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A amigdaloidectomia no tratamento das alucinações auditivas

Amygdaloidectomy in the treatment of auditory hallucinations

CONFERÊNCIAS

Antigo Professor de Neurologia na Universidade de Washington (U.S.A.)

Embora as operações sobre os lobos frontais forneçam bons resultados em número bastante grande de doentes com transtornos mentais, existem casos em que tais operações não são coroadas de sucesso. Procurando as causas destes insucessos, chega-se à conclusão de que grande parte deles ocorre em enfermos que sofrem de alucinações; estes sintomas persistem não importa qual seja o plano de secção das radiações tálamo-frontais. Por essa razão, nos casos em que as alucinações ocupam lugar preponderante na sintomatologia da psicose, pode-se dizer que o paciente não se beneficiará com a lobotomia frontal. Possivelmente, nesses casos, a base fisiopatogênica da psicose não se encontra no lobo frontal e sim no lobo temporal.

A primeira operação de psicocirurgia, feita por Burckhardt em 1889, consistiu em ressecção de parte do lobo temporal esquerdo (topectomia). Em 1947, após a divulgação das intervenções sobre o lobo frontal em psicocirurgia, Obrador Alcalde tentou algumas operações sobre os lobos temporais. Outros cirurgiões (Penfield, Bailey, entre outros) verificaram que a extirpação de uma parte do lobo temporal melhora a sintomatologia de casos de epilepsia psicomotora nos quais o eletrencefalograma permite evidenciar a presença de foco anormal; o mais importante nestas observações foi a verificação de que em alguns casos a aura epiléptica consistia em alucinação auditiva.

Por outro lado, é mister analisar outro aspecto das alucinações auditivas, ou seja o aspecto motor. As idéias que surgem no cérebro devem cristalizar-se em uma matriz motora para transformar-se em termos de linguagem. Procurando a sede desta transformação, nossa atenção se voltou para o núcleo amigdalóide, situado na superfície interna do lobo temporal, entre o pé do hipocampo e o núcleo caudado. O núcleo amigdalóide é um centro com células multipolares, cujo tamanho representa um termo médio entre o das células do núcleo caudado e o das células grandes do globo pálido. As conexões desse núcleo com outras regiões do cérebro são pouco conhecidas, embora existam numerosas fibras que parecem penetrar no córtex temporal.

O núcleo amigdalóide é considerado como parte do aparelho olfativo. Entretanto, nos cetáceos, como a baleia e o delfim, que não possuem aparelho olfativo, o núcleo amigdalóide tem grandes dimensões. Estes animais se orientam pelo som; seus órgãos auditivos se apresentam com um desenvolvimento máximo e seus nervos auditivos são maiores que seus nervos ópticos; os colículos inferiores do porco marinho chegam a apresentar a forma e o tamanho de uma cereja. É sabido que todos os cetáceos emitem sons muito altos, fora dos limites da acústica humana; estes animais podem, também, ouvir sons muito altos, de acordo com as observações de navegantes com o emprego de instrumentos de eco supersônico: quando o instrumento emite seus sons, os cetáceos fogem.

Experiências com cetáceos, sobre a emissão e recepção dessas vibrações superagudas estão fora de nossas possibilidades. Entretanto, o morcego também se orienta pelo som; este animal, quando em vôo, com os olhos vendados, evita os obstáculos; não pode evitá-los, porém, quando sua boca e suas orelhas são vedadas. O morcego emite sons de freqüência entre 30.000 e 50.000 vibrações por segundo; seu aparelho vocal é muito muscularizado e seu aparelho auditivo tem grandes dimensões. O núcleo amigdalóide do morcego tem quase o mesmo tamanho que o núcleo caudado.

Cremos que o núcleo amigdalóide do homem funciona como um aparelho de transformação de sensações auditivas no ato de falar. Funciona como um núcleo extrapiramidal, da mesma forma que o núcleo caudado e o putâmen atuam nos movimentos automáticos dos membros. O núcleo amigdalóide tem conexões apenas indiretas com os músculos da fala; provavelmente, sua ação se faz através do tálamo. Esse núcleo pode ser extirpado bilateralmente sem que se produzam alterações no funcionamento dos músculos da fala ou da expressão; a voz do paciente continua invariável, com a mesma altura e com qualidade e ressonância normais. Extirpado o núcleo amigdalóide, entretanto, desaparecem os automatismos que se fazem à custa dessa musculatura, provavelmente por interrupção dos impulsos aferentes auditivos. Assim, a extirpação do núcleo amigdalóide seria indicada em casos de alucinações auditivas.

Tivemos ocasião de comprovar, diretamente, o efeito da amigdaloidectomia na supressão dos movimentos automáticos da língua e dos lábios em um enfermo com alucinações auditivas contínuas.

Observação - Paciente do sexo masculino, de 22 anos, estudante. Dizia, textualmente, "pessoas me ordenam que mova meus lábios". Realmente, este paciente em qualquer momento que fosse observado movia os lábios, mas sem fonação, como se estivesse cochichando constantemente; quando se mandava que fechasse a boca, podia suprimir os movimentos, os quais reiniciava imediatamente, colocando a mão em frente da boca. O enfermo vinha sofrendo há 3 anos, sem apresentar variações do quadro, apesar dos tratamentos com insulina e eletrochoque a que fora submetido. Freqüentemente falava em voz alta, mas afirmava não poder repetir o que lhe diziam as "vozes espirituais".

Repetimos as provas de Gould, ao registrar suas produções subvocais com gravador de fita magnética. O paciente foi colocado em quarto à prova de som, com um microfone colocado entre a boca e o ouvido; entre o microfone e o gravador foi colocado um amplificador. Com o quarto fechado, observamos o paciente durante uma hora através de pequena janela e, durante esse tempo, registramos continuamente seus cochichos. Quando o paciente não era molestado, começava a falar a si mesmo em voz baixa, somente com os lábios e a lingua; as palavras eram quase incompreensíveis, sendo emitidas muito rapidamente, com deformações, contrações de sílabas, pausas e, às vezes, ruídos guturais. Às vezes, ria em voz alta, voltava-se no leito, gesticulava e escrevia no ar com o dedo.

Após a prova ouvimos a gravação obtida com o objetivo de averiguar a opinião do paciente que não mostrou qualquer interesse por suas produções subvocais. Disse, quando insistimos, que entendera tudo o que fora gravado. Informou que uma máquina fazia mover os lábios, mas não pôde explicar o fenômeno nem o sentido da voz registrada.

Amigdaloidectomia - Com o paciente sentado, o cirurgião injetou novocaina na região temporal esquerda; após a abertura do crânio (3x4 cm), a dura-máter foi seccionada, sendo exposta a córtex do lobo temporal. A superfície da segunda circunvolução temporal foi coagulada com termocautério, sendo aberta via de acesso de 12 mm por meio de um aspirador, atrás da crista esfenoidal e a 12 mm acima do assoalho da fossa média. Mediante aspiração e retração, o cirurgião penetrou na substância branca até o corno temporal do ventrículo lateral, com o que houve saída de liqüido cefalorraquidiano. Alargando a abertura, o cirurgião distinguiu, na parte anterior, uma eminência cinzenta da qual foi ressecada uma pequena parte para identificação histológica, sendo, depois, aspirado o restante do núcleo até seus limites. No fundo da incisão foi possível distinguir grande fascículo de côr branca, o tracto óptico.

Operação semelhante foi feita no lado oposto na semana seguinte.

Evolução - Logo depois da primeira operação já não foram mais observados movimentos dos lábios do paciente. Entretanto, não foi verificada quase nenhuma mudança em seu estado psíquico. O paciente sempre se mostrou reservado, inclinado à introversão; não apresentou interesse pelos seus enfermeiros ou por seus médicos. Não sabia o nome do hospital, mas cremos que seu estado de indiferença era a base de sua desorientação aparente. Após as intervenções o paciente admitiu que as "vozes espirituais" não mais continuavam a atormentá-lo e que a "máquina não continuava movendo seus lábios". Mostrou-se indiferente a tudo que o rodeava até o dia da alta, 8 dias após a operação final. Quando foi repetida a experiência no quarto fechado, não pronunciou qualquer palavra. Sua indiferença impediu a utilização dos vários testes de inteligência, tanto antes como depois das intervenções. Não apresentou os fenômenos que habitualmente ocorrem após a lobectomia frontal, nem mesmo se queixou de cefaléia.

Este paciente parecia apresentar uma forma hebefrênica de esquizofrenia, com muitas alucinações auditivas. Cremos que as "vozes espirituais" fossem produzidas por mecanismo fisiopatogênico no qual tomava parte o núcleo amigdalóide. Quando este foi extirpado, as alucinações desapareceram, bem como os movimentos dos lábios. O paciente continuou esquizofrênico, mas livre de um dos sintomas principais.

Trabalho traduzido para o português por O. Lange.

15, Main Street - Los Altos, California, U.S.A.

  • A amigdaloidectomia no tratamento das alucinações auditivas

    Walter Freeman
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Fev 2014
    • Data do Fascículo
      Dez 1957
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