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A Fantástica Obra da Paz: o Teleférico do Alemão e a Produção de Infraestrutura Urbana no Rio de Janeiro 1 1 . O esboço inicial do artigo contou com a interlocução fundamental com Alan Brum Pinheiro, do Insti-tuto Raízes em Movimento. Uma primeira versão deste texto foi apresentada no GT Sobre Periferias da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs) em 2019. Gostaríamos de agradecer os valiosos comentários de Patrícia Birman, Cibele Rizek, Gabriel Feltran, Marcia Leite, Carly Machado e Taniele Rui. Além disso, gostaríamos de agradecer também à leitura atenta de pesquisadores dos grupos Casa e Urbano, em especial, Camila Pierobon, Marcella Araújo, Eugênia Motta, Júlia O’Donnell, Ana Clara Chequetti, Diego Francisco e Rodrigo Agueda. A pesquisa para este artigo foi financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por meio da concessão de bolsa de produtividade em pesquisa, e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), com a bolsa Jovem Cientista do Nosso Estado.

The Fantastic Work of Peace: The Teleférico do Alemão Gondola cable car system and the Production of Urban Infrastructure in Rio de Janeiro

La Fantastique Oeuvre de la Paix: Le Téléphérique d’Alemão et la production d’infrastructures urbaines à Rio de Janeiro

La fantástica Obra de la Paz: el Teleférico del Alemão y la Producción de Infraestructura Urbana en Rio de Janeiro

RESUMO

Este texto esboça uma etnografia da trajetória do Teleférico do Complexo do Alemão, entre a sua construção, desativação e abandono. Seu objetivo é destrinchar as diferentes temporalidades que a construção do teleférico produziu e que permitiram concebê-lo como uma obra e infraestrutura de transportes viável no Rio de Janeiro. Com base em perspectivas da antropologia das infraestruturas, em que essas são tomadas como processos multiescalares a serem investigados, e não como dados a priori do espaço urbano, o caso do teleférico surge aqui como bom para pensar o fim do último grande ciclo de investimentos em provisão de infraestruturas urbanas no Rio de Janeiro. Não são apenas estações que se encontram em ruínas no topo dos morros, mas os futuros projetados pela conjuntura do presente da virada da última década.

Infraestururas Urbanas; Teleférico (Complexo Do Alemão; Favelas; Segurança Pública; Urbanismo

ABSTRACT

This article sketches an ethnography of the trajectory of the gondola cable car system known as the Teleférico built in the Complexo do Alemão, in Rio de Janeiro’s north zone, between 2007 and 2016. In order to elaborate its construction, deactivation and abandonment, we analyze the different temporalities of the cable car system that made its construction as a mass public transportation system possible. Drawing on theoretical insights of recent anthropological scholarship on infrastructures, we consider the social life of the Teleférico as the result of multi scalar processes and conflicts. We suggest that the Teleférico constitutes an exemplary case think through the provision of urban infrastructures in the run up to the 2016 Olympics in Rio de Janeiro, and thus the material ruins of the Teleférico shed light on the ruins of the various projected futures of Rio’s recent past.

Urban infrastructures; Teleférico (Complexo do Alemão); Favelas; Public Security; Urbanism

RÉSUMÉ

Ce texte esquisse une ethnographie de la trajectoire du téléphérique du Complexo do Alemão, depuis sa construction, sa désactivation et son abandon. L’objectif est de démêler les différentes temporalités que la construction du téléphérique a produites et qui ont permis de le concevoir comme une infrastructure de transport viable à Rio de Janeiro entre 2007 et 2011. À partir de perspectives de l’anthropologie des infrastructures, dans lesquelles ceux-ci sont pris comme des processus multi-échelles à investiguer, et non comme des données a priori de l’espace urbain, le cas Teleférico apparaît ici comme une bonne manière de penser la fin du dernier grand cycle d’investissements dans la fourniture d’infrastructures urbaines à Rio de Janeiro. Ce ne sont pas seulement des gares en ruines au sommet des collines, mais des futurs qui ont été projetés à la dernière décennie.

Infrastructure Urbaine; Teleférico (Complexo do Alemão; Favelas; Sécurité Publique; Urbanisme

RESUMEN

Este texto hace un esbozo de una etnografía de la trayectoria del Teleférico del Complexo do Alemão , entre su construcción, desactivación y abandono. Su objetivo es desvelar las diferentes temporalidades que produjo la construcción do Teleférico y que permitieron concebirlo como una obra e infraestructura de transportes viable en Rio de Janeiro entre los años 2007 y 2011. A partir de perspectivas de la antropología de las infraestructuras, en las que estas son tomadas como procesos multiescalares que serán investigados, y no como datos a priori del espacio urbano, el caso del Teleférico surge aquí como pertinente para pensar el fin del último grande ciclo de inversiones en provisión de infraestructuras urbanas en Rio de Janeiro. No se trata apenas de estaciones que se encuentran en ruinas, sino de los futuros que habían sido proyectados por la coyuntura del presente del cambio de la última década.

Infraestructura Urbana; Teleférico (Complexo Do Alemão; Favelas; Seguridad Pública; Planeamiento Urbanístico

INTRODUÇÃO

O Teleférico do Complexo do Alemão foi uma obra inicialmente orçada em 253 milhões de reais, realizada no âmbito do componente de urbanização de favelas do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) do governo federal, na transição entre os governos Lula e Dilma, do Partido dos Trabalhadores (PT), e executado pelo governo do Estado do Rio de Janeiro na administração Sérgio Cabral, do Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). Inaugurado em 7 de julho de 2011, o teleférico foi projetado com capacidade para atender cerca de 30 mil passageiros por dia, em 152 gôndolas, por um sistema de propulsão a cabos sustentado por 24 gigantescos pilares, percorrendo os 3,5 km de extensão do trajeto em 16 minutos, que contava com cinco estações instaladas no alto dos morros do Complexo. O trajeto tinha início na Estação Bonsucesso da Supervia, concessionária que opera os trens do subúrbio no Rio de Janeiro e, pela maior parte do seu tempo de funcionamento, concessionária do teleférico também (ver imagem 1).

Imagem 1
: O Teleférico em pleno funcionamento, após a inauguração

Em 15 de setembro de 2016, menos de um mês após a realização dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, a Secretaria de Estado de Transportes (Setrans) anunciou que o teleférico teria suas operações suspensas por seis meses para uma manutenção preventiva, em função de uma “evolução atípica do desgaste” de um dos cabos de tração. Isso ocorreu seis meses após o fim dos contratos da Supervia, cuja licitação seria vencida pelo Consórcio Rio Teleféricos por 36 meses, cerca de um mês depois do impeachment de Dilma e quarenta dias antes da prisão do ex-governador Sérgio Cabral, no âmbito da operação Lava-Jato. Na ocasião do anúncio da paralisação das atividades do teleférico, o Consórcio alegou que o governo do Estado teria suspendido há meses os repasses mensais previstos em contrato para a manutenção da operação. Em 14 de outubro de 2016, o teleférico foi desativado. Desde então, as estações se encontram fechadas, os cabos seguem se deteriorando ao relento, há relatos de gôndolas e outros componentes do sistema completamente abandonados e sucateados, e, a despeito de esporádicas declarações por representantes do governo do estado de retomada das obras em um futuro próximo, mas não anunciado, permanece sem previsão concreta de retomada de suas operações (ver imagem 2).

Imagem 2
: Peças e fragmentos do teleférico abandonado (2020)

Este texto esboça uma etnografia da trajetória do Teleférico do Alemão, entre a sua construção, desativação e consequente abandono. Essa delimitação temporal exige recuar no tempo no trabalho etnográfico, analítico e interpretativo, e também levar em conta o que já sabemos quase quatro anos após a sua desativação. Nosso objetivo é destrinchar as diferentes temporalidades que a construção do teleférico produziu e que permitiram concebê-lo. Partimos da temporalidade do planejamento urbano (do projeto à construção), que é o idioma pelo qual o teleférico foi vislumbrado — para examinar justamente as diferentes temporalidades — acionadas, evocadas ou vividas — por ele construídas. Primeira sistematização de dados de pesquisa mais ampla em andamento, partimos do teleférico como bom para pensar — e bom para contar — o entrelaçamento de dimensões simbólicas, materiais e cotidianas da provisão de infraestrutura urbana no Rio de Janeiro na última década.

Para tanto, o artigo se divide em quatro partes, além desta introdução e breves considerações finais. Na primeira parte, apresentamos o debate teórico-metodológico voltado para as potencialidades analíticas de se refletir sobre a produção das cidades a partir de suas infraestruturas, partindo de suas materialidades para reconstruir etnograficamente os processos sócio-históricos que possibilitaram seu vir a ser. Para tanto, analisamos a construção do teleférico segundo distintas temporalidades associadas a processos multiescalares, do ponto de vista de suas articulações conjunturais. Na segunda seção partimos da narrativa bastante consagrada sobre a construção do teleférico (uma espécie de “mito de origem”) para reconstruir o processo transnacional e incremental de circulação de ideias e naturalização de um paradigma consensual de intervenções urbanísticas em áreas de pobreza na América Latina e no Sul Global nos anos 2000 e 2010, o dito “Modelo Medellin”, que se constituiria em um dos fundamentos das obras do PAC do governo federal a partir de 2007. Na terceira seção, atentamos para eventos críticos que permitiram construir o Complexo do Alemão como a localização ideal para a performance do teleférico como a materialização da “chegada do Estado” e do combate ao crime organizado nas favelas cariocas. Na quarta seção, sugerimos a interpretação de que é possível compreender etnograficamente a crise de manutenção do teleférico como efeito de seu próprio processo de projeção. Realizamos isso a partir dos fragmentos da temporalidade da acumulação da construção civil, observáveis na paradoxal disjunção entre o desenho da institucionalidade do teleférico e o futuro projetado pela cenografia da inauguração das suas obras. Nas considerações finais, apontamos alguns caminhos possíveis para o desenvolvimento de pesquisas futuras sobre o teleférico, com base na perspectiva da antropologia das infraestruturas.

INFRAESTRUTURAS URBANAS: FUTUROS E PROMESSAS, POLÍTICAS E POÉTICAS

A materialidade das infraestruturas e da produção da cidade pode ser entendida como um artefato cuja construção e manutenção cotidiana se desdobra como processo a ser construído e analisado etnograficamente. Assim, a intenção aqui é pensar o teleférico menos a partir de uma antropologia da cidade ou das periferias (que pressupõem uma cidade já construída, estabilizada ou não, problematizado em si, permanecendo como pano fundo), do que a partir de uma antropologia da produção da cidade, ou do urbanismo (Cavalcanti, 2021CAVALCANTI, Mariana. (2021), “Still construction, and already ruin”, in M. Lancione; C. McFarlane (eds.). Global Urbanism: knowledge, power and the city. New York, Routledge, pp. 265-273.) através da construção de sua infraestrutura, uma vez que “as vidas materiais e políticas da infraestrutura revelam frágeis relações entre pessoas, coisas, e as instituições (públicas e privadas) que procuram governá-las” (Anand, Gupta, Appel, 2018ANAND, Nikhil; GUPTA, Akhil; APPEL, Hannah (eds.). (2018), The promise of infrastructure. Durham, Duke University Press.: 3). Pensar o teleférico como objeto de análise etnográfica implica desnaturalizá-lo na paisagem e recuar no tempo para compreender (e estranhar) sua própria construção como um processo (mais político do que técnico) que envolve ideias e narrativas, pessoas e coisas: não são apenas os sujeitos, as técnicas, ou as narrativas construídas e consolidadas ao longo do tempo que nos concernem, mas também como o teleférico se torna possível, viável e desejável (ainda que não universalmente) no espaço. É a partir desse entrecruzamento entre ideias, relações entre pessoas e materialidades que sua trajetória permite entrever. Desse modo, provocamos um encontro entre uma certa antropologia do Estado, uma antropologia da cidade, e uma antropologia da política, na construção de um objeto que exige um trabalho de campo que se estende da observação participante e entrevistas também para as práticas burocráticas de produção de relatórios, projetos, indicadores, laudos e a circulação de ideias, documentos e formas materiais, bem como as disputas em torno da produção do espaço que se desdobram na vida cotidiana e condensam sentidos, conflitos e mediações em torno da boa cidade.

Historicamente, infraestruturas constituíram o modo como os estados coloniais e modernos materializaram categorias como desenvolvimento, nação, progresso e modernidade. Ao mesmo tempo, são o que tornam essas categorias concretas e legíveis para os públicos que elas também ajudam a constituir e populações que possibilitam governar (Gluckman, 2010GLUCKMAN, Max. (2010), “Análise de uma situação social na Zululândia Moderna”, in B. Feldman-Bianco (org.). Antropologia das sociedades contemporâneas: métodos. São Paulo, Editora Unesp.; Von Schnitzler, 2016VON SCHNITZLER, Antina. (2016), Democracy’s infrastructure: Techno-politics and protest after apartheid. Princeton, Princeton University Press.; Barker, 2005BARKER, Joshua. (2005), “Engineers and political dreams: Indonesia in the satellite age”. Current Anthropology, vol. 46, n. 5, pp. 703-727.; Schwenkel, 2018SCHWENKEL, Christina. (2018), „The Current Never Stops: Intimacies of Energy Infrastructure in Vietnam”, in N. Anand; A. Gupta; H. Appel (eds.). The promise of infrastructure. Durham, Duke University Press, pp. 102-129.). Se no mundo keynesiano grandes projetos de infraestrutura se ofereciam como instrumento de administração da força de trabalho, nas últimas décadas de reestruturação produtiva, financeirização e globalização, os arranjos concretos que produzem as infraestruturas se transformaram profundamente, com a nova articulação de atores públicos, privados e transnacionais (Boyer, 2018BOYER, Dominic. (2018), “Infrastructure, Potential Energy, Revolution”, in N. Anand; A. Gupta; H. Appel (eds.). The promise of infrastructure. Durham, Duke University Press, pp. 223-244. CAMARGO, Paulo de Oliveira. (2011), As cidades, a cidade: política, arquitetura e cultura na cidade do Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Ciências Sociais), Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro.; ver Laura Bear em Venkatesan et al., 2018VENKATESHAN, Soumhya (2018), “Attention to infrastructure offers a welcome reconfiguration of anthropological approaches to the political”. Critique of Anthropology, vol. 38, n. 1, pp. 3-52.). Entretanto, seu potencial de condensar aspirações de futuro e de promessas coletivas continua a ser construído no debate público como a concretização e evidência material e simbólica do “desenvolvimento” ou do “crescimento econômico” almejado ou reivindicado. Renderizações espetaculares, maquetes e imagens de grandes projetos são apresentados como realizações incontornáveis, urgentes, que atenderiam a exigências técnicas da moderna administração das cidades e regiões, e não como escolhas políticas.

Particularmente na última década, a construção teórica dessa perspectiva vem engajando antropólogos e outros cientistas sociais que estudam cidades e cenários do dito Sul Global por seu potencial em iluminar ou desfamiliarizar os modos de se fazer política — tanto institucional quanto cotidiana — a partir de novas escalas e possibilidades analíticas. Infraestruturas podem ser pensadas como lugares, arranjos ou processos em que a política é traduzida do plano da racionalidade para o plano das práticas, em sua complexidade social, material e política (Von Schnitzler, 2016VON SCHNITZLER, Antina. (2016), Democracy’s infrastructure: Techno-politics and protest after apartheid. Princeton, Princeton University Press.; Anand, Gupta, Appel, 2018ANAND, Nikhil; GUPTA, Akhil; APPEL, Hannah (eds.). (2018), The promise of infrastructure. Durham, Duke University Press.; Larkin, 2013LARKIN, Brian. (2013), “The politics and poetics of infrastructure”. Annual Review of Anthropology, vol. 42, pp. 327-343.; Graham, McFarlane, 2014GRAHAM, Stephen; MCFARLANE, Colin. (2014), Infrastructural lives: Urban infrastructure in context. New York, Routledge.).

Seguindo essa pista, este artigo se constrói a partir de uma etnografia das dimensões materiais e simbólicas das políticas urbanas que a construção do teleférico (ou seja, sua tradução do plano da racionalidade para o plano das práticas) ilumina: atentamos, de um lado, para a invenção de modelos de “boas práticas”, defendidos pelas agencias mulilaterais que financiam ou financiaram grande parte das obras de infraestruturas em áreas de pobreza no Sul Global, e, de outro, para as práticas cotidianas de políticos, moradores e planejadores que tanto produzem quanto habitam a cidade em transformação. O que essa análise revela é justamente as múltiplas ideias e temporalidades imbricadas, evocadas e utilizadas para justificar a construção do teleférico, e também para explicar seu abandono posterior.

Nessa construção analítica, operamos dois deslocamentos de uma antropologia urbana para uma antropologia do urbanismo, possibilitados pela perspectiva da antropologia das infraestruturas. O primeiro deslocamento, como já mencionado, é de uma antropologia da cidade constituída para uma antropologia da produção da cidade como processo a ser narrado etnograficamente. As concepções hegemônicas de cidade nas teorias urbanas, que tomam as cidades do “norte” como parâmetro e ponto de partida, naturalizam o espaço urbano como já provido de infraestrutura, como cenário em que se dão as ações e políticas dos humanos. Entretanto, ao “seguir” a produção da cidade no tempo e no espaço, é possível vislumbrar como a materialidade das infraestruturas revela o emaranhado de escalas de ação, de diferentes percepções, agências e arranjos que as produzem e mantêm. As infraestruturas urbanas conectam a vida íntima da casa a grandes processos econômicos e políticos, uma série de mediações que tornam legíveis as práticas estatais e os múltiplos agentes que integram as estratégias de vida cotidianas dos moradores da cidade. Mostram, também, como essas mediações conformam os modos como infraestruturas são reapropriadas no cotidiano, e como suas materialidades inauguram novos usos, disputas, afetos, espaços e formas de sociabilidade.

Aqui reside o segundo deslocamento: pensar a infraestrutura urbana como processo que lança luz sobre as agências cotidianas de múltiplos sujeitos (e objetos), pondo em relevo e constituindo como interlocutores, não apenas os moradores ou beneficiários das infraestruturas, mas principalmente mediadores implicados de múltiplos modos nas intervenções – como burocratas do estado, trabalhadores da construção civil, funcionários de agências multilaterais, o pessoal de organizações não governamentais (ONGs), de construtoras, de autarquias, de coletivos e grupos políticos “locais”.

Como afirmou Brian Larkin (2013), a construção, provisão e manutenção de infraestruturas revelam suas dimensões políticas e poéticas, por sua capacidade de articular projetos e aspirações futuras que contém uma dimensão de desejo e de afeto. Em sua função poética, estas formas possuiriam relativa autonomia de suas funções técnicas, performando e disseminando representações que incorporam noções de esperança e futuro. Etnograficamente, essa dimensão de futuro e de promessa remete e delimita justamente o presente em que esses projetos são imaginados, negociados e executados. Segundo AbdouMaliq Simone, pensar etnograficamente a infraestrutura permite atentar para suas complexidades temporais: em sua dimensão simbólica, como projeto, estas “estabilizam a volatilidade do presente e instigam uma volatilidade do futuro” (Venkatesan et al., 2018VENKATESHAN, Soumhya (2018), “Attention to infrastructure offers a welcome reconfiguration of anthropological approaches to the political”. Critique of Anthropology, vol. 38, n. 1, pp. 3-52.). Ao longo de sua construção, e muitas vezes também por meio dessa execução, os presentes se tornam passados, suas prioridades se tornam obsoletas (ou são rearticuladas) e suas obras podem ser abandonadas (ou revistas). Isso porque há uma série de outras temporalidades governando a vida social no cotidiano. Entretanto, as materialidades persistem no espaço, portando novos sentidos e ganhando novos usos.

É por isso que Akhil Gupta, Hannal Appel e outros (Venkatesan et al., 2018VENKATESHAN, Soumhya (2018), “Attention to infrastructure offers a welcome reconfiguration of anthropological approaches to the political”. Critique of Anthropology, vol. 38, n. 1, pp. 3-52.; Gupta, 2018GUPTA, Akhil. (2018), “The Future in Ruins. Thoughts on the temporality of infrastructure”, in N. Anand; A. Gupta; H. Appel (eds.). The promise of infrastructure. Durham, Duke University Press, pp. 62-79.; Appel, 2018APPEL, Hannah. (2018), “Infrastructural Time”,in N. Anand; A. Gupta; H. Appel (eds.). The promise of infrastructure. Durham, Duke University Press, pp. 41-61.) argumentam que pensar a infraestrutura como processo implica concebê-la a partir de múltiplas temporalidades. A do planejamento urbano — usualmente concebida como o intervalo entre a elaboração do projeto, sua execução e inauguração — seria apenas a primeira e mais evidente delas, que as infraestruturas produzem ou permitem vislumbrar. Essa temporalidade — aqui lida como nativa de um certo discurso técnico sobre as cidades — é voltada para o futuro como promessa, lembra Gupta (2018)GUPTA, Akhil. (2018), “The Future in Ruins. Thoughts on the temporality of infrastructure”, in N. Anand; A. Gupta; H. Appel (eds.). The promise of infrastructure. Durham, Duke University Press, pp. 62-79., condição necessária para a própria mobilização de capitais, de terra, de energia e de recursos humanos exigida pela execução de grandes projetos. Essa mobilização de recursos de diversas ordens, que operam em múltiplas escalas, é ancorada na temporalidade própria da modernidade, do progresso, do desenvolvimento, do planejamento, ou, em sua versão mais recente, do “crescimento econômico”. Como sugere Appel (2018)APPEL, Hannah. (2018), “Infrastructural Time”,in N. Anand; A. Gupta; H. Appel (eds.). The promise of infrastructure. Durham, Duke University Press, pp. 41-61., através do trabalho etnográfico, tempos lineares formados por meio de discursos, narrativas, institucionalidades e materialidades em torno das infraestruturas seriam fraturados em uma constelação de temporalidades distintas, como vividas na vida cotidiana.

No caso do Teleférico do Alemão, essa justaposição de temporalidades é clara: sua abertura e aposta no futuro está embutida na própria concepção do Programa de Aceleração do Crescimento do governo federal. Iniciado em janeiro de 2007, o PAC foi anunciado como um programa que se desdobraria em várias etapas, mas inicialmente abarcaria cinco grandes políticas:

[...] medidas de investimento em infraestrutura, inclusive de infraestrutura social, como habitação, saneamento básico e transporte de massa, além de determinados programas de água e eletricidade, como o Luz para Todos, que representam, de forma direta, melhoria da qualidade de vida da população de baixa renda; medidas de estímulo ao crédito e ao financiamento; medidas de desenvolvimento institucional; medidas de desoneração e administração tributária; e medidas fiscais de longo prazo (Decreto 6.025/2007, de 22/01/2007).

Aqui é evidente a centralidade da infraestrutura como motor do crescimento econômico de longo prazo, que se confunde com o bem-estar social e, portanto, guarda ainda algum parentesco com o desenvolvimentismo: a ideia manifesta do programa era justamente criar as condições institucionais, infraestruturais e materiais para que outros atores, particularmente os investidores privados, agissem no sentido de promover o crescimento econômico (para o caso similar da Guiana Equatorial, ver Appel, 2018APPEL, Hannah. (2018), “Infrastructural Time”,in N. Anand; A. Gupta; H. Appel (eds.). The promise of infrastructure. Durham, Duke University Press, pp. 41-61.). Isso se revelaria ainda mais urgente na esteira da crise econômica global de 2008, ocorrida quando as obras já haviam sido iniciadas. O “crescimento econômico” em si tem uma temporalidade mais extensa do que seria possível executar em qualquer mandato, projetando um futuro de longo prazo — e não é à toa que o PAC é anunciado justamente na transição entre os governos Lula e Dilma, como modo de construir um legado materializado nas infraestruturas por eles construídas.

Por outro lado, o PAC-favelas, no Rio de Janeiro, tinha uma temporalidade muito específica, produzida por um contexto peculiar: o da preparação da cidade para uma série de eventos de alcance global, iniciado com os Jogos Pan-americanos de 2007, e estendido à Rio + 20, à Jornada Mundial da Juventude em 2013, à Copa de 2014, e (a partir de 2009) às Olimpíadas de 2016. Estávamos diante de um alinhamento sem precedentes dos governos nas escalas federal, estadual e municipal, e os financiamentos de agências multilaterais, e estatais, por meio dos royalties do petróleo, pareciam inesgotáveis. O programa das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs), lançado em fins de 2008, angariava um quase incondicional apoio da mídia, de empresários e se expandia em ritmo acelerado. Eike Batista financiava o mobiliário das UPPs enquanto reformava o Hotel Glória, e o mercado imobiliário apresentava altas exorbitantes. A prefeitura lançou o site cidadeolimpica.com.br, onde disponibilizava timelapses das obras olímpicas em andamento, além de inúmeras maquetes e renderizações dos museus e novas paisagens em construção. O futuro, em suma, estava evidente e literalmente em construção, e disso havia evidências por toda a cidade. Foi nessa conjuntura que o projeto do teleférico se fez verossímil.

Ou seja, se os discursos e justificativas estendiam o futuro prometido pela novidade do teleférico a longo prazo, era claro que sua execução fazia parte de um processo cujo fôlego era mais curto, cujos investimentos tinham um prazo exíguo para serem executados, entregues (e, como veremos, operados), e eram disputados também por outros projetos e iniciativas a serem executados no mesmo curto intervalo de tempo. Essa urgência, por sua vez, teve efeitos concretos sobre a própria materialidade e institucionalidade do teleférico em construção — visíveis tanto nas alterações do projeto original quanto nas barreiras políticas para a elaboração de estudos de viabilidade econômica e na provisoriedade de seus mecanismos institucionais e financeiros de contratação — quanto em seus destinos como infraestrutura — que acabou abandonada, ou suspensa, como veremos a seguir.

Segundo Gupta (2018)GUPTA, Akhil. (2018), “The Future in Ruins. Thoughts on the temporality of infrastructure”, in N. Anand; A. Gupta; H. Appel (eds.). The promise of infrastructure. Durham, Duke University Press, pp. 62-79., a ruína não é algo que acomete as infraestruturas após seus ciclos de vida, mas um de seus traços constitutivos. O que garante o funcionamento das infraestruturas é o trabalho contínuo de sua manutenção, e é também o que assegura a sua aparência de solidez, de imobilidade e de um dado a priori do espaço urbano. Esta manutenção não é restrita à materialidade da obra – como aponta Larkin (2013)LARKIN, Brian. (2013), “The politics and poetics of infrastructure”. Annual Review of Anthropology, vol. 42, pp. 327-343., que a reflexão sobre infraestruturas é um ato categórico, podendo envolver pessoas, ideias e coisas –, abarcando arranjos materiais, políticos, sociais, espaciais e temporalidades outras interseccionadas neste processo. Os projetos políticos, simbólicos ou talvez até ideológicos que fundamentam a produção de infraestruturas podem caducar e ruir, ocasionando também o seu declínio material. Isso, por vezes, ocorre mesmo antes da conclusão das obras — e particularmente no dito Sul Global. Para escapar da temporalidade (aqui “nativa”) do planejamento urbano, centrado na projeção-construção-inauguração de infraestruturas — que leva, necessariamente, a uma narrativa da falha e não desnaturaliza os processos mobilizados na produção das infraestruturas para além de sua dimensão técnica — Gupta (2018)GUPTA, Akhil. (2018), “The Future in Ruins. Thoughts on the temporality of infrastructure”, in N. Anand; A. Gupta; H. Appel (eds.). The promise of infrastructure. Durham, Duke University Press, pp. 62-79. descreve esse processo como uma temporalidade de “suspensão” das infraestruturas. São obras que não chegam a ser concluídas, não como projetadas. Entram em processo de ruína, com uma estrutura temporal própria. Não se tratam de ruínas de um ciclo de glórias passadas, mas de ruínas do futuro dos presentes que tornaram os projetos viáveis, desejáveis ou executáveis. Este é o caso não apenas do Teleférico do Alemão, mas também de várias outras estruturas ou projetos iniciados no ciclo de preparação do Rio de Janeiro — e sua simulação como cidade-empresa — para os grandes eventos globais.

Ruínas surgidas de processos e temporalidades semelhantes ao Teleférico do Alemão podem ser encontrados por toda a cidade — o BRT Transbrasil (cujas obras já foram suspensas e reiniciadas diversas vezes enquanto os engarrafamentos agravados pelas obras já se tornaram perenes), e as estruturas abandonadas com vista para o mar, como o Hotel Glória e o Museu da Imagem e do Som na avenida Atlântica, a estação Gávea da linha 4 do metrô, o Parque Olímpico, a Vila dos Atletas (Ilha Pura, maior fracasso imobiliário da história recente do Rio de Janeiro) (O’Donnell, Sampaio, Cavalcanti, 2020O’DONNELL, Julia; SAMPAIO, Lilian Amaral de; CAVALCANTI, Mariana. (2020), “Entre futuros e ruínas: Os caminhos da Barra Olímpica”. Dilemas-Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, vol. 13, n. 1, pp. 119-146.) e mesmo o Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro (Comperj), entre outros exemplos. Seria possível, também, incluir aí as ruínas simbólicas dos programas das UPPs e do Programa Morar Carioca, que foi lançado em 2010 com a missão de urbanizar todas as favelas da cidade até 2020. Cada um desses exemplos tem trajetória e materialidade próprias (que derivam, caso a caso, dos arranjos, atores e promessas envolvidos em cada um dos casos) e, no entanto, resultaram na produção de ruínas com uma estrutura temporal própria, ainda que não inédita: como diria Levi-Strauss via Caetano Veloso, aqui “tudo ainda é construção e já é ruína” (Cavalcanti, 2021CAVALCANTI, Mariana. (2021), “Still construction, and already ruin”, in M. Lancione; C. McFarlane (eds.). Global Urbanism: knowledge, power and the city. New York, Routledge, pp. 265-273.).

O que a construção e o destino do teleférico tornam evidentes é justamente como as suas dimensões de futuro e de promessa nos dizem mais sobre o presente em que ele (e todos esses outros projetos) foram imaginados e iniciados, do que a um possível futuro exequível projetado nas pranchetas do arquiteto. Aquele futuro, por sua vez, tem sua história. O Teleférico do Alemão pode, portanto, ser lido também em uma chave mais ampla, quase metafórica, do fim do último ciclo de transformações urbanas pelas quais o Rio de Janeiro passou. É o futuro projetado naquela conjuntura do presente da virada dos anos 2000 para os 2010 que se encontra em ruínas nas estações desativadas, nos cabos abandonados e nas gôndolas sucateadas.

URBANIZAÇÃO DE FAVELAS, SEGURANÇA PÚBLICA E INFRAESTRUTURAS URBANAS

As obras do PAC-favelas no Rio de Janeiro têm um “mito de origem”: o então presidente Lula estaria em um helicóptero com o então governador Sergio Cabral quando vislumbrou os complexos de favelas do Alemão e de Manguinhos, no antigo subúrbio industrial da cidade. Segundo publicado em diversos jornais, e relatado pela ex-assessora de imprensa da Empresa de Obras Públicas do Estado do Rio de Janeiro (Emop) como narrativa que acompanhava a apresentação das obras do PAC, Lula teria se comprometido a intervir no que do alto parecia um bolsão de pobreza tão miserável quanto intolerável.

Esse “mito” importa menos do ponto de vista de sua veracidade do que do ponto de vista do que a sua enunciação e circulação produzem, que é a própria naturalização da necessidade de uma intervenção da envergadura das obras do PAC no Complexo do Alemão. Para entender essa naturalização naquele presente etnográfico de concepção das obras do PAC faz-se necessário atentar não só para as grandes temporalidades da modernidade, do progresso ou das promessas das infraestruturas, mas também para as condições, contextos e ideias sobre a urbanização de favelas que vigoravam naquele momento particular da história do Rio de Janeiro, bem como para algumas contingências que foram cruciais para a maneira como o processo se deu na cidade.

Uma narrativa complementar em relação à explicação do “mito de origem” poderia se ancorar na temporalidade e na circulação de ideias dos programas e projetos de urbanização de favelas no Rio de Janeiro. Ela revelaria seu progressivo, porém inequívoco, entrelaçamento, ao longo dos anos 1990 e, principalmente, a partir dos anos 2000, com políticas de segurança pública, em um processo que veio a ressignificar o próprio ato de prover as favelas com infraestrutura. Com a abertura política nos anos 1980 e o governo Brizola, deu-se início a uma agenda centrada nos direitos humanos dos moradores de favelas, com a suspensão da permissão da prática do “pé na porta”, como ficaram conhecidos os modos de incursão policial desde sempre, e consolidados pela ditadura. Essa agenda, centrada nos direitos dos moradores de favelas, também norteou a suspensão de programas de remoção em favor de programas de urbanização, de provisão de serviços (o Proface, Programa das Favelas da Cedae, o programa de eletrificação de favelas da Light, entre outros), e a construção de equipamentos públicos como escolas, creches, postos de saúde. Tudo isso coincidiu com o estabelecimento do tráfico de drogas, agora centrado na cocaína, e com a constituição das redes de trocas de mercadorias políticas em torno da atividade cotidiana do tráfico de armas e de drogas (Misse, 2010MISSE, Michel. (2010), “Trocas ilícitas e mercadorias políticas: para uma interpretação de trocas ilícitas e moralmente reprováveis cuja persistência e abrangência no Brasil nos causam incômodos também teóricos”. Anuário Antropológico, n. 2, pp. 89-107.). Quando Moreira Franco se elege governador em 1986, é com a promessa de acabar com toda a “violência” no estado em seis meses.

Em 1993 ocorrem as chacinas da Candelária e de Vigário Geral. A visibilidade dos massacres trouxe à cena pública uma série de narrativas e atores que protagonizariam as representações que organizam o que Marcia Leite (1997)LEITE, Márcia Pereira. (1997), “Da metáfora da guerra à mobilização pela paz: temas e imagens do Reage Rio”. Cadernos de Antropologia e Imagem, vol. 4, n. 1, pp. 121-146. chamou de “metáfora da guerra” no discurso público sobre o Rio de Janeiro: uma versão particular, e profundamente territorializada da guerra às drogas, que acaba por enquadrar as políticas públicas direcionadas às favelas. Na metáfora da guerra, a “crise de segurança pública” do Rio de Janeiro é representada em termos de uma guerra dos traficantes que dominam as favelas e acuam “a cidade”. A cidade se encontra “partida” entre espaços em que vigora o Estado de direito e as favelas — que passam a englobar também conjuntos habitacionais e outros territórios da pobreza — onde o Estado se encontra “ausente”. A “guerra” justifica as incursões policiais violentas e a prática corriqueira e sem consequências dos autos de resistência, como foram até bem pouco tempo atrás categorizadas a maioria das mortes resultantes de incursões policiais nas favelas (que, nessa época, sequer eram contados e na gestão Marcello Alencar [1995-1999] chegaram a ser premiadas por meio do que ficou conhecido como gratificação faroeste, isto é, a premiação de policiais por atos “de bravura” na “guerra” do Rio).

Diante de uma cidade “partida” e em “guerra”, todas as políticas direcionadas às favelas passaram a ter como justificativa a melhoria da segurança pública. Se antes a favela era um problema em si, ela agora é uma ameaça a tudo que não é favela. Assim, ao longo das últimas décadas, a percepção de que as favelas representam uma ameaça à cidade vem também servindo de justificativa para intervenções de infraestrutura e para a implantação de projetos sociais, ao mesmo tempo que esses investimentos reforçam a metáfora da guerra e reproduzem toda a sorte de estigmas relacionados às favelas (Cavalcanti, 2009CAVALCANTI, Mariana. (2009), “Do Barraco à Casa: tempo, espaço e valor(es) em uma favela consolidada”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol.24, n. 69, pp.69-80.; 2013CAVALCANTI, Mariana. (2013), “À espera, em ruínas: Urbanismo, estética e política no Rio de Janeiro da ‘PACificação’”. Dilemas-Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, vol. 6, n. 2, pp. 191-228.).

No mesmo ano de 1993, a Prefeitura do Rio de Janeiro, na gestão Cesar Maia, iniciou o programa Favela Bairro e criou a Secretaria Extraordinária de Habitação, consolidada em 1994 e atuante na frente de obras em favelas até o inicio do governo Marcello Crivella, em 2017, quando foi incorporada como subsecretaria à atual Secretaria Municipal de Infraestrutura e Habitação (Smuih). Os projetos de intervenção do Favela Bairro foram realizados no período em que obras de urbanização eram pensadas e praticadas como a antítese de programas de remoção. Foi a era da “integração” das favelas à cidade dita formal como horizonte normativo e como justificativa das intervenções em infraestrutura do Estado. Tratava-se de projetos de pequena ou média escala, que visavam também “preservar” o “caráter local” das favelas, centrados na melhoria dos acessos, construção de espaços públicos e vias carroçáveis, construção e operação de equipamentos sociais e na provisão cotidiana de infraestrutura. Tinham pouco impacto na paisagem, as remoções ou realocações eram mínimas, e sempre para o entorno das áreas englobadas por cada projeto.

Em sua primeira fase, com recursos da prefeitura, o programa atuou em 16 favelas, a maior parte delas já atendida pelos projetos Mutirão e Mutirão remunerado, implementados pela então Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, de onde veio grande parte do pessoal que comporia a Secretaria Municipal de Habitação (SMH). As favelas contempladas pelo Favela Bairro foram selecionadas com base no acúmulo de intervenções e investimentos anteriores em urbanização e saneamento nesses projetos pioneiros de saneamento e reflorestamento.

Em 1997, o programa passa a contar com o apoio do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), por meio de uma linha de financiamento intitulada Programa de Assentamentos Precários (Proap). No âmbito do Proap foram criados também os Programas Grandes Favelas, que passaram a incluir favelas de grande porte com mais de 2.500 domicílios, e o Bairrinho, para aquelas com menos de 500 domicílios. O primeiro realizou obras de urbanização em Rio das Pedras, Jacarezinho e Fazenda Coqueiro (Ximenes, Jaenisch, 2019XIMENES, Luciana Alencar; JAENISCH, Samuel Thomas. (2019), “As favelas do Rio de Janeiro e suas camadas de urbanização. Vinte anos de políticas de intervenção sobre espaços populares da cidade”. Anais XVIII Enanpur 2019, pp. 1-24.).

Tudo isso denota, para além dos projetos urbanísticos em si, a constituição de uma institucionalidade centrada nas políticas de urbanização de favelas. O Plano Diretor de 1992, a própria constituição da SMH como gestora de diferentes fases do Proap, a formação de toda uma geração de arquitetos e firmas de arquitetura, bem como pequenos empreiteiros cujas carreiras se fizeram a partir de obras de urbanização de favelas (Araujo Silva, 2017ARAUJO SILVA, Marcella. (2017), Obras, casas e contas: uma etnografia de problemas domésticos de trabalhadores urbanos no Rio de Janeiro. Tese (Doutorado em Sociologia), Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.), e toda uma geração de técnicos da prefeitura que se especializaram em obras em favelas, um trabalho cotidiano dentro da Prefeitura que continuou a realizar intervenções do Proap mesmo quando o Favela Bairro já havia perdido seu fôlego inicial. A experiência do Favela Bairro logo se tornou exemplar no mundo das “boas práticas” de urbanização de favelas defendidas com afinco pelas agências multilaterais nos anos 1990 e 2000 no contexto de reestruturação produtiva global.

Essas “boas práticas” circulariam e integrariam o repertório de projetos que viriam a constituir o que veio a ser conhecido mais tarde, na Colômbia, como “urbanismo social”, concebido como uma aplicação particular do “modelo Barcelona” a regiões pobres das cidades da América Latina (Brand, 2013BRAND, Peter. (2013), “Governing inequality in the South through the Barcelona model: ‘social urbanism’ in Medellin, Colombia”. Interrogating urban crisis: governance, contestation, critique, pp. 9-11.; MacLean, 2015MACLEAN, Kate. (2015), Spatial Urbanism and the politics of violence. New York, Palgrave Macmillan.), onde se articulou à perspectiva de políticas de segurança publica elaboradas dentro do marco da “segurança cidadã”. O “modelo Barcelona” se refere a práticas e projetos implementados nessa cidade durante seu remodelamento para as Olimpíadas de 1992. Fundamentado na formulação de projetos urbanos em detrimento de planos diretores, enfatizava a importância do espaço público e uma divisão mais igualitária de instituições públicas como modo de promover a “qualidade de vida”, uma sensação de inclusão e pertencimento que se estendesse às áreas mais pobres da cidade (Brand, 2013BRAND, Peter. (2013), “Governing inequality in the South through the Barcelona model: ‘social urbanism’ in Medellin, Colombia”. Interrogating urban crisis: governance, contestation, critique, pp. 9-11.). Também envolvia consideráveis esforços em termos de marketing urbano, por meio da construção de equipamentos com o potencial de se tornarem cartões-postais das cidades, ou de grandes eventos para atrair turistas, refazendo sua imagem em um cenário de competição global por recursos e investimentos.

Durante os anos 1990, na gestão Cesar Maia, a Prefeitura do Rio também recebeu diversas visitas de consultores de Barcelona, que influenciaram em grande medida os desenhos das políticas urbanas daquela época, como o Rio Cidade (de revitalização de áreas formais, com projetos pensados a partir da unidade de cada bairro) e o Favela Bairro. Foi nessa época que a cidade começou a se candidatar para receber grandes eventos internacionais, como a Copa do Mundo e as Olimpíadas (Camargo, 2011). Ao aportar na América Latina, esse modelo de desenvolvimento urbano, gestado em meio à consolidação do neoliberalismo, passou a ser ancorado na noção de integração — simbólica e infraestrutural — das áreas informais à cidade formal. Essa integração almejada seria também assegurada pela implementação de políticas públicas e de segurança desenhadas dentro do marco da “segurança cidadã”. Essa noção foi utilizada pela primeira vez na Colômbia em 1995 para nomear a implementação integrada de políticas setoriais no nível local com vistas à redução de índices de violência. A perspectiva da segurança cidadã (Ceballos, Martin, 2004CEBALLOS, Miguel; MARTIN, Gerard. (2004), Bogotá: anatomía de una transformación. Políticas de Seguridad Ciudadana 1995-2003. Bogotá, Pontifícia Universidade Javeriana.; Freire, 2009FREIRE, Moema Dutra. (2009), “Paradigmas de segurança no Brasil: da ditadura aos nossos dias”. Revista Brasileira de Segurança Pública, vol. 3, n. 2, pp. 100-114.) sistematizada dez anos mais tarde pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) em 2005, aposta na redução dos índices de violência por meio de ações de controle e prevenção, envolvendo instituições públicas e a sociedade civil. Seriam cinco as categorias dessas intervenções: (1) as dirigidas ao cumprimento voluntário de normas; (2) as que visam a inclusão social e a diminuição de fatores de risco (como álcool, drogas, armas); (3) a “recuperação” de espaços públicos; (4) a facilitação do acesso dos cidadãos a mecanismos institucionais ou alternativos de resolução de conflitos; (5) a construção de capacidades institucionais da polícia, das autoridades executivas e judiciais e a ampliação da confiança dos cidadãos nessas instituições (Freire, 2009FREIRE, Moema Dutra. (2009), “Paradigmas de segurança no Brasil: da ditadura aos nossos dias”. Revista Brasileira de Segurança Pública, vol. 3, n. 2, pp. 100-114.).

Essa sistematização a posteriori do paradigma da segurança cidadã descreve em grande medida não apenas as intervenções do Favela Bairro, mas também os princípios que nortearam a implementação da política de segurança dos Mutirões pela Paz e do Grupamento de Policiamento de Áreas Especiais (Gpae), implementado pelo governo do Estado entre 1999 e 2002, já na gestão Anthony Garotinho, sob o comando de Luiz Eduardo Soares, antropólogo e então subsecretário de Segurança e Coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania, enquanto as obras do Proap seguiam em andamento.

Na virada dos anos 1980 para a década de 1990, Medellín era a cidade com o maior índice de homicídios do mundo, atingindo a taxa de 381 por 100 mil habitantes em 1991. Associada a Pablo Escobar e à violência do tráfico internacional de drogas, a cidade também era palco de disputas entre grupos paramilitares e da própria violência de estado. Em 2013, quando a cidade ganhou o prêmio de cidade mais inovadora (Most Innovative City) do Urban Land Institute, financiado pelo Wall Street Journal e pelo Citigroup, essa taxa havia caído para 39 por 100 mil habitantes (Maclean, 2015MACLEAN, Kate. (2015), Spatial Urbanism and the politics of violence. New York, Palgrave Macmillan.:3). Manchetes de jornais pelo mundo afora e a própria administração da cidade chamaram o feito de “Milagre de Medellín”, cuja história de sucesso também converteu a cidade em modelo de “boas práticas” vendidas por consultorias e consórcios como o “Modelo Medellín” premiado internacionalmente e empacotado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento e pelo Banco Mundial a partir de 2008 como case de sucesso do urbanismo social colombiano praticado entre 2004 e 2011, durante o mandato de Sergio Fajardo.

Discursivamente, o urbanismo social se justificava como uma reparação histórica das desigualdades duradouras na sociedade colombiana. A metáfora da acupuntura urbana previa a abertura de pontos de circulação e de fluxo, por meio da provisão de infraestruturas e serviços urbanos nas regiões mais pobres da cidade. Havia um investimento considerável nos aspectos simbólicos das intervenções no sentido de promover uma ressignificação dos espaços periféricos por meio de uma performance estética de sua incorporação à cidade. A cada uma dessas funções coube um monumento: para o transporte, o teleférico, articulado ao metrô da cidade formal; para a provisão de infraestruturas públicas e novas centralidades urbanas criadas por meio da ativação de espaços públicos ergueram-se cinco Bibliotecas-Parques, cujo projeto era assinado por arquitetos renomados, selecionados por concursos públicos internacionais. Por isso mesmo, o Teleférico de Medellín inaugurado em 2004 — e que vinha sendo planejado desde o final dos anos 1990 — constituía uma peça central em sua dupla função de transporte de massa e de novo marco na paisagem, constituindo meio e mensagem da política de integração de áreas estigmatizadas à cidade formal, índice e evidência da reparação de desigualdades históricas e da construção de uma democracia inclusiva.

A novidade da construção de teleféricos como sistemas de transporte de massa traz à tona a centralidade da questão estética, ou da função poética, das infraestruturas no contexto de implementação de políticas sociais sob o neoliberalismo: a própria visibilidade e monumentalidade dos teleféricos e Bibliotecas-Parques trariam para as favelas e áreas informais os princípios do modelo Barcelona, agora aplicado às peculiaridades das cidades latino-americanas. Em particular, a contratação de arquitetos renomados para a construção de edifícios e infraestruturas que teriam como efeito alavancar economias locais e promover a melhoria da qualidade de vida da população por meio da atração de investimentos privados às áreas sob intervenção.

Diversos estudos já apontaram para a multiplicidade de fatores e de transformações políticas e institucionais de médio prazo como motores da queda de homicídios em Medellín. Esses estudos também apontam para os limites da “inclusão social” promovida pelo Teleférico, uma vez que indicadores de qualidade nas áreas beneficiadas teriam melhorado, mas em um contexto de crescentes desigualdades sociais (Brand, 2013BRAND, Peter. (2013), “Governing inequality in the South through the Barcelona model: ‘social urbanism’ in Medellin, Colombia”. Interrogating urban crisis: governance, contestation, critique, pp. 9-11.; Brand, Dávila, 2011BRAND, Peter; DÁVILA, Julio. (2011), “Mobility innovation at the urban margins: Medellín’s Metrocables”. City, vol. 15, n. 6, pp. 647-661.; MacLean, 2015MACLEAN, Kate. (2015), Spatial Urbanism and the politics of violence. New York, Palgrave Macmillan.). Em suma, o Teleférico e todo o urbanismo social mostrou-se ineficaz do ponto de vista do combate às desigualdades sociais e urbanas. Mas o que importa aqui é muito menos a desconstrução da eficácia do “Modelo Medellín” do que sua própria produtividade enquanto ideia ou “solução”, ou seja, o modo como a crença no sucesso do modelo foi capaz de produzir uma conexão tão indisputada quanto elusiva substancialmente entre a provisão de infraestrutura urbana e a redução de taxas de homicídios e índices de violência em geral nas cidades da América Latina. Este é o “legado” do dito “Milagre” ou “Modelo Medellin”: promover intervenções de provisão de serviços de infraestrutura e transporte como técnicas capazes de reduzir os índices de violência de qualquer cidade latino-americana.

Lembremos que esse texto tenta reconstruir a história do presente (já passado) em que o Teleférico do Alemão constituiu-se como obra viável e desejável. Se considerarmos a trajetória, é possível revisitar o “mito de origem” do Complexo do Alemão com outros olhos: vistos do alto, os complexos do Alemão e de Manguinhos surgiam como áreas a serem “incorporadas” à cidade. E, de fato, segundo levantamentos feitos na época e no bojo das próprias intervenções do PAC-Favelas, apresentavam, respectivamente, os primeiro e sexto piores Índices de Desenvolvimento Humano (IDHs) da cidade do Rio de Janeiro. Tudo isso em áreas já providas de transporte público e relativamente centrais (do ponto de vista das periferias brasileiras e globais). No léxico das políticas públicas, das boas práticas de governança e do planejamento urbano, a resposta, ou solução técnica, naquele momento, certamente residia no “Modelo Medellín”, por todas as semelhanças geográficas, sociais e culturais, mas também das redes e institucionalidades transnacionais que conectavam o caso colombiano ao Rio de Janeiro. Técnicos da Emop, do governo do Estado já haviam realizado visitas a Medellín no início das obras do PAC, circuito também percorrido por técnicos de ONGs e por pesquisadores (Ferreira, Oliveira, Iacovini, 2019FERREIRA, Lara; OLIVEIRA, Paula; IACOVINI, Victor (orgs.). (2019), Dimensões do intervir em favelas: desafios e perspectivas. São Paulo, Peabiru TC/Coletivo Lablaje.). Finalmente — como veremos na próxima sessão — tratava-se também de uma obra que tinha o potencial de converter-se em um monumento, ou ser ressignificada como um cartão-postal da cidade — fato que não pode ser subestimado dentro do processo que reconstruímos neste texto. Ou seja, o “mito de origem” do teleférico torna legível a naturalização da conformação incremental de um paradigma consensual de intervenções urbanísticas em áreas de pobreza que se espraiaria pela America Latina e pelo Sul Global por meio das agências multilaterais nos anos 2000 e 2010, e que constituiria também um dos fundamentos das obras do Programa de Aceleração do Crescimento do governo federal a partir de 2007.

O COMPLEXO DO ALEMÃO COMO CASO IDEAL PARA O “MODELO MEDELLÍN”

As obras do PAC ocorreram na favela da Rocinha e nos complexos do Alemão, Manguinhos e Pavão/Pavãozinho-Cantagalo. Excetuando esse último, as outras três áreas não haviam sido incluídas nas obras do Programa Favela Bairro. O Complexo do Alemão e a Rocinha, entretanto, tinham sido objeto de elaboração de planos urbanísticos que foram suspensos, ou engavetados, ainda no âmbito do Proap. O da Rocinha fora elaborado por Luiz Carlos Toledo, arquiteto que mantinha relações com lideranças, militantes e associações da Rocinha havia décadas. O Plano de Desenvolvimento Urbanístico do Complexo do Morro do Alemão (PDUCMA), projetado em 2003 pelo arquiteto Jorge Mario Jauregui, que havia feito carreira internacionalmente premiada no Favela Bairro, previa ser executado ao longo de vinte anos. O plano era construído a partir da noção de uma dupla integração – do complexo à cidade, e também a preocupação da integração interna do complexo, a partir da produção de novas centralidades, dentro dos marcos da “segurança cidadã”, como explicitado no próprio plano e reiterado diversas vezes pelo arquiteto em entrevista para esta pesquisa, em julho de 2019.

O PDUCMA fora engavetado, ou suspenso, logo após sua publicação. Entretanto, em 2007, quando o planejamento das obras do PAC foi iniciado, o projeto e os estudos então realizados foram o ponto de partida para a concepção das intervenções do PAC no complexo. O projeto é retomado em um novo presente, em uma nova conjuntura, e com novos atores e imperativos a serem incorporados em sua execução. Um desses imperativos veio a ser o teleférico. Um equipamento coletivo com um gigantesco impacto espacial, em todos os sentidos, se constituía como o centro em torno do qual a nova versão a ser executada, do PDUCMA, que não o incluía originalmente. Que “veio de cima”, é o relato enunciado por diversos funcionários e técnicos do governo do estado, bem como de lideranças históricas do Complexo do Alemão, que tinham como demanda antiga e explícita obras de saneamento básico.

Obras de saneamento básico, invisíveis a olho nu, constituíam uma antítese dos projetos de intervenção do PAC nas favelas cariocas. Como já argumentado por Cavalcanti (2013)CAVALCANTI, Mariana. (2013), “À espera, em ruínas: Urbanismo, estética e política no Rio de Janeiro da ‘PACificação’”. Dilemas-Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, vol. 6, n. 2, pp. 191-228., os projetos do PAC se caracterizavam por constituírem intervenções monumentais no espaço urbano que performavam a narrativa de integração da favela à cidade dita formal. Mas outra característica destacava as intervenções do PAC em relação às antigas iniciativas de urbanização da favela: a inscrição monumental da favela na paisagem da cidade (Cavalcanti, 2013CAVALCANTI, Mariana. (2013), “À espera, em ruínas: Urbanismo, estética e política no Rio de Janeiro da ‘PACificação’”. Dilemas-Revista de Estudos de Conflito e Controle Social, vol. 6, n. 2, pp. 191-228.). As obras do PAC deliberadamente ressignificavam os contrastes sociais e historicamente constituíram nítidas fronteiras sociais como um espetáculo de sua incorporação na cidade por meio de obras de infraestrutura grandiosas que materializavam a retórica da “pacificação”.

Nesse contexto político, em busca de expressão estética na paisagem urbana, as obras de saneamento que constituíam uma demanda histórica dos movimentos e da militância do Complexo do Alemão não encontravam escuta. A dimensão de performance da incorporação dos territórios da pobreza à cidade dita formal demandava a construção de uma paisagem que inscreveria ali, no Complexo do Alemão, a chegada triunfante do Estado onde ele antes estivera ausente. A escolha do local, nesse sentido, está longe de ser aleatória, considerando que, ao longo dos anos 2000, o Complexo foi narrado pela mídia como o quartel-general do Comando Vermelho, entreposto de armas, e, em certa medida, o lugar de onde emanaria todo o mal da cidade do Rio de Janeiro.

Essa construção se consolidou com o assassinato do jornalista Tim Lopes, da Rede Globo, enquanto realizava uma reportagem de jornalismo investigativo para o Fantástico, em 2002. Antes disso, o complexo era coadjuvante da narrativa pública da metáfora da guerra, figurando na história das facções do tráfico como o lugar de fundação da Amigos dos Amigos (ADA) em meados dos anos 1990. A ADA foi fundada quando Orlando Jogador, então dono do morro do Alemão foi morto em uma emboscada atribuída a Uê, do morro do Adeus. O conflito que seguiu transformaria a paisagem e os percursos cotidianos dos moradores do complexo. As fronteiras do tráfico na disputa pelo território separaram famílias, dificultaram o cotidiano de crianças nas escolas da região, e isolaram o morro do Adeus. Essa história de fundo, é claro, tornava a reportagem que Tim Lopes realizava na região ainda mais dramática. A matéria era sobre a venda de drogas e a presença de menores no baile funk da Vila Cruzeiro. Lopes foi lá reconhecido e levado para o alto da Grota, onde foi executado. Rapidamente, detalhes sobre a execução criaram um novo inimigo público número 1, na figura de Elias Maluco, que teria executado Lopes com uma espada de samurai. Durante semanas a investigação ocupou as manchetes dos principais jornais da cidade.

Se aceitamos o vigor narrativo da metáfora da guerra no Rio de Janeiro, a banalidade da brutal ocupação do complexo em 2007 – quando 19 pessoas foram mortas com indícios claros de execução – pode ser compreendida. O complexo, chamado então de “quartel general do crime”, naturalizaria a força letal com a qual sua ocupação se deu. No dia 27 de junho de 2007, esta foi a chamada “Chacina do Pan”, denunciada em diversas instâncias internacionais por ONGs defensoras de direitos humanos, realizada em parceria entre os governos federal e estadual, envolvendo mais de 1.300 policiais, entre militares, civis e soldados da Força Nacional de Segurança Pública, três caveirões, um helicóptero e dezenas de viaturas. Entre os meses de maio e julho de 2007, 44 pessoas foram mortas e 78 feridas, durante todo o certo policial (Alvarenga Filho, 2017). E como tantos episódios semelhantes, teve pouca repercussão prática em termos de punições ou mudanças institucionais.

Por tudo isso, o complexo já seria um cenário ideal para a “aplicação” do “Modelo Medellín”. Na Colômbia, como no Rio, o anúncio das obras era acompanhado por um considerável trabalho simbólico e publicização grandiosa dos esforços de ressignificação de certos espaços a serem por elas efetivadas. De áreas isoladas pela violência, passariam, a partir do investimento em equipamentos públicos como teleféricos e bibliotecas, a integrar roteiros oficiais da cidade. No caso da Colômbia, como aqui, foram enquadradas como obras que tinham como intuito reparar grandes desigualdades históricas, mas cuja eficácia seria medida como parte de políticas mais amplas de segurança pública. É isso que demonstra, por exemplo, a descrição das estações presente no website do arquiteto Jauregui, como uma obra monumental vista do hall de embarque do aeroporto internacional do Galeão, equiparada à Igreja da Penha e ao Cristo Redentor na paisagem do Rio de Janeiro.

Hoje, logo que o visitante chega à cidade através do aeroporto internacional do Galeão, ou enquanto espera no hall da sala de embarque para deixar a cidade, já percebe claramente quatro estações do teleférico que aparecem na paisagem, “colocando no mapa”, literalmente, o Complexo do Alemão, antes estigmatizado e “invisível” para o cidadão comum e agora associado a uma nova condição de cidadania, passando de área de exclusão para área de visitação. O fato das estações aparecerem no mesmo campo visual junto da Igreja da Penha e o Cristo Redentor, constitui um fato relevante. E por estarem próximas da Igreja pode se perceber claramente a “função simbólica” dela no sentido da “elevação vertical” através das suas duas torres (vistas como duas agulhas) em contraste com os tetos brancos horizontais das estações que remetem à condição terrena da comunicação humana. Assim, além de “localizar” o Complexo no território da cidade, as estações fazem alusão, por contraponto com a Igreja, a esse sentido “comunicacional” das estações” (Fonte: <http://www.jauregui.arq.br/teleferico.html#port>).

A construção do teleférico foi apenas uma das obras do PAC no complexo, que incluíram a construção de escolas e equipamentos públicos, projetos de bibliotecas e o alargamento de ruas. Não por acaso, uma das obras mais visíveis no nível mais baixo do complexo, ainda na cidade “formal”, na estrada do Itararé, veio a ser a Escola Estadual Tim Lopes, de ensino médio, cujo nome é escrito em letras garrafais, e cuja homenagem foi profundamente questionada por diversos moradores em pesquisas por uma de nós acompanhadas, realizadas na época da instalação da UPP no Alemão. Os mesmos moradores e grupos que prirorizavam em suas demandas obras de saneamento, não de mobilidade.

A INAUGURAÇÃO E O COMEÇO DO FIM

No dia 7 de julho de 2011, diante de um grande cartaz com o slogan “Cidadania em Alta”, ocorreu a cerimônia de inauguração do teleférico, em frente à estação, no morro do Adeus. No palanque, ministros, secretários, deputados, prefeito, governador, presidenta, representantes das forças armadas e da polícia militar. Após a apresentação de um vídeo institucional dedicado a apresentar o teleférico, o então prefeito Eduardo Paes pegou o microfone. Paes foi elogioso aos esforços do então governador Sérgio Cabral, do secretário de obras da época, Pezão, e da presidenta Dilma Rousseff na realização das obras – os últimos, na fala seguinte de Cabral foram considerados, respectivamente, o pai e a mãe do PAC. Dirigindo-se ao conjunto dos moradores do Complexo do Alemão ali presentes, o então prefeito disse que aquele era um dia marcante na história do Rio de Janeiro. Apesar de o teleférico ser uma solução de mobilidade, ele gostaria de salientar algo em outra direção. Em tom jocoso, Paes voltou-se para a presidenta Dilma para lembrá-la de um fato que talvez não soubesse: antes das obras, o morro do Adeus (e outros bairros e comunidades no entorno do complexo) eram locais “onde as pessoas não podiam entrar” e que “não pertenciam à cidade”. Referindo-se ao teleférico como a “fantástica obra da paz”, Paes cumprimentou Cabral e as obras do PAC-favelas por terem sido os artífices da devolução da “paz” aos cariocas.

Do ponto de vista do trabalho simbólico em torno da construção do teleférico como promessa de uma infraestrutura pacificadora, a inauguração constituía um momento de clímax. Apresentada como um novo começo — em que o complexo passaria de lugar temido a potencial ponto turístico na cidade —, em retrospecto, pode ser lida como o começo do fim da trajetória do teleférico, pelo menos como infraestrutura de transporte. Sua materialidade produzia uma interdição dos efeitos dos esforços discursivos que legitimaram e viabilizaram sua obra. As tarefas agora eram outras. A partir do momento da sua entrega, uma nova temporalidade passava a vigorar em sua vida social: a da manutenção de um equipamento de grande porte, importado, e incorporado à rede de transporte público da cidade. Todavia, o que importa não é tanto a análise do período de operação nos anos posteriores, e sim o aparente paradoxo da disjunção entre o desenho da institucionalidade do teleférico e o futuro projetado pela cenografia da inauguração como ponto de partida de onde é possível vislumbrar etnograficamente sua crise de manutenção como efeito de seu próprio processo de projeção. Para isso, temos que voltar à defesa de Sérgio Cabral na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ) acerca do marco regulatório que regeria os contratos públicos de operação e manutenção da infraestrutura.

No ano anterior à entrega das obras do Teleférico do Alemão, o governador editou a Lei no 5.841 de 1 de dezembro de 2010, que alterou o artigo 1º da Lei no 2869, de 18 de dezembro de 1997, que dispunha sobre o regime de contratação dos serviços metroviários e ferroviários no estado. Esta tornou o teleférico (entre outros modais, como elevadores) um serviço vinculado aos trilhos. Seis meses depois, através do Decreto nº 43.059 de 6 de julho de 2011, o governador regulamentou a contratação “em caráter experimental” do teleférico, autorizando, finalmente, a SuperVia à operação, manutenção, administração e cobrança de tarifas (social e turística), por 12 meses – prorrogáveis nos termos da lei de licitações. No mesmo ano, a Odebrecht Transportes (OTP) adquiriu o controle acionário da SuperVia. De única empreiteira capaz de cumprir os requisitos do edital de licitação das obras do teleférico, por decorrência de seu contrato de exclusividade com a Pomagolski (grupo francês responsável pela construção do Teleférico de Medellín), tornou-se proprietária da única empresa que viabilizaria a operação da infraestrutura no Rio.

Na Mensagem 50/2010, vinculada ao PL 3303/2010 proposta para a alteração da lei, Cabral apresentou a versão oficial para a defesa do projeto. De acordo com ela, estudos técnicos da administração municipal e estadual teriam mostrado a necessidade dessa engenharia institucional. O argumento era o de que o teleférico teria uma capacidade operacional restrita e não possuiria relevância isoladamente, tanto no quesito viabilidade econômica quanto pela reduzida demanda. Portanto, seria razoável do ponto de vista técnico e institucional que estes serviços fossem tornados complementares e dependentes em relação aos trilhos sob o mesmo marco legal. Segundo Cabral, seria injustificável aplicar regimes distintos a sistemas que teriam eficiência em operação conjunta. Tal modelo teria sido implementado de forma bem-sucedida em Medellín e “dada a identidade de situações, justifica-se a importação deste modelo à realidade fluminense” (Justificativa do Projeto de Lei Nº 3303/2010. Este argumento foi utilizado pelo procurador Renan Saad (preso pela Lava-Jato posteriormente) em parecer de recomendação da inexigibilidade da licitação no caso em questão. Isto seria viável, segundo o procurador, devido ao fato de que as estações do teleférico seriam interligadas aos trens, tratando-se de um “serviço pioneiro”. Vemos, portanto, que a naturalização do “Modelo Medellín” como boa prática internacional atracou no Rio também influenciando a institucionalidade, naturalizando a vinculação entre trilhos e teleférico na cidade.

Não apenas a curta duração dos contratos “em caráter experimental” do teleférico entrava em divergência com o futuro projetado, como também seu uso nos anos seguintes não atingiu nem de perto a capacidade de viagens projetada para a infraestrutura de 30 mil viagens diárias. Diferentemente de outros modais de transportes cariocas, o teleférico vivia uma situação de baixa utilização por parte dos moradores do Complexo do Alemão. Seu ápice teria sido 12 mil passageiros por dia em 2014. Em 2015, este número teria caído para apenas 9 mil por dia em média. Somado a isto, apenas 10% dos moradores eram usuários do teleférico e apenas 7 mil chegaram a se cadastrar na SuperVia para a aquisição da gratuidade (ida e volta) diária disponibilizada pelo poder público. Por outro lado, como dados comemorados da então concessionária à época sugeriram, o teleférico fora, por um curto período, um sítio turístico tão (ou mais) visitado quanto o próprio morro do Pão de Açúcar. Era claro que as receitas tarifárias projetadas para parcelas pequenas da sustentação financeira do teleférico não se realizaram, representando apenas um terço de sua capacidade total em seu período de maior utilização, e cujo fundo de operação era composto não só pela tarifa, mas, sobretudo, por um repasse mensal da Secretaria Estadual de Transportes (Setrans) à concessionária, para complementar o valor do primeiro contrato estimado em R$50 milhões. Entre 2011 e 2016, foram criados cinco aditivos emergenciais do contrato em favor da SuperVia, até a realização da licitação. Durante o curso desta pesquisa, não foi possível encontrar vestígios ou obter relatos acerca do conteúdo dos estudos de viabilidade econômico-financeira da operação ou de cálculo de demandas para o teleférico, a despeito de terem sido mencionados pelo governador nos documentos apresentados na ALERJ. O signatário do contrato da SuperVia, Júlio Lopes, em Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) na ALERJ afirmou não saber quem os havia realizado. O então secretário da Casa Civil, Régis Fichtner, também não, repassando a responsabilidade para o Gabinete do Governador.

Resta-nos em retrospecto, então, a questão: como foi plausível ao braço de operação de transportes da Odebrecht aceitar o desafio de operar o Teleférico do Alemão neste quadro experimental, a partir da aquisição da SuperVia, um ano antes da sua inauguração? Alguns eventos relativos à ruína do teleférico merecem ser contados antes que seja possível apresentarmos uma interpretação provisória para esta questão. Em setembro de 2016, um dos cabos de aço utilizados no transporte de passageiros teria sofrido um desgaste “atípico”, demandando sua troca e, por motivos de segurança, a interrupção da operação. Por ser um material produzido pela Pomagolski, o processo levaria tempo até sua importação, aquisição e troca. O que não se sabia publicamente ainda era que a Setrans estava já há alguns meses sem repassar os valores mensais previstos no contrato para cobrir os custos da operação do teleférico à SuperVia e, posteriormente, também ao novo consórcio que havia saído vencedor da licitação, a Rio Teleférico (também concessionária do Teleférico da Providência). Com este último, a dívida do governo do Estado chegou à R$43 milhões. Esta havia assumido a infraestrutura em março de 2016. Entre o início do fim do repasse governamental (abril) e a sua desativação “provisória” (outubro), como anunciado, três eventos importantes cantaram o começo do seu fim: a realização da licitação e não continuidade da operação pela SuperVia em março; o fim dos Jogos Olímpicos em 21 de agosto; e a prisão do governador Sérgio Cabral pela Operação Lava-Jato em 17 de novembro. Somado a isso, vivia-se também um contexto de crise fiscal aguda no estado do Rio de Janeiro. No novo arranjo, uma concessionária desvinculada dos trilhos passou a ser a responsável pela operação, o que colocava em xeque a própria proposta defendida pelo governador da viabilidade da infraestrutura pela vinculação entre trilhos e teleférico.

A história aqui contada pode ser tomada como um indicativo do lugar da temporalidade da exploração econômica do teleférico no projeto mais amplo que o viabilizou. Nos termos de Marques (2016)MARQUES, Eduardo. (2016), “De volta aos capitais para melhor entender as políticas urbanas”. Novos Estudos Cebrap, vol. 35, n. 2, pp. 15-33., vemos um arranjo onde há disponibilização de fundos públicos para o lucro de tipo industrial na construção civil, associado à produção de uma mercadoria fixa no espaço e construída sob encomenda. Todavia, sua manutenção e operação fora acoplada a uma institucionalidade “experimental” para a acumulação via serviços urbanos (trilhos e teleférico), cujas fontes de lucratividade são as tarifas arrecadadas e parcelas do fundo público (Campos, 2019CAMPOS, Marcos. (2019), “Os ‘altos círculos’ no mercado de transportes em São Paulo”. urbe. Revista Brasileira de Gestão Urbana, vol. 11, e20170213, pp. 1-12.). Nos diferentes sentidos da obra do teleférico, sua poética e o lucro da construção civil aparecem à frente da funcionalidade e do lucro dos serviços urbanos. Então, as obras do teleférico despontam como promessa e ruína também de uma acumulação futura, inviabilizada pelo desarranjo em torno do arranjo instável que viabilizou o PAC-Favelas e não apenas da crise fiscal do estado do Rio. Evento simbolizado e materializado, sobretudo, na prisão de Sérgio Cabral e no fim dos Jogos Olímpicos. As antecipações e aspirações dos atores governamentais e privados envolvidos com as obras diziam respeito também à temporalidade alargada de aquisição do fundo público num futuro próximo numa lógica cíclica da construção civil rompida. Formulado a partir desta perspectiva, no caso do paradoxo da institucionalidade do teleférico, depreende-se a hipótese de que a sua manutenção como infraestrutura de transportes dependia muito mais da circulação de concreto, e não de passageiros2 2 . Para que não deixemos de ao menos mencionar a questão da operação, a SuperVia, posteriormente, foi acusada de superfaturamento dos custos de operação, o que incluía sobrepreço e “supersalários”. O processo ainda corre no Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, algo que merece outro estudo e não é o alvo do presente texto. .

Essas considerações apontam para uma possível contribuição, que ainda demanda maiores reflexões, ao debate, retomado por Marques (2016)MARQUES, Eduardo. (2016), “De volta aos capitais para melhor entender as políticas urbanas”. Novos Estudos Cebrap, vol. 35, n. 2, pp. 15-33., relativo aos capitais do urbano. Se, por um lado, a separação analítica das lógicas de formações históricas e economias políticas urbanas particulares nos ajuda a analisar as especificidades de lógicas de acumulação, estratégias de poder e particularidades de setores de políticas distintos, por outro lado, o caso aqui analisado apresenta, ao menos, dois pontos que merecem maior atenção. Primeiro, a viabilização do teleférico parece estar associada ao acoplamento assimétrico de duas lógicas de acumulação, da construção civil e dos serviços urbanos, num mesmo processo de construção e manutenção de infraestruturas, que vigorou por um breve momento, mas que agora se vê desarticulado. Segundo, o caso do teleférico salienta a importância da dimensão das temporalidades e da construção simbólica de narrativas de inclusão nessas economias políticas. Com isso, chamamos atenção não propriamente para o componente temporal da acumulação, tal como construído no modelo dos capitais do urbano, e sim para a dimensão simbólica e processual das temporalidades conflitantes e em articulação tecidas pelo trabalho de projeção, construção e manutenção de infraestruturas aqui descrito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Quase quatro anos após a desativação do teleférico, parece de fato mais surpreendente que ele tenha sido construído do que ele tenha sido suspenso ou abandonado. O que esperamos ter realizado de modo experimental e exploratório neste texto é apontar para algumas possibilidades interpretativas do teleférico (pensado aqui como um caso particular de infraestrutura) como uma perspectiva a partir da qual é possível apreender os modos pelos quais a cidade se reproduz no cotidiano, por meio de práticas e arranjos que envolvem o governo de coisas e pessoas.

Com relação à perspectiva de etnografar infraestruturas, é certo que ainda há muito a ser explorado a partir do caso do teleférico e das obras do PAC no Complexo do Alemão. Optamos neste artigo apenas por uma dessas possibilidades, desdobrando este caso a partir da análise das temporalidades das infraestruturas. Empiricamente, ainda há muito a se investigar: das práticas de lobby das empresas construtoras de teleférico a uma reflexão mais detida sobre os trânsitos de ideias, técnicos, burocratas e ativistas entre o Rio e Medellín, passando por uma pesquisa mais aprofundada também em torno da manutenção cotidiana do teleférico enquanto ele operava e, mesmo, da experiência vivida da infraestrutura. Durante as obras, uma expectativa futura de inflexão nas relações entre poder público e moradores desmoronou, aparentando uma atualização do passado no presente, cujos impactos futuros possíveis sobre futuros programas e projetos de urbanização de favelas irão demandar maiores análises. Uma análise mais detida em torno do Teleférico da Providência também se impõe. Construído sob os auspícios da prefeitura de Eduardo Paes, integrado ao projeto Porto Maravilha, o caso da Providência revela aspectos complementares da conjuntura da política urbana no Rio de Janeiro na virada dos anos 2000 para a década de 2010.

Uma dimensão do futuro em ruínas representado pelo teleférico e seu fracasso assinala — dentro do contexto mais amplo da crise do Rio de Janeiro — para o total abandono de programas de urbanização de favelas nos últimos anos. No âmbito do município, em 2019 a gestão Crivella anunciou obras “de fachada” na Rocinha, mas não se tem notícias de projetos mais amplos anunciados. No âmbito do governo do Estado, a política “de segurança” tem sido a prioridade da gestão Witzel, executada na forma da intensificação das incursões policiais — que nunca foram tão letais quanto em 2019-2020. Segundo a Rede dos Observatórios de Segurança Pública, instituída em 2019, o resultado dessas políticas tem sido o crescimento do número de pessoas mortas por essas forças, que deveriam ter como missão a proteção da população. Segundo monitoramento realizado pela rede, entre junho e outubro de 2019 houve um aumento de 36% no número de operações policiais com relação ao ano anterior, em que havia uma intervenção militar em curso. Também no mesmo período de 2019 — ano em que, na capital e na grande Niterói, cerca de 40% das mortes violentas foram causadas por ação policial entre janeiro e junho — a letalidade das ações policiais também teve um aumento de 56%, sendo que 49% dessas ações resultaram em vítimas (fatais ou não).

Uma das novidades da política de segurança do governo Witzel com relação às que a antecederam foi a intensificação do uso de helicópteros nas operações, agora utilizados como plataforma de tiro pela polícia. A visão do alto, o olho solar ou de Deus, parece ter substituído o urbanista autoritário e todo-poderoso de De Certeau e Mayol (1998)DE CERTEAU, Michel; MAYOL, Pierre. (1998), The Practice of Everyday Life: Living and cooking. Volume 2. Minneapolis, University of Minnesota Press. pela mira do fuzil de um estado para o qual o extermínio de uma parcela de sua população faz parte do governo cotidiano da vida e das coisas.

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NOTAS

  • 1
    . O esboço inicial do artigo contou com a interlocução fundamental com Alan Brum Pinheiro, do Insti-tuto Raízes em Movimento. Uma primeira versão deste texto foi apresentada no GT Sobre Periferias da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs) em 2019. Gostaríamos de agradecer os valiosos comentários de Patrícia Birman, Cibele Rizek, Gabriel Feltran, Marcia Leite, Carly Machado e Taniele Rui. Além disso, gostaríamos de agradecer também à leitura atenta de pesquisadores dos grupos Casa e Urbano, em especial, Camila Pierobon, Marcella Araújo, Eugênia Motta, Júlia O’Donnell, Ana Clara Chequetti, Diego Francisco e Rodrigo Agueda. A pesquisa para este artigo foi financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), por meio da concessão de bolsa de produtividade em pesquisa, e pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj), com a bolsa Jovem Cientista do Nosso Estado.
  • 2
    . Para que não deixemos de ao menos mencionar a questão da operação, a SuperVia, posteriormente, foi acusada de superfaturamento dos custos de operação, o que incluía sobrepreço e “supersalários”. O processo ainda corre no Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro, algo que merece outro estudo e não é o alvo do presente texto.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Mar 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    3 Jul 2020
  • Revisado
    13 Out 2020
  • Aceito
    14 Out 2020
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