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Opinião: o caso-escândalo do triazolam

Professor-Titular de Psicofarmacologia Escola Paulista de Medicina, Presidente da Sociedade Brasileira de Vigilância de Medicamentos (SOBRAVIME)

A recente proibição da venda e fabricação do benzodiazepínico triazolam (Halcion R e Onirium R), pelo Ministério da Saúde, foi a consequência lógica de fatos, no mínimo muito desabonadores para os fabricantes do produto em questão, que foram até designados de «escándalo do século no campo dos medicamentos». De fato, assim se pronunciou Graham Dukes, Professor de Estudos sobre Políticas de Drogas da Universidade de Groningen: «eu considero o caso Halcion um dos escândalos mundiais do século sobre drogas, um desses eventos que só agora está se tornando público, mas já muito tarde. É um escândalo porque mina a credibilidade de todo o sistema sobre o qual a segurança dos pacientes em relação às drogas é baseado, ou seja o sistema de confiança».

Os fatos apresentados a seguir, em ordem cronológica 1-7, compõem incrível «história» na qual o laboratório produtor da droga certamente não fez e não tem feito o papel de «mocinho». Revela ainda a situação difícil, de descrédito mesmo, em que foi colocado a Food and Drug Administration (FDA) do Governo Americano o que, talvez, tenha influenciado na recente decisão deste órgão. Em síntese, os seguintes fatos ocorreram com o Triazolam (sob o nome de HalcionR); 1977, comercializado na Bélgica, em comprimidos de 0,5 e 1,0 mg; 1978, comercializado nos Países Baixos, nas mesmas apresentações; 1979, comercializado no Reino Unido em comprimidos de 0,125 e 0,25 mg e também comercializado em outros países europeus em doses mais elevadas; 1979, retirado do comércio nos Países Baixos após notificações de mais de 1000 casos de efeitos neuropsiquiátricos adversos; 1980, os comprimidos de 1,0 mg são retirados de vários países; 1984, comercializado nos Estados Unidos; 1987, os comprimidos de 0,5 mg são retirados do mercado na França, Itália, Estados Unidos e Espanha e são introduzidos os comprimidos de 0,125 mg; 1988, os comprimidos de 0,5 mg são retirados da Alemanha; 1990, reintroduzido nos Países Baixos em comprimidos de 0,125 e 0,25 mg. Julho-1991, um caso de assassinato nos Estados Unidos teria sido cometido por uma mulher quando sob os efeitos psiquiátricos adversos do triazolam; durante a fase preparatória do processo na Justiça, descobriu-se que os dados de uma pesquisa clínica com o Triazolam (Protocolo 321), submetido ao FDA, tinham sido manipulados (o laboratório que comercializa o produto nos USA pagou à mulher uma quantia até hoje não revelada, para retirar a queixa). Setembro-1991, o laboratório declara que a omissão de dados do protocolo 321 foi devida a um erro de secretaria, por ocasião da transcrição do relatório. Outubro-1991, a Organização americana de defesa do consumidor Public Citizen informa que outro estudo sobre o triazolam (Protocolo 6415), apresentado ao FDA, continha dados falsificados; o próprio FDA já havia comunicado esta falsificação ao Laboratório, ainda em 1984. Outubro-1991, o triazolam é retirado do mercado na Inglaterra. Dezembro-1991, os comprimidos de 0,25 mg são retirados do mercado na França. Janeiro-1992, os comprimidos de 0,25 mg são retirados do mercado na Espanha; Fevereiro-1992, é descoberto nos Estados Unidos que no Protocolo 6415 sobre o Halcion, um pesquisador participante havia sido proibido de fazer pesquisa clínica por falsificação de dados. Anteriormente, o laboratório não havia comunicado ao FDA, mesmo com pedido de informação desta agencia americana, que este investigador havia participado da pesquisa do protocolo 6415.

A análise desse breve histórico revela alguns aspectos importantes: 1. O laboratório submeteu ao FDA trabalhos com omissão de dados e possivelmente mesmo até com dados falsificados; por exemplo, a Comissão de Segurança e Medicamentos da Inglaterra (CSM) mostrou que a pesquisa relatada no Protocolo 321 continha relatos de apenas 27% das reações adversas que realmente ocorreram. 2. As constantes alterações da posologia, com comprimidos contendo de 0,125 mg a 1,0 mg, mostram que a margem de segurança do triazolam é na realidade muito baixa e que, ainda, não há certeza sobre esta posologia; mesmo com a dosagem mais baixa (0,125 mg) existem trabalhos indicando1 que o produto não age satisfatoriamente e mesmo assim produz efeitos adversos. Também a afirmativa feita pelo laboratório do Triazolam e aceita pelo FDA de que o produto tem a mesma segurança que outros benzodiazepínicos, não corresponde à realidade. Assim, a CSM da Inglaterra mostrou o seguinte número de reações psiquiátricas adversas por milhão de receitas nos anos de 1979 e 1986, ocorridas na Inglaterra: 1979, triazolam 114; flurazepam 0,9; temazepam 4,1; loraze-pam 2,4; 1986, triazolam 2,5; flurazepam 0; temazepam 0,4; lorazepam 1,9. Ainda a CSM mostra a porcentagem de relatos espontâneos de reações adversas ocorridas nos Estados Unidos entre 1980 e 1985 — confusão mental: triazolam 16,9%-, tenrazepam 1,2%, flurazepam 5,4%; amnésia: triazolam 13,0%, temazepam 1,7, flurazepam 3,0%; comportamento bizarro: triazolam 7,0%, temazepam 1,2%, flurazepam 0%; alucinações: triazolam 4,8%, temazepam 0,6%, flurazepam 1,2%.

Elm síntese, os dados citados mostram que o Ministério da Saúde agiu corretamente ao proibir a venda dos produtos à base de triazolam no Brasil, cumprindo a lei que diz: «Lei 6360 (23-09-1976), Artigo> 7º: Como medida de segurança sanitária e a vista de razões fundamentadas do órgão competente, poderá o Ministério da Saúde, a qualquer momento, suspender a fabricação e a venda de qualquer dos produtos de que trata esta Lei que, embora registrado, «se torna suspeito» (aspas nossas) de ter efeitos nocivos à saúde humana».

Acrescido à segurança duvidosa da droga há o fato de existir no mercado nacional outros similares terapêuticos de eficácia semelhante ao triazolam e sem os inconvenientes deste. O triazolam, não sendo essencial, tem respaldada ainda mais sua retirada do mercado. E esta é realmente a situação dos produtos à base de, triazolam: são suspeitos de possuírem efeitos nocivos que não justificam sua comercialização. Aliás, bem agiu a Comissão de Segurança de Medicamentos da Inglaterra, ao contrário do FDA, que concluiu que «os riscos do triazolam superam os seus benefícios».

Recentemente, segundo ofício do laboratório produtor do triazolam à Associação Médica Brasileira, a Associação Mundial de Psiquiatria teria se posicionado contra a proibição. E também mencionado que a Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP) também teria se posicionado semelhantemente. Em relação a esta última isto não corresponde à realidade, pois a ABP também solicitou, por ofício, juntamente com várias outras sociedades científicas, a retirada do triazolam. Em relação à Associação Mundial, estranhamos sua posição. Há informações de que esta entidade pretende convidar cientistas estrangeiros para virem ao Brasil defender o triazolam. Em sendo entidade tão poderosa ela deverá também, a título de imparcialidade e independência, convidar cientistas que têm opinião contrária ao produto. Seria mesmo importante ter entre nós, entre outros, cientistas como: Sidney Wolf, da Public Citizen dos Estados Unidos; Edward O. Bixler, da Universidade da Pennsylvania, Graham Dukes, da Universidade de Gronigen; e Bill Asseher, Presidente da Comissão de Segurança de Medicamentos da Inglaterra.

Dr. E. A. Carlini — SOBRAVIME - Rua Napoleão de Barros 899 - 04024 São Paulo SP - Brasil.

  • 1
    Reason for United Kingdon withdrawal of Halcion. SCRIP nº 172/22 1992, May 27-29.
  • 2
    La dudosa seguridad de Triazolam. Rutlleti Groc, Institut Catalá de Farmacologia, Universitat Autonoma de Barcelona 1991, Vol. 4, nº 4, Outubro/Novembro.
  • 3
    WHO. Alert: withdrawal of triazolam. PHA/JFD/IEA. 20, 1991, October 3.
  • 4. Bayer AJ et al. A double-blind controlled study of chlormethiazole and triazolam as hypnotics in the elderly. Acta Fsychiat Scand 1986, (Suppl 329)), 73:104-111.
  • 5. Scharf M, et al. A Polysomnographic comparison of temazepam 15 land 30 mg with triazolam 0,25 mg in chronic insomnia. Cur Therap Res 1990, 48 :555.
  • 6. Bixler EO et al. Next day memory impairment with triazolam use. Lancet 1991, 337 :827-831. 7 HAI (Health Action International). Halcion scandal: drug approval based on incomplete date. Press Release 1991, 16 October.
  • Opinião: o caso-escândalo do triazolam

    E. A. Carlini
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      22 Fev 2011
    • Data do Fascículo
      Dez 1992
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