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Integrales e Bacchonici: As teses filosóficas do Colégio do Maranhão e suas fontes

Integrales and Bacchonici: the philosophical theses of the Maranhão College and their sources

Resumo

O objetivo deste artigo é comparar as teses de filosofia defendidas no Colégio do Maranhão nos anos de 1720 e 1730. Inicialmente, indicaremos algumas características distintivas das trabalhos produzidos no período que os tornam um gênero literário completamente distinto daquele praticado nas universidades contemporâneas. Em seguida, veremos como as teses defendidas sob a presidência de Rodrigo Homem são, quanto ao conteúdo, similares às teses defendidas em Portugal no mesmo período. Posteriormente, indicaremos alguns elementos presentes nas teses defendidas sob a presidência de Bento da Fonseca que talvez possam ser explicados pelo contato entre carmelitas e jesuítas na região.

Palavras-chave:
Bento da Fonseca; Rodrigo Homem; Brasil Colonial; Teses; Lógica

Abstract

The purpose of this article is to compare the philosophy theses defended at the Colégio do Maranhão in the years 1720 and 1730. Initially, we will indicate some distinctive characteristics of the works produced in the period that make them a literary genre completely different from the one practiced in contemporary universities. Then, we will see how the theses defended under the presidency of Rodrigo Homem are, in terms of content, similar to the theses defended in Portugal in the same period. Afterwards, we will indicate some elements present in the theses defended under the presidency of Bento da Fonseca that may be explained by the contact between Carmelites and Jesuits in the region.

Keywords:
Bento da Fonseca; Rodrigo Homem; Colonial Brazil; Theses; Logic

Introdução

Encontramos nas bibliotecas europeias e sul-americanas um número incontável de documentos que atestam a etapa final do treinamento filosófico recebido por estudantes no início da modernidade.1 1 Exemplos podem ser encontrados em: https://purl.pt/38680 e https://purl.pt/33843. Recentemente, diversos projetos de pesquisa têm disponibilizado materiais de ensino empregados no início da modernidade, dentre os quais destacamos: Ressources numériques en histoire de l'éducation (http://rhe.ish-lyon.cnrs.fr/?q=coursimp. Veja-se ainda: KOMOROWSKI, M.; HANSPETER, M. Königsberger Universitätsschriften und Promotionen von Gründungsjahr der Albertina 1544 bis 1800:https://www.forschungen-engi.ch/projekte/koenigsberger-universitaetsschriften-und-promotionen, todos os links consultados em 11/12/2022. Geralmente redigidos no latim acadêmico da época, são intitulados: teses, conclusões, observações, posições, etc. e possuem extensão variada, podendo ir de quatro a mais de uma dezena de páginas (PEREIRA GOMES, 1961PEREIRA GOMES, J. As teses e o problema de sua autoria. Brotéria, v. 73, p. 397-429, 1961.). As teses eram defendidas em cerimônias solenes abertas ao público e contavam com a participação de autoridades religiosas e políticas. A publicação era a etapa usual do processo sendo custeada pelos próprios estudantes. A partir do século XVII, as teses começaram a receber gravuras que enquadravam o texto realçando o aspecto festivo dos cerimoniais. Em não raros casos, sobretudo em se tratando de pessoas ligadas à nobreza europeia, as gravuras eram encomendadas a artistas famosos e as festividades envolviam a leitura de poemas e a execução de músicas compostas especialmente para a ocasião (NOGUÈS, 2009NOGUÈS, B. La maîtrise ès arts en France aux XVIIe et XVIIIe siècles. Histoire de l’éducation, v. 124, p. 95-134,2009.; MEYER, 1993MEYER, V. Les thèses, leur soutenance et leurs illustrations dans les universités françaises sous l’Ancien Régime. In: JOLLY, C.; NEVEU, B. Éléments pour une histoire de la these. Paris: Klincksieck, 1993. p. 45-111.; DE MÛELENAERE, 2019DE MÛELENAERE, G. Cadre(s) gravé(s). Les affiches de thèse dans le décor éphémère de la soutenance académique. In: CORDON, N.; DEGANS, E.; DOULKARIDOU-RAMANTANI, E.; HEERING, C. (éds.) Jeux et enjeux du cadre dans les systèmes décoratifs de la première modernité (1500-1700). Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2019. p. 41-58.).

O conteúdo destes trabalhos pode, no entanto, causar surpresa a leitoras e leitores acostumados aos formatos contemporâneos. Transpostas para o período atual, estas teses seriam equivalentes a uma monografia produzida no fim de um curso de Filosofia. Todavia, a diferença de concepção entre os dois tipos de exercício é evidente. Muitas das teses possuem praticamente o mesmo conteúdo e limitam-se a enumerar os temas abordados pelos professores durante seus cursos. Estamos portanto bastante longe da forma atual de pesquisa orientada para a produção de conhecimento e baseada na apresentação de argumentos que justificam uma contribuição dotada de um certo grau de originalidade. Isso porque, nos trabalhos de conclusão de curso contemporâneos, o registro escrito é essencial. No modelo universitário do início da modernidade, a ênfase era outra. O núcleo característico do ensino continuava, de certa maneira, as práticas de ensino medievais (CHANG, 2004CHANG, K.-G. From Oral Disputation to Written Text: The Transformation of the Dissertation in Early Modern Europe. History of Universities, v. 19, p. 129-187, 2004.; GINDHART & KUNDERT, 2010GINDHART, M.; KUNDERT, U. Disputatio 1200-1800. Form, Funktion und Wirkung eines Leitmediums universitärer Wissenskultur. Berlin: Walter de Gruyter, 2010.) e focava na quaestio orientada para a disputatio (WEIJERS, 2013WEIJERS, O. In Search of the Truth. A History of Disputation Techniques from Antiquity to Early Modern Times. Turnhout: Brepols, 2013.). A habilidade central a ser desenvolvida era, portanto, a capacidade de argumentação oral e o objetivo era treinar habilidades argumentativas baseadas no respeito às regras lógicas e no uso rigoroso de formas argumentativas. O ensino filosófico não era mensurado exclusivamente pelo conhecimento absorvido durante as aulas, mas antes pelas habilidades adquiridas. No caso do modelo pedagógico praticado pelos jesuítas (PAVUR, 2016), buscava-se o desenvolvimento da eloquência perfeita, ou seja, almejava-se formar discentes que viriam a ocupar posições de destaque social (GANNETT & BRERETON, 2016). Praticadas durante os exercícios de treinamento de rotina que eram as disputas, as habilidades do aluno deveriam ser evidenciadas no momento solene de defesa da tese (STORCK, no prelo). O formato das teses é explicado, portanto, tanto pelo objetivo central dos métodos pedagógicos quanto pela origem dos materiais registrados. Como já dito, os temas eram diretamente retirados do ensino ministrado pelos professores e as teses exibiam os tópicos que seriam discutidos quando da disputa oral que configurava a defesa da tese. Os conteúdos filosóficos eram certamente relevantes, mas não pela originalidade exibida no trabalho final, e sim como propedêutica ao aprendizado das disciplinas superiores estudadas em etapas posteriores: teologia, medicina e direito.

Outro fenômeno associado ao desenvolvimento das técnicas pedagógicas durante a modernidade é o surgimento dos manuais de ensino como gênero literário. Com o surgimento da imprensa, os livros passam a ser cada vez mais acessíveis, provocando uma dupla alteração nos modelos de ensino. Por um lado, a prática medieval de ditar aos alunos os textos a serem comentados pelo professor perde sentido. Por outro, o aumento de informações disponíveis que deveriam ser consideradas em sala de aula exige formas de exposição mais apropriadas para integrar novas temáticas e perspectivas. Os manuais surgem, então, para responder a ambos os desafios. Por adotarem a disputa como modelo de exposição, passam a ser peça fundamental para o ensino moderno (KENNY & PINBORG, 1988KENNY, A.; PINBORG, J. Medieval Philosophical Literature. In: KRETZMANN, N.; KENNY, A.; PINBORG, J. The Cambridge History of Later Medieval Philosophy. From the Rediscovery of Aristotle to the Disintegration of Scholasticism: 1100-1600. Cambridge: Cambridge University Press, 1988. p. 9-42.). Não demorará muito para surgirem manuais do período que, ao final de cada parte (Lógica, Física, Doutrina da Alma, Metafísica), publicam em apêndice as teses a serem defendidas pelos estudantes. Eis novamente a razão para que as teses sejam atribuídas aos professores. Coube a eles selecionar a ordem de conhecimento e apresentar os argumentos a serem discutidos. Isto também explica a existência de várias teses que são exatamente idênticas, diferindo apenas no nome do aluno que a defendeu, bem como a existência de teses publicadas com o nome de mais de um aluno.

No que segue, buscaremos analisar algumas teses oriundas do modelo jesuíta de ensino nas colônias portuguesas da América do Sul a fim de determinar até que ponto a transmissão do conhecimento produzido na Europa chegou às colônias e quais foram as particularidades do ensino filosófico ali praticado. Para tanto, a exposição será dividida em três partes. Na primeira, descreveremos brevemente um conjunto de teses oriundas do Colégio Jesuíta do Maranhão e defendidas início do século XVIII. Em seguida, compararemos as teses provenientes do ensino de dois professores: Rodrigo Homem e Bento da Fonseca. Como a parte argumentativa não é apresentada nas teses, nosso foco central será limitado à terminologia empregada por estes autores. O objetivo central consiste em identificar as possíveis tendências filosóficas às quais estes autores estão afiliados. Ao final, apresentaremos algumas conclusões provisórias sobre o tema.

As teses filosóficas do Colégio Jesuítico do Maranhão

O Colégio Jesuítico do Maranhão começou a funcionar após a chegada de duas expedições com missionários de Lisboa e da Bahia em 1688 (LEITE, 2006LEITE, S. História da Companhia de Jesus no Brasil. Edição Fac-símile, 10 volumes. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2006.; CUNHA, 2007CUNHA, L. A. A universidade temporã. O ensino superior, da colônia à Era Vargas. 3ª ed. São Paulo: Unesp, 2007.). Desde 1713, os mesmos graus acadêmicos concedidos na Bahia foram concedidos também aos estudantes internos e, desde 1730, aos externos (LEITE, 1948). A inexistência da imprensa gráfica nas colônias portuguesas da América do Sul significava que a prática de publicar teses não era generalizada. Isto explica, em parte, porque a maioria das teses defendidas permaneceram no formato manuscrito e acabaram perdidas. Entretanto, por um curto período de tempo, as teses defendidas no Colégio do Maranhão foram impressas na Europa até 1734 quando, por decisão do Procurador Geral, deixaram de ser impressas, provavelmente devido aos altos custos. Graças a terem sido enviadas para publicação em Portugal, algumas teses foram preservadas no Códice da Biblioteca Pública de Évora: CXVIII/1-1 que contém um conjunto de teses ou conclusões de Filosofia pertencentes ao fim do século XVII e início do século XVIII (LEITE, 2006). O Códice possui 300 fólios e 62 textos que foram numerados por Luís Silveira, Diretor da Biblioteca Pública de Évora durante o período 1937-1944. De suas 47 teses, 41 provêm do sistema educacional jesuíta. Uma foi defendida em Évora em 1691, dez são teses filosóficas defendidas no Colégio de Coimbra entre os anos 1726 e 1730 e trinta vieram do Colégio Jesuíta do Maranhão e são datadas entre os anos 1721 e 1731. O Codex também preserva duas teses defendidas nos colégios carmelitas, uma delas pertencente ao Colégio de Coimbra e a outra ao Colégio do Grão-Pará. Há também duas Conclusiones Theologicae, uma delas defendida em Évora no ano de 1725, bem como duas Conclusões Morais redigidas em língua portuguesa (MARQUES, 2018MARQUES, L. Á. A lógica da necessidade. O ensino de Rodrigo Homem no colégio do Maranhão (1720-1725). Porto Alegre: Editora Fi, 2018.).

Do ponto de vista formal, as teses possuem normalmente seguinte estrutura:

  • um título genérico acompanhado de uma indicação de se pertence à filosofia ou a uma parte dela: Lógica, Física ou Metafísica (Telae Aureae Philosophicae; Praestantiori principium ... Conclusiones Philosophicae);

  • indicação a quem foi dedicada (Palavra Divina, Mariae Sanctissimae, Ignatio de Loyola);

  • algumas apresentam um poema laudatório;

  • nome do professor responsável pelo curso ministrado e a quem a tese é atribuída;

  • nome de um ou mais alunos que apresentam (sistunt), oferecem (offerunt) e consagram (sacrant) a tese;

  • uma questão chamada principal (quaestio princeps, quaestio principal, quaestio primaria, problema princeps), preliminar (praeliminaris quaestio), questão a ser discutida (quaestio disputanda, problema disputanda) ou questão honorária (quaestio honoraria, problema honorarium), que tinha a função de elogiar o personagem a quem a tese era dedicada;

  • texto contendo as teses a seres disputadas, seja na forma de uma enumeração, seja na de parágrafos;

  • algumas teses registram a conferência com original, indicando lugar, data e assinatura de quem conferiu (Cohaerent suo originali. Conimbricae. In Coll. o Societ. Jesv de 19 Martii 1730. Mathaeus Gião);

  • nestes casos, há ainda a autorização para a defesa, com identificação do lugar, data e de quem concedeu a autorização (Podem-se defender, Coimbra, em mesa 20 de M.ço de 730. Paes. Abreu.).

Como já reiterado, as teses representam a síntese da instrução fornecida pelos professores e não as posições dos alunos. No caso das teses do Colégio Jesuíta do Maranhão, elas refletem as atividades de ensino de três professores de origem portuguesa: Rodrigo Homem, Bento da Fonseca e Manuel da Silva, mas nos referiremos apenas aos dois primeiros.

Rodrigo Homem foi enviado para ler o Curso de Filosofia no Maranhão em 1720. Após, passou a ensinar Teologia no Pará, tendo regressado para Portugal em 1725. Dispomos de sete teses defendidas sob sua presidência (LEITE, 2006LEITE, S. História da Companhia de Jesus no Brasil. Edição Fac-símile, 10 volumes. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2006., vol. 8, p. 300-1). Quatro ainda estão em formato manuscrito e três foram impressas, duas em Lisboa em 1721 e uma em Évora em 1723 (MARQUES, 2018MARQUES, L. Á. A lógica da necessidade. O ensino de Rodrigo Homem no colégio do Maranhão (1720-1725). Porto Alegre: Editora Fi, 2018.). Estas teses representam, portanto, a posição de um professor português designado para ensinar nos colégios da colônia por um breve período. Podemos esperar, portanto, que seu ensino esteja, em boa medida, em sintonia com aquele oferecido em Portugal, mesmo porque os jesuítas dispunham de mecanismos de controle da qualidade do ensino dispensado em seus colégios. Obviamente, isso não significa que o ensino fosse completamente idêntico em todos os colégios da Companhia, mas apenas que havia um padrão comum a ser observado.

Bento da Fonseca nasceu em Anadia em 1702 e entrou na Companhia de Jesus em 1718, indo ao Maranhão em 1720 para completar a sua formação. Estudou com Rodrigo Homem e defendeu, sob sua presidência, uma tese de lógica junto a Miguel Inácio. A tese foi publicada em Lisboa em 1721. Bento da Fonseca foi mais tarde professor de Filosofia no Grão-Pará e no Maranhão. De sua atividade docente, foram preservadas quatorze teses publicadas em Coimbra em 1730, duas publicadas em Lisboa também em 1730, e quatro permanecem em formato manuscrito, sem indicação de data, mas provavelmente são do mesmo período (LEITE, 2006LEITE, S. História da Companhia de Jesus no Brasil. Edição Fac-símile, 10 volumes. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2006., vol. 8, p. 244-252). Por ter completado a sua formação na colônia e, em seguida, ter assumido a função de docência na região, as teses de Bento da Fonseca sejam provavelmente mais aptas a revelarem as especificidades do ensino dispensado nos colégios da Companhia na colônia.

Dado que as teses resumem as posições ensinadas pelos professores em seus cursos filosóficos, sem, contudo, apresentar os argumentos que as sustentam e como não há evidências de que os cursos ministrados por Rodrigo Homem e Bento da Fonseca tenham sido publicados, não podemos afirmar quais seriam os argumentos efetivamente utilizados por estes professores para defender as teses anunciadas.2 2 Para um estudo mais amplo das posições em disputa no período, consulte-se: Heider, 2014; Schmid, 2018 e Heider, 2022. Sendo assim, nossa sugestão consiste em atentar para o vocabulário empregado nas teses e usá-lo como ponto de partida para identificar os principais temas tratados nos colégios situados na colônia e em que medida eles se aproximam do ensino ministrado em Portugal. Como a semelhança de vocabulário pode encobrir diferenças profundas de concepções, nossas conclusões devem ser bastante limitadas. Poderemos apenas determinar possíveis filiações filosóficas e, eventualmente, identificar possíveis evoluções terminológicas entre os autores analisados. Para tornar nossas conclusões um pouco mais precisas, adotaremos como ponto de partida a tese de Serafim Leite (2006LEITE, S. História da Companhia de Jesus no Brasil. Edição Fac-símile, 10 volumes. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 2006.), segundo a qual tanto o Cursus Conimbricensis quanto o curso de Baltasar Teles foram utilizados como material de ensino na região. Procuraremos mostrar, então, que o vocabulário presente nas teses analisadas faz referência a correntes filosóficas não consideradas por Teles (e, portanto, pelo Cursus Conimbricensis que lhe é anterior). A conclusão a extrair será a de que é necessário ler as teses no contexto da produção filosófica do fim do século XVII e procurar introduzir autores desconsiderados por Leite. Além disso, a comparação da terminologia permitirá, certamente também com um certo grau de generalidade e imprecisão, identificar algumas características específicas do ensino ministrado pelos jesuítas no Maranhão.

Rodrigo Homem e os Integrales

A tarefa de comparar os ensinamentos de Rodrigo Homem e Bento da Fonseca é, em parte, facilitada pelo fato de dispormos da tese defendida por Fonseca sob a supervisão de Homem. Assim, sabendo quais teses Fonseca sustentou oralmente durante a sua defesa, podemos compará-la com aquelas que ele ensinou a seus alunos e perguntar se ele continuou a seguir os ensinamentos de seu mestre durante o seu próprio magistério. Antes disso, no entanto, duas precauções fazem-se necessárias. Por motivos de brevidade, devemos inicialmente restringir o foco da comparação a tema mais específico. Nossa escolha versará sobre a natureza do universal. Em segundo lugar, convém dispormos de um marco teórico claro que nos permita situar o ensino de Rodrigo Homem no contexto da educação jesuíta. Conforme anunciado acima, um bom ponto de referência é, sem dúvida, o trabalho de Baltasar Teles (1596-1675). Sua Summa Universae Philosophiae (Suma de toda Filosofia com questões teológicas atualmente discutidas entre os filósofos) foi publicada pela primeira vez em 1642 e foi altamente difundida na Europa, tendo recebido diversas edições na Alemanha, Espanha, França e Itália. A quarta edição, publicada em Lisboa em 1652, foi dedicada aos jesuítas da Província do Brasil, certamente devido a sua ampla utilização como manual para o ensino da filosofia nas faculdades brasileiras.

Em sua Disputatio Secunda, Teles apresenta o famoso debate sobre se os universais estão nas coisas ex parte rei ou se resultam apenas de um ato ou operação do intelecto. Assumindo a oposição entre Reales e Nominales, Teles afirma que o debate parece já estar encerrado, com uma clara vitória para a posição realista. No entanto, confiando na autoridade de Francisco Suárez, ele considera que as posições não são completamente distintas. De fato, sua Disputatio Secunda é construída de modo a estabelecer a compatibilidade entre as posições realistas e nominalistas.3 3 “Circa hoc igitur punctum, certum existimo, Nominales non dissentire omnino a Realium opinione, ut bene obseruat Soar. In Summ. Tom. I. tract. I.” TELLES, Summa, D. II, sect. 1, 11b.

A tese de Rodrigo Homem, por sua vez, inicia sua apresentação com a caracterização da Dialética como ciência e pela identificação do seu objeto. Em seguida, passa a tratar da Materia Universalis, ou seja, do universal considerado materialmente. Aos olhos de Rodrigo Homem não são duas, mas três as posições que devem ser consideradas. Além dos Nominales e Reales, ele apresenta os chamados filósofos Integrales. Rodrigo Homem afirma expressamente ser um nominalista e caracteriza a materia universalis como vários indivíduos conhecidos confusamente através daquela noção pela qual são vistos como semelhantes, de sorte que o ato cognitivo que os abarca sob essa noção não os discerne como muitos.4 4 “In construenda materia Universalis, Nominalium ingenio praestantissimorum, & doctrina, vestigiis adhaeremus, accerrimeque propugnamos, materiam Universalis esse plura indiuidua confuse cognita per modum unius in ea ratione, in qua sunt similia; ita; ut cognoscens ex vi talis actus non discernat, an sint plura.” Rodrigo Homem, Telae Philosophicae, BPE COD. CXVIII/1-1, fo 126v. Quanto à célebre tese dos realistas, Rodrigo Homem lhes atribui a afirmação segundo a qual materia universalis seria como um todo potencial objetivamente simples que tem partes distintas apenas em potência.5 5 “Hinc rejicimus decantatam illam Realium sententiam, quae asserit, materiam Universalis esse unum totum potentiale objective simplex, quod constat partibus, non actu, sed potentia distinctis.” Rodrigo Homem, Telae Philosophicae, BPE COD. CXVIII/1-1, fo 126v. A afirmação é explicitamente rejeitada, mas não conhecemos as suas razões. A terceira posição é a dos filósofos do Integrales que afirmariam ser a materia universalis a união de todos os graus da natureza unidos por um ato do intelecto.6 6 “A mandamus etiam illam aliam quorundam Philosophorum sententiam, qui vocantur Integrales, & asserunt materiam Universalis v. g. hominem nihil aliud esse, quam omnes gradus naturae humanae adunatos per actum intellectus.” Rodrigo Homem, Telae Philosophicae, BPE COD. CXVIII/1-1, fo 126v. Obviamente, os autores denominados Integrales não são nomeados. Valeria, entretanto, a pena tentar identificar quem seriam esses filósofos, pois sua identificação poderia nos fornecer uma pista importante para situar o pensamento de Rodrigo Homem no contexto dos debates acerca da materia universalis.

Um marco conceitual mais próximo ao de Rodrigo Homem pode ser encontrado na obra do jesuíta e professor português em Lisboa Agostinho de Lourenço (1634-1695): De triplici ente cursus philosophicus, publicada em 1688. A seção Lógica começa com uma Disputatio Prooemialis que trata da natureza da lógica, de seu status como ciência e de seu objeto. A Disputatio que abre o primeiro tratado sobre o Ente Logico é intitulada: De Universali Materiali. Lourenço começa, como era bastante comum à época, introduzindo a distinção entre o universal em sentidos simples e complexo e subdivide o universal simples em quatro tipos (in causando, in significando, in essendo e in praedicando) para concluir que apenas os dois últimos são abordados na Filosofia. O universal in essendo seria discutido pela Metafísica (sendo, por isso, conhecido também como “universal metafísico”) e definido como o que é apto a ser em muitos (ut de pluribis insit), enquanto o universal in praedicando - ou universal lógico - seria estudado na Lógica e definido como o que é apto a ser predicado de muitos (ut de pluribus praedicatur). Segundo Lourenço, estes não seriam dois universais distintos, mas apenas duas maneiras de considerar o universal, de modo que a investigação sobre o universal na Lógica deveria ser complementar à investigação realizada na Metafísica.

Lourenço prossegue afirmando que aquilo que é predicado de muitos é uma natureza comum (natura communis). É possível prová-lo pelo simples fato de que quando predicamos de Pedro que ele é um animal racional e de Paulo que ele também o é, então aquilo que é predicado é algo comum a ambos: Pedro e Paulo. Quando se define o ser humano como animal racional, o que é definido não pode ser o singular, Pedro, mas uma certa natureza comum que pode ser afirmada de todos os seres humanos. Obviamente, seria de se esperar que, tal como o fizera Baltasar Teles, Lourenço introduzisse neste ponto o desafio nominalista em relação à existência de naturezas comuns. Isto ocorre em parte, mas de uma forma extremamente breve e a posição nominalista não chega propriamente a ser analisada. Lourenço prefere oferecer e responder treze argumentos contra a existência de naturezas comuns, como o fato de que tudo que existe, exceto Deus, ocupar um certo lugar no espaço e no tempo e pode ser designado, apontando-o com o dedo. Como as naturezas comuns não teriam estas propriedades, elas não existiriam. Ao que Agostinho Lourenço simplesmente responde dizendo que a premissa maior só é verdadeira para os singulares considerados per se e não per accidens.

Dito isto, cumpre notar que Agostinho Lourenço não está desconsiderando completamente o debate entre nominalistas e realistas. Ocorre apenas que o debate foi deslocado para outro momento. Ele não é mais colocado em termos da existência de naturezas comuns, mas em termos da materia universalis. Assim, a sectio VI da Disputatio Prima começa por explicar o que é a materia universalis. Não se trata da matéria investigada na Física, pois esta diz respeito à composição hilemórfica de todos os singulares. Tampouco se trata da composição metafísica entre gênero e diferenças comuns, ou da composição entre natureza e substância, nem ainda da composição entre natureza e universalitas. O problema a ser investigado seria o de estabelecer se a natureza que é o substrato do gênero é objetivamente simples, se é composta de partes, ou se é composta de várias rationes. De acordo com Agostinho Lourenço, existiriam três posições acerca do tema.

A primeira seria a dos filósofos Nominales, os quais reivindicam que uma natureza comum seria um todo atual composto de todos os indivíduos conhecidos através de um único conceito. Este seria confuso com respeito às diferenças, mas claramente expresso com respeito à natureza humana, de tal forma que não haveria unidade ex parte objiecti, mas apenas em função de um ato intelectual. A posição nominalista teria sido endossada por Pedro Hurtado de Mendoza, Rodrigo de Arriga, Francisco de Oviedo e Baltasar Teles. Como vimos acima, Teles não parece reivindicar para si a posição nominalista, mas não é raro encontrarmos sua posição associada ao nominalismo.

A terceira posição seria a dos filósofos de Reales que sustentariam ser a natureza comum objetivamente simples e um todo único em potência. Além de Tomás de Aquino e Francisco Suarez, aparecem citados como proponentes desta tese: Gabriel Vasques (1549-1604), Antonio Rubio (1548-1615) e o jesuíta inglês Thomas Compton Carleton (1591-1666).

A segunda posição é precisamente a dos Integrales que sustentam ser a natureza comum um todo homogêneo integral composto dos graus particulares de homens que, por exemplo, estaria tanto em Pedro quanto em Paulo, ainda que livres das diferenças singulares. Os Integrales admitiriam precisões objetivas e afirmariam que o universal é parcialmente um todo real e parcialmente um todo potencial. Contrariamente ao que fizera nos dois casos anteriores, Augustinho Lourenço não menciona quem seriam os defensores desta posição. E talvez essa omissão seja um indício revelador.

Poderíamos tentar encontrar alguma referência mais precisa acerca de quem seriam os filósofos Integrales no Cursus Philosophicus (1668) do jesuíta Francisco Soares de Alarcão (mais conhecido como Francisco Soares Lusitano, 1605-1659), uma vez que a sua Lógica é inegavelmente uma das fontes expressamente reconhecidas por Lourenço. De fato, Soares Lusitano se refere a uma posição que argumentaria que a natureza de Paulo e a natureza de Pedro se unem em uma única natureza, da mesma forma que várias gotas se unem na mesma água e assim como a água é um conjunto constante de várias gotas que a integram em ato, da mesma forma, a natureza humana seria um conjunto constante da natureza de Pedro e Paulo que a integram em ato. O problema é que Soares Lusitano se refere apenas vagamente a estes filósofos (non ignobiles recentiores), sem especificar quem seriam os partidários deste ponto de vista.7 7 “Affirmant plures, iique non ignobiles Recentiores, qui dicunt naturam Petri, & naturam Pauli adunari in unam naturam humanam, sicut plurs guttae in unam aquam adunantur; unde sicut aqua est quoddam totum constans pluribus guttis actus integrantibus, ita naturam humanam esse quoddam totum constans pluribus naturis Petri, & Pauli actu integrantibus.” Soares Lusitanus, Logica, Tract. III, Disp. I, sect. IV, § 2, 56, p. 47a.

Podemos continuar nossa busca e encontrar uma indicação mais precisa no Cursus Philosophicus Conimbricensis publicado pelo controverso jesuíta António Cordeiro (1640-1722). De fato, ao tratar do universal, Cordeiro não se refere a três, mas a seis posições em disputa. As três primeiras são abordadas brevemente, uma vez que seriam posições que deixaram de desempenhar um papel decisivo no debate. A primeira seria o realismo atribuído, correta ou incorretamente, a Platão. A segunda reivindicaria que o universal é um idolum mentis criado pelo intelecto, enquanto a terceira sustentaria que os universais são as próprias vozes, ou nomes externos ou internos, ou conceitos. Esta última posição seria compartilhada por terministas, conceitualistas e nominalistas, tais como Guilherme de Ockham, discípulo de Scotus, Marsílio de Pádua e Gregório de Rimini. A quarta posição seria uma nova forma de nominalismo. A fim de diferenciá-la do antigo e puro nominalismo que os novos nominalistas supostamente traem, Cordeiro os chama de Nominales Confusi. Os apoiadores desta posição seriam aqueles já mencionados por Agostinho Lourenço: Hurtado de Mendoza, Arriga, Oviedo, Teles, assim como o jesuíta francês André Sémery (1630-1717) e o carmelita belga Franciscus Bona Spei (1617-1677). A quinta posição é justamente a dos filósofos Integrales e poderia ser encontrada na obra do jesuíta irlandês Richard Lynch (Linceus, 1610-1676). Mas o que é mais interessante é que Cordeiro também afirma que a posição dos Integrales é endossada por muitos de seus contemporâneos em suas obras manuscritas. Segundo Cordeiro, ela foi mantida até mesmo por um de seus professores de filosofia.8 8 “In manuscriptis vero hanc sententiam sequuntur non pauci Recentiores, nec parum ingeniosi, inter quos etiam meus e quatuor in Philosophia Professoribus secundus.” António Cordeiro, In Log., Pars I, tract. 2, Disp. I, q. I, a. III, p. 102b.

A falta de referências precisas e a indicação de que a posição dos Integrales circulava em obras manuscritas indicam tratar-se mais de uma estratégia argumentativa que, ainda que difundida até certo ponto, carecia de uma identidade mais robusta a ponto de estabilizar-se como corrente filosófica. Justamente por estas razões, a referência aos Integrales é interessante, pois marca o conhecimento de teses e estratégias argumentativas posteriores ao Cursus Conimbricensis e à obra de Baltasar Teles. Sendo assim, a julgar pelas posições filosóficas que ele cita acerca da materia universalis, a tese de Rodrigo Homem pode ser vista como pertencendo ao mesmo contexto de discussões que encontramos em Francisco Soares Lusitano, Agostinho Lourenço e António Cordeiro. Ele não segue a posição de nenhum destes três pensadores, pois todos são realistas, ao passo que Rodrigo Homem reivindica explicitamente o nominalismo, atestando que esta corrente manteve alguma força dentro da Companhia de Jesus. Ora, que o ensino de Rodrigo Homem professado no Maranhão deva ser visto como em continuidade com o ensino dispensado em Portugal não é algo que deva surpreender. Afinal de contas, ele embarcou para o Maranhão em 1720 justamente para ler o Curso de Filosofia. Podemos reforçar este ponto, comparando com outras teses defendidas no Colégio Real das Artes de Coimbra, em 1730, sob a presidência do professor Garcia Barba. As teses em questão não só defendem a visão nominalista, como ainda continuam a referir-se às mesmas três posições: Nominales, Reales e Integrales.9 9 “Si vero interroges, quenam sit illius materia? Rejectis Realium, & Integralium sententiis, indubitanter asserimos, materiam nostri universalis, esse plura individua confuse cognita per modum unius, prout tenente Nominales.” Garcia Barba, Theses Miscellaneas, BPE COD CXVIII/1-1, fo 78r.

Bento da Fonseca e a posição Bacchonica

Nosso próximo passo consistirá em comparar a tese que Bento da Fonseca defendeu durante seus estudos com Rodrigo Homem no Colégio do Maranhão com as várias teses que ele presidiu como professor no mesmo colégio. À primeira vista, algumas mudanças são marcantes. Primeiramente, Bento da Fonseca não mais endossa o nominalismo de seu professor, posição que ele mesmo sustentou durante a defesa de sua tese, preferindo agora a posição realista.10 10 “In construenda nostri Universalis materia, Realium Reali sententiae adhaeremus, accerrimeque propugnamos esse unum totum potentiale objective simplex.” Bento da Fonseca, Lucubrationes Logicales, BPE CXVIII/1-1, fo 20r. Em segundo lugar, as referências aos filósofos Integrales desaparecem completamente e o debate agora se volta para como entender a noção de grau metafísico. A expressão "grau metafísico" designa os predicados inferiores e superiores que são os gêneros, as espécies, as diferenças, sejam elas específicas ou individuais. Diz-se que são “graus” porque ocupam uma escala na série de predicações. São “metafísicos” porque são considerados pela Metafísica e vistos como as partes constituintes do todo metafísico. Como afirma Baltasar Teles, quando os Reales afirmam que, ex parte rei, nada existe que não seja singular e que a natura communis se distingue do singular apenas por um ato intelectual, esta afirmação é, de fato, irmã gêmea daquela que afirma que os graus metafísicos só se distinguem virtualmente.11 11 “Obiicis pro contraria sententia, pro qua stat universa Scoti familia. Natura communis secundum se est prior, quam singularia, siquidem est eorum veluti causa; omnis autem causa est prior suo effectu prioritate naturae: ergo cum in ea prioritate non sit natura contracta cum suis inferioribus, erit ab illis abstracta, & consequenter erit Universalis.” Baltasar Teles, Summa Universae Philosophiae, Pars I, Disp. II, sect. III, 24b. Muito embora a questão seja abordada na Metafísica, ela também é tratada na Lógica, precisamente na seção relativa à materia universalis. A tese escotista, segundo a qual existe uma distinção ex natura rei entre os graus metafísicos, é comumente discutida e refutada neste contexto. Portanto, não causa surpresa que, após endossar o realismo, Bento da Fonseca recuse a distinção formal ex natura rei escotista. Entretanto, e isso é mais surpreendente, ele acrescenta uma terceira posição ao debate: a posição Bacchonica.12 12 “Hinc inferes, inter gradus Metaphysicos creatos intercedere praecisionem objectivam. Si quaeras: Utrum intercedat, vel intercedere possit distinctio formalis ex natura rei Scotistica? Non potest. Idem fero judicium de celebri distintione reali intentionali Bacchonica”. Bento da Fonseca, Conclusiones Philosophicas, BPE CXVIII/1-1, fo 14r.

A referência aqui é obviamente ao carmelita inglês John Baconthorpe (c. 1290-1347). Como nos mostrou José Merinhos (2014, p. 228):

Durante o século XVIII foram propostas diversas reformas da Filosofia em Portugal, algumas baseadas em Aristóteles, outras contra Aristóteles e a Escolástica. Foi nesta corrente que dois padres carmelitas propuseram seus manuais reformados, ambos baseados na obra de John Baconthorpe ou Bacconius O. Carm (c. 1290-c. 1348), o doutor resolutissimus e o príncipe averroistarum.

Os padres carmelitas mencionados por Meirinhos são Manuel Inácio Coutinho e Miguel de Azevedo. Entretanto, é importante notar que a publicação destes autores em Portugal é posterior às teses defendidas por Bento da Fonseca no Maranhão. Manuel Inácio Coutinho publicou o seu Compendiam philosophico-theologicum em 1734 e o Integer philosophiæ cursus em 1750. Miguel de Azevedo publicou o seu Opusculum Philosophico-bakonicu apenas em 1765. Saber, portanto, qual teria sido precisamente a fonte do Bento da Fonseca é algo que necessita ser melhor investigado. Segundo Jacob Schmutz, que está preparando um artigo sobre o assunto, é possível que Bento da Fonseca estivesse em contato com professores carmelitas que lecionavam no Colégio do Pará. De fato, sabemos que o frade português nascido nos Açores, Bartolomeu do Pilar (1667-1733), teria escrito um livro intitulado Philosophia Aristotelico-Bacconica. Bartolomeu do Pilar foi o Primeiro Bispo do Pará entre os anos de 1724 e 1733, período fortemente marcado por conflitos políticos entre carmelitas e jesuítas presentes na região. Para determinar até que ponto os ataques de Bento da Fonseca refletiram os conflitos institucionais entre a Companhia de Jesus e os Carmelitas do Pará, é uma hipótese que buscaremos explorar em outra ocasião.

Considerações finais

No presente artigo, procuramos apresentar alguns subsídios visando integrar o ensino da Filosofia dispensado no Colégio do Maranhão no contexto da filosofia europeia do fim do século XVII e início do XVIII. Tomando por apoio a terminologia empregada nas teses de final de percurso filosófico, buscamos identificar como a discussão introduzida por Rodrigo Homem acerca da materia universalis incorpora a mesma terminologia utilizada nos cursos e teses filosóficos publicados em Portugal. Esta constatação permite-nos sugerir que os estudos da filosofia no Brasil colonial devem incluir autores outros do que os tradicionalmente citados, em particular o Cursus Conimbricensis e Baltasar Teles. A conclusão não deveria causar surpresas, pois a Companhia de Jesus sempre procurou dispor de instrumentos efetivos de controle tanto da qualidade de seus cursos quanto, de modo mais geral, da atividade de seus membros. Vimos também como as teses levadas à defesa por Bento da Fonseca alteram o modelo proposto por Rodrigo Homem, substituindo a posição dos Integrales pela posição Bacchonica. Sugerimos que a mudança deve ser lida no contexto de competição entre carmelitas e jesuítas na região. Se esse for o caso, além de integrar as teses no contexto mais amplo da filosofia ensinada na Europa, os estudos sobre a filosofia no Brasil colonial devem também levar em consideração as especificidades locais e as disputas entre as ordens religiosas instaladas na região. Todavia, novos indícios precisam ser apresentados para confirmar essa hipótese.

Referências Fontes primárias

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  • CORDEIRO, A. Cursus philosophicus conimbricensis, in tres partes distributus. Ulyssipone: ex Officina Regia Deslandesiana, 1714.
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  • 1
    Exemplos podem ser encontrados em: https://purl.pt/38680 e https://purl.pt/33843. Recentemente, diversos projetos de pesquisa têm disponibilizado materiais de ensino empregados no início da modernidade, dentre os quais destacamos: Ressources numériques en histoire de l'éducation (http://rhe.ish-lyon.cnrs.fr/?q=coursimp. Veja-se ainda: KOMOROWSKI, M.; HANSPETER, M. Königsberger Universitätsschriften und Promotionen von Gründungsjahr der Albertina 1544 bis 1800:https://www.forschungen-engi.ch/projekte/koenigsberger-universitaetsschriften-und-promotionen, todos os links consultados em 11/12/2022.
  • 2
    Para um estudo mais amplo das posições em disputa no período, consulte-se: Heider, 2014HEIDER, D. Universals in second scholasticism: a comparative study with focus on the theories of Francisco Suárez S. J. (1548-1617), João Poinsot O.P. (1589-1644), and Bartolomeo Mastri da Meldola O.f.M. Conv. (1602-1673), Bonaventura Belluto O.f.M. Conv. (1600-1676). Amsterdam: John Benjamins Publishing Co., 2014.; Schmid, 2018SCHMID, S. (ed.). Philosophy of Mind in the Late Middle Ages and Renaissance. The History of the Philosophy of Mind, Volume 3. London: Routledge, 2018. e Heider, 2022.
  • 3
    “Circa hoc igitur punctum, certum existimo, Nominales non dissentire omnino a Realium opinione, ut bene obseruat Soar. In Summ. Tom. I. tract. I.” TELLES, Summa, D. II, sect. 1, 11b.
  • 4
    “In construenda materia Universalis, Nominalium ingenio praestantissimorum, & doctrina, vestigiis adhaeremus, accerrimeque propugnamos, materiam Universalis esse plura indiuidua confuse cognita per modum unius in ea ratione, in qua sunt similia; ita; ut cognoscens ex vi talis actus non discernat, an sint plura.” Rodrigo Homem, Telae Philosophicae, BPE COD. CXVIII/1-1, fo 126v.
  • 5
    “Hinc rejicimus decantatam illam Realium sententiam, quae asserit, materiam Universalis esse unum totum potentiale objective simplex, quod constat partibus, non actu, sed potentia distinctis.” Rodrigo Homem, Telae Philosophicae, BPE COD. CXVIII/1-1, fo 126v.
  • 6
    “A mandamus etiam illam aliam quorundam Philosophorum sententiam, qui vocantur Integrales, & asserunt materiam Universalis v. g. hominem nihil aliud esse, quam omnes gradus naturae humanae adunatos per actum intellectus.” Rodrigo Homem, Telae Philosophicae, BPE COD. CXVIII/1-1, fo 126v.
  • 7
    “Affirmant plures, iique non ignobiles Recentiores, qui dicunt naturam Petri, & naturam Pauli adunari in unam naturam humanam, sicut plurs guttae in unam aquam adunantur; unde sicut aqua est quoddam totum constans pluribus guttis actus integrantibus, ita naturam humanam esse quoddam totum constans pluribus naturis Petri, & Pauli actu integrantibus.” Soares Lusitanus, Logica, Tract. III, Disp. I, sect. IV, § 2, 56, p. 47a.
  • 8
    “In manuscriptis vero hanc sententiam sequuntur non pauci Recentiores, nec parum ingeniosi, inter quos etiam meus e quatuor in Philosophia Professoribus secundus.” António Cordeiro, In Log., Pars I, tract. 2, Disp. I, q. I, a. III, p. 102b.
  • 9
    “Si vero interroges, quenam sit illius materia? Rejectis Realium, & Integralium sententiis, indubitanter asserimos, materiam nostri universalis, esse plura individua confuse cognita per modum unius, prout tenente Nominales.” Garcia Barba, Theses Miscellaneas, BPE COD CXVIII/1-1, fo 78r.
  • 10
    “In construenda nostri Universalis materia, Realium Reali sententiae adhaeremus, accerrimeque propugnamos esse unum totum potentiale objective simplex.” Bento da Fonseca, Lucubrationes Logicales, BPE CXVIII/1-1, fo 20r.
  • 11
    “Obiicis pro contraria sententia, pro qua stat universa Scoti familia. Natura communis secundum se est prior, quam singularia, siquidem est eorum veluti causa; omnis autem causa est prior suo effectu prioritate naturae: ergo cum in ea prioritate non sit natura contracta cum suis inferioribus, erit ab illis abstracta, & consequenter erit Universalis.” Baltasar Teles, Summa Universae Philosophiae, Pars I, Disp. II, sect. III, 24b.
  • 12
    “Hinc inferes, inter gradus Metaphysicos creatos intercedere praecisionem objectivam. Si quaeras: Utrum intercedat, vel intercedere possit distinctio formalis ex natura rei Scotistica? Non potest. Idem fero judicium de celebri distintione reali intentionali Bacchonica”. Bento da Fonseca, Conclusiones Philosophicas, BPE CXVIII/1-1, fo 14r.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    23 Maio 2023
  • Aceito
    20 Jul 2023
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