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Definições de tipo lexicográfico nas obras de ficção de José Saramago

Lexicographic definitions in José Saramago’s fiction

Resumo

Uma das características da prosa ficcional de José Saramago é a reflexão acerca do uso da linguagem e, em particular, do léxico. Nenhum autor português mais recente tem ou teve uma preocupação tão evidente e reiterada. Nas obras saramaguianas, encontramos a cada passo o autor preocupado em explicar ao leitor a utilização de determinado vocábulo, refletindo acerca da sua origem e das suas particularidades semânticas. Muitas dessas reflexões podem inserir-se naquilo a que em linguística se chama lexicografia implícita (VERDELHO, 1995), que é representada pelo registo no próprio texto de definições de tipo lexicográfico ou dicionarístico. A lexicografia implícita ocorre sempre que um autor apresenta uma definição de uma palavra ou expressão, com o objetivo de clarificar o seu significado ou evitar a ambiguidade. O objetivo desse estudo é identificar nas obras ficcionais de José Saramago as passagens em que o autor apresenta definições de tipo lexicográfico. Tais definições estão bem marcadas no texto e distinguem-se facilmente do resto do discurso, embora façam também parte dele. O segundo termo da definição é muitas vezes introduzido pela forma verbal é, como em “um machuco é um chaparro novo”, servindo-se o autor, no entanto, de outras expressões: quer dizer, isto quer dizer, isto é, significa, maneira de dizer, para quem não saiba, etc.

Palavras-chave:
José Saramago; obras de ficção; definições de tipo lexicográfico; lexicografia; semântica

Abstract

One of the main features of José Saramago's fictional prose is the reflection on the use of language and, in particular, the lexicon. No other recent Portuguese author has or has had such an evident and reiterated concern. In Saramago's works, we find at each step an author that is concerned to explain to the reader the use of a certain word, reflecting on its origin and semantic peculiarities. Many of these reflections may be considered part of what in linguistics is known as implicit lexicography (VERDELHO, 1995), which refers to the act of recording, in the text itself, lexicographic or dictionary-style definitions. Implicit lexicography occurs whenever an author presents a definition of a word or expression, with the aim of clarifying its meaning or avoiding ambiguity. The objective of this study is to identify in José Saramago's fictional works the passages in which the author presents lexicographic definitions. Such definitions are well-marked in the text and are easily distinguished from the rest of the discourse, although they are also part of it. The second term of the definition is often introduced by the verbal form é (‘is’), as in «um machuco é um chaparro novo», although the author makes use of other expressions: quer dizer (‘that is to say’), isto quer dizer (‘this means’), isto é (‘that is’), significa (‘it means’), maneira de dizer (‘another way of saying’), para quem não saiba (‘for those who don’t know’), etc.

Keywords:
José Saramago; works of fiction; lexicographic type definitions; lexicography; semantics

Resumen

Una de las características de la prosa ficcional de José Saramago es la reflexión sobre el uso del lenguaje y, en particular, del léxico. Ningún autor portugués más reciente tiene ni tuvo una preocupación tan evidente y reiterada. En las obras de Saramago encontramos a cada paso al autor preocupado por explicar al lector el uso de una determinada palabra, reflexionando sobre su origen y particularidades semánticas. Muchas de estas reflexiones pueden insertarse en lo que en lingüística se denomina lexicografía implícita (VERDELHO, 1995), que se representa por el registro en el texto de definiciones de tipo lexicográfico o de diccionario. La lexicografía implícita ocurre siempre que un autor presenta una definición de una palabra o expresión, con el objetivo de aclarar su significado o evitar la ambigüedad. El objetivo de este estudio es identificar en las obras de ficción de José Saramago los pasajes en los que el autor presenta definiciones de tipo lexicográfico. Tales definiciones están bien marcadas en el texto y se distinguen fácilmente del resto del discurso, aunque también forman parte de él. El segundo término de la definición suele ser introducido por la forma verbal é, como en «um machuco é um chaparro novo», aunque el autor hace uso de otras expresiones: quer dizer, isto quer dizer, isto é, significa, maneira de dizer, para quem não saiba, etc.

Palabras clave:
José Saramago; obras de ficción; definiciones de tipos lexicográficos; lexicografía; semántica

Uma das características da prosa ficcional de José Saramago é a reflexão acerca do uso da linguagem e, em particular, do léxico. Nas suas obras, encontramos a cada passo o autor preocupado em explicar ao leitor a utilização de determinado vocábulo, refletindo acerca da sua origem e das suas particularidades semânticas. Muitas dessas reflexões podem inserir-se naquilo a que em linguística se chamam definições de tipo lexicográfico (VERDELHO, 1995VERDELHO, Telmo. As origens da gramaticografia e da lexicografia Latino-Portuguesas. Aveiro: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1995.). Nenhum autor português mais recente tem ou teve uma preocupação tão evidente e reiterada. Essa característica encontra-se em obras sobretudo dos séculos XV, XVI e XVII, épocas em que os glossários e os dicionários ou não existiam ou eram de difícil acesso. Os autores sentiam, pois, necessidade de no próprio texto explicitarem o significado de determinado termo, para evitar equívocos. O Padre António Vieira usava essa estratégia nalguns dos seus sermões e, tendo em conta o gosto e o interesse de Saramago pelo autor jesuíta, é provável que a inclusão no texto de definições de tipo lexicográfico tenha sido inspirada nele.

Como exemplo, apresentamos três definições retiradas dos sermões de Vieira: no “Sermão da Sexagésima” (1655), o autor explica o que significa fábula: “tem duas significações: quer dizer fingimento e quer dizer comédia” (2021, p. 19); no “Sermão do Bom Ladrão” (1655), explica a origem da palavra ladrões:

Antigamente os que assistiam ao lado dos príncipes chamavam-se laterones. E depois, corrompendo-se este vocábulo, como afirma Marco Varro, chamaram-se latrones. E que seria, se, assim como se corrompeu o vocábulo, se corrompessem também os que o mesmo vocábulo significa? (VIEIRA, 2021VIEIRA, Padre António. Sermões - antologia. Braga: Edições Vercial, 2021., p. 129).

No “Sermão de Santo Inácio, fundador da Companhia de Jesus” (1669), explica o que significa ser sem semelhante: “não significa maioria, significa somente diferença” (VIEIRA, 2021VIEIRA, Padre António. Sermões - antologia. Braga: Edições Vercial, 2021., p. 109).

São contextos semelhantes que encontramos nas obras de Saramago e que é raro encontrar noutros prosadores portugueses dos séculos XIX, XX e XXI. Nas obras ficcionais de Almeida Garrett, Camilo Castelo Branco, Júlio Dinis, Eça de Queirós, Raul Brandão, Aquilino Ribeiro, Ferreira de Castro, Fernando Namora, Vergílio Ferreira, Agustina Bessa-Luís, José Cardoso Pires, António Lobo Antunes, Lídia Jorge, etc., é muito raro, senão mesmo impossível, encontrarmos algo semelhante. Em Aquilino Ribeiro, que usou e abusou de vocabulário regional nem sequer dicionarizado, o leitor menos experiente tropeça constantemente em palavras de que não faz a mínima ideia o que significam. E fica sem saber, pois o autor não dá qualquer pista. Ora, em Saramago tal não acontece. Vemos o autor a explicitar o significado de determinada palavra ou expressão, como um bom pedagogo. Não quer dizer, porém, que Saramago, por vezes, não seja obscuro. Mas essa obscuridade dá-se não a nível lexical, mas a nível sintático, com frases propositadamente longas ou truncadas, nas quais o leitor menos atento se pode perder.

Telmo Verdelho, no seu estudo As origens da gramaticografia e da lexicografia latino-portuguesas, chama a esse processo utilizado por Vieira e por Saramago lexicografia implícita. Ou seja, o autor, para evitar “a ambiguidade e a incompreensão resultante do desconhecimento do vocabulário”, sente-se como que obrigado a “facilitar o acesso à significação, oferecendo uma larga margem de informações redundantes e de processos de autodecifração” (VERDELHO, 1995VERDELHO, Telmo. As origens da gramaticografia e da lexicografia Latino-Portuguesas. Aveiro: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1995., p. 169). Tal processo, ou seja, a lexicografia implícita, era um recurso de que os autores se socorriam, numa época em que “não havia património escrito, nem memória textual onde o leitor pudesse familiarizar-se com o especializado e forçosamente mais amplo vocabulário da escrita. Nem havia dicionários quotidianos disponíveis para acompanhar a leitura individual” (VERDELHO, 1995VERDELHO, Telmo. As origens da gramaticografia e da lexicografia Latino-Portuguesas. Aveiro: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1995., p. 169).

O objetivo desse estudo é identificar nas obras ficcionais de José Saramago as passagens em que o autor apresenta definições de tipo lexicográfico. Depois de uma aturada leitura do corpus, conseguimos apurar que as obras que apresentam maior número de definições são o Memorial do convento (1982SARAMAGO, José. Memorial do convento [MC]. 21. ed. Lisboa: Editorial Caminho, 1992 [1982].), O ano da morte de Ricardo Reis (1984SARAMAGO, José. O ano da morte de Ricardo Reis [AMR]. 9. ed. . Lisboa: Editorial Caminho, 1988 [1984].) e A viagem do elefante (2008SARAMAGO, José. A viagem do elefante [VE]. Lisboa: Editorial Caminho, 2008.). Embora possam existir, não conseguimos identificar quaisquer definições em Terra do pecado (1947), Claraboia (2011SARAMAGO, José. Claraboia [CL]. Lisboa: Editorial Caminho, 2011 [1953]. [1953]), Objeto quase (2015SARAMAGO, José. Objeto quase [OQ]. Porto: Porto Editora, 2015 [1978]. [1978]) e A jangada de pedra (1986SARAMAGO, José. A jangada de pedra [JP]. 4. ed. Lisboa: Editorial Caminho, 1988 [1986].).

Passaremos a apresentar as definições encontradas dentro e cada obra, seguindo a cronologia referente ao ano da primeira edição1 1 A fim de simplificar as citações das obras de Saramago, utilizamos uma sigla para designar o título de cada obra: AA [Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas], AC [A caverna], AMR [O ano da morte de Ricardo Reis], C [Caim], CL [Claraboia], E [O evangelho segundo Jesus Cristo], EC [Ensaio sobre a Cegueira], EL [Ensaio sobre a Lucidez], HCL [História do Cerco de Lisboa], HD [O homem duplicado], IM [As intermitências da morte], JP [A jangada de pedra], LC [Levantando do chão], MC [Memorial do convento], MPC [Manual de pintura e caligrafia], OQ [Objeto quase], PM [As pequenas memórias], TN [Todos os nomes], VE [A viagem do elefante]. .

Definições de tipo lexicográfico

As definições de tipo lexicográfico utilizadas por Saramago estão bem marcadas no texto e distinguem-se facilmente do resto do discurso, embora façam também parte dele. O segundo termo da definição é muitas vezes introduzido pela forma verbal é, como em “conhecimento é o ato de conhecer” (MPC, p. 12); “Um machuco é um chaparro novo” (LC, p. 88); “Um chaparro é um sobreiro novo” (LC, p. 88); “um machuco é um sobreiro” (LC, p. 88); “hora de jantar, que é este o nome da refeição do meio-dia” (MC, p. 79); “bátega é chover grosso e intenso” (AMR, p. 193); “digestivo, é o nome que o povo dos restaurantes dá à tribu dos bagaços, brandes e aguardentes” (HCL, p. 133); “cornaca é o nome que se dá àqueles que conduzem os elefantes” (VE, p. 217), etc.

No entanto, o autor por vezes utiliza outras expressões, como: quer dizer (AMR, p. 35; AMR, p. 328; C, p. 132); (C, p. 132); isto quer dizer (MC, p. 50); isto é (EL, p. 255); significa (MC, p. 52; VH, p. 34; VH, p. 35; VH, p. 84; C, p. 67); falando em termos vulgares (TN, p. 29); maneira de dizer (TN, p. 106); maneira abreviada de dizer (A, p. 20); modo expressivo e corrente de dizer (TN, p. 89); para quem não saiba (VE, p. 140), etc.

A primeira obra saramaguiana em que encontrámos definições de tipo lexicográfico é o Manual de pintura e caligrafia (2014SARAMAGO, José. Manual de pintura e caligrafia [MPC]. Porto: Porto Editora, 2014 [1977]. [1977]). Identificámos três definições, em que o autor explica o significado de retórica, conhecimento e pega.

Duas das definições ocorrem logo no capítulo inicial. O narrador reconhece que a escrita é a sua “única possibilidade de salvação e de conhecimento” e depois pergunta-se, como que espantado de utilizar tal termo: “Que ficou aí a fazer a palavra ‘salvação’?” (MPC, p. 12). Acaba por reconhecer que nesse contexto o uso de tal palavra é retórico. Ora, o que ele mais detesta, confessa, é a retórica. E para tirar alguma dúvida ao leitor (ou a si próprio, explica, como se transcrevesse uma entrada de dicionário: “Retórica (um dos significados): Tudo aquilo de que nos servimos no discurso para produzir bom efeito no público, para persuadir os ouvintes” (MPC, p. 12). O comentário prossegue com o narrador a afirmar que já o termo conhecimento é melhor do que o termo salvação, pois “sempre infunde algum respeito, mesmo sabendo-se quão facilmente se escorrega dessa sinceridade para um pedantismo insuportável” (MPC, p. 12). E sente a necessidade de definir o termo: “Conhecimento é o ato de conhecer: eis a definição mais simples, e que me basta, pois é necessário que eu possa simplificar tudo para seguir adiante” (MPC, p. 12-13).

Uma outra definição encontra-se mais à frente, no terceiro capítulo, quando o pintor se encontra com a secretária Olga na SPQR, empresa do cavalheiro que lhe encomendou o retrato. O narrador, numa visão surrealista, imagina-se de braços abertos, a segurar uma pega na mão direita. E, para quem não sabe, ou pode estar a interpretar o termo erradamente, explica: “pega (ave corvídea que, como o papagaio, tem a facilidade de imitar a voz humana)” (MPC, p. 29).

Em Levantado do chão (1980SARAMAGO, José. Levantado do chão [LC]. 10. ed. Lisboa: Editorial Caminho, 1994 [1980].), identificámos seis definições relativas a machuco, debulhadora, moinha, bichas, cadernetas do racionamento e entre as pernas.

No que diz respeito ao primeiro termo, conta o narrador que António Mau-Tempo deu “feriado aos porcos e escondeu-se por trás de um machuco” (LC, p. 88). “Que é um machuco”, pergunta em seguida, colocando-se no papel do leitor pouco familiarizado com o léxico camponês. “Um machuco”, explica num diálogo imaginário entre leitor/autor, “é um chaparro novo, por aqui toda a gente sabe” (LC, p. 88). “E um chaparro”, insiste o putativo leitor. “Um chaparro é um sobreiro novo, ora essa. Então um machuco é um sobreiro, pois não se estava mesmo a ver” (LC, p. 88).

Pondo-se novamente no lugar do leitor ignorante, comenta: “Também complicada, por exemplo, parece esta máquina, e é tão simples. Chamam-lhe debulhadora, nome desta vez bem posto, porque precisamente é isso que faz, tira os grãos da espiga, palha para um lado, cereal para outro” (LC, p. 99). Do trabalho da debulhadora resulta a moinha: “Vem o capataz e diz, Tu vais para a moinha” (LC, p. 100). Para quem não sabe, explica, a moinha é “aquele monstro sem peso, aquela palha poalha que se infiltra pelas ventas e as entope, que se mete por tudo quanto é abertura de roupa e se agarra à pele” (LC, p. 100). Um dos efeitos da moinha, além da comichão, é a sede que causa. Para a acalmar e na falta de fonte próxima, bebia-se água “de um brejo, de borco”, não querendo “saber de vermes e bichas, que é esse o nome que damos aqui às sanguessugas” (LC, p. 101).

Terminada a guerra (provavelmente a segunda), explica o narrador, “já se diz que não tardarão a ficar sem utilidade as cadernetas do racionamento, aqueles papelinhos coloridos que dão direito a comer, havendo com que pagar e havendo o que só por dinheiro se troca” (LC, p. 138). Tais cadernetas, cujo nome oficial era cartas de racionamento de géneros, eram emitidas pela Intendência Geral dos Abastecimentos. Continham senhas com vários produtos alimentares que as famílias podiam comprar, se tivessem dinheiro e as lojas as fornecessem, não acabaram depois da guerra, tendo perdurado em Portugal até aos anos 1950.

A última definição que identificámos em Levantado do chão é sobre a expressão entre as pernas. Os trabalhadores rurais, conta o narrador, juntam-se na vila em protesto a pedir melhores salários. Os guardas, que fazem a segurança, ou seja, que defendem o patronato, desatam a espancar a torto e a direito. Germano Santos Vidal é uma das vítimas. Após a agressão, explica o narrador, sente “a fulminante dor entre as pernas, testículos em linguagem de manual de fisiologia, colhões neste grosseiro falar que mais facilmente se aprende, frágeis bolas balões cheios de imponderável éter que em transe justamente nos elevam” (LC, p. 170).

No Memorial do convento (1982SARAMAGO, José. Memorial do convento [MC]. 21. ed. Lisboa: Editorial Caminho, 1992 [1982].), identificámos oito definições, sendo sete relativas ao léxico religioso: relapsas, convictas e negativas, contumazes, retrato do condenado cercado de diabos e labaredas, por culpas de solicitar mulheres, do lado do evangelho e caudatários. A que sai fora desse âmbito é jantar.

As definições relacionadas com o léxico religioso ocorrem quase todas no capítulo em que Saramago descreve um auto de fé em Lisboa. Para melhor esclarecimento ao leitor, decide explicar o significado de alguns termos utilizados pelo Santo Ofício. Das 53 mulheres condenadas, diz o narrador,

[...] duas serão relaxadas ao braço secular, em carne, por relapsas, e isto quer dizer reincidentes na heresia, por convictas e negativas, e isto quer dizer teimosas apesar de todos os testemunhos, por contumazes, e isto quer dizer persistentes nos erros que são suas verdades, só desacertadas no tempo e no lugar. (MC, p. 50).

A expressão “isto quer dizer”, que introduz as três definições dessa passagem, cremos que Saramago a repescou em Padre António Vieira, que a utiliza com frequência nos seus sermões.2 2 Cf., por exemplo, o “Sermão de S. Pedro” (1644): “Tudo isto quer dizer em Pedro e só em Pedro aquele vos autem” (VIEIRA, 2021, p. 94); o “Sermão de Santo Inácio, fundador da Companhia de Jesus” (1669): “imitando nele e dele todas as virtudes e graças com que resplandeceram; e isto quer dizer: In splendoribus sanctorum” (VIEIRA, 2021, p. 101); o “Sermão do Mandato” (1645): “Isto quer dizer aquele timeas, em frase da Escritura, e assim o trasladam muitos e interpretam todos” (VIEIRA, 2021, p. 187), etc. Além da expressão “isto quer dizer”, Vieira utiliza também “isso quer dizer” ou apenas “quer dizer”. Veja-se no “Sermão do Nascimento da Virgem Maria” (1657): “Logo já havia alguma luz que isso quer dizer diluculo” (VIEIRA, 2021, p. 134); ou no “Sermão de Santo Inácio, fundador da Companhia de Jesus” (1669): “Por isso se chamou maná, ou manhu, que quer dizer: Quid est hoc? Que é isto?” (VIEIRA, 2021, p. 115).

Ainda no contexto do auto de fé, o narrador explica como os condenados iam vestidos: “e a samarra cinzenta, lúgubre cor, com o retrato do condenado cercado de diabos e labaredas, o que, passado a linguagem, significa que aquelas duas mulheres vão arder não tarda” (MC, p. 51-52). E identifica um dos condenados: “aquele é o padre António Teixeira de Sousa, da ilha de São Jorge, por culpas de solicitar mulheres, maneira canónica de dizer que as apalpava e fornicava, decerto começando na palavra do confessionário e terminando no ato recatado da sacristia” (MC, p. 52).

Quando descreve a igreja de madeira, construída à pressa para a visita de D. João V que se desloca a Mafra para inaugurar as obras do convento, Saramago, pela voz do narrador, emprega a expressão quer-se dizer para explicar o que é um dos lados do altar: “Do lado do evangelho, quer-se dizer, do lado esquerdo de quem esteja virado para o altar, que só não é mor porque é único” (MC, p. 132). Em seguida, justifica a razão de dar tais explicações, numa referência a futuros leitores que do assunto nada entendam e que precisem, para a melhor compreensão do texto, de ajuda: “estas explicações não devem parecer mal, quem cuida ele que nós somos, alguns ignorantes, dão-se estas minúcias porque atrás de crença e ciência dela sempre vêm tempos incréus e ciências outras, sabe-se lá quem nos virá a ler” (MC, p. 132).

Saramago descreve a festa do Corpo de Deus em Lisboa com grande minúcia, sendo essa passagem do romance uma das que mais se aproxima do estilo barroco presente, por exemplo, em Padre António Vieira e em Padre Manuel Bernardes. Ao descrever a procissão em pormenor, com todos os seus atores, refere-se aos auxiliares e acompanhantes do patriarca que segura a custódia com o Corpus Christi. Entre eles, temos os dois cónegos que “levantam as pontas do pluvial e levam as mitras”, os dois subdiáconos que “soerguem a fímbria da fralda” e “os caudatários que vão atrás, por isso caudatários são” (MC, p. 155). Saramago, com a expressão por isso... são, explica sem mais delongas o que são caudatários.

A última definição que encontrámos em Memorial do convento refere-se ao jantar. O narrador lembra que não se trata da refeição do final do dia, mas do nosso atual almoço: “foi hora de jantar, que é este o nome da refeição do meio-dia, não esqueçamos” (MC, p. 79).

A obra ficcional de Saramago em que ocorrem mais definições de tipo lexicográfico é O ano da morte de Ricardo Reis (1984). Identificámos pelo menos 12, que procuram explicar as seguintes palavras ou expressões: bolsas, moço, nimbo, bátega, meia de chocos, repugnante, em corpo bem feito, foyer, roupão, túlipa, pé-coxinho e alcova.

Num dos contextos, o autor vê-se na necessidade de atualizar o significado da palavra bolsa: “talvez este desdém de confortos leve a compadecerem-se as bolsas dos viajantes, porta-moedas como se diz agora” (AMR, p. 14). Noutro contexto, entende que deve explicitar o significado de moço, o empregado do hotel cuja função era transportar as bagagens dos clientes: “a carga vinha subindo toda às costas do moço, só moço de profissão, não de idade, que essa já carrega, carregando ele a mala” (AMR, p. 20).

Ricardo Reis, de passagem pela Praça de Camões, observa a estátua do épico: “há uma claridade branca por trás de Luís de Camões, um nimbo, e veja-se o que as palavras são, esta tanto quer dizer chuva, como nuvem, como círculo luminoso” (AMR, p. 35). O narrador esclarece que não há ali nenhum fenómeno exotérico: “não sendo o vate Deus ou santo, tendo a chuva parado, foram só as nuvens que se adelgaçaram ao passar, não imaginemos milagres de Ourique ou de Fátima” (AMR, p. 35).

A respeito da chuva, que serve para definir o cenário soturno de quase todo o romance, surge a definição de bátega: “Antes que chegue Ricardo Reis à Encarnação cairá uma pancada de água, violenta, amanhã os jornais dirão que têm caído grossas bátegas, noticioso pleonasmo, que bátega é chover grosso e intenso” (AMR, p. 193).

Num restaurante da Rua dos Correeiros onde Ricardo Reis vai jantar, o autor põe a própria personagem a descrever o que vê: “Agora todas as minhas refeições serão assim, estas vozes de criados dizendo para dentro Uma sopa, ou Meia de chocos, maneira abreviada de encomendar meia porção” (AMR, p. 211). Devido à falta de marcações diegéticas ou de pontuação, não podemos concluir que a definição, “Meia de chocos, maneira abreviada de encomendar meia porção”, pertence ao pensamento de Ricardo Reis, uma vez que cinco linhas mais abaixo, depois da descrição do restaurante e sem qualquer ponto final, aparece a referência à personagem em terceira pessoa: “Ricardo Reis sente...” (AMR, p. 211).

Numa conversa com Lídia acerca do irmão dessa, que é marinheiro e tem simpatias comunistas, Ricardo Reis refere que leu um artigo de O Século em que qualifica o Marinheiro Vermelho, uma folha volante e clandestina de oposição ao regime de Salazar, como repugnante. Lídia pergunta: “Que é que quer dizer repugnante” (AMR, p. 328). “Repugnante”, diz Ricardo Reis, “é uma palavra feia, quer dizer repelente, repulsivo, nauseabundo, nojento, Que mete nojo, Exatamente, repugnante quer dizer que mete nojo” (AMR, p. 328). Vemos, pois, nessa passagem, as duas personagens a participar no próprio mecanismo das definições de tipo lexicográfico.

Quando pela primeira vez aparece o fantasma de Fernando Pessoa a Ricardo Reis no quarto do hotel onde estava hospedado, esse “reparou que Fernando Pessoa estava em corpo bem feito, que é maneira portuguesa de dizer que o dito corpo não veste sobretudo nem gabardina nem qualquer outra proteção contra o mau tempo, nem sequer um chapéu para a cabeça” (AMR, p. 80). Essa definição é introduzida pela expressão “que é maneira portuguesa de dizer”.

Nalgumas definições (identificámos cinco), Saramago atualiza ou explicita o significado através de sinónimos. É o caso da palavra francesa foyer: “Atravessou sem parar o foyer, algum dia lhe chamaremos átrio ou vestíbulo se entretanto não vier de outra língua outra palavra que diga tanto, ou mais, ou coisa nenhuma, como esta, por exemplo, ol” (AMR, p. 108). Esse ol será o aportuguesamento do inglês hall. Outro caso é o de roupão: “Levantou-se, vestiu o roupão, robe de chambre na mais culta linguagem francesa” (AMR, p. 306). Ou ainda túlipa: “teria de comprar uma túlipa, um abajur, um globo, um quebra-luz, qualquer destas palavras servirá, desde que não lhe ofusque os olhos, como agora sucede” (AMR, p. 220).

Ricardo Reis, tendo passado a manhã em casa, decide sair. No largo, viu algumas crianças a brincar “ao pé-coxinho, saltando sobre um desenho traçado a giz no chão, de casa em casa, todas com seu número de ordem” (AMR, p. 233). O jogo merece alguns esclarecimentos do narrador: “muitos são os nomes que deram a este jogo, há quem lhe chame macaca, ou o avião, ou o céu-e-inferno, também podia ser roleta ou glória, o seu nome mais perfeito ainda será jogo do homem” (AMR, p. 233). E explica o último sinónimo, jogo de homem, certamente da sua lavra: “assim de figura parece, com aquele corpo direito, aqueles braços abertos, o arco do círculo superior formando cabeça ou pensamento, está deitado nas pedras, olhando as nuvens, enquanto as crianças o vão pisando” (AMR, p. 233).

No capítulo inicial do romance O ano da morte de Ricardo Reis, fala-se do quarto do Hotel Bragança onde Ricardo Reis fica hospedado: “O viajante gostou do quarto, ou quartos, para sermos mais rigorosos, porque eram dois, ligados por um amplo vão, em arco, ali o lugar de dormir, alcova se lhe chamaria noutros tempos” (AMR, p. 19). Nesse caso, para a explicitação do que é no quarto do hotel o lugar de dormir, ao contrário de alguns dos casos já citados, em que se serve de termos atualmente em uso, o autor vai buscar o termo antigo: alcova.

Na História do cerco de Lisboa (1989SARAMAGO, José. História do Cerco de Lisboa [HCL]. Lisboa: Editorial Caminho, 1989.), conseguimos identificar três definições relativas a fundas baleares, babuchas e digestivo.

Raimundo Silva, depois de uma noite de trabalho a rever as provas do livro que dá título à obra, pôs-se a pensar, ainda na cama, que máquinas seriam as fundas baleares com que o almuadem cego sonhara: “perguntava a si mesmo por que razão insistia em pensar nas fundas baleares, ou fundíbulos” (HCL, p. 33). E considera: “Baleares não deve ter nada que ver com as ilhas do mesmo nome, virá de balas, e balas sabemos o que são, projéteis, pedras que as máquinas atirariam contra os muros e por cima deles, para caírem sobre as casas” (HCL, p. 33). Reconhecendo que “balas não é palavra daquele tempo”, conclui que “as palavras não podem ser levianamente transportadas de cá para lá e de lá para cá” (HCL, p. 33).

Raimundo Silva, depois de mais algumas reflexões, levantou-se da cama e “procurou com os pés as babuchas” (HCL, p. 35), tendo o narrador a necessidade de explicar o último termo da frase: “Chinelos, chinelos, que é palavra cristã, vinda de Génova e aqui, também ela, passada a masculino” (HCL, p. 35).

Na última definição, encontramos Raimundo Silva na Leitaria A Graciosa, onde foi comer uma tosta e beber uma cerveja. No final, pede um café e recusa o digestivo que por norma vinha acompanhado depois da refeição: “Não, não quero digestivo”. O narrador sente-se na necessidade de explicar que digestivo “é o nome que o povo dos restaurantes dá à tribu dos bagaços, brandes e aguardentes” (HCL, p. 133).

Em O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo [E]. 3. ed. Lisboa: Editorial Caminho, 1992 [1991].), identificámos apenas uma definição, relativa a saudades. Numa conversa entre Jesus e Maria de Magdala, essa pergunta-lhe o que são saudades: “Gostaste de ser pastor, Gostei, Por que te foste embora, Aborreci-me, tinha saudades da família, Saudade, que é isso, Pena de estar longe” (E, p. 287).

No Ensaio sobre a cegueira (1995SARAMAGO, José. Ensaio sobre a Cegueira [EC]. Lisboa: Editorial Caminho, 1995.), identificámos quatro definições relativas a engorgitamentos3 3 Nos dicionários, a palavra é transcrita como ingurgitamento (Cf., por exemplo, o Dicionário da língua portuguesa contemporânea, da Academia de Ciências de Lisboa, 2001). Nem Saramago nem os revisores deram conta do erro. , agnosia (2 vezes) e alfabeto braille.

Diz o narrador, na primeira página do romance, que a demora nos semáforos “é uma das causas mais consideráveis dos engorgitamentos da circulação automóvel, ou engarrafamentos, se quisermos usar o termo corrente” (EC, p. 11).

No consultório, o oftalmologista, depois de atender um homem que o fora consultar por ver tudo branco, telefonou a um colega e expôs-lhe o caso. Durante a conversa, avança o diagnóstico mais comum: “sim, bem sei, a agnosia, a cegueira psíquica” (EC, p. 28). Mas não crê que o homem sofra dessa doença. Umas linhas mais à frente, acrescenta nova definição: “a agnosia, sabemo-lo, é a incapacidade de reconhecer o que se vê” (EC, p. 28).

Quando os cegos foram confinados no manicómio, o médico, ao ouvir um picotado, apercebeu-se de que “ali ao lado encontrava-se alguém a escrever em alfabeto braille, também anagliptografia chamado” (EC, p. 146), e concluiu que entre eles havia um cego normal.

Em Todos os nomes (1997SARAMAGO, José. Todos os nomes [TN]. Lisboa: Editorial Caminho, 1997.), identificámos quatro definições, relativas a nec plus ultra, bostriquídeos, passou uma coisa pela vista e passadas a pente fino.

O Sr. José colecionava verbetes acerca da vida de gente famosa. “O número cem”, refere o narrador, “era uma fronteira, um limite, um nec plus ultra, ou falando em termos vulgares, como uma garrafa de litro que, por muito que se intente, nunca poderá comportar mais do que um litro de líquido” (TN, p. 29). A definição refere-se ao termo latino utilizado, nec plus ultra, e é iniciada pela expressão “falando em termos vulgares”.

Explica o narrador que à noite, na Conservatória Geral onde trabalhava o Sr. José, “a paz era absoluta, nem mesmo o rangido minúsculo das mandíbulas dos bostriquídeos, os insetos comedores de madeira, se ouvia.” (TN, p. 73). A definição vem imediatamente a seguir ao termo a definir, sem qualquer expressão introdutória.

O Sr. José decide assaltar a escola para procurar a ficha de matrícula da mulher de que anda à procura. Quando subia a uma janela com a ajuda de um escadote, lembrou-se das altas estantes da Conservatória Geral e teve uma vertigem: “ao sr. José, como que lhe passou uma coisa pela vista, modo expressivo e corrente de dizer que dispensa, com comunicativa vantagem, o uso da palavra vertigem por bocas populares que não nasceram para isso” (TN, p. 89). Ou seja, as bocas populares não dizem vertigem, mas passou-lhe uma coisa pela vista. Nesse caso, a definição é iniciada pela expressão modo expressivo e corrente de dizer.

Encontrado o arquivo da escola, o Sr. José começa a procurar o verbete da antiga aluna:

As prateleiras do primeiro compartimento, caixa por caixa, maço por maço, foram passadas a pente fino, maneira de dizer que deve ter tido a sua origem no tempo em que as pessoas precisavam de pentear-se com ele, também denominado pente-dos-bichos, para conseguirem caçar o que o pente normal deixava escapar. (TN, p. 106).

Ou seja, lêndeas e piolhos. Aqui, a expressão que introduz a definição é maneira de dizer.

Em A caverna (2000SARAMAGO, José. A caverna [AC]. 2. ed. Lisboa: Editorial Caminho, 2000.), encontrámos três definições relativas a moinhas, inhenho e entulho. Na primeira, a definição está invertida. O autor refere o termo atual, chuvas finas e monótonas, e depois o termo antigo: “caiu uma dessas chuvas finas e monótonas a que dantes se dava o nome de moinhas” (AC, p. 43).

Cipriano Algor, ao ser atendido de forma rude pelo subchefe do Centro Comercial, que exigiu que ele levantasse as loiças não vendidas dos armazéns, perguntava-se se valeria a pena estar ali a passar por aquela vergonha, “ser tratado por inhenho, um coisa-nenhuma” (AC, p. 99).

Marta, a filha de Cipriano Algor, considerava a loiça que não fora vendida, e que o pai teve de recolher, entulho. A propósito dessa “pejorativa e desafortunada palavra”, o narrador tece algumas considerações, sendo uma delas a possível altercação com o marido, em que ele diria que “não é entulho”. A esposa, que é “alguém que de todas as coisas necessita explicação e clareza”, insistiria que “sim, senhor, que é entulho, que é esse o nome dado desde sempre aos detritos e materiais inúteis que são atirados para dentro das covas a fim de as encher” (AC, p. 164).

Em O homem duplicado (2002SARAMAGO, José. O homem duplicado [HD]. Lisboa: Editorial Caminho, 2002.), identificámos apenas uma definição: estramónios. Tertuliano Máximo Afonso vai vigiar a casa de campo onde o seu duplo e rival António Claro tem um encontro com Maria da Paz, a namorada do primeiro. Nas traseiras, encontra um jardim invadido por cardos, plantas bravas, duas fruteiras em mau estado e “umas quantas figueiras-do-inferno, ou estramónios, que é a palavra culta” (HD, p. 209). Aqui, a definição está também invertida. O autor refere o termo popular, figueiras-do-inferno e depois o termo culto: estramónios.

No Ensaio sobre a lucidez (2004SARAMAGO, José. Ensaio sobre a Lucidez [EL]. Lisboa: Editorial Caminho, 2004.), identificámos duas definições relativas a polígrafo e entre a cruz e a caldeirinha.

Tendo-se apresentado 500 voluntários para o governo apurar o que ocorrera nos dois últimos atos eleitorais, em que venceu o voto em branco, e sendo que esses “mentiam com todos os dentes que tinham na boca” (EL, p. 55), o ministro do interior sugeriu a utilização da máquina, na “esperança de que da utilização do aparelho poderia saltar ao menos alguma pequena chispa que o ajudasse a sair do escuro túnel onde as investigações tinham enfiado a cabeça” (EL, p. 55). O narrador demora-se a explicar que máquina ou aparelho é esse:

Trata-se, como certamente já se percebeu, de fazer regressar à liça o famoso polígrafo, também conhecido como detetor de mentiras, ou, em termos científicos, aparelho que serve para registar em simultâneo várias funções psicológicas e fisiológicas, ou, com mais pormenor descritivo, instrumento registador de fenómenos fisiológicos cujo traçado é obtido eletricamente sobre uma folha de papel húmido impregnado de iodeto de potássio e amido. (EL, p. 55).

A definição de Saramago é uma mimetização de uma possível definição de dicionário.

A propósito da consciência do comissário, incumbido de encontrar o médico e a mulher do médico, comenta o narrador:

Pode no entanto acontecer, embora, para falar verdade, não seja do que mais se vê, que um desses prestimosos funcionários públicos, por azares da vida e quando nada o fazia esperar, se encontre entalado entre a cruz e a caldeirinha, isto é, entre aquilo que deveria ser e aquilo que não quereria ser. (EL, p. 255).

A definição da expressão entalado entre a cruz e a caldeirinha é iniciada pela locução explicativa isto é.

Em As intermitências da morte (2005SARAMAGO, José. As intermitências da morte [IM]. Lisboa: Editorial Caminho, 2005.), identificámos três definições, relativas a azinhagas, teleponto e pundonor. Na primeira, o autor o apresenta vários sinónimos acerca da mesma realidade: os caminhos secundários em contraposição às estradas principais. Para evitar que a população levasse os velhos e os doentes a morrer ao país vizinho, o exército foi colocado na fronteira a vigiar as estradas principais, deixando em paz “a miúda rede dos caminhos vicinais, das veredas, das azinhagas, dos carreiros e dos atalhos” (IM, p. 63).

O diretor-geral da televisão chamou ao seu gabinete o responsável pelo telejornal para o informar de que no noticiário seguinte seria emitida uma comunicação do governo e um outro documento complementar. O responsável “limitou-se a pedir os dois documentos para serem passados no teleponto, esse meritório aparelho que permite criar a presunçosa ilusão de que o comunicante se está a dirigir direta e unicamente a cada uma das pessoas que o escutam” (IM, p. 104).

O narrador pergunta-se por que razão a morte não regressou ao statu quo anterior, “quando as pessoas morriam porque simplesmente tinham de morrer, sem precisarem de esperar que o carteiro lhes trouxesse uma carta de cor violeta” (IM, p. 171). “Trata-se, em primeiro lugar”, esclarece, “de uma questão de pundonor, de brio, de orgulho profissional” (IM, p. 171).

Embora a obra As pequenas memórias (2006SARAMAGO, José. As pequenas memórias [PM]. Lisboa: Editorial Caminho, 2006.) não pertença ao género ficcional, decidimos incluí-la neste estudo, uma vez que partilha algumas das características estilísticas e estruturais próprias das obras de ficção. Nela identificámos duas definições, relativas a bacios e pedra.

Lembra o autor que no Manual de pintura e caligrafia (MPC, p. 135) escreve acerca das mulheres que levavam para despejar “os vasos recetores das dejeções noturnas e diurnas, também chamados bacios ou penicos” (PM, p. 57).4 4 “Pelo corredor a mulher levava o bacio tapado com um pano, não tanto por causa do cheiro que um simples pano não lograria reter (toda a gente assim se conhecia pelo cheiro), mas por uma simples e ingénua decência, um recato, um pudor que hoje, a tantos anos, me faz acenar devagar a cabeça e sorrir” (MPC, p. 135). A última palavra merece do autor o seguinte comentário: “esta última voz, em todo o caso, raramente usada, talvez porque o plebeísmo excedesse os limites da tolerância vocabular das famílias. Bacio era mais fino” (PM, p. 57).

Saramago, na mesma obra, fala da “escolinha particular” que frequentou e em que aprendeu as primeiras letras: “Sentado numa cadeirinha baixa, desenhava-as lenta e aplicadamente na pedra, que era o nome que então se dava à ardósia, palavra demasiado pretensiosa para sair com naturalidade da boca de uma criança e que talvez nem sequer conhecesse ainda” (PM, p. 64). A ardósia, que era a pedra em que os alunos escreviam, merece, nessa passagem, um comentário valorativo do autor: ardósia era uma “palavra demasiado pretensiosa” para uma criança.

Em A viagem do elefante (2008), identificámos nove definições relativas a subhro (2 vezes), cornaca (3 vezes), sempre-noivas, jugos, churras e merinas e bicho-carpinteiro.

O tratador indiano do elefante que o Rei D. Manuel oferece ao seu primo, o arquiduque Maximiliano da Áustria, chama-se Subho. Por duas vezes o autor faz questão de explicar o significado do nome. Na primeira, o rei pergunta ao secretário de estado o nome do tratador e esse responde: “Branco, meu senhor, subhro significa branco, ainda que não o pareça” (VE, p. 34). Na segunda, o narrador faz um comentário acerca do passado, que compara a “um imenso pedragal”, em que alguns o percorrem como se fosse uma autoestrada e “outros vão de pedra em pedra, e as levantam, porque precisam de saber o que há por baixo delas” (VE, p. 35). Por vezes, “saem-lhe lacraus ou escolopendras, grossas roscas brancas ou crisálidas a ponto, mas não é impossível que, ao menos uma vez, apareça um elefante”, trazendo “sobre os ombros um cornaca chamado subhro, nome que significa branco, palavra totalmente desajustada em relação à figura” (VE, p. 35). É curiosa, nessa passagem, a presença da palavra escolopendras, um termo popular, certamente de uso regional, que José Saramago utiliza para designar as centopeias, mas que não faz questão de explicar do que se trata.

Uma outra palavra em que se repetem as definições é cornaca. Na viagem para a Áustria, o elefante e a comitiva estacionam perto de uma aldeia. Junta-se o povo para o ver com o cura, à frente, que pergunta ao sargento da guarda onde está o animal. O sargento informa-o que, para o verem, terão de falar com o cornaca. Pergunta o cura: “Quem é o cornaca, É o homem que vai em cima, Em cima de quê, Em cima do elefante, de que havia de ser” (VE, p. 83). Insiste o cura: “Quer dizer que cornaca significa o que vai em cima, Não sei o que significa, só sei que vai em cima, a palavra parece que veio da índia” (VE, p. 83-84). Indo o elefante no barco rumo a Génova, pergunta um marinheiro se o arquiduque é o dono do elefante. O cornaca responde: “Sim, e eu sou o tratador, o cuidador, ou o cornaca, que é a palavra certa” (VE, p. 170). A terceira definição ocorre quando a comitiva com o elefante chega a Bolzano. Fritz, o dono da casa onde o elefante e o cornaca ficam hospedados, pergunta donde é que esse é. Ele responde: “Nasci na índia e sou cornaca, Cornaca, Sim senhor, cornaca é o nome que se dá àqueles que conduzem os elefantes” (VE, p. 217).

Numa das muitas paragens durante a viagem do elefante, o cornaca acordou com dor de barriga e correu para o meio do mato. Depois de se aliviar, “limpou-se o melhor que pôde com as ervas que cresciam ao redor” (VE, p. 53). Explica o narrador que “muita sorte teve de não haver por ali sempre-noivas, também chamadas sanguinárias, que essas o fariam saltar como se sofresse da dança de são vito, tais seriam os ardores e os picores que lhe atacariam a delicada mucosa inferior” (VE, p. 53).

A comitiva que levava o elefante concluiu que eram necessários mais animais de carga para a caroça das forragens e assim evitar atrasos na jornada. O comandante dirigiu-se à quinta pertencente a um conde e requisitou uma junta de bois. O feitor, na ausência do patrão, acabou por aceder depois de o comandante lhe asseverar que devolveria os animais no regresso, o que levou o narrador a comentar: “ao escudo de armas do conde proprietário daqueles animais, em memória deste sucesso, deveriam ser postos dois jugos, ou cangas, como também se lhes chama” (VE, p. 63).

Já do outro lado da fronteira, a comitiva organiza um desfile, de acordo com determinados critérios, “a fim de que o gentio que vier à estrada a ver o desfile não possa confundir churras com merinas, provérbio castelhano” (VE, p. 140), explicando o narrador em seguida o que são churras e merinas: “as churras, para quem não saiba, são lãs sujas e as merinas as lãs limpas” (VE, p. 140).

A propósito das pessoas que foram forçadas a emigrar, comenta o narrador: “Frequentemente apáticas e indiferentes na terra onde nasceram, tornam-se, quase de uma hora para a outra, ativas e diligentes como se lhes tivesse entrado no corpo o tão falado mas nunca estudado bicho-carpinteiro” (VE, p. 186-187). E decide esclarecer: “desse falamos, e não daqueles, comuns, que se alimentam da madeira que roem e são também conhecidos pelos nomes de caruncho ou carcoma” (VE, p. 187).

Em Caim (2009SARAMAGO, José. Caim [C]. Porto: Porto Editora, 2020 [2009].), identificámos duas definições: língua bífida e pela porta do cavalo

Explica o narrador que “abraão era um refinado mentiroso, pronto a enganar qualquer um com a sua língua bífida, que, neste caso, segundo o dicionário privado do narrador desta história, significa traiçoeira, pérfida, aleivosa, desleal e outras lindezas semelhantes” (C, p. 67). Desconhecemos se o dicionário privado a que o narrador se refere é um dicionário físico, em livro, que o autor consulta, ou se é a própria memória lexicográfica a que vai buscar o significado dos termos.

Caim chega ao estaleiro onde Noé constrói a arca e oferece-se para ajudar. “Graças à boa harmonia reinante entre o pessoal que andava a trabalhar na obra da arca”, relata o narrador, “é que caim pôde conseguir que o seu burro, “quando chegar a altura, seja metido lá dentro pela porta do cavalo, quer dizer, como passageiro clandestino” (C, p. 132).

Em Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas (2014SARAMAGO, José. Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas [AA]. Porto: Porto Editora, 2014.), romance inacabado devido à morte prematura do autor, identificámos duas definições: belona e jantar fora. Isso prova que Saramago manteve até o final a prática textual da lexicografia implícita.

O romance começa com essas palavras do narrador e que soam como uma espécie de apontamento a rever mais tarde quando da versão completa e definitiva: “O homem chama-se artur paz semedo e trabalha há quase vinte anos nos serviços de faturação de armamento ligeiro e munições de uma histórica fábrica de armamento conhecida pela razão social de produções belona s.a.” (AA, p. 11). E acrescenta, a propósito de Belona: “nome que, convém aclarar, pois já são pouquíssimas as pessoas que se interessam por estes saberes inúteis, era o da deusa romana da guerra” (AA, p. 11).

A segunda definição diz respeito à expressão jantar fora: “Duas ou três vezes por semana, artur paz semedo janta fora, maneira abreviada de dizer que vai comer a um restaurante” (AA, p. 47). A expressão maneira abreviada de dizer introduz a definição.

Concluindo

O objetivo do presente estudo foi o de identificar nas obras ficcionais de José Saramago passagens em que o autor apresenta definições de tipo lexicográfico, definições estas que fazem parte daquilo que em linguística é conhecido como lexicografia implícita, um fenómeno recorrente em obras antigas, em que o recurso aos dicionários era difícil ou impossível por parte dos leitores.

Constatámos que as definições presentes nas obras ficcionais de Saramago estão bem marcadas no texto, sendo introduzidas pela forma verbal é e por expressões como: quer dizer, isto quer dizer, isto é, significa, maneira de dizer, etc. Embora haja definições de palavras ou expressões bastante comuns, como retórica, conhecimento, jantar, etc., outras há em que, sem as respetivas definições, o leitor, por serem termos regionais ou eruditos, desconheceria o seu significado. É o caso de machuco, contumazes, caudatários, nimbo, fundas baleares, babuchas, agnosia, bostriquídeos, pundonor, cornaca, sempre-noivas, etc.

Ficaram de fora deste estudo, para tratamento posterior, as referências aos dicionários, em particular as definições que o autor cita diretamente deles, assim como as explicações semânticas e etimológicas de certas palavras e expressões.

Referências

  • DICIONÁRIO da Língua Portuguesa Contemporânea. Lisboa: Verbo; Academia de Ciências de Lisboa, 2001.
  • SARAMAGO, José. Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas [AA]. Porto: Porto Editora, 2014.
  • SARAMAGO, José. A caverna [AC]. 2. ed. Lisboa: Editorial Caminho, 2000.
  • SARAMAGO, José. O ano da morte de Ricardo Reis [AMR]. 9. ed. . Lisboa: Editorial Caminho, 1988 [1984].
  • SARAMAGO, José. Caim [C]. Porto: Porto Editora, 2020 [2009].
  • SARAMAGO, José. Claraboia [CL]. Lisboa: Editorial Caminho, 2011 [1953].
  • SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo [E]. 3. ed. Lisboa: Editorial Caminho, 1992 [1991].
  • SARAMAGO, José. Ensaio sobre a Cegueira [EC]. Lisboa: Editorial Caminho, 1995.
  • SARAMAGO, José. Ensaio sobre a Lucidez [EL]. Lisboa: Editorial Caminho, 2004.
  • SARAMAGO, José. História do Cerco de Lisboa [HCL]. Lisboa: Editorial Caminho, 1989.
  • SARAMAGO, José. O homem duplicado [HD]. Lisboa: Editorial Caminho, 2002.
  • SARAMAGO, José. As intermitências da morte [IM]. Lisboa: Editorial Caminho, 2005.
  • SARAMAGO, José. A jangada de pedra [JP]. 4. ed. Lisboa: Editorial Caminho, 1988 [1986].
  • SARAMAGO, José. Levantado do chão [LC]. 10. ed. Lisboa: Editorial Caminho, 1994 [1980].
  • SARAMAGO, José. Memorial do convento [MC]. 21. ed. Lisboa: Editorial Caminho, 1992 [1982].
  • SARAMAGO, José. Manual de pintura e caligrafia [MPC]. Porto: Porto Editora, 2014 [1977].
  • SARAMAGO, José. Objeto quase [OQ]. Porto: Porto Editora, 2015 [1978].
  • SARAMAGO, José. As pequenas memórias [PM]. Lisboa: Editorial Caminho, 2006.
  • SARAMAGO, José. Todos os nomes [TN]. Lisboa: Editorial Caminho, 1997.
  • SARAMAGO, José. A viagem do elefante [VE]. Lisboa: Editorial Caminho, 2008.
  • VERDELHO, Telmo. As origens da gramaticografia e da lexicografia Latino-Portuguesas Aveiro: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1995.
  • VIEIRA, Padre António. Sermões - antologia Braga: Edições Vercial, 2021.
  • 1
    A fim de simplificar as citações das obras de Saramago, utilizamos uma sigla para designar o título de cada obra: AA [Alabardas, alabardas, espingardas, espingardas], AC [A caverna], AMR [O ano da morte de Ricardo Reis], C [Caim], CL [Claraboia], E [O evangelho segundo Jesus Cristo], EC [Ensaio sobre a Cegueira], EL [Ensaio sobre a Lucidez], HCL [História do Cerco de Lisboa], HD [O homem duplicado], IM [As intermitências da morte], JP [A jangada de pedra], LC [Levantando do chão], MC [Memorial do convento], MPC [Manual de pintura e caligrafia], OQ [Objeto quase], PM [As pequenas memórias], TN [Todos os nomes], VE [A viagem do elefante].
  • 2
    Cf., por exemplo, o “Sermão de S. Pedro” (1644): “Tudo isto quer dizer em Pedro e só em Pedro aquele vos autem” (VIEIRA, 2021VIEIRA, Padre António. Sermões - antologia. Braga: Edições Vercial, 2021., p. 94); o “Sermão de Santo Inácio, fundador da Companhia de Jesus” (1669): “imitando nele e dele todas as virtudes e graças com que resplandeceram; e isto quer dizer: In splendoribus sanctorum” (VIEIRA, 2021VIEIRA, Padre António. Sermões - antologia. Braga: Edições Vercial, 2021., p. 101); o “Sermão do Mandato” (1645): “Isto quer dizer aquele timeas, em frase da Escritura, e assim o trasladam muitos e interpretam todos” (VIEIRA, 2021VIEIRA, Padre António. Sermões - antologia. Braga: Edições Vercial, 2021., p. 187), etc. Além da expressão “isto quer dizer”, Vieira utiliza também “isso quer dizer” ou apenas “quer dizer”. Veja-se no “Sermão do Nascimento da Virgem Maria” (1657): “Logo já havia alguma luz que isso quer dizer diluculo” (VIEIRA, 2021VIEIRA, Padre António. Sermões - antologia. Braga: Edições Vercial, 2021., p. 134); ou no “Sermão de Santo Inácio, fundador da Companhia de Jesus” (1669): “Por isso se chamou maná, ou manhu, que quer dizer: Quid est hoc? Que é isto?” (VIEIRA, 2021VIEIRA, Padre António. Sermões - antologia. Braga: Edições Vercial, 2021., p. 115).
  • 3
    Nos dicionários, a palavra é transcrita como ingurgitamento (Cf., por exemplo, o Dicionário da língua portuguesa contemporânea, da Academia de Ciências de Lisboa, 2001DICIONÁRIO da Língua Portuguesa Contemporânea. Lisboa: Verbo; Academia de Ciências de Lisboa, 2001.). Nem Saramago nem os revisores deram conta do erro.
  • 4
    “Pelo corredor a mulher levava o bacio tapado com um pano, não tanto por causa do cheiro que um simples pano não lograria reter (toda a gente assim se conhecia pelo cheiro), mas por uma simples e ingénua decência, um recato, um pudor que hoje, a tantos anos, me faz acenar devagar a cabeça e sorrir” (MPC, p. 135).
  • Parecer Final dos Editores

    Ana Maria Lisboa de Mello, Elena Cristina Palmero González, Rafael Gutierrez Giraldo e Rodrigo Labriola, aprovamos a versão final deste texto para sua publicação

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    04 Ago 2023
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2023

Histórico

  • Recebido
    20 Dez 2022
  • Aceito
    15 Mar 2023
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