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Berinjela: que antecedente familial terrível!

CARTAS AO EDITOR

Berinjela: que antecedente familial terrível!

Moacir C. de Andrade Jr.

Laboratório de Bioquímica de Alimentos e Fisiologia Pós-Colheita, Coordenação de Pesquisas em Tecnologia de Alimentos – CPTA, Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia – INPA

Endereço para correspondência Endereço para correspondência Moacir C. de Andrade Jr. Rua Comendador Alexandre Amorim, 253 B 69010-300, Manaus, AM Telefone/Fax: (92) 633-8028 E-mail: moacir@internext.com.br

Sr. Editor:

DOENÇAS NUTRICIONAIS SÃO DEFINIDAS como todas as síndromes cuja dieta constitui o único, ou principal, recurso terapêutico, incluindo a obesidade, o diabetes mellitus do tipo 2, as dislipidemias, dentre outras (1).

Perante uma clientela inteligente e ávida de controlar doenças crônicas – a exemplo das supracitadas – e cujo único (ou principal) empecilho é o baixo nível socioeconômico, o endocrinologista brasileiro se vê no permanente dilema de escolher a estratégia terapêutica mais eficaz, mais barata e menos prejudicial em longo prazo; uma equação difícil envolvendo maior benefício, menor custo e menor risco em longo prazo.

No dia-a-dia, o tratamento da hipercolesterolemia já deveria ser iniciado com dieta associada a uma estatina (2). De acordo com Mahley & Bersot (3), as estatinas são os agentes mais eficazes e melhor tolerados no tratamento das dislipidemias. No entanto, o alto custo das estatinas permanece inacessível à maioria dos pacientes brasileiros, subsistindo a dieta como a única opção terapêutica aparente.

Do ângulo histórico, a noção de alimentos funcionais está relacionada à maior preocupação geral com a saúde (4). As fibras dietéticas se enquadram na definição de alimentos funcionais (ou nutracêuticos), i.e., substâncias biologicamente ativas com efeitos benéficos sobre a saúde, proporcionando, além das funções nutricionais básicas, a redução de doenças crônico-degenerativas (5). Outros componentes funcionais dos alimentos compreendem bactérias lácticas, vitaminas, oligossacarídeos, fitoquímicos, minerais, açúcares-álcool e ácidos graxos poliinsaturados (4).

Um dos editoriais dos Arquivos Brasileiros de Endocrinologia e Metabologia (vol. 48, n° 3, p. 331-34, junho 2004), foi de particular interesse por discutir o uso indevido da berinjela no tratamento da hipercolesterolemia (6), uso esse também relatado por pacientes de Manaus (AM), mas efetuado de outra forma. Ao invés da berinjela industrializada, os frutos in natura foram integralmente triturados com água e consumidos livremente sob a forma de suco.

De fato, a berinjela pertence a uma extensa família botânica (Solanaceae), com largo emprego na alimentação humana. Destarte, as solanáceas reúnem 94 gêneros e 2.950 espécies, dentre as quais figuram, além da berinjela (Solanum melongena L.), o tomate (Lycopersicum esculentum Mill.), o pimentão (Capsicum annuum L.), a batata (Solanum tuberosum L.) e o cúbio (Solanum sessiliflorum Dunal); este último de consumo mais regional (7-10).

Folhas e frutos (sobretudo imaturos) de quase todas as espécies de solanáceas contêm glicoalcalóides (ou alcalóides glicosídicos), em especial os esteróides a-solanina e a-chaconina, com importância toxicológica atestada (atividades anticolinesterásica e hemolítica em especial) (11,12). Por isso, essa família botânica deve suscitar precaução mesmo no uso culinário esporádico (a partir de 20 mg/100g já pode causar risco à saúde) (figura 1), assim como estudos que fundamentem seu uso sistemático diário na qualidade de alimentos funcionais (11,12).


Outros autores também ressaltaram que a menor quantidade de a-solanina é encontrada em frutos maduros, demonstrando que há concordância quanto a esse aspecto fisiológico (maturidade) influenciando o teor de glicoalcalóides dessas plantas (10,13). Fatores (abióticos), a exemplo da radiação intensa e da temperatura elevada, também aumentam os níveis de glicoalcalóides das solanáceas (14).

Como os glicoalcalóides são estruturalmente similares aos esteróides, a sua via biossintética vai do acetato ao colesterol (13). Com efeito, todos os átomos de carbono do colesterol derivam diretamente do acetato (15), e quando um grupo hidroxila (-OH) se liga à posição do carbono-3, o colesterol é denominado esterol (um álcool), sendo o sitosterol – do grego transliterado sîtos, significando alimentação, e –sterol (8) – o esteróide alimentar mais abundante das plantas (16,17).

Do ponto de vista filogenético (evolutivo), organismos procarióticos (à parte os micoplasmas), não podem sintetizar o sistema de quatro anéis hidrocarbônicos interconectados (A-D), enquanto organismos eucarióticos, como os insetos, perderam a capacidade de sintetizar esteróis, mas utilizam fontes exógenas na conversão posterior em importantes hormônios para muda, como a ecdisona, um derivado oxigenado do colesterol (15-17). Já outros organismos eucarióticos superiores, como as plantas e os animais, podem sintetizá-lo facilmente (15).

De acordo com Chiesa & Moyna (10) foi demonstrado em estudos de incorporação de precursores marcados, que glicoalcalóides como a tomatidina do tomate e a solanidina da batata, possuem um esqueleto esteróide intacto biossintetizado a partir do colesterol. Trabalhos de outros autores convergiram nesse mesmo sentido (18).

Outrossim, cumpre ressaltar que a maioria dos estudos sugere que não existe uma relação significativa entre toxicidade celular e sistêmica, significando que para a maioria dos tóxicos químicos, citotoxicidade direta não é um determinante importante de toxicidade aguda em nível sistêmico; daí a necessidade de estudos toxicológicos subagudos ou crônicos em animais na fase pré-clínica antes do uso continuado (19), até mesmo de um alimento funcional.

Portanto, o fato de a substância biologicamente ativa ser natural não deveria excluir todo o rigor que antecede a comercialização de outras substâncias rotineiramente utilizadas no tratamento das doenças crônico-degenerativas. No caso das solanáceas, os cuidados deveriam ser ainda mais precoces, controlando a própria fisiologia de produção dos frutos (antes e depois da colheita).

Enfim, os alimentos funcionais situam-se no limite dos alimentos comuns e dos fármacos tradicionais. Nessa fronteira em constante expansão seriamente consagrada ao tratamento das dislipidemias, a berinjela situar-se-ia melhor como ornamento culinário de iguarias domingueiras de uso esporádico.

REFERÊNCIAS

1. Apfelbaum M, Forrat C, Nillus P. Abrége de diététique et de nutrition. Paris: Masson, 1989.

2. Malloy MJ, Kane JP. Disorders of lipoprotein metabolism. In: Greenspan FS, Gardner DG, eds. Basic & clinical endocrinology. 6th ed. New York: McGraw Hill, 2001. p.716-44.

3. Mahley RW, Bersot TP. Drug therapy for hypercholesterolemia and dyslipidemia. In: Hardman JG, Limbird LE, eds. Goodman & Gilman's the pharmacological basis of therapeutics. 10th ed. New York: McGraw Hill, 2001. p.971-1002.

4. Souza PHM, Souza Neto MA, Maia GA. Componentes funcionais nos alimentos. Bol SBCTA 2003;37:127-35.

5. Taipina MS, Fontes MAS, Cohen VH. Alimentos funcionais-nutracêuticos. Hig Aliment 2002;16:28-29.

6. Quintão ECR. Da berinjela às estatinas: uma viagem entre ficção e realidade. Arq Bras Endocrinol Metab 2004;48:331-4.

7. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

8. Ferreira ABH. Novo Aurélio século XXI: O dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.

9. Michaelis: Moderno dicionário da língua portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 1998.

10. Chiesa FA, Moyna P. Alcalóides esteroidales. In: Simões CMO, Shenkel EP, Gosmann G, Mello JCP, Mentz LA, Petrovick PR, eds. Farmacognosia: da planta ao medicamento. 5ª ed. Porto Alegre: UFRGS, 2003. p.869-83.

11. Vollmer G, Josst G, Schenker D, Sturm W, Vreden N. Elementos de bromatologia descriptiva. Zaragoza: Acribia, 1999.

12. Midio AF, Martins DI. Toxicologia de alimentos. São Paulo: Varela, 2000.

13. Ellenhorn MJ. Ellenhorn's medical toxicology: Diagnosis and treatment of human poisoning. 2ª ed. Baltimore: Williams & Wilkins, 1997.

14. Rosenfeld HJ, Sundell PL, Ringstad M. Influence of packaging materials and temperature on the glycoalkaloid content or potato tubers. Food Res Int 1995; 28:481-4.

15. Conn EE, Stumpf PK. Introdução à bioquímica. São Paulo: Edgard Bl¸cher, 1980.

16. Tortora GJ, Funke BR, Case CL. Microbiologia. Porto Alegre: Artmed, 2000.

17. Salatino A. A composição molecular das células vegetais. In: Raven PH, Evert RF, Eichhorn SE, eds. Biologia vegetal. 6ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan. p.16-39.

18. Arnqvist L, Dutta PC, Jonsson L, Sitbon F. Reduction of cholesterol and glycoalkaloid levels in transgenic potato plants by overexpression of a type 1 sterol methyltransferase cDNA. Plant Physiol. 2003;131:1792-9.

19. Sandoval CM, Anádon-Baselga JM, Delgado JM, Capó MM. Etudio comparado de toxicidad aguda in vitro e in vivo. Extrapolación al hombre. Anim Exp 2000;5:14-6.

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      07 Mar 2005
    • Data do Fascículo
      Ago 2004
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