) desenvolveu uma investigação sobre as micropolíticas dos afetos envolvidos no parentesco ticuna, enquanto processo que prevê modalidades diversas de relacionamentos. Como categorias êmicas, a autora cita: “casar certo ou errado, com e sem papel, ficar, namoros e romances”. Sob a categoria descritiva “problemas dos afetos” estão caracterizados outros conteúdos constitutivos das alianças não previstas pelas regras matrimoniais tradicionais. Aqui, estão em jogo as negociações, as relações e as posições de gênero na conformação dos matrimônios.
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    Matarezio Filho (2019MATAREZIO FILHO, Edson Tosta. 2019. “Do resgate de almas à execução do feiticeiro: notas sobre o xamanismo Ticuna”. Sociedade e Cultura, v. 22, n. 1: 218-239. https://doi.org/10.5216/sec.v22i1.49691
    https://doi.org/10.5216/sec.v22i1.49691...
    : 235-236), que fez seu trabalho de campo na aldeia ticuna de Nazaré, no Rio Camatiã (também pertencente a São Paulo de Olivença) nota a semelhança entre o caso que repercutiu na mídia e o de Augusto Basílio, antigo morador daquela comunidade. Segundo relatos colhidos pelo antropólogo, o suposto feiticeiro seria o responsável pela morte de diversas pessoas. Segundo narra, “[...] enquanto Augusto ainda morava em Nazaré sempre apareciam onças de noite, eram ‘bichos’ (ngo’o) dele. As crianças viviam doentes, principalmente com desinteria. [...] Conforme seu poder foi aumentando, a fama de feiticeiro de Augusto cresceu também”. Assim como ouvi em Campo Alegre sobre como teria sido a prisão e execução do feiticeiro, em 2010, esse autor aponta que, segundo seus dados, Augusto foi atraído a Santa Rita do Weil, onde supostamente realizaria uma cura. Durante o trajeto, na canoa, cacetaram-no e atearam-lhe fogo. Em Silva-Bueno (2014SILVA-BUENO, Maria Isabel Cardozo da. 2014. Sobre encantamento e terror: imagens das relações entre humanos e sobrenaturais numa comunidade Ticuna (Alto Solimões, Amazonas, Brasil). Rio de Janeiro, tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro.: 185) esboço, rapidamente, uma relação entre essa opção por carbonizar o corpo do feiticeiro com o fato de ser esse o tratamento dado àqueles que provocam a morte dos Ticuna e impedem o crescimento do grupo no tempo mítico, como é o caso dos ngo’ogü, os inimigos primordiais Tutchuru e Witchicü, monstros canibais comedores de carne humana.
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    Essas duas versões nos levam a pensar na tese de Vanzolini (2010VANZOLINI, Marina. 2010. A flecha do ciúme: O parentesco e seu avesso segundo os Aweti do Alto Xingu. Rio de Janeiro, tese de doutorado, Universidade Federal do Rio de Janeiro.) sobre os Aweti do Xingu de que “o feiticeiro é sempre um parente”, as acusações de feitiçaria se dão entre pessoas em relação. No caso dos Ticuna, essas relações podem extrapolar o limite de uma aldeia, como aconteceu com o “feiticeiro” morto.
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    Segundo o Relatório de Gestão da FUNASA referente ao ano de 2009, ocorreram 21 óbitos por suicídio da etnia Ticuna, sendo 18 masculinos e 3 femininos. O documento aponta que no DSEI (Distrito Sanitário Especial Indígena) Alto Rio Solimões foi realizada uma coleta de dados retrospectiva sobre os casos de suicídio. Os dados de casos de suicídio no período de 1990 a 1997 foram obtidos de fontes secundárias, mas não foi possível precisar as taxas devido à falta de dados confiáveis sobre o total da população. Somente a partir de 2000 foi possível contabilizar os casos. Em 2009, a taxa obtida foi de 48 por 100.000 habitantes, sendo que em 2002 houve um surto que chegou a 80 por 100.000 habitantes.
  • CONTRIBUIÇÃO DE AUTORIA:

    Não se aplica.
  • FINANCIAMENTO:

    CAPES.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Out 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    04 Maio 2021
  • Aceito
    26 Nov 2021
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