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O estatuto de autonomia de lomerío (bolívia) na perspectiva indígena

The lomerio statute of autonomy in perspective on indigenous

Resumo

O incômodo entorno desse trabalho foi a respeito do processo de descolonização implementado pelo Estado Plurinacional Boliviano e sobre as estratégias adotadas pelas organizações indígenas chiquitanas, especialmente a Central Indígena das Comunidades Originárias de Lomerio (CICOL – Bolívia), para consolidarem sua autonomia e assim entender como os indígenas estariam articulando essa autonomia no âmbito institucional.

Palavras-chave:
Jusdiversidade; Interlegalidade; Autonomia

Abstract

The hassle around this work was about the decolonization process implemented by the Plurinational State Boliviano and on the strategies adopted by Chiquitano indigenous organizations, especially the Indigenous Central of Originating Communities Lomerio (CICOL - Bolivia), to consolidate their autonomy and thus the indigenous people would be articulating this autonomy in the institutional scope.

Keywords:
Social diversity; Interlegality; Autonomy

Aspectos históricos, legislativos e o protagonismo indígena na demanda por autonomia

O direito à autonomia vem sendo reconhecido por organismos internacionais como um direito universal e tem como base o princípio da livre determinação conforme a Resolução 1514 da Assembleia Geral das Nações Unidas de 1960, o Pacto de Direitos Civis e Políticos e o Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais ( ANAYA, 2010 ANAYA, James. El derecho de los pueblos indigenas a la libre determinación tras la adopción de la Declaración, 2010. ). Todos esses documentos são resultados de um debate a respeito dos povos colonizados em que o Comitê de Descolonização, uma organização das Nações Unidas criada em 1961, foi um dos precursores nesse tema sobre os estados-nação que se estruturaram encima de povos com culturas, tradições e autoridades próprias e onde essas minorias étnicas passaram, nesse novo contexto, a exigir o direito à diferença e o reconhecimento de suas organizações próprias.

Segundo Wolkmer, o conceito de nação foi elaborado para solapar a heterogeneidade social. Da mesma forma que o Estado delimitou as fronteiras geopolíticas e jurídicas também se esforçou para delimitar as fronteiras culturais e controlar os recursos naturais de seus territórios ( WOLKMER, 1997 WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma nova cultura do Direito. São Paulo: Alfa Omega, 1997. , p. 58).

Segundo Ayala Mora, os Estados nacionais que surgiram na América Latina no século XIX, muito embora sejam produto de uma ruptura colonial, a independência, não refletiu em uma cidadania participativa e inclusiva para os indígenas e negros, bem como também não alterou o modelo de dominação econômica, política e social. Sendo assim, esse modelo de Estado e suas leis não corresponderam à realidade social que sempre fora complexa e heterogênea ( AYALA MORA, 1992 AYALA MORA, Enrique. Estado nacional, soberanía, Estado plurinacional. En varios autores, Pueblos indios, Estado y derecho, Quito, Corporación Editora Nacional: Abya-Yala, 1992. , p. 33).

Patzi esclarece que no século XIX, o Estado boliviano elaborou uma política de repressão, fragmentação quando não de extinção das comunidades indígenas ao aprovarem por exemplo, a “ley de Exvinculación de 1874”, que tinha um viés darwinista social de domesticação dos indígenas e ascensão de uma elite “criola”, bem como de uma falta promessa de unidade, assim promoveram uma política “multicultural de incorporação” (PATZI, 2005 PATZI PACO, Félix. Rebelión indígena contra la colonialidad y la transacionalización de la economía: Triunfos y vicisitudes del movimiento indígena desde 2000 a 2003. En Forrest Hylton, et al., Ya es otro tiempo el presente. Cuatro momentos de insurgencia indígena, La Paz, Muela del Diablo, 2005. , p. 198).

Para Luís Tapia:

O Estado, as leis, as instituições do governo, o regime político e organizacional correspondem a uma única cultural: a cultura que conquistou o continente. Mesmo que haja modalidades mais modernas há também uma integração subordinada. E nesse sentido, estrutural e constitucionalmente, trata-se de um Estado racista embora não reconheça isso de forma aberta (TAPIA, 2006 TAPIA, Luis, Una reflexión sobre la idea de Estado plurinacional. En OSAL. Observatorio Social de América Latina, año VIII, No. 22, Buenos Aires, CLACSO, 2007. , p. 31, tradução nossa).

Ou seja, trata-se de um Estado monocultural, com estrutura, leis, instituições políticas e formas de governar construídas pela lógica da cultura dominante. A diferença é nos anos recentes os indígenas e afrodescendentes passaram a adentrar a estrutura estatal e isso produziu uma conjuntura política um pouco mais favorável à diversidade étnica, refletindo por um lado, as lutas e demandas dos movimentos indígenas e afrodescendentes, mas também significou a diluição da força de oposição desses movimentos.

A partir da nova configuração de governos democráticos, em finais da década de 1970 e 1980, mas principalmente na década de 1990, considera-se, na Bolívia, um período de avanços da própria organização étnica e política e de pressões desses grupos frente ao Estado. Os chiquitanos, para citar um exemplo, aos poucos abandonaram a identidade camponesa que lhe foi imposta pelos governos nacionalistas e movimentos sindicais camponeses e retomaram a identidade indígena.

Assim, o Convênio Internacional mais importante que garante os direitos indígenas e que reconhece e respeita a diversidade étnica e cultural é o n. 169 da OIT, e que na Bolívia tem que ser aplicado como uma lei especial sobre os direitos indígenas desde 1991. Os pontos mais importantes desse Convênio são: a) direito à terra e ao território; b) direito a saúde e a educação com direito a sua língua reconhecida e protegida pelo Estado; c) direito a seus costumes com instituições próprias; d) a consulta prévia e a participação de maneira informada, prévia e livre sobre os processos de desenvolvimento e de formulação de políticas em temas que afetem os indígenas.

Na Bolívia, os povos indígenas construíram sua agenda de reivindicações nos anos de 1990 tendo como horizonte o reconhecimento de sua autonomia. Essa demanda esteve expressamente no Projeto de Lei Indígena de 1992, que foi declarado inconstitucional pelo Parlamento dessa época ( ANAYA, 2010 ANAYA, James. El derecho de los pueblos indigenas a la libre determinación tras la adopción de la Declaración, 2010. , p. 21). Porém, nos anos 2000, a demanda por governar seu próprio território tornou-se o motivo das mobilizações e os povos indígenas protagonizaram a respeito do modelo de Estado que começava a ser debatido e influenciaram a convocação de uma Assembleia Constituinte ( ANAYA, 2010 ANAYA, James. El derecho de los pueblos indigenas a la libre determinación tras la adopción de la Declaración, 2010. , p. 21).

A história política do movimento indígena organizado pode, segundo Montaño, ser dividida em quatro (4) etapas a partir dos eixos de articulação e de suas reivindicações: a) auto identificação; b) terra, território e processo agrário; c) transformações estruturais do Estado; d) Estado Plurinacional e autonomias ( MONTAÑO, 2009 MONTAÑO, Claudia. Su mobilización: adecuación institucional. En: VALENCIA GARCÍA, Pilar. Los Pueblos indígenas de las tierras bajas en el proceso constituinte boliviano. CEJIS: Santa Cruz de La Sierra, 2009. , p. 34).

A proposta de uma nova Constituição Política na Bolívia reconhecida como um pacto de unidade e aprovada em 2009 BOLÍVIA. Constituição Política do Estado, 2009. traz um modelo de Estado intercultural, um novo Estado plurinacional e comunitário com autonomias territoriais. Assim, é possível pensar nessa plurietnicidade a partir da sobrevivência ativa das primeiras nações de povos indígenas que estenderam e aprofundaram a luta por seus direitos enquanto comunidades e nações indígenas bem como o direito a seu território e recursos naturais.

Segundo Adolfo Chavez, presidente da CIDOB entrevistado em 2014, a Confederação Indígena do Oriente Boliviano (CIDOB) enquanto movimento indígena dos povos indígenas organizou as marchas indígenas nos anos 1990 e 2000, e trouxe como planejamento político central, subtraído do Projeto de Lei Indígena, a reconstituição física, política, econômica, social e cultural dos territórios que foram usurpados dos indígenas no passado. Segundo ele:

Desse projeto político outras reivindicações estão relacionadas: a) “autogobierno”/autonomias; b) modelo econômico alternativo; c) opção de um modelo de vida próprio de acordo com a diversidade cultural; d) segurança jurídica, ou seja, titulação ( CHÁVEZ, 2014 ADOLFO CHAVÉZ. Presidente da CIDOB. Entrevistado por Vívian Lara Cáceres Dan em 12/04/2014 na sede da CIDOB. Santa Cruz de La Sierra - Bolívia. ).

Segundo Chávez, a Reforma Agrária de 1953 representou a liberação dos camponeses e dos indígenas da escravidão e se tornou a possibilidade desses grupos terem suas terras para trabalhar e viver. “Já para os povos indígenas das terras baixas, essa lei significou o último ato de despojo territorial e negação do Estado de suas identidades indígenas” ( CHÁVEZ, 2014 ADOLFO CHAVÉZ. Presidente da CIDOB. Entrevistado por Vívian Lara Cáceres Dan em 12/04/2014 na sede da CIDOB. Santa Cruz de La Sierra - Bolívia. ).

Montero, primeiro dirigente da Organização Indígena Chiquitana (OICH), também esclareceu que:

O período que vai de 1953 a 1994 foi o tempo que os povos indígenas exigiram do governo o reconhecimento de sua existência no território e durante a reforma da Constituição Politica do Estado em 1994 passaram a incorporar a ideia de que a Bolívia era multietnica e pluricultural. A lei de participação popular reconheceu que os povos indígenas teriam seu território, sua organização própria, costumes e o direito à personalidade jurídica (MONTERO, 2014 RAMON PAZ MONTERO. 1 dirigente da OICH. Entrevista do na sede da CIDOB em 27/04/2014. Santa Cruz de La Sierra – Bolívia. ).

Foi um processo gradual de retomada das comunidades rurais como indígenas chiquitanas, a partir da autodeterminação e das leis mais favoráveis a esse reconhecimento destruindo assim, a autoimagem de mestiços, camponeses, cambas, seringueiros, que a sociedade e o próprio Estado posteriormente também vieram reconhecer.

Portanto, no que diz respeito às reformas estruturais do Estado nos anos 1990, com a influência das mobilizações das organizações indígenas, os povos indígenas das terras baixas conseguiram incluir algumas de suas reivindicações nas leis da Bolívia, em cenário regional, entre elas, segundo Chávez (2014) ADOLFO CHAVÉZ. Presidente da CIDOB. Entrevistado por Vívian Lara Cáceres Dan em 12/04/2014 na sede da CIDOB. Santa Cruz de La Sierra - Bolívia. : 1) lei de participação popular (n. 1555/1995); 2) lei florestal (n. 1700/1996); 3) Lei do Serviço Nacional da Reforma Agrária (INRA n. 1715/1996). Ainda segundo ele:

A lei de participação popular estabeleceu a figura jurídica da Organização Territorial de Base (OTB) e isso permitiu a tramitação da personalidade jurídica das comunidades indígenas reconhecidas na Constituição reformada de 1994. Porém, na contramão desse avanço nas terras baixas, veio a consolidação do poder das oligarquias locais na gestão política, econômica e administrativa do município, com raros exemplos da real incidência e participação indígena na gestão local ( CHÁVEZ, 2014 ADOLFO CHAVÉZ. Presidente da CIDOB. Entrevistado por Vívian Lara Cáceres Dan em 12/04/2014 na sede da CIDOB. Santa Cruz de La Sierra - Bolívia. ).

Montero enfatiza:

Até 1994 nenhuma comunidade tinha personalidade jurídica e somente com a promulgação da lei de participação popular ficou estabelecido que cada comunidade ou organização, para exercer seu direito coletivo, deveria ter personalidade jurídica (MONTERO, 2014 RAMON PAZ MONTERO. 1 dirigente da OICH. Entrevista do na sede da CIDOB em 27/04/2014. Santa Cruz de La Sierra – Bolívia. ).

A partir de 1994, com a Lei de Participação Popular, as comunidades passaram a obter personalidade jurídica e a negociar a sua razão social de campesino para indígena. Solicitaram e lutaram por seus direitos e uma vez considerando sua identidade cultural também reconheceram que são originários. Assim é possível perceber que essa lei foi considerada um avanço na história da Bolívia também porque permitiu a eleição direta das autoridades locais e a descentralização dos recursos públicos para desenvolvimento local.

Ainda abriu as portas para a participação na gestão municipal incluindo alguns mecanismos como o Comitê de Vigilância, porém, segundo Montero, “esse comitê se tornou um espaço controlado pelas forças políticas locais e geralmente contrárias às demandas indígenas” (MONTERO, 2014 RAMON PAZ MONTERO. 1 dirigente da OICH. Entrevista do na sede da CIDOB em 27/04/2014. Santa Cruz de La Sierra – Bolívia. ).

Quanto à lei florestal, Chávez a coloca como um grande avanço, uma vez que reconheceu o uso, o aproveitamento sustentável e exclusivo pelos indígenas dos recursos florestais em seus territórios. Esclareceu que:

Foi a norma fundamental para a defesa do nosso território frente ao incessante saque de madeiras nobres por terceiros, e isso graças aos dispositivos que protegeram as florestas e ao uso estratégico que lhe deram às organizações indígenas, sobretudo, durante o processo de saneamento de terras. Porém, a mesma lei reconheceu de forma compartilhada a constituição de conselhos fiscais florestais e associações locais para o acesso à áreas fiscais florestais via concessão e isso permitiu o tráfico de influências, a favor de certos grupos, que ficaram muito próximos dos que estavam no poder local ( CHÁVEZ, 2014 ADOLFO CHAVÉZ. Presidente da CIDOB. Entrevistado por Vívian Lara Cáceres Dan em 12/04/2014 na sede da CIDOB. Santa Cruz de La Sierra - Bolívia. ).

A lei INRA n. 1715/1996, segundo Chávez:

Foi a conquista mais importante dos povos indígenas na década de 1990 e se deu devido a II Marcha Indígena de 1996. Foi essa lei que abriu a possibilidade de titularmos os territórios indígenas através de processos administrativos de Saneamento de Terras Comunitárias de Origem (SAN-TCO). Reconheceu também os direitos patrimoniais sobre a terra e dos recursos naturais estabelecendo um cadastro rural municipal ( CHÁVEZ, 2014 ADOLFO CHAVÉZ. Presidente da CIDOB. Entrevistado por Vívian Lara Cáceres Dan em 12/04/2014 na sede da CIDOB. Santa Cruz de La Sierra - Bolívia. ).

A Convenção 169 da OIT veio assim, reforçando a importância de se realizar um reconhecimento expresso de uma série de direitos específicos, tratando-se de um convênio que tem como princípio o respeito às culturas e instituições dos povos indígenas. E a lei INRA em seu art. 3, inciso III, veio garantir aos povos e comunidades indígenas e originários os direitos sobre suas terras comunitárias de origem.

Segundo a lei INRA, esse conceito de terras comunitárias de origem passa a ser utilizado como o conceito que compreende o território indígena em conformidade com o Convenio 169 da OIT que foi ratificado mediante lei 1257 em 1991 na Bolívia.

Montero enfatiza outro aspecto dessa lei:

Esse saneamento significou um processo “ao revés”. Explico: um processo que deveria supostamente devolver aos povos indígenas os territórios que lhe foram usurpados, como pagamento de uma dívida histórica que o Estado teria conosco, foi desenhado juridicamente para branquear as terras mal habitadas e apropriarem-se das que tinham melhor potencial econômico deixando aos indígenas as que sobrassem (MONTERO, 2014 RAMON PAZ MONTERO. 1 dirigente da OICH. Entrevista do na sede da CIDOB em 27/04/2014. Santa Cruz de La Sierra – Bolívia. ).

Então, a efetivação desse processo de saneamento pela lei INRA, na realidade, acabou por desconfigurar muitas unidades socioculturais e formalizou uma estrutura que já era injusta de posse sobre a terra. Ainda que alguns desses territórios conseguiram consolidar grandes extensões de terras e repensar cenários locais e regionais isso não ocorreu sem muita luta contra os grupos de poder local, posseiros, madeireiros e com o próprio Estado.

Assim, Montero enfatiza que “para os indígenas das terras baixas, o próprio saneamento de terras foi um palco para a luta e reivindicação territorial com perspectiva de autonomia” (MONTERO, 2014 RAMON PAZ MONTERO. 1 dirigente da OICH. Entrevista do na sede da CIDOB em 27/04/2014. Santa Cruz de La Sierra – Bolívia. ).

E para Chávez: “o antecedente direto da demanda por autonomia na Assembleia Constituinte foi o processo de luta por territórios nas terras baixas” ( CHAVEZ, 2014 ADOLFO CHAVÉZ. Presidente da CIDOB. Entrevistado por Vívian Lara Cáceres Dan em 12/04/2014 na sede da CIDOB. Santa Cruz de La Sierra - Bolívia. ).

Esse processo de titulação de terras indígenas no Oriente boliviano veio demonstrar, o quanto de violência fora desencadeada durante esse processo de saneamento (1998-2001), refletindo não somente o esgotamento desse processo de redistribuição de terras (inicialmente reforma agrária e depois o saneamento das terras), como também a crise desse Estado Social de Direito que se dizia monocultural. Portanto, esse Estado enquanto forma de organização institucional não conseguia dar respostas às demandas dos povos indígenas no que dizia respeito ao exercício pleno dos seus direitos coletivos.

Para Chávez, então, tanto a luta por território quanto por autonomia foram construindo-se como etapas ou fases de uma mesma demanda: o exercício pleno da livre-determinação ( CHAVÉZ, 2014 ADOLFO CHAVÉZ. Presidente da CIDOB. Entrevistado por Vívian Lara Cáceres Dan em 12/04/2014 na sede da CIDOB. Santa Cruz de La Sierra - Bolívia. ).

A livre-determinação está no artigo 2º da Constituição que entrou em vigor em 2009 BOLÍVIA. Constituição Política do Estado, 2009. e consiste “no direito à autonomia, autogoverno, a sua cultura, o reconhecimento de suas instituições e a consolidação de suas entidades territoriais (...).”. Um dos aspectos mais relevantes dessa Constituição Política é o reconhecimento do direito à autonomia e o estabelecimento de vários níveis para seu exercício, incluindo a categoria da “autonomia indígena campesina originaria” que é uma expressão que concede o direito ao autogoverno e à autodeterminação das nações e povos originários e que conforme o art. 290 dessa CPE, também se refere “às comunidades que compartilham um território, cultura, língua, história e organização ou instituições jurídicas, política sociais e economias próprias”. Para a implantação dessa autonomia requer-se a criação de entidades territoriais indígenas fundamentadas na consolidação de seus territórios e da vontade de sua população. O art. 291 preceitua que esse autogoverno indígena e originário será exercido conforme as normas, instituições e autoridades indígenas.

Não me resta dúvida, que as reformas introduzidas vieram modificar a concepção clássica de Estado para assim, conseguirem dar conta de toda a pluralidade existente. Ainda mais, estabeleceram novos paradigmas que têm dado lugar a um novo constitucionalismo de criação própria, e que segundo Martinez abre-se para:

uma reivindicação do povo, do principio democrático, que está oferecendo à humanidade, um suporte que será histórico devido a nova forma de relação entre Estado e sociedade, entre a sociedade e sua Constituição (MARTINEZ, 2008 MARTÍNEZ D., Rubén. El proceso constitucional en Bolivia. Perspectivas desde el nuevo constitucionalismo latinoamericano, Cuadernos de Reflexión, La Paz, 2008 , p. 54).

Na Bolívia os chiquitanos, antes considerados camponeses, agora embasados nesse novo marco legal favorável, entre outros a OIT 169, deu impulso a essas identidades nativas originárias para que fossem reconhecidas, auto afirmando-se como atores sociais coletivos no cenário político redefinindo seus papéis, fazendo alianças, colocando-se contra as políticas neoliberais e exigindo mudanças na prática política dos governantes.

O sentido de plurinacionalidade que o Estado, nesse novo marco constitucional, busca está assentado num sistema de governo que admite três tipos de democracia: a representativa, a participativa e a comunitária. A democracia comunitária, conforme art. 11, parágrafo II da CPE, se expressa através “eleição, designação ou nomeação de autoridades e representantes por normas e procedimentos próprios das nações e povos indígenas originário camponês, entre outros, conforme a lei”. Porém, essa democracia comunitária se encontra limitada pela supervisão a que está sujeita pelo órgão eleitoral, conforme preceitua o artigo 21 da mesma Constituição (CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO ESTADO, 2009 BOLÍVIA. Constituição Política do Estado, 2009. ).

A livre-determinação e a territorialidade estão previstos como direitos fundamentais de maneira específica no capítulo IV, do título II da Constituição, que diz respeito aos direitos e garantias constitucionais (CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO ESTADO, 2009 BOLÍVIA. Constituição Política do Estado, 2009. ).

A jurisdição indígena originária camponesa goza de igual hierarquia em relação à ordinária, assim disposto no artigo 179, parágrafo II da Constituição (CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO ESTADO, 2009 BOLÍVIA. Constituição Política do Estado, 2009. ). E aqui, prevê expressamente, o reconhecimento do pluralismo jurídico.

Finalmente, a nova organização territorial permite o desenho jurisdicional a nível local e regional, e tenta responder à realidade sociocultural e multiétnica do país com o reconhecimento das autonomias indígenas estando disposto nos artigos 269 a 305 da Constituição (CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO ESTADO, 2009 BOLÍVIA. Constituição Política do Estado, 2009. ).

É nesse cenário que Lomerío tem reiterado seu posicionamento de consolidar a autonomia a partir do seu território reconhecido e titulado como propriedade coletiva.

A luta pelo reconhecimento do pluralismo jurídico e autonomia de Lomerío: OICH e CICOL

Segundo Schavelzon, a Constituição Política da Bolívia, elaborada por uma Assembleia Constituinte, foi aprovada por referendum em 2009, a qual teve a participação de diferentes setores sociais e políticos desse país incluindo representantes de dezesseis (16) nacionalidades indígenas, ou seja, participação popular e indígena ampla (SCHAVELZON, 2011, p. 32). Houve ainda, o reconhecimento dos primeiros direitos políticos de terras e territórios e sua livre-determinação de acordo com os preceitos internacionais dos Direitos Humanos.

Assim, a nova Constituição Política da Bolívia guardou relação com a Convenção 169 da OIT produzindo efeitos legais sobre os direitos indígenas e sendo considerada elemento-chave para realizar esse Estado Plurinacional. O Estado boliviano tendo como objetivo a descolonização está promovendo uma série de reformas estruturais. O elemento central dessa nova política é a definição como um Estado Plurinacional.

Os direitos das nações indígenas e povos indígenas originários campesinos estão dispostos nos artigos 30 a 32 da Constituição Política do Estado (CPE). O direito à livre determinação é o direito de um povo poder decidir suas próprias formas de governo (“autogobierno”), organizar seu desenvolvimento econômico, social, cultural e estruturar-se de acordo com o princípio da igualdade da Declaração das Nações Unidas, Convenção 169 da OIT e Lei de Marco das Autonomias. O direito à autonomia, conforme artigo 2 da CPE, consiste no “autogobierno”, exercício de seus sistemas políticos, jurídicos e econômicos de acordo com sua cultura, reconhecimento de suas instituições passando a fazer parte das estruturas do Estado, e também a possibilidade de participarem dos órgãos e instituições do Estado, bem como a consolidação de suas entidades territoriais.

Quando abordamos a categoria autonomia, esta remete à possibilidade do “autogobierno”, ou seja, trata-se do direito das comunidades poderem gerir seus próprios recursos, governarem seu próprio território, com suas próprias normas devendo, assim, verem respeitados a sua cultura, suas formas de organização incluindo ai, as normas políticas e jurídicas próprias dessas comunidades. Desta forma, a Constituição reconheceu as formas de governo tradicionais e a possibilidade de exercerem autoridade administrativa-político em seu território. O art. 290 desta CPE estabelece que a conformação das autonomias indígenas originárias campesinas (AIOC,s) será baseada em territórios ancestrais habitados por povos indígenas e ainda respeitará a vontade dessa população expressa por meio de consulta. Porém, essas AIOC,s têm a responsabilidade de elaborarem seu próprio estatuto de acordo com suas normas e procedimentos próprios, obedecendo a Constituição no seu art. 192 e a lei de autonomias. (CONSTITUIÇÃO POLÍTICA DO ESTADO, 2009 BOLÍVIA. Constituição Política do Estado, 2009. ). É nesse sistema, implementado pelo Estado que a categoria analítica da descolonização vem aparecendo enquanto um convite para os indígenas adentrarem ao Estado.

Segundo Justo Seoane, atual “gran cacique general” da Organização Indígena Chiquitana (OICH), o reconhecimento da autonomia indígena originária camponesa definida como “autogobierno” no art. 290 da CPE é fruto da participação ativa de organizações sociais durante o processo constituinte. Particularmente se destaca a participação ativa da OICH e suas Centrais Indígenas, principalmente da CICOL, que esteve envolvida na Comissão de Autonomias e teve como representante dos povos indígenas Nélida Faldín, na Assembleia Constituinte de 2008. Essa representante esteve apoiada por uma equipe de técnicos indígenas da OICH que também acompanharam todo o debate até a aprovação do novo texto constitucional ( SEOANE, 2015 JUSTO SEOANE. 1 gran cacique general da OICH. Entrevistado por Vívian Lara Cáceres Dan em 24/01/2015 na sede da OICH. Concepcíon - Bolívia ).

Posteriormente ao processo constituinte, o território indígena monkóx de Lomerío e as Centrais Indígenas da OICH iniciaram um processo participativo de análise sobre a viabilidade da autonomia territorial e de outros tipos reconhecidos pela Constituição em espaços de reflexões e ações participativas. E, segundo Seoane:

A mesa técnica da OICH pretendeu refletir sobre o tipo de autonomia a ser implementada nos territórios consolidados e nas comunidades que obtiveram apenas o título de propriedade coletiva. Essas reuniões contaram com a participação dos ex representantes constituintes indígenas, lideranças indígenas, jovens e representantes das centrais afiliadas a OICH. Desse processo de reflexão geraram alguns consensos básicos ao redor do rol de reivindicações políticas em torno das Centrais, assim como a respeito do funcionamento do governo próprio ( SEOANE, 2015 JUSTO SEOANE. 1 gran cacique general da OICH. Entrevistado por Vívian Lara Cáceres Dan em 24/01/2015 na sede da OICH. Concepcíon - Bolívia ).

Ou seja, as análises feitas permitiram orientar o debate e o posicionamento de cada território indígena a respeito da autonomia indígena para garantir a coesão e a unidade organizativa.

Peña, cacique geral da CICOL, esclareceu sobre Lomerío:

O processo histórico do território indígena monkóxi de Lomerío começou com a marcha indígena “Por território e dignidade” em 1990, organizada pela CIDOB que tinha uma plataforma de demandas ao governo através do projeto de lei indígena e ali o ponto central já era a autodeterminação dos povos indígenas na Bolívia. A autodeterminação foi reconhecida no ano de 2000 com a nova Constituição. E em 2001, iniciamos a gestão territorial indígena, uma experiência particular da Bolívia e única, que constituiu num modelo de desenvolvimento dos povos indígenas e a gestão territorial já configurava para nós o exercício da autonomia indígena ( PEÑA, 2015 ANACLETO PEÑA. 1 gran cacique da CICOL. Entrevistado por Vívian Lara Cáceres Dan na sede da CICOL em 09/12/ 2015. El Puquio – Bolívia. ).

Fica claro o quanto essa luta é anterior ao próprio processo de “ascensão” às autonomias proposta pelo Estado, e o quanto eles vêm sofrendo pressões e resistindo para garantir os seus direitos e forma de governo já estabelecido e anterior ao que o Estado propõe.

O governo boliviano vem pressionando Lomerío para adotar a via municipal de autonomia (chamada de via curta) e assim, desconsidera a democracia comunitária, segundo Vargas ( VARGAS, 2015 MIGUEL VARGAS. Entrevistado por Vívian Lara Cáceres Dan na sede da CEJIS em 22/04/2015. Santa Cruz de La Sierra - Bolívia. ). Essa intromissão política pode ser interpretada como a falta de vontade política em apostar na implementação de autonomia com base territorial. A atenção do governo volta-se para os municípios que estão “ascendendo” à autonomia indígena pela via municipal e não pela via territorial.

Cada vez mais, a Central Indígena das Comunidades Originárias de Lomerío (CICOL) terá que demonstrar sua capacidade orgânica de lutar contra as travas legais e burocráticas da Lei Marco de Autonomias e descentralização (LMAD, 2010 BOLÍVIA. Lei Marco das Autonomias e Descentralização, 2010. ) para poderem ver avançar sua autonomia, e mesmo com as pressões internas e externas, tentar manter a coesão entre autoridades e comunidades seguindo firmes na posição de consolidarem sua autonomia pela via territorial.

Peña enfatiza que:

Nós somos uma cultura que ama a liberdade, tanto que buscamos ser livres, aspiramos o “autogobierno” para poder exercer nossa autodeterminação, não queremos ser subordinados, submetidos ou oprimidos. Para nós é imprescindível construir nosso próprio desenvolvimento conforme nossa identidade cultural, sem deixar de lado, as leis e normas vigentes ( PEÑA, 2015 ANACLETO PEÑA. 1 gran cacique da CICOL. Entrevistado por Vívian Lara Cáceres Dan na sede da CICOL em 09/12/ 2015. El Puquio – Bolívia. )

Eles estão conscientes do processo de transformação que o país vive e do momento histórico de construção do Estado Plurinacional. Nesse sentido, acreditam ser fundamental aproveitar essa oportunidade para viabilizarem o direito à autonomia assentando as bases dessa nova institucionalidade e construindo o caminho que vai ser trilhado por essa autonomia indígena originária camponesa.

Foi acreditando nessa mudança, que Lomerío se declarou o primeiro território indígena manifestando a nível nacional a sua decisão em adotar a autonomia de base territorial em 2008, quando a Assembleia Constituinte ainda debatia os detalhes dessa autonomia no novo texto constitucional. E essa definição política foi ratificada pela Central Indígena (CICOL) ainda em 2008, declarando Lomerío o primeiro território indígena autônomo monkóxi de Lomerío, tomando como base a Declaração dos Povos Indígenas das Nações Unidas de 2007 (ESTATUTO DA CICOL, 2008).

Essa ação, de se declararem como território autônomo, foi uma estratégia política e agora estão em processo de adequação ao marco legal estabelecido. A própria construção da gestão territorial indígena repercutiu como um instrumento de exercício de sua autonomia.

O primeiro encontro da autonomia territorial de Lomerío ocorreu em 2009 e ratificou a decisão de avançar na consolidação da autonomia pela via territorial em conformidade com suas próprias normas e procedimentos (ESTATUTO DE LOMERIO, 2013 BOLÍVIA. Estatuto de autonomia da nação monkóxi de lomerio, 2013. ). Os representantes das 28 comunidades indígenas para elaboração do Estatuto vieram a formar o Conselho da Autonomia Indígena Monkóxi de Lomerío. Os caciques da Assembleia elaboraram as regras para o funcionamento da Assembleia Indígena Monkóxi do território, norma esta que estabeleceu a tarefa central dessa instância que foi a elaboração do estatuto de autonomia. Uma vez aprovada as regras passou-se a eleição do diretório integrado por cinco (5) membros para elaboração do Estatuto. Instalada a seção no diretório fizeram várias mesas de trabalhos temáticos contando com a participação do Conselho de Anciãos, Diretório da CICOL e representantes das comunidades (ESTATUTO DE LOMERÍO, 2013 BOLÍVIA. Estatuto de autonomia da nação monkóxi de lomerio, 2013. ).

Assim, o Estatuto de Lomerío é prova desse compromisso com a democracia participativa e comunitária. Foi construído de maneira participativa por homens e mulheres que vivem no território de Lomerío. Foi produto de um longo processo de reflexões e deliberações que, ao final, permitiu chegar a consensos dentro desse modelo de democracia comunitária ( PEÑA, 2015 ANACLETO PEÑA. 1 gran cacique da CICOL. Entrevistado por Vívian Lara Cáceres Dan na sede da CICOL em 09/12/ 2015. El Puquio – Bolívia. ). Porém, sofreu ajustes e outros poderão ser feito em função das necessidades e dos acordos orgânicos que o Tribunal Constitucional Plurinacional (TCP) pode vir a exigir para verem o processo de autonomia consolidado.

Na apresentação do Estatuto, a Comissão à frente do processo, escreveu justificando adaptações feitas devido às exigências da “Ley Marco de Autonomías y Descentralización” (LMAD) de 2010 BOLÍVIA. Lei Marco das Autonomias e Descentralização, 2010. , que definiu os procedimentos para poderem avançar e os obrigaram a adequar a proposta de Estatuto à nova norma legal, o que fizeram nos anos de 2011 e 2012, incluindo ai as oficinas comunitárias, zonais e assembleias com participação de todas as comunidades. Peña acrescenta: “as leis que vão promulgando têm requisitos e condições que mais parecem travas para a consolidação e viabilização da nossa autonomia” ( PEÑA, 2015 ANACLETO PEÑA. 1 gran cacique da CICOL. Entrevistado por Vívian Lara Cáceres Dan na sede da CICOL em 09/12/ 2015. El Puquio – Bolívia. ).

Finalizaram com a apresentação e aprovação em Assembleia Ordinária desse Estatuto. Entenderam que precisam cumprir os requisitos para poderem se constituir enquanto governo autônomo em “plenitude”, ou seja, enquanto autonomia indígena de base territorial no território indígena de Lomerío.

Peña encerra a entrevista salientando que “mesmo que demore 100 anos, mesmo que nos neguem, seguiremos e não desistiremos de alcançar o sonho de sermos autônomos e exercer nossa autodeterminação ( PEÑA, 2015 ANACLETO PEÑA. 1 gran cacique da CICOL. Entrevistado por Vívian Lara Cáceres Dan na sede da CICOL em 09/12/ 2015. El Puquio – Bolívia. )”.

Nesse próximo item abordo alguns aspectos do Estatuto construído para ser validado perante o TCP. Nele existem especificidades da sua estrutura e organização indígena, bem como adaptações ao que o Estado deseja.

Aspectos de interlegalidade e algumas especificidades do Estatuto de Lomerío

Na primeira parte do Estatuto, denominado de Bases do Estatuto da Nação de Monkóxi de Lomerío, este se divide em vários capítulos: no primeiro capítulo estão as disposições gerais; no segundo capítulo estão elencados os princípios e finalidades da nação monkóxi; no terceiro, direitos, deveres e garantias; no quarto estão os dispositivos que tratam a respeito da igualdade de gênero e das pessoas com “capacidades diferenciadas” (deficiências).

Entre outras semelhanças e adaptações ao modelo ocidentalizado de Estado estão: o artigo 4 que aborda sobre sujeição deste Estatuto à Constituição e às leis em vigência na Bolívia. É um artigo que estabelece os termos de concordância e harmonia com a Constituição Política do Estado, pois são indígenas mas também são cidadãos bolivianos conforme artigo 7, que esclarece a respeito da identidade da nação monkóxi de Lomerío. Assim, devem conhecer e cumprir as normas constitucionais e as leis vigentes no país de acordo com o artigo 15, inciso III. Ainda, garantem todos os direitos das crianças e adolescentes e também respeitam os limites dos mesmos previstos na Constituição, conforme artigo 18, inc. I e II. O primeiro idioma é o bésiro e o segundo é o castelhano mas, todos os documentos devem estar escritos nos dois idiomas conforme artigo 9 desse estatuto (ESTATUTO DE LOMERÍO, 2013 BOLÍVIA. Estatuto de autonomia da nação monkóxi de lomerio, 2013. ).

O capítulo III desse estatuto trata dos direitos, deveres e garantias dessa nação indígena. Mesmo essa estrutura sendo muito parecida com a das constituições modernas com alguns dispositivos muito parecidos com os já consagrados, e reconhecendo os direitos da Constituição Política do Estado, ainda assim, o conteúdo desses direitos, deveres e garantias seguem, em sua maioria, às normas e procedimentos próprios para manutenção desta democracia comunitária.

No artigo 14 estão os direitos à vida e o de eleger e ser eleito dentro do território que são muito parecidos com os direitos das Cartas Constitucionais ocidentais. Porém, outros direitos têm traços de sua especificidade como: participação das assembleias e outras instâncias de decisões; receber informações das atividades que estão ocorrendo no território; controlar e fiscalizar os atos das autoridades do governo autônomo; receber benefícios das iniciativas coletivas; ter direito à educação e saúde que respeite a cosmovisão e a cultura indígena monkóxi; usar, manejar e fazer o aproveitamento dos recursos naturais de forma sustentável e ocupar um espaço no território para construir sua casa.

O artigo 15 aborda os deveres que também traz algumas características muito semelhantes às estabelecidas em muitas Constituições mas também, traz elementos da forma como vivem, entre eles destaco: obedecer as decisões das autoridades locais e as normas do território; proteger, cuidar e fazer uso sustentável dos recursos naturais; denunciar venda ilegal ou aproveitamento ilegal dos recursos naturais; realizar uma atividade socialmente útil, trabalhar e/ou estudar de acordo com suas condições e capacidades; participar das atividades e trabalhos comunitários do seu território; assistir às reuniões que forem convocadas pelas autoridades do governo autônomo ou pelas comunidades; não enfeitiçar nem fazer fofoca da vida alheia; proteger os conhecimentos adquiridos ancestralmente.

Todos os direitos garantidos na Constituição Política do Estado em relação às crianças, adolescentes, mulheres, pessoas com deficiências que vivem no território foram garantidos também neste estatuto, contribuindo para igualdade de gênero e oportunidade, conforme artigos 16 ao 21 do estatuto. O interessante é que criaram um dispositivo para as pessoas não indígenas no artigo 22 desse estatuto esclarecendo a esses terceiros que estando dentro desse território são as normas desta nação junto com a Constituição boliviana que tem eficácia ali e devem respeitar as normas locais.

Muitas outras semelhanças podem ser destacadas na forma como estruturaram seus direitos, que de alguma forma sofreu influência do contato com o modelo colonizador e ocidentalizado de Constituições, e hoje se encontra vinculado ao Estado Plurinacional bem como aos órgãos públicos nacionais estando os mesmos atravessados pelos direitos fundamentais inclusive.

Na segunda parte do Estatuto, denominado de Estrutura de Governo, também está dividido em vários capítulos: no primeiro capítulo, seção I aborda sobre a assembleia geral, na seção II sobre o órgão executivo, na seção III está os dispositivos sobre o órgão legislativo, na IV está os artigos sobre a administração da justiça; a seção V trata sobre a participação e controle social a partir das funções da Central Indígena de Comunidades Originárias de Lomerío (CICOL).

Mesmo com nomenclaturas diferentes, eles têm essa divisão dos três poderes: órgão executivo, judicial e legislativo. Também possuem requisitos para o/a candidato (a) poder exercer o cargo de chefe do Executivo no governo autônomo monkóxi de Lomerío, entre outros: não ter antecedentes criminais na justiça ordinária e também na comunitária, ter no mínimo 25 anos, ter cumprido serviços militares quando for homem, não exercer outro cargo ou função pública, etc (artigo 32, inc. I, II, V e VI). Porém, outros dois requisitos se destacam como características que os indígenas acham importantes, que trazem a questão do pertencimento, da trajetória de luta histórica de reivindicações pelo seu povo: ter nascido no território de Lomerío e viver permanentemente ao menos 10 anos antes da eleição; e, ter trajetória de exercício na direção da organização indígena, como autoridade da comunidade ou autoridade espiritual, conforme dispõe o artigo 32, incisos III e VII do referido estatuto.

O órgão legislativo tem a composição de cinco (5) membros, quatro provenientes dos cantões (zonas) do território de Lomerío e primeiro eleito pela Assembleia Geral. São esses representantes que, entre outras funções, elaboram, aprovam e modificam as normas em matéria fiscal, financeira ou as de recursos próprios, conforme artigo 38 desse estatuto.

Na quarta parte está previsto o regime financeiro dessa nação e território indígena dispondo sobre as fontes de financiamento do governo autônomo, impostos tanto por arrecadação como por repasses do governo da Bolívia, bem como as possibilidades para canalizarem recursos econômicos externos. Também prevê recursos locais, considerado como de ingresso próprio do esforço comunitário que terá uma regulamentação própria a ser combinada com as comunidades, conforme artigos 58 a 60 deste Estatuto.

Na quinta parte, artigos 61 até o 82, o estatuto prevê sobre a estrutura econômica, social, recursos naturais, terra, território e meio ambiente. Assim como muitas constituições traz a definição do que são esses recursos naturais, forma de proteção e aproveitamento dos mesmos, assim como também dos recursos hídricos entre os artigos 61 ao 66. Percebo uma grande preocupação em explorar os recursos de forma a não agredir a natureza porque o sustento das famílias vem de lá. E mesmo as atividades ligadas ao comércio deverão seguir um plano de manejo bem como serão controlados pelas brigadas florestais comunitárias. O artigo 64 aborda especificamente sobre os conhecimentos tradicionais e os direitos genéticos associados a esse conhecimento que devem ser protegidos. Também adequaram o artigo 65 ao que a Convenção 169 da OIT vem disciplinando a respeito de atividades que afetem as comunidades e que deverá acontecer a consulta livre, prévia e informada das atividades que o Estado venha realizar no território em relação aos recursos não renováveis.

Sobre suas especificidades, na primeira parte do Estatuto, denominada de Bases do Estatuto da Nação Monkóxi de Lomerío, o título do artigo 1 trata sobre a preexistência, autodeterminação, plurinacionalidade e autonomia da nação indígena. Assim, colocam em evidência a nação monkóxi de Lomerío enquanto anterior à existência da própria colônia e à república, sendo os donos do seu território, embora também reconheçam a coexistência de outras nacionalidades no Estado Plurinacional da Bolívia (ESTATUTO DE LOMERIO, 2013).

Eles assumem a autodeterminação enquanto autonomia, com base no seu território reconhecido como Terra Comunitária de Origem (TCO) pelo Estado. Também alegam que sempre tiveram essa vontade histórica de constituir seu governo próprio com a livre determinação e que a Constituição Política do Estado veio garantir isso a partir de 2009. Enfatizam ainda, o quanto é importante a descolonização no sentido de ultrapassar a visão monocultural e centralizadora do Estado e inaugurar essa nova institucionalidade em que o reconhecimento da autonomia indígena é elemento importante desse processo (ESTATUTO DE LOMERIO, 2013).

No artigo 6 desse estatuto está clara a forma de governo que escolheram tratando-se de uma democracia, direta e participativa onde as autoridades assumem um mandato e devem cumprir os procedimentos e normas desse estatuto que para eles tem o valor da própria Constituição.

Os símbolos que os representam estão no artigo 10: a terra de onde retiram seu sustento, os bailões e máscaras chamados de carnavalitos, facão e pá simbolizando o trabalho, instrumentos musicais (como a flauta, o bumbo, o pífano), a lua e o sol que de acordo com a forma sinaliza como será o clima e se haverá enfermidades, as estrelas (cruzeiro do sul) como meio de se orientarem, etc (ESTATUTO DE LOMERIO, 2013).

Em relação às religiões, respeitam todas mas eles têm entidades espirituais que simbolizam a natureza e que para eles intervém na relação entre os homens e a natureza. Também têm lugares que acreditam ser encantados ou mágicos e é onde essas entidades que protegem a natureza habitam. Aliás, os espíritos bons e maus conviveriam e caberia aos homens escolherem o caminho que querem trilhar e serem influenciados por qualquer desses espíritos (ESTATUTO DE LOMERIO, 2013).

Os valores e princípios que reconhecem dentro dessa organização territorial estão elencados no art. 12 dentre os quais destaco: 1) a liberdade, representando o fim da submissão seja em relação ao colonizador ou aos patrões; 2) autodeterminação significando a vontade histórica de governarem seu território; 3) a minga, uma espécie de trabalho solidário que simboliza a unidade e a colaboração entre as famílias e as comunidades; 4) a identidade cultural, ou seja, o orgulho e respeito pela identidade indígena; 5) o bem comum, que está acima do bem individual, que protege os interesses coletivos; 6) equidade, que se expressa na distribuição de qualquer benefício obtido através dos recursos naturais do território que deve ser um benefício para toda a comunidade; 7) trabalho coletivo, ou seja, é o trabalho que as famílias fazem em nome dos espaços de uso comum e do território; 8) igualdade hierárquica e não subordinação, querendo isso dizer que, a autonomia territorial tem o mesmo poder dos outros órgãos de governo e não se subordinam a outras entidades territoriais (ESTATUTO DE LOMERIO, 2013).

O artigo 13 desse estatuto dispõe sobre as finalidades da autonomia monkóxi de Lomerío, e para eles, esta se liga à reconstrução territorial no sentido de conseguirem proteger sua cosmovisão e os recursos naturais de seu território enquanto bens sociais. Assim esse “autogobierno” é a forma encontrada para exercitarem seus valores culturais, sociais e jurídicos, colocando em prática o pluralismo jurídico, o seu governo, as normas e procedimentos próprios.

Para mim, o aspecto de jusdiversidade ocorre a partir da justiça comunitária. Existe nesse estatuto uma seção que aborda a administração da Justiça através da justiça comunitária. Esta justiça ocorre por meio de autoridades da comunidade, dos cantões ou zonas e conselho de anciãos. É administrada pelo “cacique mayor comunal”, que atende os conflitos que ocorrerem em sua comunidade, sejam esses leves ou graves. Caso não haja resolução à nível de comunidade, o caso pode ser levado ao “cacique zonal” (do cantão onde a comunidade faz parte, sendo 4 cantões). Então, esse segundo cacique atende os casos enviados pelo cacique das comunidades de sua região. Se este cacique não conseguir resolver o conflito ou devido à gravidade do mesmo, ele pode enviar ao Conselho de Anciãos onde haverá cinco conselheiros, sendo quatro deles oriundos um de cada zona ou cantão e um deles eleito pela Assembleia Geral, que geralmente atende os casos de maior gravidade ou não solucionados à nível de comunidade nem de cantão, conforme artigos 40 a 43 do estatuto (ESTATUTO DE LOMERIO, 2013).

De acordo com o artigo 45, dentre às atribuições desse Conselho de Anciãos, responsável pela jurisdição indígena, estão: coordenar junto com os caciques comunais e zonais e as autoridades do governo autônomo; conhecer e resolver todo tipo de conflito interno e em relação aos externos, todos que em sua jurisdição, atentem contra a harmonia da comunidade no seu território, contra a integridade territorial e patrimonial; nos casos de conflitos graves com terceiros será convocado uma Assembleia Geral Extraordinária para resolver esse conflito (ESTATUTO DE LOMERIO, 2013).

A justiça comunitária é exercida em três níveis, conforme artigo 47: comunitário, zonal e territorial e todos os que habitam o território de Lomerío estão sujeitos a essa jurisdição. Porém, essa hierarquia de julgamento prevista no Estatuto ainda não está consolidada, apenas formalmente colocada no estatuto. A justiça ocorre a nível comunitário. As regras e condições externas que devem observar para que o Estatuto seja aprovado ainda não foram absorvidas a nível comunitário.

Dentre os princípios da justiça comunitária estão os consagrados pela Constituição Política do Estado e também no artigo 48 desse estatuto: o direito à vida, integridade física, psicológica e sexual e todos os outros direitos consagrados pela CPE. E, o artigo 49 esclarece que todas as decisões tomadas por essas autoridades da justiça comunitária não poderão ser revisadas pela justiça ordinária, nem agroambiental, sendo o cumprimento dessa decisão obrigatória (ESTATUTO DE LOMERIO, 2013).

O Conselho dos Anciãos podem ainda, segundo artigo 50, enviar para a justiça ordinária os casos que entender não ser de sua competência. Porém, esse mesmo artigo ressalta que essa justiça comunitária, bem como a sua coordenação, se manterá de forma independente da justiça ordinária (ESTATUTO DE LOMERIO, 2013).

O diretório da CICOL é elencado pelos artigos 51 e 52, como a instância de participação e exercício do controle social no governo autônomo, fiscalizando e controlando a gestão do governo do território de Lomerío, coordenando juntamente com os órgãos do governo indígena e cumprindo os mandatos da Assembleia Geral (ESTATUTO DE LOMERIO, 2013).

Várias competências são colocadas como exclusivas do governo autônomo, entre elas, o artigo 55 traz: a definição das formas de administração do desenvolvimento econômico, social, cultural, político e organizacional; gestão e administração dos recursos naturais renováveis; administração e preservação das áreas protegidas dentro de sua jurisdição; exercício da jurisdição indígena com suas normas e procedimentos próprios; administração dos impostos de sua competência; desenvolvimento e execução de mecanismos de consulta livre e prévia de medidas executivas, administrativas e legislativas que os afetem; preservação de seu habitat conforme seus princípios, normas e práticas culturais e históricas; desenvolvimento de suas instituições democráticas (ESTATUTO DE LOMERIO, 2013).

No artigo 68, o estatuto expressa que a CICOL é a organização indígena legítima e representa as 29 comunidades sendo a titular do direito agrário sobre o território de Lomerío estabelecido num título de propriedade coletiva. Assim, conforme artigo 69, inciso I, a propriedade do território é coletiva e pertence a nação monkóxi de Lomerío e no inciso IV do mesmo artigo, esclarece que governo autônomo respeita o uso e aproveitamento responsável de forma individual e coletiva, mas ninguém terá direito de proprietário de terra (ESTATUTO DE LOMERIO, 2013).

Em relação à finalidade da economia da nação monkóxi, esta deve cumprir a alimentação e necessidades das famílias e apenas o excedente poderá ser vendido ou trocado por outros produtos conforme artigo 72, incisos I e II. Dentre os princípios da economia, o artigo 73 traz: a troca, a solidariedade, a distribuição equitativa da produção, o trabalho comunal e a sustentabilidade (ESTATUTO DE LOMERIO, 2013).

E nas disposições finais, o estatuto explica que o mesmo poderá ser modificado em Assembleia Geral entrando em vigor assim que o controle de constitucionalidade estiver pronto (ESTATUTO DE LOMERIO, 2013).

Os posicionamentos explicitados pelos dirigentes indígenas de Lomerío rompem com a ideia de um povo indígena harmônico, um todo a ser considerado, sem diferenças e contradições entre eles. A autonomia e o governo autônomo não podem ser pensados e fundamentados apenas pelas diferenças culturais, mas desde o momento em que essas nações tiveram direito à livre determinação, ou seja, o direito dos povos e nações elegerem livremente seu regime político, econômico, juridico e cultural. O maior de todos os problemas é que não estão tendo liberdade para nada disso.

A nação monkóxi de Lomerío tem assumido a responsabilidade de seu próprio destino, e ao mesmo tempo também, abre caminho para a construção da própria autonomia dando forma ao Estado Plurinacional, dotando de novos conteúdos essa democracia de um país tão diverso. Suas ações e estratégias também provocam mudanças em um contexto mais amplo de luta pelos direitos indígenas que fazem a realidade das suas reivindicações fortalecerem a luta pelo direito humano de livre determinação dos povos indígenas em geral. Assim, os povos indígenas seguem esperando e lutando para ver o Estado boliviano assumir efetivamente a sua condição de plurinacional.

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Entrevistas

  • ADOLFO CHAVÉZ. Presidente da CIDOB. Entrevistado por Vívian Lara Cáceres Dan em 12/04/2014 na sede da CIDOB. Santa Cruz de La Sierra - Bolívia.
  • ANACLETO PEÑA. 1 gran cacique da CICOL. Entrevistado por Vívian Lara Cáceres Dan na sede da CICOL em 09/12/ 2015. El Puquio – Bolívia.
  • JUSTO SEOANE. 1 gran cacique general da OICH. Entrevistado por Vívian Lara Cáceres Dan em 24/01/2015 na sede da OICH. Concepcíon - Bolívia
  • MIGUEL VARGAS. Entrevistado por Vívian Lara Cáceres Dan na sede da CEJIS em 22/04/2015. Santa Cruz de La Sierra - Bolívia.
  • RAMON PAZ MONTERO. 1 dirigente da OICH. Entrevista do na sede da CIDOB em 27/04/2014. Santa Cruz de La Sierra – Bolívia.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Sep 2018
  • Data do Fascículo
    Set 2018

Histórico

  • Recebido
    30 Out 2016
  • Aceito
    09 Jun 2017
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