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Perspectivas de estudantes de Medicina sobre a própria formação e competências para trabalhar com populações indígenas

Perspectives of Medical students on their training and skills to work with indigenous populations

Resumo:

Introdução:

A formação médica brasileira tem sido repensada a partir das Diretrizes Curriculares Nacionais que mostram a necessidade de inserir nos currículos abordagens que considerem a formação de médicos generalistas, voltados à assistência de populações vulneráveis.

Objetivo:

Este estudo teve como objetivos descrever o perfil de estudantes de Medicina das universidades de Santa Catarina e analisar quais competências eles consideram necessárias para atender a população indígena.

Método:

Trata-se de uma pesquisa com abordagens quantitativa do tipo transversal e qualitativa de natureza exploratória. A coleta de dados ocorreu por meio de questionário on-line com estudantes de Medicina do estado de Santa Catarina. Realizou-se a análise quantitativa dos dados por meio de estatística descritiva, e, no caso dos dados qualitativos, adotou-se a análise de conteúdo.

Resultado:

No perfil foi identificado predomínio de mulheres (66,95%), com idade média de 24,47 anos (± 5,35). Dos estudantes, 83,26% se autodeclararam de raça/cor branca, 76,99% nasceram na Região Sul do Brasil, 41,43% cursavam o ciclo básico do curso, e 45,61% não ingressaram por cota. Em relação à renda, 52,3% possuíam renda familiar de até cinco salários mínimos. As categorias que emergiram da análise foram habilidades comunicativas (capacidade de construir uma boa relação médico-paciente e de se comunicar), empatia (vontade de olhar o indivíduo pelas experiências dele e utilizar isso para auxiliar o tratamento), aspectos culturais (conhecimento antropológico e cultural da comunidade à qual for prestar assistência) e determinantes sociais (compreensão das vulnerabilidades específicas dessa população).

Conclusão:

O presente artigo permitiu refletir sobre o estudo da pluralidade acerca dos processos de saúde e doença no que diz respeito à saúde indígena, e analisou quem são os estudantes e de que forma a saúde indígena e as competências médicas para atender essa população estão sendo abordadas ao longo da formação no estado de Santa Catarina.

Palavras-chave:
Saúde Indígena; Estudantes de Medicina; Competência Médica; Vulnerabilidade em Saúde; Educação Médica

Abstract:

Introduction:

Brazilian medical training has been rethought from the National Curriculum Guidelines, which show the need to include approaches in the curricula that consider the training of general practitioners, aimed at assisting vulnerable populations.

Objective:

The objective was to describe the profile of medical students at universities in Santa Catarina and to analyse which skills they describe as necessary to medical care for the indigenous population.

Method:

This was a cross-sectional quantitative and exploratory qualitative study. Data was collected using an online questionnaire with medical students from the state of Santa Catarina. Quantitative data was analysed using descriptive statistics and content analysis was used for qualitative data.

Results:

The profile reflected a predominance of women (66.95%), a mean age of 24.47 years (± 5.35), and 83.26% self-declared as being of white race/colour. In addition, 76.99% of the students were born in the southern region of Brazil; 41.43% are taking the basic cycle of the course; 45.61% did not enroll due to ethnic quota; in relation to income, 52.3% of the students have a household income of up to five minimum wages. The categories that emerged from the analysis were communication skills (the ability to build a good doctor-patient relationship and to communicate), empathy (willingness to look at the individual through their experiences and use this to aid treatment), cultural aspects (anthropological and cultural knowledge of the community to which assistance is provided), social determinants (understanding of the specific vulnerabilities of this population).

Final considerations:

This article as allowed us to reflect on the study of plurality about health and disease processes relating to indigenous health and has analysed who the students are and how indigenous health and medical competencies to assist this population are being addressed during training in the state of Santa Catarina.

Keywords:
Indigenous Health; Medical Students; Medical Competency; Vulnerability in Health; Medical Education

INTRODUÇÃO

No Brasil, as políticas públicas de saúde voltadas para os povos indígenas surgiram de forma tardia, os quais foram reconhecidos, pela primeira vez, como cidadãos de direito na Constituição Federal de 198811. Brasil. Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. 2a ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2002.. Isso resultou em um significativo contraste social dos mais diversos tipos, levando a drásticas perdas nas áreas da educação, saneamento, habitação e saúde22. Coimbra Junior CEA. Saúde e povos indígenas no Brasil: reflexões a partir do I Inquérito Nacional de Saúde e Nutrição Indígena. Cad Saude Publica. 2014;30(4):855-9. doi: https://doi.org/10.1590/0102-311X00031214.
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Nesse sentido, pensar em elementos que minimizem a desigualdade de saúde da população indígena passa pelo conhecimento sobre uma realidade de saúde pouco vista durante a graduação. Para isso, foi fundamental que as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) dos cursos de graduação em Medicina abordassem a relevância da atenção às necessidades individuais de saúde e o desenvolvimento de habilidades assistenciais dos médicos. Além disso, como as DCN de Medicina orientam no artigo 12 sobre a atenção às necessidades individuais de saúde, especificamente no parágrafo f, o profissional deve atuar na “identificação dos motivos ou queixas, evitando julgamentos, considerando o contexto de vida e dos elementos biológicos, psicológicos, socioeconômicos e a investigação de práticas culturais de cura em saúde, de matriz afro-indígena-brasileira e de outras relacionadas ao processo saúde-doença”33. Brasil. Resolução nº 3, de 20 de junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de graduação em Medicina e dá outras providências. Diário Oficial da União; 23 jun. 2014.),(44. Diehl EE, Pellegrini MA. Saúde e povos indígenas no Brasil: o desafio da formação e educação permanente de trabalhadores para atuação em contextos interculturais. Cad Saude Publica . 2014;30(4):867-74. doi: https://doi.org/10.1590/0102-311X00030014.
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Visto que, no nosso país, segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgado no ano de 2010, a população indígena brasileira correspondia a 896.917 pessoas e que no estado de Santa Catarina 16.041 indivíduos se autodeclaram indígenas55. Instituto Brasileira de Geografia e Estatística. Os indígenas no Censo Demográfico 2010. Brasília: IBGE; 2012., pode-se observar que existe a necessidade de um olhar diferenciado à saúde desse povo. A Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) é responsável por organizar a assistência à saúde por meio de um modelo de atenção diferenciado à saúde indígena, baseando-se na reciprocidade entre as comunidades e os agentes de intervenção, seja na troca de experiências, no poder de decisão ou na busca de eficácia simbólica, por meio da compreensão ampla do universo indígena e da aproximação entre medicina e cultura. Ademais, devem-se abranger, de forma global e criativa, os determinantes históricos, sociais e ambientais da saúde66. Moraes PD. Em busca da atenção diferenciada na saúde indígena. Conselho Indigenista Missionário; 2013 [acesso em 15 set 2022]. Disponível em: Disponível em: https://cimi.org.br/2013/02/34438/ .
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Assim, os aspectos envolvidos na assistência a essa população exigem dos profissionais habilidades comunicativas, empatia nas relações, reconhecimento de sua cultura como fortaleza do cuidado e conhecimento de seus diferentes agravos à saúde que tornam essa comunidade vulnerável. A partir dessas reflexões, torna-se uma necessária abordagem do tema, e pesquisas têm mostrado a importância da articulação do campo da antropologia para dar conta da dinamicidade na atenção diferenciada à população indígena66. Moraes PD. Em busca da atenção diferenciada na saúde indígena. Conselho Indigenista Missionário; 2013 [acesso em 15 set 2022]. Disponível em: Disponível em: https://cimi.org.br/2013/02/34438/ .
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),(77. Diehl EE, Langdon EJ, Dias-Scopel RP. Contribuição dos agentes indígenas de saúde na atenção diferenciada à saúde dos povos indígenas brasileiros. Cad Saude Publica . 2012; 28(5):819-31. doi: https://doi.org/10.1590/S0102-311X2012000500002.
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A Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (Pnaspi) ressalta que os estudos e levantamentos socioantropológicos existentes e os realizados de forma participativa deverão ser aproveitados como subsídios à formação de recursos humanos e à própria prestação de serviço11. Brasil. Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas. 2a ed. Brasília: Ministério da Saúde; 2002.. Assim, pensando em dialogar com o que vem sendo direcionado nacionalmente no campo da formação médica, esta pesquisa buscou descrever o perfil de estudantes de Medicina das universidades de Santa Catarina e analisar quais competências eles consideram necessárias para atender a população indígena.

MÉTODO

O desenho utilizado nesta pesquisa foi composto por duas abordagens: uma quantitativa do tipo transversal e uma qualitativa de natureza exploratória88. Medronho R, Carvalho D, Bloch K. Epidemiologia. 2a ed. Rio de Janeiro: Atheneu; 2008.),(99. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2014..

A coleta de dados ocorreu de modo on-line com estudantes de Medicina do estado de Santa Catarina. Para a coleta de dados, foi organizado um questionário com questões abertas e fechadas que buscavam identificar o perfil dos estudantes (idade, sexo, renda, universidade, período do curso, instituição pública ou privada, raça/cor autodeclarada, sistema de cotas cotista) e características relacionadas à formação médica para trabalhar com a população indígena. Composto por 25 perguntas, o questionário foi respondido por meio de link eletrônico enviado a todas as universidades do estado de Santa Catarina. Construiu-se o instrumento de coleta de dados para esta pesquisa, e fez-se um teste-piloto na aplicação, descartando os cinco primeiros instrumentos, com posterior ajuste de algumas questões. Não foi necessária a identificação do estudante. Se o discente desejasse receber os resultados da pesquisa, as informações seriam enviadas no e-mail dele.

Adotaram-se os seguintes critérios de inclusão: ser estudante de Medicina e ter contato de e-mail ou telefone disponível na instituição onde estudava. Excluíram-se aqueles não tinham acesso à internet ou apresentaram alguma dificuldade para abrir os links do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e do questionário. O período da coleta de dados foi de 10 de maio a 30 de junho de 2021.

Para dar início à coleta de dados, organizou-se uma lista com os contatos de telefone e e-mail de todos os cursos de Medicina do estado de Santa Catarina disponíveis nas páginas da universidades. Em seguida, enviaram-se, por e-mail, aos coordenadores de curso um convite para participação na pesquisa, o link de acesso ao TCLE e as questões da pesquisa. Assim, os estudantes receberam por meio de suas instituições os convites para a participação no estudo.

Após responderem ao TCLE, os estudantes visualizavam o questionário e ao final enviavam suas respostas. As pesquisadoras fizeram download dos dados do sistema digital em planilha eletrônica, importando para o software R para a realização da análise das variáveis quantitativas, por meio da estatística descritiva (porcentagem e média). O software R é gratuito e utiliza uma linguagem de programação multiparadigma orientada a objetos, programação funcional, dinâmica, fracamente tipada, voltada à manipulação, análise e visualização de dados1010. R Poject. The R Project for Statistical Computing [acesso em 15 set 2022]. Disponível em: Disponível em: https://www.r-project.org/ .
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Para a realização da análise dos dados das variáveis qualitativas, foi utilizado o método de análise de conteúdo proposto por Bardin1111. Bardin L. Análise de conteúdo. São Paulo: Edições 70; 2011. que consiste em três fases: pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados, inferência e interpretação.

A respeito da fase inicial, de pré-análise, após reunir em um único documento todas as respostas, foi realizada a leitura flutuante do material. Em seguida, executou-se a exploração do material, segunda fase do método, em que se procurou verificar se as ações da fase anterior foram devidamente concluídas, para assim proceder à codificação e decomposição das construções coletadas. Para a codificação, primeiramente, estabeleceram-se as unidades de registro por temas, e, em seguida, elas foram recortadas. Por fim, agruparam-se todas as falas que diziam respeito a cada tema. A partir disso, criaram-se as categorias que transformam os dados brutos em dados organizados, fornecendo uma representação simplificada66. Moraes PD. Em busca da atenção diferenciada na saúde indígena. Conselho Indigenista Missionário; 2013 [acesso em 15 set 2022]. Disponível em: Disponível em: https://cimi.org.br/2013/02/34438/ .
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. Por último, na fase de tratamento, inferências e interpretações dos resultados, empreenderam-se esforços para que os resultados obtidos fossem significativos e válidos. Para isso, foram construídos quadros que permitiram a visualização facilitada de informações, como também possibilitaram constantes retornos que auxiliaram na interpretação dos resultados.

Para o cálculo amostral, utilizou-se o número de estudantes do curso de Medicina do estado de Santa Catarina em 2020, sendo considerado um total de 1.147 matriculados. No cálculo de prevalência, incluíram-se 62% de estudantes de Medicina que relataram ter tido contato com professores que abordaram o tema de saúde indígena durante a graduação1212. Moreira V. Desafios experenciados por estudantes da graduação durante formação médica em curso inaugurado no âmbito do Programa Mais Médicos [trabalho de conclusão de curso]. Araranguá: Universidade Federal de Santa Catarina; 2022., sendo necessário o quantitativo de 275 respondentes com margem de erro de 5%.

Submetido ao Comitê de Ética e Pesquisa, o projeto de pesquisa aprovado sob o CCAE nº 44214321.6.0000.5564, Parecer nº 4.684.544, em 30 de abril de 2021. Além disso, ressalta-se que a pesquisa foi conduzida de acordo com todos os padrões éticos exigidos (resoluções do Ministério da Saúde nºs 466/2012, 510/2016 e 580/2018).

RESULTADOS

Participaram desta pesquisa 239 estudantes de Medicina de 11 universidades de Santa Catarina, sendo duas federais e nove privadas. Na Tabela 1, é apresentado o perfil dos participantes da pesquisa, considerando idade, sexo, renda, universidade, período do curso, instituição pública ou privada, raça/cor autodeclarada e sistema de cotas/cotista.

Tabela 1
Características sociodemográficas dos estudantes de Medicina.

No que concerne às características sociodemográficas, constatou-se um predomínio de estudantes de Medicina oriundos de instituições públicas, totalizando 130 (54,39%), sendo 109 (45,61%) de uma universidade federal da região oeste de Santa Catarina; nas formas de ingresso no curso, destaca-se o vestibular com 114 (47,70%) participantes; 99 (41,43%) ainda estavam cursando o ciclo básico do curso; 109 (45,61%) não ingressaram por meio de cota; quanto à região do Brasil, 184 (76,99%) nasceram no Sul; 160 (66,95%) eram mulheres; 199 (83,26%) se autodeclararam de raça/cor branca; a média de idade foi de 24,47 anos (± 5,35); e 125 (52,3%) possuíam renda familiar de até cinco salários mínimos.

Na Tabela 2, estão reunidas as respostas dos participantes quando questionados em relação ao curso e à sua formação, e se esta contemplou ou não a saúde da população indígena.

Tabela 2
Conhecimento dos estudantes sobre medicina e saúde indígena.

Quando questionados sobre o conceito de saúde para pessoas indígenas e não indígenas, 97 alunos (40,59%) concordaram totalmente que o entendimento desses dois grupos é diferente. Ademais, 158 (66,11%) participantes concordaram que os indígenas são um grupo que sofre com a invisibilidade social. Quanto ao atendimento em saúde, 100 alunos (41,84%) concordaram parcialmente que há diferenças entre indígenas e não indígenas. A maioria dos alunos, 148 (61,92%), discordou totalmente ao ser questionada a respeito de já ter estudado sobre a saúde indígena, e 144 (60,25%) também discordaram totalmente que já estudaram sobre o sistema de saúde direcionado à população indígena. Observa-se da mesma forma que 121 (50,63%) discentes discordaram totalmente que não seria necessária uma formação diferenciada para atuar em comunidades indígenas. Outrossim, 116 (48,54%) discordaram totalmente que a formação médica que estão recebendo os prepara para trabalhar com essa população. Quando questionados sobre a possibilidade de trabalhar diretamente com essa população no futuro, 65 alunos (27,20%) concordaram parcialmente que essa poderia ser uma realidade.

Foi questionado aos estudantes sobre quais competências consideram importantes para uma prática médica em comunidades indígenas. A partir da análise dos dados de 239 questionários, as respostas foram contabilizadas e agrupadas em quatro categorias: “Habilidades comunicativas: ‘capacidade de construir uma boa relação médico-paciente e de se comunicar [...]’”, “Empatia: ‘vontade de olhar o indivíduo pelas experiências dele e utilizar isso para auxiliar o tratamento’”, “Aspectos culturais: ‘conhecimento antropológico e cultural da comunidade à qual for prestar assistência [...]’” e “Determinantes sociais: ‘compreensão das vulnerabilidades específicas dessa população’”.

Habilidades comunicativas: “capacidade de construir uma boa relação médico-paciente e de se comunicar [...]”

Os participantes consideraram importante que os médicos desenvolvam modos de se comunicar de maneira efetiva com seus pacientes. Sabe-se que as comunidades indígenas no Brasil possuem mais de 274 diferentes línguas e dialetos, demonstrando a importância dessa competência para a prática médica e da necessidade de se construir uma boa relação médico-paciente55. Instituto Brasileira de Geografia e Estatística. Os indígenas no Censo Demográfico 2010. Brasília: IBGE; 2012.. As palavras e expressões que apareceram nas respostas dos questionários relacionadas a essa habilidade foram comunicação, habilidades comunicativas, adequação da linguagem e necessidade de dialogar e ter escuta ativa. As falas a seguir representam um pouco disso:

Escuta adequada, zero preconceitos, boa habilidade comunicativa [...] (P149).

[...] escuta ativa, compreensão, maleabilidade, bom relacionamento [...] (P7).

[...] boa capacidade de dialogar com o paciente [...] (P174).

[...] a linguagem diferente. Ex.: Kaingang [...] (P86).

Empatia: “vontade de olhar o indivíduo pelas experiências dele e utilizar isso para auxiliar o tratamento”

A palavra empatia foi mencionada diversas vezes nas respostas dos estudantes. Isso demonstra que tanto o conceito quanto a ideia de “habilidades interpessoais [...] (P233)” são essenciais para a formação médica e também trabalhadas nas universidades. Quando se trata de populações vulneráveis, os estudantes entrevistados demonstram uma preocupação ainda maior em relação à necessidade de um atendimento mais humanizado. As palavras que apareceram nas respostas dos questionários que elucidam essa habilidade foram respeito, empatia, olhar - humanizado/diferenciado e humildade. As falas apresentadas a seguir sintetizam essa ideia:

[...] olhar humanizado, alteridade e respeito (P2).

Olhar diferenciado e respeitoso [...] (P27).

Respeito sobre a cultura desta população em relação ao processo saúde-doença, levando em conta suas experiências [...] (P237).

[...] compaixão [...] (P62).

[...] capacidade de entender a complexidade que é outro ser (P34).

Aspectos culturais: “conhecimento antropológico e cultural da comunidade à qual for prestar assistência [...]”

O conhecimento sobre aspectos culturais foi a competência mais citada pelos participantes da pesquisa, demonstrando a importância de uma atenção diferenciada que respeite os elementos complexos que constituem os diversos modelos de cuidado dessas populações, sendo visto como parte importante do processo de assistência e cura. As palavras cultura/cultural/sociocultural e seus plurais apareceram com muita frequência nas respostas dos estudantes, com a citação de diversidade, costumes, crenças, processo de saúde-doença, conceito de saúde, práticas culturais/medicinais e formas de lidar com a doença. A seguir, apresentam-se alguns depoimentos que ilustram um pouco disso:

[...] saber sobre a cultura dos indígenas, no que eles acreditam, o que costumam utilizar quando estão doentes [...] (P20).

Conhecer a cultura indígena, o que eles consideram saúde/doença, as formas que essa população lida com a doença (P54).

[...] conhecimento prévio sobre cultura e sobre conceitos de saúde da população indígena [...] (P110).

[...] o que consideram como saúde e o que buscam durante o atendimento médico (P181).

[...] tentar adaptar o conhecimento médico da formação médica habitual aos conceitos de saúde/doença indígena e aos conhecimentos de medicina indígena [...] (P200).

Determinantes sociais: “compreensão das vulnerabilidades específicas dessa população”

Os estudantes consideram que é importante o conhecimento epidemiológico dos principais agravos que acometem as comunidades indígenas para auxiliar no seu trabalho com essa população. As palavras citadas foram: determinantes sociais, agravos de saúde, principais doenças/enfermidades, vulnerabilidade, epidemiologia, realidade e doenças endêmicas. Eis algumas respostas que representam essa ideia:

[...] entendimento sobre doenças epidemiologicamente relevantes para esta população específica (P46).

Entender mais sobre doenças endêmicas, predisposições genéticas [...] sobre realidade de assistência para obtenção de medicamentos (P167).

[...] conhecimento acerca das principais questões relacionadas à saúde que acometem a população indígena e ponderação acerca das vulnerabilidades biopsicossociais específicas desse grupo (P180).

Estudo das principais enfermidades que atingem essa população, seja doenças infectocontagiosas ou doenças genéticas crônicas (P182).

Conhecimento e compreensão sobre [...] hábitos alimentares, doenças prevalentes [...] (P37).

[...] conhecer o contexto social dessa população [...] (P45).

[...] ter ciência da vulnerabilidade dos povos indígenas [...] (P63).

Doença pelo fato de não ter o mesmo saneamento e ter contato direto com a terra (P127).

DISCUSSÃO

O perfil socioeconômico dos estudantes de Medicina, principalmente nas universidades públicas, está mudando1313. Scheffer M, Cassenote A, Guerra A, Guilloux AGA, Brandão APD, Miotto BA, et al. Demografia médica no Brasil 2020. São Paulo: FMUSP, CFM; 2020.. Atualmente, as iniciativas relacionadas às ações afirmativas e ao sistema de cotas são responsáveis por ampliar a diversidade e promover mais inclusão no ensino1414. Rego RM, Marques NA, Monteiro PC, Oliveira CLB, Lins NAA, Caldas CAM. O perfil atual do estudante de Medicina e sua repercussão na vivência do curso. Res Med J. 2018;2(1-4):e05. doi: http://dx.doi.org/10.4322/prmj.2018.005.
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O presente artigo, apesar de abranger instituições de ensino tanto públicas quanto privadas, obteve um perfil que satisfaz as políticas de inclusão, pois cerca de 41% (n = 98) dos participantes são oriundos de escola pública. Ainda, grande parte dos participantes (45,6%) da pesquisa é de uma universidade federal da região oeste de Santa Catarina, e, por meio das cotas oferecidas, o perfil desses estudantes se diferencia das outras universidades.

Ademais, a proporção de estudantes com rendas inferiores no curso de Medicina vem aumentando. No ano de 2013, a renda familiar de até seis salários mínimos correspondia a 27,3% dos estudantes, já no ano de 2019 esse número era de 44,7%1313. Scheffer M, Cassenote A, Guerra A, Guilloux AGA, Brandão APD, Miotto BA, et al. Demografia médica no Brasil 2020. São Paulo: FMUSP, CFM; 2020.. Esses valores são ainda maiores neste estudo, pois 52,3% dos estudantes possuem renda de até cinco salários mínimos, refletindo uma maior inclusão social na graduação médica.

Destaca-se também a maior presença feminina que acompanha a tendência crescente brasileira da presença de mulheres nos cursos de Medicina1313. Scheffer M, Cassenote A, Guerra A, Guilloux AGA, Brandão APD, Miotto BA, et al. Demografia médica no Brasil 2020. São Paulo: FMUSP, CFM; 2020.),(1515. Lima MC, Domingues MS, Cerqueira AT. Prevalence and risk factors of common mental disorders among medical students. Rev Saude Publica. 2006;40(6):1035-41. doi: https://doi.org/10.1590/S0034-89102006000700011.
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. A média de idade foi de 24,47 anos (± 5,35), e percebe-se um aumento de médicos na faixa etária mais jovem ao longo dos anos13. Além disso, 83,26% se autodeclararam de raça ou cor branca, 12,13% se declararam pardos, 2,93% se autodeclararam da cor ou raça preta, 0,42% se autodeclou da cor ou raça amarela, e 1,26% mencionou ser indígena. Apesar do predomínio da raça ou cor branca nos dados obtidos da pesquisa, é importante compreender que esse perfil difere de uma amostra composta por estudantes somente de universidades públicas ou privadas, mas segue de acordo com o perfil dos concluintes do curso de Medicina de 20191313. Scheffer M, Cassenote A, Guerra A, Guilloux AGA, Brandão APD, Miotto BA, et al. Demografia médica no Brasil 2020. São Paulo: FMUSP, CFM; 2020.. Também, mesmo com percentual baixo de participação (1,26%), é especialmente importante e constitui esperança para futuras mudanças a presença de estudantes indígenas na pesquisa.

A inclusão de indígenas nos cursos de Medicina possibilita uma maior representatividade do grupo no contexto das universidades, como também diversifica a construção do pensamento médico sobre diferentes concepções do processo de saúde-doença1616. Luna WF. Indígenas na escola médica no Brasil: experiências e trajetórias nas universidades federais [tese]. Botucatu: Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”; 2021.. Experiências de reserva de vagas para estudantes oriundos de populações originárias acontecem na Austrália, no Canadá e em diversos países da América Latina. Esse movimento é capaz de tornar os futuros profissionais poderosos agentes modificadores com responsabilidade e engajamento no que concerne à saúde local1616. Luna WF. Indígenas na escola médica no Brasil: experiências e trajetórias nas universidades federais [tese]. Botucatu: Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”; 2021..

Do mesmo modo, a importante presença da disciplina Saúde Indígena nas grades curriculares da Medicina foi tema de discussão na 4ª Conferência Nacional de Saúde Indígena no ano de 2007. Partindo desses pontos, é possível inferir que há uma urgência em garantir uma atenção a essa população, e essa garantia perpassa pela necessidade de as escolas médicas abordarem novos horizontes além dos conteúdos clássicos da área da saúde44. Diehl EE, Pellegrini MA. Saúde e povos indígenas no Brasil: o desafio da formação e educação permanente de trabalhadores para atuação em contextos interculturais. Cad Saude Publica . 2014;30(4):867-74. doi: https://doi.org/10.1590/0102-311X00030014.
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A necessidade de ampliação da abordagem para essa população está presente nas DCN para os cursos de Medicina de 2014 que apresentam importantes pontos de valorização sobre as diversidades étnicas, por exemplo:

O graduando será formado para considerar sempre as dimensões da diversidade biológica, subjetiva, étnico-racial, de gênero, orientação sexual, socioeconômica, política, ambiental, cultural, ética e demais aspectos que compõem o espectro da diversidade humana que singularizam cada pessoa ou cada grupo social 3 3. Brasil. Resolução nº 3, de 20 de junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de graduação em Medicina e dá outras providências. Diário Oficial da União; 23 jun. 2014.

Nesse sentido, o futuro médico deverá formar-se para atuar

Sem privilégios nem preconceitos de qualquer espécie, tratando as desigualdades com equidade e atendendo as necessidades pessoais específicas, segundo as prioridades definidas pela vulnerabilidade e pelo risco à saúde e à vida, observado o que determina o Sistema Único de Saúde (SUS) 3 3. Brasil. Resolução nº 3, de 20 de junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de graduação em Medicina e dá outras providências. Diário Oficial da União; 23 jun. 2014. .

Ainda que se encontrem indígenas em todo o território nacional1717. Instituto Socioambiental. Povos Indígenas no Brasil. 2012 [acesso em 2 dez 2021]. Disponível em: Disponível em: https://www.socioambiental.org/pt-br/o-isa/programas/povos-indigenas-no-brasil .
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, as DCN não abordam explicitamente a importância das experiências dos estudantes de Medicina direcionadas a essa população. Isso gera uma inclinação ao pensamento de que esse aprendizado deveria ser reservado apenas para quem almeja trabalhar com essa população, o que pode ser observado na resposta dos participantes da pesquisa, em que menos de 30% consideraram essa possibilidade no futuro.

Faz-se importante reforçar que neste estudo aproximadamente 41% dos alunos concordaram que o entendimento sobre saúde indígena e não indígena é diferente, mas aproximadamente 62% relataram não ter estudado sobre saúde indígena durante a graduação. Esses dados se assemelham aos de outros estudos em que os entrevistados acreditam que aprender sobre os povos indígenas é importante, mas a maioria não se sente devidamente preparada para trabalhar com eles1818. Yeung S, Bombay A, Walker C, Denis J, Martin D, Sylvestre P et al. Predictors of medical student interest in Indigenous health learning and clinical practice: a Canadian case study. BMC Med Educ. 2018;18(307):e33..

Essa dificuldade tem origem na escassez de discussões sobre o tema na graduação. Mesmo que as DCN e a Associação Brasileira de Educação Médica contemplem pontos de valorização das diferenças étnico-raciais, na prática isso deve ser operacionalizado na formação1919. Freitas FPP, Luna WF, Bastos LOA, Avila BT. Experiências de médicos brasileiros em seus primeiros meses na atenção primária à saúde na terra indígena Yanomami. Interface. 2021;25:e200212. doi: https://doi.org/10.1590/interface.200212.
https://doi.org/https://doi.org/10.1590/...
),(2020. Associação Brasileira de Educação Médica. Recomendações da Abem para o ensino da saúde indígena nas escolas médicas brasileiras. Abem; 2021 [acesso 2 set 2022]. Disponível em: Disponível em: https://website.abem-educmed.org.br/wp-content/uploads/2020/12/Recomenda%C3%A7%C3%B5es-Abem_-ensino-da-tem%C3%A1tica-Sa%C3%BAde-Ind%C3%ADgena-nas-escolas-de-medicina.pdf .
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. Na resposta dos participantes da pesquisa, observou-se que, ao serem questionados se a formação médica que estão recebendo os prepara para trabalhar com essa população, quase 50% discordam dessa afirmação.

Contudo, percebe-se, ao longo das falas dos participantes, uma preocupação importante sobre a possibilidade de fazer uma medicina mais humanista em cenários pouco explorados: humanidade, empatia e entender todo o contexto que envolve essa população, sua história, sua cultura, seus costumes. Isso é um reflexo positivo das mudanças das DCN e do processo de formação de estudantes/futuros profissionais com consciência crítica e reflexiva de que é necessária uma abordagem diferenciada no que tange ao atendimento de populações vulneráveis.

Para os estudantes entrevistados na pesquisa, os novos horizontes correspondem a um grupo de ideias e conceitos que as pesquisadoras denominaram de competências importantes para a prática médica voltada para a população indígena. Essas competências incluem ter boas habilidades comunicativas, ser empático no atendimento e saber reconhecer os aspectos culturais envolvidos na assistência e os determinantes sociais que tornam os indígenas vulneráveis ao adoecimento.

Sobre a comunicação em saúde e a empatia na prática assistencial, o futuro médico necessita desenvolver a comunicação, por meio de linguagem verbal e não verbal, com usuários, familiares, comunidades e membros das equipes profissionais, com empatia, sensibilidade e interesse, preservando a confidencialidade, a compreensão, a autonomia e a segurança da pessoa sob cuidado33. Brasil. Resolução nº 3, de 20 de junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de graduação em Medicina e dá outras providências. Diário Oficial da União; 23 jun. 2014..

Por meio da linguagem, o indivíduo reflete sobre suas memórias e sensações presentes em um nível inconsciente e torna-se capaz de expressar seus sentimentos de maneira consciente e significativa, o que é essencial para o contato interpessoal2121. Falk JW, Gusso G, Lopes JMC. Medicina de família e comunidade como especialidade médica e profissão. In: Gusso G, Lopes JMC. Tratado de medicina de família e comunidade: princípios, formação e prática. Porto Alegre: Artmed; 2012.. No entanto, a dificuldade em estabelecer uma comunicação efetiva representa um grande desafio quando médico e paciente falam línguas distintas. Estudos relatam que esse obstáculo acaba sendo superado com o passar do tempo e com o frequente contato com a população indígena, contudo ressaltam a importância de uma comunicação intercultural mais sensível e cuidadosa2222. Silva RP, Barcelos AC, Hirano BQL, Izzo RS, Calafate JMS, Soares TO. A experiência de alunos do PET-Saúde com a saúde indígena e o Programa Mais Médicos. Interface (Botucatu). 2015;19(1):1005-14. doi: https://doi.org/10.1590/1807-57622014.1021.
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Além de tudo, a dificuldade de comunicação e de compreensão do português constitui fator importante para a adesão ao tratamento médico2323. Silva CB. Profissionais de saúde em contexto indígena: os desafios para uma atuação intercultural e dialógica. Rev Antropol. 2013;5(6):1-34., o que reitera a importância de se conhecer a história desses povos e buscar conhecimentos que contribuam para uma comunicação efetiva e atuação contextualizada2323. Silva CB. Profissionais de saúde em contexto indígena: os desafios para uma atuação intercultural e dialógica. Rev Antropol. 2013;5(6):1-34.. Faz- se necessário destacar a importância da escuta qualificada e do diálogo para facilitar a relação médico-paciente; ademais, o modelo de atenção à saúde indígena se aproxima da política nacional de humanização, pautada em escuta e questionamento sobre os conceitos relacionados à saúde, ao adoecimento e à cura2424. Brasil. Política Nacional de Humanização. Brasília: Ministério da Saúde ; 2010..

Ademais, é importante a participação empática por parte de quem ouve a narrativa para que a escuta cumpra seu objetivo. A escuta ativa é uma atitude que tem por objetivos permitir e facilitar a expressão verbal e não verbal do interlocutor, e constitui importante instrumento da abordagem clínica centrada na pessoa. Assim, “a escuta ativa deve estar baseada no interesse genuíno pelo outro, na empatia e no acolhimento real do que está sendo dito ou expresso”2121. Falk JW, Gusso G, Lopes JMC. Medicina de família e comunidade como especialidade médica e profissão. In: Gusso G, Lopes JMC. Tratado de medicina de família e comunidade: princípios, formação e prática. Porto Alegre: Artmed; 2012..

A empatia diz respeito à habilidade que, por meio da perspectiva do outro, permite a compreensão do seu estado físico e mental. Ela também é uma competência clínica indispensável para a prática médica, pois colocar-se no lugar dos pacientes e dividir seus sentimentos resulta em uma melhor e mais efetiva relação médico-paciente2525. Peixoto JMM, Perlatto E. Health empathy map: creation of an instrument for empathy development. Rev Bras Educ Med. 2020;44(01):e029. doi: https://doi.org/10.1590/1981-5271v44.1-20190151.
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Com o intenso processo de urbanização, o encontro entre profissionais da saúde e indígenas torna-se mais comum. Nesse encontro, compreendem-se todo o ambiente, suas crenças, seus valores, sua visão de mundo espiritual, o sistema cultural próprio, toda sua história de luta e resistência e a sua forma de curar doenças. Assim, “os profissionais se veem no limiar da negociação dos significados, no desafio da decodificação e da reinterpretação da maneira de pensar, ver e reagir dos povos indígenas”2323. Silva CB. Profissionais de saúde em contexto indígena: os desafios para uma atuação intercultural e dialógica. Rev Antropol. 2013;5(6):1-34..

Como resultado da pesquisa, obteve-se um expressivo número de respostas que abordaram o tema empatia. Sendo assim, é cada vez mais importante que professores da área da saúde fomentem atividades com o intuito de desenvolver essa habilidade entre os estudantes. A exemplo disso, podemos mencionar a experiência em atividades de extensão universitária no Ambulatório do Índio e no Hospital de São Paulo da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). O projeto tem o intuito de criar espaços para o desenvolvimento de diferentes percepções do processo de saúde-doença para que os alunos da graduação se deparem com o universo indígena, a fim de que possam promover um acolhimento humanizado e sensível2626. Pereira ER, Biruel EP, Oliveira LSS, Rodrigues DA. A experiência de um serviço de saúde especializado no atendimento a pacientes indígenas. Saúde Soc. 2014;23(3):1077-90. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-12902014000300027.
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Portanto, ter conhecimento de que há diversos fatores que influenciam no processo de saúde-doença, e de que a saúde é fenômeno individual, multicausal e inteiramente influenciado pelos determinantes sociais é um passo fundamental para expressar, diante de cenários desafiadores, a empatia. Grande parte dos participantes da pesquisa entende a importância dos conhecimentos sobre epidemiologia indígena para a atuação em saúde. No entanto, há uma grande dificuldade em encontrar dados atualizados e consistentes acerca do tema.

No Brasil, segundo o Ministério da Saúde e dados do Subsistema de Atenção à Saúde Indígena do SUS (SasiSUS), a população indígena é afetada principalmente por doenças respiratórias, infecciosas e parasitárias, infecções sexualmente transmissíveis (IST), hepatites virais, hipertensão arterial, diabetes, câncer de colo de útero, agravos relacionados ao uso abusivo de álcool e drogas, e violência2727. Brasil. Saúde indígena: análise da situação de saúde no SasiSUS. Brasília: Ministério da Saúde ; 2019..

Já em relação à prevalência de doenças crônicas, entre 2015 e 2017, as doenças cardiovasculares e respiratórias, as neoplasias e a diabetes mellitus foram responsáveis por cerca de 27% dos óbitos indígenas assistidos pelo SasiSUS no país. Quanto aos dados de mortalidade em crianças menores de 5 anos, no período de 2010 a 2016 os principais causadores são: doenças do aparelho respiratório, afecções originadas no período perinatal, doenças infecciosas e parasitárias, e doenças endócrinas, nutricionais e metabólicas2727. Brasil. Saúde indígena: análise da situação de saúde no SasiSUS. Brasília: Ministério da Saúde ; 2019..

Somada a toda singularidade, a rede de saúde para a população indígena, que é regida pelos mesmos princípios do SUS e opera com princípios da universalidade, equidade e integralidade, ainda assim apresenta dificuldades de oferecer atendimento plenamente compatível às necessidades dessa população2828. Ferreira LO. Interculturalidade e saúde indígena no contexto das políticas púbicas brasileiras. In: Langdon EJ, Cardoso MD. Saúde indígena: políticas comparadas na América Latina. Florianópolis: Editora da UFSC; 2015.. Isso se deve ao fato de que grande parte dos profissionais apresenta dificuldades para atuar em cenários interculturais44. Diehl EE, Pellegrini MA. Saúde e povos indígenas no Brasil: o desafio da formação e educação permanente de trabalhadores para atuação em contextos interculturais. Cad Saude Publica . 2014;30(4):867-74. doi: https://doi.org/10.1590/0102-311X00030014.
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. Em relação à saúde, a cultura é um elemento complexo e indispensável para auxiliar no entendimento de uma determinada enfermidade2929. Langdon EJ. A construção sociocultural da doença e seu desafio para a prática médica. Parque indígena do Xingu: saúde, cultura e história. São Paulo: Terra Virgem; 2005..

A percepção de que os aspectos interculturais representam um grande desafio no que tange ao atendimento em saúde, especialmente para a população indígena, é comum entre os profissionais de saúde e está presente entre os estudantes da pesquisa2323. Silva CB. Profissionais de saúde em contexto indígena: os desafios para uma atuação intercultural e dialógica. Rev Antropol. 2013;5(6):1-34.. A partir do exposto, é possível verificar que os futuros profissionais médicos, diante de contextos comunitários indígenas, consideram que é necessária uma abordagem diferenciada que relacione o serviço de saúde com as medicinas tradicionais.

A Pnaspi de 2002 tem como diretriz a “preparação de recursos humanos para atuação no contexto intercultural”. Dessa forma, o cuidado destinado à população indígena invariavelmente atravessa o universo cultural. Nesse contexto, o cuidado deve sobretudo pautar-se pela identificação dos motivos ou das queixas. Com base nisso, é imprescindível evitar julgamentos e considerar o contexto de vida e dos elementos biológicos, psicológicos e socioeconômicos, e a investigação de práticas culturais de cura em saúde, de matriz afro-indígena-brasileira e de outras relacionadas ao processo de saúde-doença33. Brasil. Resolução nº 3, de 20 de junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do curso de graduação em Medicina e dá outras providências. Diário Oficial da União; 23 jun. 2014..

Consequentemente para garantir um serviço marcado pela integralidade, é necessário que, além do conhecimento técnico, os profissionais que atuam no campo tenham desenvolvido em sua trajetória acadêmica “background cultural diferente do que se é ensinado na universidade”. Logo, reconhece-se como essencial o despertar da sensibilidade para situações de diálogo entre diferentes culturas nas graduações na área saúde3030. Luna WF, Malvezzi C, Teixeira KC, Almeida DT, Bezerra VP. Identity, care and rights: the experience of talking circles about the health of indigenous people. Rev Bras Educ Med . 2020; 44(02):e067. doi: https://doi.org/10.1590/1981-5271v44.2-20190309.
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Ressalta-se, ainda, que o conhecimento dos aspectos culturais abrange as demais competências supracitadas. Para que a cultura seja compreendida e valorizada como um elemento influenciador da saúde indígena, é necessário não somente considerá-la como um determinante social, mas também como o aprimoramento profissional das habilidades comunicativas e da empatia durante o exercício da medicina.

A importância desta pesquisa reside no fato de ter instigado reflexões acerca da formação médica. Contudo, observou-se uma limitação: a impossibilidade de restringir o número de respondentes da mesma instituição, uma vez que se utilizou o formato eletrônico para o envio do questionário e para o recebimento das respostas. Seria importante garantir que todas as escolas médicas tivessem ampla participação na resposta ao questionário.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo analisou quem são os estudantes e de que forma a saúde indígena e as competências médicas para atender essa população estão sendo abordadas ao longo da formação no estado de Santa Catarina. Do mesmo modo, percebe-se que o tema ainda revela grandes desafios e receios entre os acadêmicos sobre suas futuras práticas com essa população. Mesmo com os avanços das DCN, nota-se necessário progredir na discussão sobre saúde indígena (e outras populações vulneráveis) nos cursos de graduação em Medicina.

Diante da lacuna de conhecimentos relacionados à temática indígena por estudantes de Medicina, docentes e médicos, é necessário pensar de que forma essas dificuldades serão superadas, de modo que no futuro elas sejam incluídas em programas, disciplinas das grades curriculares e projetos na atenção à saúde indígena.

Sendo assim, o desenvolvimento de uma sensibilidade nas escolas médicas caminha na busca pelo conhecimento dos conceitos culturais e das identidades locais que são elementos-chave para que os futuros médicos, em contato com populações vulneráveis, conheçam os agravos mais prevalentes e assim possam estabelecer uma relação mais compassiva e compatível com a realidade social.

AGRADECIMENTO

As autoras agradecem a todos os participantes da pesquisa.

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    Avaliado pelo processo de double blind review.
  • FINANCIAMENTO

    Declaramos não haver financiamento.

Editado por

Editora-chefe: Rosiane Viana Zuza Diniz. Editor associado: Danilo Borges Paulino.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    13 Dez 2021
  • Aceito
    21 Nov 2022
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