Acessibilidade / Reportar erro

Roger Bastide e Sérgio Milliet: sociólogos, críticos e humanistas

Roger Bastide and Sérgio Milliet: sociologists, critics and humanists

RESUMO

O texto trata dos cruzamentos entre as obras de Sérgio Milliet, o crítico de arte paulistano e integrante do grupo de intelectuais modernistas, e Roger Bastide, docente integrante da Missão Francesa de professores da USP, catedrático em Sociologia. O texto identifica e analisa cruzamentos entre as obras de ambos, além de textos de jornais e artigos de circunstância. Os cruzamentos deixam entrever as concordâncias, discordâncias e abordagens diversas dos dois escritores, tanto no papel de intelectuais e sociólogos, como na crítica literária e na crítica de arte, assim como as visões sobre a brasilidade.

PALAVRAS - CHAVE
Brasilidade; literatura; arte; crítica

ABSTRACT

The text deals with the intersections between the works of Sérgio Milliet, the São Paulo art critic and member of the group of modernist intellectuals, and Roger Bastide, a member of the French Mission of Professors of USP, professor in Sociology. The text identifies and analyzes crosses between the works of both, besides texts of newspapers and articles of circumstance. The crosses reveal the concordances, disagreements and different approaches of the two intellectuals, both in their role as intellectuals and sociologists, as in literary criticism and art criticism, as well as visions about the Brazilian culture.

KEYWORDS
Brasility; literature; art; criticism

Ao chegar a São Paulo no início de março de 1938, Roger Bastide encontrou, em meio à efervescência cultural da cidade, um grupo de intelectuais atuantes, ao qual procurou integrar-se desde o primeiro momento. O encontro com Sérgio Milliet deu-se logo nos primeiros dias de estada na nova cidade, por intermédio de Paulo Duarte, cunhado de Sérgio Milliet, que promovia almoços periódicos para o grupo de intelectuais paulistanos no Hotel Términus. Ao longo da estada do mestre francês no Brasil, é possível traçar um diálogo intenso entre Milliet e Bastide por meio dos textos publicados por ambos em jornais, revistas e também textos de circunstância.

Sérgio Milliet formou-se em Ciências Econômicas e Sociais em Genebra, no início da década de 1920. No entanto, seus trabalhos propriamente sociológicos se limitaram ao período em que integrou a equipe de Mário de Andrade no Departamento de Cultura do Município de São Paulo, durante os anos de 1934 a 1938. Sérgio Milliet dedicou-se ao mundo das artes como crítico, diretor da Biblioteca Municipal de São Paulo, entre outras atividades ligadas ao tema. Roger Bastide, formado em Filosofia pela Universidade de Bordeaux em 1920, também publicava críticas literárias e de arte, sendo as literárias mais frequentes.

Certa vez, Roger Bastide declarou que, embora tivesse sido muito bem recebido pelos intelectuais quando chegou a São Paulo, era notório um clima de desconfiança em relação aos professores estrangeiros que vinham lecionar na então Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras (FFCL). Bastide (1987, p. 187)_____. Entrevista com Roger Bastide. Realizada em São Paulo, a 18/8/1973, por Irene Cardoso. Discurso, n. 16, 1987, p. 181-197. observou que a razão da desconfiança estava no fato de que todos eram muito nacionalistas. A desconfiança em relação ao mestre francês pode ser notada a partir dos comentários que Milliet fez sobre os trabalhos do mestre francês. Bastide conquistou a confiança e a simpatia de Milliet ao longo do tempo. Se em um primeiro momento Milliet (1981c, p. 166)_____. Diário crítico de Sérgio Milliet. v. IV. São Paulo: Edusp, 1981c. enxergava Bastide como outros pesquisadores estrangeiros “tediosos e nostálgicos” de sua terra natal. À medida que escreveu e comentou sobre a obra de Bastide, demonstrou reconhecimento pelo seu sentimento de amizade e seu esforço de simpatia em relação ao Brasil.

Assim como Bastide, Sérgio Milliet também era professor, com uma atuação mais acentuada na Escola Paulista de Sociologia e Política, onde ocupava cargos na administração da instituição e realizava conferências sobre arte e sociologia com frequência. Ambos eram críticos de arte e literatura, sendo que, em se tratando de Bastide, a crítica de arte era menos frequente. Sérgio Milliet usava sua coluna no jornal Diário de Notícias para comentar a vida cultural paulistana em suas variadas vertentes e a usava também para denunciar as desigualdades, em especial o preconceito de cor, a politização da cultura popular brasileira e outras mazelas da época. Bastide também se utilizava de sua coluna, entre outras coisas, para fortalecer as ligações entre a sua terra natal, a França, com o Brasil. Se por um lado, em 1955, a atuação de Bastide junto às entidades de apoio à população negra paulistana lhe rendeu o convite para participar do inquérito promovido pela Organização das Nações Unidas (ONU) sobre o preconceito de cor em São Paulo, nesse mesmo ano, Sérgio Milliet recebeu o título de Especialista em Atividades Culturais concedido pela mesma instituição. Roger Bastide não pôde assumir o trabalho de retratar a situação do negro em São Paulo sozinho. Àquela altura já se dividia entre compromissos acadêmicos em Paris e os compromissos com a FFCL. Dessa forma, dividiu o trabalho com seu futuro sucessor na cátedra de Sociologia, Florestan Fernandes. Juntos publicaram o livro Relações raciais entre brancos e negros em São Paulo. Já Milliet ironizou o título de “especialista”, dizendo que tinha o costume de “meter o nariz” em terrenos alheios e que dali por diante poderia fazê-lo se valendo do título de especialista concedido pela ONU, evitando, assim, cair no ridículo (MILLIET, 1981f_____. Diário crítico de Sérgio Milliet. v. X. São Paulo: Edusp, 1981f., p. 34).

Este texto pretende analisar os contatos e distanciamentos desses dois intelectuais localizando-os tanto na crítica literária, na crítica de arte, como na questão da brasilidade. Ao longo do texto ficará evidente que os pensamentos de ambos são guiados por um humanismo preocupado com a apreensão e compreensão profunda da realidade social. Bastide definia Milliet como um humanista, da mesma forma que Milliet também destacava o humanismo de Bastide em diversas oportunidades, como veremos a seguir.

Dois sociólogos

Tanto a ciência como a arte estiveram presentes em vários momentos na relação de amizade dos dois intelectuais. Nos comentários que fez sobre os trabalhos sociológicos de Milliet, Bastide (1972, p. 32)_____. Histoire d’un amour déçu. Boletim Bibliográfico, n. XXXI Edição Especial, 1972, p. 31-36. escrevia que o sociólogo brasileiro sabia colocar sua intuição de poeta descobridor no coração de sua lógica mais rigorosa para alcançar o escondido no que estava aparente e desmistificar o real, derrubando edifícios de ilusão. Mais adiante no texto, o sociólogo francês escreve que a sociologia foi para Milliet como uma escola de iniciação, o que fez com que passasse da revolta sentimental à maturidade intelectual, concluindo: “se o retorno à crítica literária e artística o salvou da esterilidade da ciência analítica, seu contato com a ciência lhe ensinou a arte da desmistificação através da descoberta do oculto” (BASTIDE, 1972_____. Méditations brésiliennes sur um marché de São Paulo. Revista Dom Casmurro, 2/6/1938b. Disponível em: <https://projetobrasilfranca.wordpress.com/2010/07/29/meditations-bresiliennes-sur-un-marche-de-sao-paulo-roger-bastide>. Acesso em: 24 out. 2018.
https://projetobrasilfranca.wordpress.co...
, p. 34). Sérgio Milliet havia descrito seu percurso da ciência para a arte em um artigo que publicou em sua coluna no jornal Diário de Notícias, quando descreveu os desalentos com a Primeira Guerra Mundial, período vivido em companhia de seus amigos europeus, e a escolha difícil entre Gide e Marx, tendo ele decidido adotar este último e, desiludido com a “aventura comunista”, entregou-se aos estudos sociológicos. No entanto, foi nas artes que evitou a esterilidade:

Aos poucos fui descobrir nessa “ciência” um vazio relativista perigoso, uma satisfação um pouco infantil ante a desmontagem minuciosa e por assim dizer gratuita do “fato social”, uma incrível incapacidade psicológica e a ausência total de uma ética, afastada sob o pretexto de não ter a ciência nada a ver com a moral. Como se se devesse colocar em pé de igualdade a equação homem-sociedade e a equação física-matemática ou química ou química-astronomia. Felizmente, para me salvar do naufrágio na suficiência científica, tive sempre a compreensão da arte e da literatura.

(MILLIET, 1981d_____. Diário crítico de Sérgio Milliet. v. V. São Paulo: Edusp, 1981d., p. 238).

Talvez, mesmo que no sentido inverso, a busca pela compreensão da sociedade a partir da arte e da literatura tenha salvado Roger Bastide do que Milliet (MILLIET, 1981d_____. Diário crítico de Sérgio Milliet. v. V. São Paulo: Edusp, 1981d., p. 238) chamou de “esterilidade científica”. No discurso que Milliet proferiu na cerimônia de outorga do título de honoris causa a Bastide, o crítico destacou a importância do pensamento humanista do mestre francês que “injeta o oxigênio de interpretação filosófica na aridez do sociologismo objetivo. Porque repõe o homem em seu lugar acima da máquina e da estatística [...]. Porque nos enriquece em um momento em que nos vemos arriscados à prisão pelos dilemas suicidas” (MILLIET, 1981e_____. Diário crítico de Sérgio Milliet. v. VIII. São Paulo: Edusp, 1981e., p. 115).

Analisando as declarações de Bastide e de Milliet, é possível encontrar uma sinergia em torno do pensamento sociológico de ambos. Enquanto o sociólogo francês diz que o brasileiro soube “colocar sua intuição de poeta no coração de sua lógica” (BASTIDE, 1972_____. Histoire d’un amour déçu. Boletim Bibliográfico, n. XXXI Edição Especial, 1972, p. 31-36., p. 32), evidenciando aí um viés humanista na interpretação dos fatos sociológicos do crítico, Milliet destaca o humanismo do mestre francês na análise sociológica ao destacar a interpretação filosófica de Bastide em meio à aridez do sociologismo e à recondução do homem acima da máquina e da estatística.

A obra sociológica de Milliet reteve a atenção de Bastide desde os primeiros momentos no Brasil. No ano seguinte à sua chegada, em 1938, publicou três textos na Revue Internationale de Sociologie. Em um desses artigos, Bastide analisou um trabalho sociológico de Milliet e ressaltou a qualidade das análises do crítico. Mais tarde, teceu elogios ao livro publicado por Sérgio Milliet em 1938_____. De ontem, de hoje, de sempre. v. 2. São Paulo: Ed. Martins, 1962., Roteiros do café, elevando essa obra a um dos livros clássicos sobre o Brasil daquela época. Em um texto em homenagem a Milliet, o mestre francês lamenta que ele tenha abandonado os estudos sociológicos para dedicar-se à sua paixão pela arte e pela literatura. Reconheceu a precisão e a objetividade científica como qualidades nos estudos de Milliet, que, segundo Bastide, poderiam tê-lo levado à condição de “Gilberto Freyre do sul do Brasil” (BASTIDE, 1972_____. Poesia afro-brasileira. Ed. Livraria Marins, 1943., p. 32) ou o contra-Freyre do Brasil. Isso porque, de acordo com Mota (1996, p. 8)MOTA, Carlos Guilherme. Apresentação. In: CAMPOS, Regina. Ceticismo e responsabilidade: Gide e Montaigne na obra crítica de Sérgio Milliet. São Paulo: Annablume, 1996, p. 7-13, “Milliet tinha um olhar mais moderno e menos tropical sobre nossas coisas, um antídoto ao lusotropicalismo de Freyre”.

Sérgio Milliet também estava atento à produção sociológica de Bastide. Atributos como clareza e precisão dos conceitos são constantes nas análises de Milliet sobre as obras de Bastide. Milliet (1981e, p. 114)_____. Diário crítico de Sérgio Milliet. v. VIII. São Paulo: Edusp, 1981e. destacou a importância dos estudos publicados pelo mestre francês como “importantes novidades do ponto de vista crítico e penetração da análise”. Em seguida, destacou o excesso de benevolência nos trabalhos de Bastide sobre o Brasil, explicada tão somente pelo excesso de amizade do mestre francês para com o povo brasileiro.

A compreensão da cultura brasileira impôs desafios à “mentalidade cartesiana”2 2 Conforme ele mesmo se auto definiu na apresentação de sua obra Estudos afro-brasileiros (BASTIDE, 1983), publicada em português em 1983 pela Editora Perspectiva. do mestre francês. Em alguns momentos de sua produção crítica, Bastide escrevia textos dialógicos, os quais permitiam ao leitor entrever o processo de reflexão e de compreensão que estava atravessando até que pudesse concluir sobre o objeto ou a obra que estava analisando (AMARAL, 2010AMARAL, Glória Carneiro. Navette literária França-Brasil Tomo I. A crítica de Roger Bastide. São Paulo: Edusp, 2010., p. 244). Dentre esses textos dialógicos, Bastide publicou dois deles que tratam de mais um capítulo das suas ligações com Milliet. O primeiro texto, “A propósito da poesia como método sociológico: primeira conversa com o crítico”, foi publicado em 8 de fevereiro de 1946 no Diário de S. Paulo, dedicado a Sérgio Milliet3 3 Conforme o livro Roger Bastide, publicado em 1983 pela Editora Ática, cuja organização ficou a cargo de Maria Isaura Pereira de Queiroz e a coordenação, a cargo de Florestan Fernandes. , e o segundo, “Sobre a poesia e a expressão sociológica: segunda conversa com o crítico”, foi publicado em 22 de fevereiro de 1946 no mesmo jornal. Nos dois textos, Roger Bastide defende o uso do que chama de intuição poética como forma de apreensão da realidade sociológica. Poderíamos traduzir como sendo uma dose de humanismo na análise e interpretação sociológica o elemento que destacamos mais acima como central que ambos reconheciam e destacavam nas análises sociológicas das obras um do outro. Os textos refletem a busca do mestre francês em encontrar meios de apreensão dos significados mais profundos da diversidade cultural brasileira, mais especificamente sobre a presença de traços culturais afro-brasileiros, tema que vinha pesquisando desde 1945 e a partir do qual, mais tarde, Bastide escreveu a tese de doutoramento que apresentou em Paris na década de 1950.

No formato dialógico, o primeiro texto é divido entre “O crítico” – talvez Sérgio Milliet, uma vez que o texto foi dedicado a ele – e “Eu” – que seria Roger Bastide. No primeiro texto, “O crítico” inicia a conversa demonstrando descontentamento com os últimos livros de Bastide – uma evidente autocrítica a qual o mestre francês já havia feito em uma obra anterior, Imagens do Nordeste místico em branco e preto (BASTIDE, 1945_____. Imagens do Nordeste místico em branco e preto. Rio de Janeiro: Ed. O Cruzeiro, 1945.). Bastide, o “Eu” do diálogo, inicia a defesa da ideia de utilizar o que ele chama de intuição poética como forma de viver a experiência social. “O crítico” concorda parcialmente com os argumentos de Bastide, não sem adverti-lo de que o uso da intuição poética como forma de apreensão do social poderia ser aceitável desde que o método aparecesse apenas na etapa de preparação da pesquisa e que desapareceria no resultado final. Ao que parece, a advertência do crítico revela uma aparente mediação. Em um artigo publicado em 1943, Milliet parece discordar do uso da poética, cheia de imaginação e sensibilidade, como forma de conhecimento dos processos sociais, em especial os históricos-sociais. Afirma que para a apreensão desses processos sociais, a rota a seguir seria mesmo a da ciência (MILLIET, 1981a_____. Diário crítico de Sérgio Milliet. V. I. São Paulo: Edusp, 1981a., p. 219). No entanto, mais à frente no mesmo artigo, Milliet indica que o problema da sociologia é a importância demasiada que atribui à ideia em detrimento do esclarecimento dos fatos e a tendência de construir sistemas lógicos de explicação que se antagonizam com a não lógica da vida social. Ao final, afirma que as explicações sociológicas deveriam se submeter a uma ética e a uma política. Caso contrário, seria como a arte pela arte, para então concluir com ironia: “nesse caso, por que não jogar xadrez ou escrever poesias?” (MILLIET, 1981a_____. Diário crítico de Sérgio Milliet. V. I. São Paulo: Edusp, 1981a., p. 225).

Para Milliet, as explicações do social deveriam ser submetidas à ética e à política porque o cientista não consegue se desumanizar para atingir uma objetividade total. Essa afirmação é fundamentada nas teorias do conhecimento de Mannheim. Milliet (1981a, p. 246)_____. Diário crítico de Sérgio Milliet. V. I. São Paulo: Edusp, 1981a. adverte para a necessidade de o cientista compreender a relatividade da atitude científica para então concluir: “A imparcialidade absoluta nas ciências do homem é uma utopia, uma pretensão imodesta, pueril, que vamos abandonando na medida em que aumenta o nosso conhecimento das coisas sociais e o penetramos mais a fundo”. Talvez esse seja um espaço deixado por Milliet para o uso da sensibilidade (ou do que Bastide chamou de intuição poética) para a compreensão da vida social.

Ao mestre francês, interessava uma apreensão mais profunda da realidade e dos movimentos sociais, por isso se pode compreender esses dois textos como uma explicação de um método menos ortodoxo ou, quem sabe, uma justificativa de Bastide para o uso da intuição poética no processo de apreensão e análise dos objetos por ele estudados. Milliet parece mais uma vez concordar com a abordagem humanística. Em um texto publicado em sua coluna alguns anos antes, 1942, escreve:

Devemos, em verdade, cultivar com carinho essa ciência nova da sociologia, tão cheia de revelações admiráveis. Mas cabe-nos cultivá-la com o intuito de permitir soluções e teorias construtivas e não esterilmente como acadêmicos de um novo tipo, mais interessados no espetáculo dos processos que no objetivo de um fim moral. Permaneçamos humanos.

(MILLIET, 1981a_____. Diário crítico de Sérgio Milliet. V. I. São Paulo: Edusp, 1981a., p. 39).

A narrativa que deveria ser construída a partir da percepção da realidade sociológica por meio da intuição poética defendida por Bastide nos textos em análise é abordada no texto “Segunda conversa com o crítico”, que se apresenta no mesmo formato dialógico do primeiro. Bastide justifica o uso da poética como meio de expressão mais apropriado para exprimir de maneira mais fiel os elementos estéticos da vida social. Finaliza o texto concluindo que:

A sociologia é exatamente aquele edifício de relações racionais do qual o senhor falava, um conjunto de conceitos e de leis, de pesquisas causais e de definições objetivas. Mas uma linha melódica deve cercar esse conjunto para dar a impressão do que existe em toda a sociedade de vida, de harmonia, ou mesmo de notas falsas, enfim, de vida criadora, de sua organização em movimento, de seu equilíbrio no decorrer dos tempos.

(BASTIDE, 1983_____. Estudos afro-brasileiros. São Paulo: Perspectiva, 1983.b, p. 86-87).

Essa linha melódica de que Bastide fala no artigo foi traçada pelo mestre francês no livro Imagens do Nordeste místico em branco em preto, seu relato de viagem publicado alguns anos antes dos artigos comentados, em 1945. No texto de apresentação da obra, Bastide reconheceu a hesitação entre o lirismo4 4 Aqui Bastide se refere a uma escrita mais sentimental, lírica, que o permite transparecer no texto as impressões captadas pela sua própria sensibilidade, abandonando, mesmo que por alguns momentos apenas, a escrita objetiva, sempre requerida pelos textos científicos. e a ciência, colocando em dúvida qual dos dois havia permanecido em sua obra. A declaração não passou despercebida de Milliet (1981c, p. 166)_____. Diário crítico de Sérgio Milliet. v. IV. São Paulo: Edusp, 1981c., que logo no início do texto em que comentou a obra do mestre francês escreveu: “Essa participação inteligente e sentimental de um intelectual estrangeiro em nossa vida [...]”. Alguns parágrafos depois, Milliet parece ter apreendido essa linha melódica mencionada por Bastide. O crítico sentencia que, na hesitação inicial entre poesia e ciência, o imperativo científico venceu. Milliet (1981c, p. 167) observou que o lirismo aparecia nos textos de Bastide a cada mudança de ambiente, concluindo que foi isso “que lhe proporcionou essa sensação de ficar a cavaleiro da arte e da ciência”.

Em um primeiro momento, pode-se imaginar que Bastide tenha flertado com a irracionalidade, com “a sensação de ter ficado a cavaleiro da arte”, como disse Milliet (1981, p. 167)_____. Diário crítico de Sérgio Milliet. V. I. São Paulo: Edusp, 1981a., ao se deparar com aspectos culturais tão diversos dos seus. Alguns anos mais tarde, ao descrever as impressões dos franceses sobre o Brasil, Bastide (1957, p. 159-194)_____. L’Amérique vue par l’Europe. Anais do Congresso Internacional de Escritores e Encontros Intelectuais. São Paulo: Anhembi, 1957, p. 159-194. lembrou que o país era uma terra ainda bastante jovem, miscigenada, que soube receber as diversas culturas imigrantes e que, para o francês, se construía como um mundo novo, como uma tela em branco, ainda livre dos rigores dos séculos da civilização europeia. Esse diário de viagens foi um contato vivo com as tradições mais genuínas do interior do Brasil. Provavelmente não foi possível ao mestre francês deixar de transparecer o encanto, um certo flerte com o irracional, que ele materializou em notas líricas, em meio à aridez da linguagem científica, sempre objetiva, descritiva e analítica, construída por uma via racional, que por si só não permitiria ao mestre francês expressar os movimentos da vida, do humano em toda sociedade.

Sérgio Milliet registrou esse movimento de aprofundamento da apreensão da vida social nas páginas do seu Diário crítico. Esse registro pode ser encontrado no artigo que publicou no final de 1947, quando respondia a um leitor sobre sua passagem da abordagem marxista para a abordagem das teorias do conhecimento de Manheim (MILLIET, 1981d_____. Diário crítico de Sérgio Milliet. v. V. São Paulo: Edusp, 1981d., p. 247). Milliet fala do “imponderável humano”, um lado obscuro, que lembrava à sociologia a necessidade de considerá-lo como determinante para a compreensão das sociedades, sem que se construíssem modelos fechados, baseados em fórmulas que nem sempre traduziam realidades diversas. Essa era uma crítica bastante presente em Milliet e em Bastide acerca da sociologia.

Para Roger Bastide, a sociologia, ou, em terreno mais amplo, as ciências humanas, já que o mestre francês era essencialmente transdisciplinar, a ciência foi também um meio de investigar as interações do indivíduo com a sociedade e vice-versa. Ou, como declarou Maria Isaura Pereira de Queiroz (1983, p. 70)QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de; FERNANDES, Florestan (Org.). Roger Bastide. São Paulo: Ática, 1983.: “encontramos Bastide no vértice das diferenças, desdenhando o idêntico, pois era através das diferenças que descobriria, para além do terreno de uma sociologia religiosa e plenamente no terreno da sociologia do conhecimento, a importância e o valor das reciprocidades entre indivíduo e sociedade”. Já para Milliet, a sociologia permitiu, como escreveu Lisbeth Rebollo Gonçalves (1992, p. 149)GONÇALVES, Lisbeth Rebollo. Sérgio Milliet, crítico de arte. São Paulo: Perspectiva, 1991., “apreender os processos e circunstanciar as situações, evitar afirmações definitivas, abolir os dogmatismos, perceber claramente o papel ‘político’ do intelectual, a necessidade de seu envolvimento com uma ética”. Essa passagem pela sociologia foi para Milliet, acima de tudo, um momento de amadurecimento intelectual. A maturidade intelectual alcançada por ele por meio dos estudos sociológicos foi útil na sua atividade de crítico literário e artístico, como será visto adiante.

Sobre a crítica literária

No campo da literatura, o diálogo entre os dois pode ser acompanhado nos textos publicados por Bastide e por Milliet em jornais de São Paulo. Ao analisar a crítica literária de Sérgio Milliet, Lisbeth Rebollo Gonçalves evidencia as preocupações de Milliet em estabelecer uma conversa com seus leitores, buscando, ao longo do texto, apresentar elementos para que os leitores refletissem e chegassem a suas próprias conclusões, evitando, assim, o julgamento da obra analisada. A autora observa ainda que a forma de diário de crítica abre espaço para o relativismo, o que desobrigava Milliet a concluir, mas apenas registrar uma reflexão em processo. Dessa forma, “admitindo o relativismo dos valores, não pode estabelecer ou aceitar o julgamento como tarefa crítica. Afirma, a todo tempo, não pretender julgar, mas sim liberar sua própria expressão e a do público leitor” (GONÇALVES, 1992GONÇALVES, Lisbeth Rebollo. Sérgio Milliet, crítico de arte. São Paulo: Perspectiva, 1991., p. 131). Lisbeth Rebollo Gonçalves (1992, p. 130)GONÇALVES, Lisbeth Rebollo. Sérgio Milliet, crítico de arte. São Paulo: Perspectiva, 1991. observa , ainda, que o problema geral que Sérgio Milliet buscou enfrentar em sua crítica tinha um fundo ético: a necessidade de o homem reumanizar-se.

Outro ponto característico da crítica de Milliet era o ceticismo. Ele acreditava ser fundamental para o exercício da crítica a capacidade de penetração, de entendimento do crítico, e ser, acima de tudo, um cético. Para ele, o crítico: “Parte a procura da verdade, na melhor das hipóteses, mas o encontro de mil verdades diferentes e a compreensão delas o levam a tentar apenas a descoberta de uma verdade própria. Daí o fato de os melhores críticos serem aqueles que se contam e se exploram a si mesmos através das obras alheias” (MILLIET, 1981a_____. Diário crítico de Sérgio Milliet. V. I. São Paulo: Edusp, 1981a., p. 32). Para Milliet, a dúvida era o ponto de apoio de qualquer afirmação (GONÇALVES, 2001_____ (Org.). Sérgio Milliet 100 anos: trajetória, crítica de arte e ação cultural. São Paulo: Imprensa Oficial, 2005., p, 136).

Nas páginas do seu diário crítico, são numerosas as citações que Milliet faz de Bastide no período de 1940 até 1953. A grande maioria dessas citações são em função da temática do negro. Ao reunir esses textos é possível notar que o livro publicado por Bastide em 1943_____. (1944b). Carta sobre a crítica sociológica. O Estado S. Paulo, 25/11/1944. In: AMARAL, Glória Carneiro do (Org.). Navette literária França-Brasil. Tomo II. Textos de crítica literária de Roger Bastide. São Paulo: Edusp, 2010b, p. 399-403., Poesia afro-brasileira, produziu impactos em Milliet. Nesse livro, o autor ocupou-se de localizar os escritores negros desde o Arcadismo, passando pelo Romantismo, até o Modernismo, destacando a poesia simbolista de Cruz e Souza; o objetivo do mestre francês era investigar os traços afro-brasileiros na literatura brasileira.

Na crítica que Milliet (1981a, p. 306)_____. Diário crítico de Sérgio Milliet. V. I. São Paulo: Edusp, 1981a. publicou sobre esse livro em dezembro de 1943, destacou a penetração imparcial de Bastide, que lhe permitiu discernir os aspectos cruciais de produção artística brasileira, salientando que o mestre francês chegou a grandes sínteses e ao estabelecimento de ligações que nem sempre eram facilmente perceptíveis com obras de outras terras. Milliet destacou também que o desinteresse de Bastide nas lutas literárias brasileiras trazia a independência necessária para “discernir aspectos curiais de nossa produção, mas também chegar às grandes sínteses”. Milliet observou ainda que o interesse de Bastide era a vida social a partir do estudo do negro no Brasil sob o ponto de vista literário, o que, para Milliet, era a grande novidade que a obra trazia. O crítico fez um apreciação detida sobre os estilos literários analisados pelo mestre francês, incluindo os comentários sobre quatro estudos da obra dedicados ao poeta simbolista Cruz e Souza. Em sua crítica, Milliet elogiou tais estudos, classificando-os como magistrais, para em seguida lembrar que o Simbolismo, estilo literário ao qual Cruz e Souza se dedicou, não alcançou destaque no cenário literário brasileiro5 5 Nesse caso, é preciso lembrar que o Simbolismo, na época de Milliet, era compreendido como um movimento estético de “exportação”. O próprio Bastide, que iria combater esse julgamento corrente na época de que o Simbolismo não encontrava homologias com as questões da época, chamou a atenção para a biografia dos principais autores simbolistas, apontando-os como militantes republicanos e abolicionistas, mas, muito prudentemente, indicou a separação entre homens e poetas, afirmando que a militância era dos homens e que por isso não aparecia na obra dos poetas – “o homem pode ser participante sem que sua poesia seja participante” (BASTIDE, 1/11/1953). . Ao final da crítica, Milliet (1981a, p. 310)_____. Diário crítico de Sérgio Milliet. V. I. São Paulo: Edusp, 1981a. classifica o estudo como “extremamente vivo, sedutor, sutil” para então concluir seus comentários acerca da obra afirmando que os negros e mulatos brasileiros deram um tom original à literatura brasileira. Desde então, Milliet recorreu à obra do mestre francês em vários momentos para embasar seus comentários críticos acerca da presença do negro na cultura brasileira.

Para além das obras de Roger Bastide sobre literatura, mas com um enfoque sociológico, há as críticas a obras literárias e sociológicas que Bastide publicou com regularidade não só na imprensa brasileira, mas também na imprensa francesa. Em uma breve análise sobre a crítica literária de Roger Bastide, não só Milliet, mas outros críticos, como Antonio Candido, alertaram o mestre francês para o aspecto indulgente dos comentários de Bastide sobre as obras que analisava. Segundo Antonio Candido, a crítica de Bastide visava muito mais à verificação do que à avaliação. Para Bastide, não importava se o texto era bom ou ruim, “é que para ele, crítico, mas sobretudo sociólogo, o texto é um feixe de significados e de sinais que, se forem válidos, justificam o interesse” (CANDIDO, 1997CANDIDO, Antonio. Prefácio. In: BASTIDE, Roger. Poetas do Brasil. São Paulo: Duas Cidades, 1997, p. 13., p. 13). Glória Carneiro do Amaral (2010, p. 244)AMARAL, Glória Carneiro. Navette literária França-Brasil Tomo I. A crítica de Roger Bastide. São Paulo: Edusp, 2010., que analisou a crítica de Bastide, acrescenta que “a perspectiva da crítica bastidiana mantém-se praticamente em uma nota só: a busca de sua especificidade”. Essa síntese justifica a constatação de que para Bastide a literatura era uma via de apreensão do meio social. A autora observa ainda que o mestre francês publicava vários artigos seguidos sobre determinado assunto para depois não voltar mais ao tema e, por fim, tal qual Lisbeth Rebollo verificou na crítica de Milliet, observa também que o tom das críticas de Bastide traz a impressão de que os textos que ele escrevia refletiam o processo de compreensão dele sobre o objeto analisado.

As obras literárias de Milliet não passaram despercebidas pelo mestre francês. O crítico foi incluído no “bouquet de poetas” do livro Poetas do Brasil escrito por Roger Bastide e publicado em 1945. Bastide (1997, p. 71-73)_____. Poetas do Brasil. São Paulo: Duas Cidades, 1997.elogia a obra, que, segundo ele, traz uma poesia feita de simplicidade, despojada de artifícios. Em 1942, Sérgio Milliet publica o romance Duas cartas no meu destino, o qual Bastide comentou no Diário de S. Paulo no ano seguinte. Bastide faz uma análise cuidadosa do livro observando que Milliet explora, por meio do personagem central do romance, a alma do intelectual para, em seguida, classificar o romance de Milliet como um romance urbano, questionando se esse não seria o tipo de romance intelectual.

A coletânea de críticas reunidas nos volumes do Diário crítico de Sérgio Milliet também foram objeto de análise de Roger Bastide. No artigo publicado no Diário de S. Paulo em agosto de 1944, Bastide ([1944a] 2010a)_____. (1944a). Diários críticos. Diário de S. Paulo, 19/8/1944. In: AMARAL, Glória Carneiro do (Org.). Navette literária França-Brasil. Tomo II. Textos de crítica literária de Roger Bastide. São Paulo: Edusp, 2010a, p. 355-358. tece comentários sobre o primeiro volume que havia sido recém-lançado, comparando o diário de Milliet com o diário de Montaigne, lembrando que ambos usaram os livros para se enriquecerem, se aprofundarem e meditarem sobre o homem de sua época. A diferença, segundo Bastide, foi que, enquanto Montaigne partiu da literatura da Antiguidade, Milliet partiu de obras de seu tempo. Conclui que, enquanto Montaigne fundou o humanismo clássico, Milliet estava elaborando o humanismo moderno. Três anos mais tarde, Bastide publicou outra crítica, dessa vez ao Diário crítico volume IV, em que analisou a crítica de Sérgio Milliet. Inicialmente enumerou tipos de crítica, porém, sem conseguir encaixar a de Milliet em algum modelo, define a crítica millietiana como um coquetel de métodos. Ao final, Bastide faz uma provocação questionando se Milliet não teria inaugurado um outro método de crítica, usando o caminho da persuasão.

No entanto, não existiram apenas elogios e admirações mútuas entre os dois. Houve críticas também. Uma delas era em torno da crítica sociológica. Bastide, em um momento de mau-humor (como ele mesmo reconheceu), alertou para a necessidade do fim da crítica sociológica, sendo criticado por Milliet (1981b, p. 282)_____. Diário crítico de Sérgio Milliet. v. II. São Paulo: Edusp, 1981b., que disse que, na ausência da crítica sociológica, o caminho seria o julgamento pela estética pura, que também era produto da sociedade. A crítica sociológica coloca em jogo não só os aspectos formais da obra, como analisa a obra e o artista a partir de uma perspectiva sociológica e histórica. Em sua resposta, Bastide viu malícia no comentário de Milliet e afirmou que seu mau-humor se justificava pelo aparecimento de pseudossociólogos que diziam se utilizar do método sociológico para fazerem suas críticas sem apresentar nenhuma análise nova sobre determinado objeto. Ao afirmar que a sociologia era uma ciência difícil, assim como o exercício da crítica, recomendou que Milliet, conhecendo ambas, deveria juntar-se a ele no protesto. Ao que foi possível apurar, a polêmica não teve outros desdobramentos.

Em texto publicado alguns anos à frente, Roger Bastide ([1953] 2010e)_____. (1953). O simbolismo brasileiro. Revista Mercure de France, 1/11/1953, In: AMARAL, Glória Carneiro do (Org.). Navette literária França-Brasil. Tomo II. Textos de crítica literária de Roger Bastide. São Paulo: Edusp, 2010e, p. 775-778. esclareceu melhor seu entendimento sobre a importância da literatura para a cultura brasileira: “A literatura não é senão um meio ou um ponto de vista através do qual o escritor julga sua época e tenta não só descobrir a ‘alma brasileira’, mas ainda dar-lhe um ideal”. No mesmo texto, afirma que a crítica literária brasileira se distingue de outros tipos de crítica literária: “O que me parece de fato caracterizar a crítica brasileira é o fato de ser ao mesmo tempo uma crítica da forma, das ideias e da sociedade” (BASTIDE, [1953] 2010e_____. (1947). Definição de uma crítica (A propósito do IV Volume do Diário crítico de Sérgio Milliet). O Estado de S. Paulo, 8/10/1947. In: AMARAL, Glória Carneiro do (Org.). Navette literária França-Brasil. Tomo II. Textos de crítica literária de Roger Bastide. São Paulo: Edusp, 2010c, p. 634-638.). Essas afirmações sobre os autores tentarem dar um ideal à cultura brasileira e os críticos procurarem sempre caracterizar e criticar não só as formas e as ideias, mas também a sociedade, dão a dimensão do peso da atividade literária e da crítica no Brasil daqueles tempos. Dão a dimensão, também, da importância que a literatura e a crítica tiveram no processo de compressão da cultura brasileira que Bastide percorreu ao longo de sua estada em São Paulo – sempre acompanhado de seu amigo Milliet.

“A Sérgio Milliet, sociólogo e crítico de arte, este pequeno livro de estética sociológica”

O “pequeno livro de estética sociológica” que Roger Bastide dedicou a Sérgio Milliet foi a transcrição de um curso de Estética Sociológica que o professor francês ministrou aos seus alunos da FFCL no início da década de 1940. Os textos escritos por Bastide em francês foram traduzidos por Gilda de Melo e Souza e publicados em 1945. O livro Arte e sociedade (BASTIDE, 1971_____. Arte e sociedade. São Paulo: Edusp, 1971.) busca investigar a existência de uma estética sociológica, procurando compreender a arte como um produto da sociedade e, por outro lado, a arte que molda a sociedade. Para isso, Bastide recorre a filósofos, críticos de arte, sociólogos e pensadores de diversas correntes europeias para levar a cabo sua investigação. Dialoga com pensadores como Dubos, Mme de Staël, Auguste Comte, Tarde, Durkheim, Ruskin, Taine, Marx, Lukács e chega a Lalo, de quem toma de empréstimo a noção de sentidos estéticos e anestéticos para seguir sua investigação.

Bastide analisa as origens das belas-artes, indo ao mundo primitivo, passando pelas diversas épocas até chegar à sua contemporânea. Localiza a arte e os movimentos sociais ao longo dos anos. Analisa também os diversos grupos sociais, as associações de classe, mulheres, crianças, jovens, idosos, burgueses, camponeses, aristocratas. Faz um panorama em certa medida detalhado desses vários elementos que compõem a sociedade e que também estão relacionados à arte. Ao final, Bastide comprova a função comunicativa da arte e conclui, dentre outras coisas, que a arte é de fato um produto da sociedade, mas, em certa medida, a arte também molda a sociedade.

Sérgio Milliet concorda com as afirmações de Bastide na crítica que publicou no Diário de Notícias da obra do mestre francês fazendo uma pequena ressalva:

A resposta à pergunta colocada no início seria que, se em suas origens a arte nada mais é do que uma expressão-comunicação, em civilizações mais chegadas à nossa, ela pode independer dos demais fatos sociais e até dar-lhes uma diretriz. É mais ou menos o que pensa o prof. Bastide ao fechar seu livro com esta frase: “se em certa medida a arte é produto da sociedade, numa larga medida a sociedade também se modela sobre a arte”. Invertendo-se os adjetivos, dizendo-se “larga” onde se diz “certa”, e vice-versa, eu faria igualmente minha essa conclusão.

(MILLIET, 1945_____. Arte e sociedade. Diário de Notícias, n. 6.894, 15 de abril de 1945. Fonte obtida no arquivo IEB/USP (Produção Intelectual de Roger Bastide).).

No texto, Milliet discute e eventualmente discorda de algumas posições assumidas pelo mestre francês ao longo de sua obra. No entanto, o faz demonstrando satisfação em discutir um assunto que, segundo ele, era tão pouco discutido por ser entendido como secundário em face a outros problemas que ocupavam as preocupações de estudiosos, sobretudo os sociólogos. Para finalizar o texto, Milliet usa a expressão “O pequeno volume de Roger Bastide”, que pode remeter à dedicatória que o mestre francês fez para ele, para então concluir: “Pois a função mais profícua do professor é ensinar a pensar. Expor com limpidez, exemplificar com dados claros e provocar a curiosidade e a dúvida a fim de forçar o aluno a penetrar efetivamente o problema proposto. É o que faz Roger Bastide em ‘Arte e Sociedade’” (MILLIET, 1945_____. Arte e sociedade. Diário de Notícias, n. 6.894, 15 de abril de 1945. Fonte obtida no arquivo IEB/USP (Produção Intelectual de Roger Bastide).).

A função social de comunicar atribuída à arte por Bastide em sua obra era uma preocupação central de Sérgio Milliet. O crítico acreditava que o caos daquele tempo refletia em uma arte igualmente caótica que havia perdido a capacidade de se comunicar com o público. A preocupação de Milliet em compreender e analisar o divórcio da arte com o público foi o tema de uma obra publicada em 1942, com o nome de “Marginalidade da pintura moderna” e republicado, junto com outros artigos sobre arte, no livro Pintura quase sempre, em 1944. Sérgio Milliet parte dos princípios de contatos culturais no espaço, desenvolvidos pela sociologia americana, para deslocar a discussão do espaço para o tempo. A partir desse deslocamento, Milliet parte da arte do Egito até o surrealismo analisando os movimentos sociais (mais ou menos homogêneos) e a produção artística desses momentos e identifica que, em períodos de transição de um período para outro, ocorre o aparecimento da arte marginal. Roger Bastide também localiza esse momento ao analisar o artista como indivíduo e como sujeito social que reage às coerções sociais e ao mesmo tempo traz os valores sociais, a educação e os elementos que qualquer indivíduo incorpora a partir da vida em sociedade.

No entanto, os propósitos de Milliet são outros. O crítico argumenta que o artista é dotado de uma sensibilidade aguçada, mais do que a de outros homens, que em momentos de transição capta as linhas gerais que nortearão os tempos vindouros, e sua arte passa a refletir essas sensações. No entanto, o público, imerso no caos da transição, nem sempre compreende essa antecipação dos novos tempos que o artista revela em suas obras e passa a rejeitar a obra e o artista, jogando-o na marginalidade. O conceito de “homem marginal” é tomado de empréstimo por Milliet de Stonequist e Robert Park (GONÇALVES, 1992GONÇALVES, Lisbeth Rebollo. Sérgio Milliet, crítico de arte. São Paulo: Perspectiva, 1991., p. 121) justamente para definir o artista que pressente os novos tempos, se desconecta dos tempos em que vive, mas apenas antevê os tempos vindouros. O caos vivido e a rejeição sofrida refletem na arte que esse artista produz. Para indicar melhor o tom e o conteúdo do texto de Milliet, na descrição do “caminho da decadência” já no século XX, ele escreve:

Que se perdeu nesse contato entre a civilização cristã moribunda e a cultura em gestação que não sabemos ainda exatamente como será? Perdemos as regras da vida, a moral, a confiança em nós, a certeza da eficiência de nossas soluções. Que veio substituir isso tudo? A consciência da contradição entre a nossa moral e a realidade do mundo, a evidência da hipocrisia da regra do jogo, o ceticismo e o cinismo. À margem das duas culturas, observando o panorama da confusão, percebendo-o, mas ao mesmo tempo incapazes de alterar a marcha do terrível processo desintegrador e integrador, os homens marginais se desligam dia a dia mais de sua sociedade. Mesmo porque essa sociedade os rejeita e a nova sociedade em formação não lhes aceita a clarividência que se recusa à fé cega numa verdade definitiva qualquer.

(MILLIET, 1944_____. Pintura quase sempre. Porto Alegre: Globo, 1944., p. 17).

Em seu texto, Milliet reproduz um artigo que havia publicado em um jornal carioca como um complemento ao seu pensamento, do qual vale a pena a reprodução parcial que sintetiza alguns dos principais argumentos de Milliet e que produzem conexões com textos sobre artes publicados por Bastide:

Arte que não seja instrumento de comunicação, arte que não possa transmitir emoções e criar estados de alma coletivos, ou, pelo menos, compartilhados por número suficiente de pessoas, não tem razão de existência. Arte pura, no sentido parnasiano de expressão, de jogo habilidoso, de quebra-cabeça, ou no sentido mais comum desde o simbolismo e o impressionismo, de expressão privilegiada, algo acima da “mêlée”, quase caráter de classe, intelectualismo, cientismo, psicologismo, senha para as elites, só tem hoje o interesse de uma anomalia brilhante, de uma aposta ousada, de um desafio à coletividade, de uma “réussite” inumana, pretensiosa, absurda.

(MILLIET, 1944_____. Pintura quase sempre. Porto Alegre: Globo, 1944., p. 154).

A transmissão de emoções e a criação de estados de alma coletivos mencionados por Milliet também foram mais bem explicadas por Bastide – que as chamou de “emoção artística” – e exemplificam o momento da comunicação do artista com o público:

Diante dum belo espetáculo, duma paisagem grandiosa, nosso gozo interior é tão intenso, que não o podemos guardar apenas para nós, temos necessidade de compartilhá-lo, de comunicá-lo aos outros, de senti-lo comum. [...] Por isso mesmo a emoção estética é criadora da solidariedade social. [...] O que é verdadeiro para a emoção estética também o é para a emoção artística, isto é, a emoção que uma obra de arte provoca em nós. Esta compõe-se de dois elementos de solidariedade: o que nos une ao artista e o que nos une aos outros seres imaginários inventados pelo este último.

(BASTIDE, 1971_____. (1949). Pintura... e muita literatura. Revista Artes Plásticas, mai./jun., 1949. In: AMARAL, Glória Carneiro do (Org.). Navette literária França-Brasil. Tomo II. Textos de crítica literária de Roger Bastide. São Paulo: Edusp, 2010d, p. 715-717., p. 17).

Durante as conferências do II Salão de Maio, em 1938, Roger Bastide (1938a)BASTIDE, Roger. Pintura mística. Revista do Arquivo Municipal, v. 1, Ano V, set. 1938a, p. 47-60. Fonte obtida no arquivo IEB/USP (Produção Intelectual de Roger Bastide). pronunciou uma conferência que chamou de “Pintura mística”. Na conferência, o mestre francês procurava demonstrar a significação metafísica da arte. Ao longo da conferência, Bastide analisou alguns movimentos estéticos do ponto de vista místico, afirmando que a obra de arte deveria comunicar por meio da expressão de unidade, traduzida pelo equilíbrio na composição geométrica e harmoniosa no emprego das cores. O que chama a atenção é que Bastide, assim como Milliet, criticou as técnicas do impressionismo:

Essa escola, com efeito, deseja apreender não a substância, mas o acidente, não o eterno, mas o instante, e o instante no que ele tem de mais fugidio, na fuga do tempo. [...] Cabe ao olho realizar a posteriori a síntese, reconstruir o conjunto com os elementos dispersos sobre a tela. É, portanto, o triunfo da multiplicidade sobre a unidade, da divisão sobre a amizade fundamental.

(BASTIDE, 1938aBASTIDE, Roger. Pintura mística. Revista do Arquivo Municipal, v. 1, Ano V, set. 1938a, p. 47-60. Fonte obtida no arquivo IEB/USP (Produção Intelectual de Roger Bastide)., p. 54).

Milliet justifica a arte pela arte dos artistas marginais e delimita o lugar do artista no cenário artístico do pós-guerra:

Mas esse período de inquietação já atingiu nesta segunda guerra mundial um clímax que exige descargas de outra ordem. As novas estruturas sociais dão naturalmente ao artista um “status” de líder, de pioneiro, quase de profeta. Quem se recusa a aceitar essa responsabilidade tende a desaparecer do palco artístico, ou pelo menos a representar nele tão apenas um papel secundário.

(MILLIET, 1944_____. Pintura quase sempre. Porto Alegre: Globo, 1944., p. 154).

As novas estruturas sociais que Milliet antevê naquele cenário da década de 1940 é o que Lisbeth Rebollo Gonçalves (1992, p. 126)GONÇALVES, Lisbeth Rebollo. Sérgio Milliet, crítico de arte. São Paulo: Perspectiva, 1991. define como a crença de Milliet em “um momento de subida para um novo clímax social – o do socialismo, de uma nova consciência moral coletiva”. Essa conclusão reflete os propósitos que norteiam a crítica em Milliet que já mencionamos mais acima, a busca por uma arte democrática e socializante.

Dentre as várias possibilidades de cruzamento possíveis a partir das obras Arte e sociedade e Marginalidade da pintura moderna, há também a discussão que se coloca pela perspectiva da comunicabilidade da arte com o povo. Bastide e Milliet identificam o que se convencionou chamar de arte acadêmica a partir do Romantismo até o surgimento do Surrealismo. Do período entre esses dois movimentos estéticos, Milliet escreve:

Depois da pausa imperial, com seu classicismo gelado e inconsciente, vem o romantismo descabelado de Delacroix com suas preocupações socializantes, sua demagogia, seu expressionismo incipiente. Nova pausa e a reação naturalística vegeta durante algum tempo apesar do gênio de Courbet. [...] As questões técnicas empolgam definitivamente o mundo artístico. O assunto desaparece da cogitação das escolas. A expressão individual apoia-se no conhecimento das últimas descobertas da ciência [...]. O grupo não mais percebe a finalidade da pintura e se desvia da boa arte [...]. O povo sente que a decadência desta arte é um fato.

(MILLIET, 1944_____. Pintura quase sempre. Porto Alegre: Globo, 1944., p. 115-116).

Para ambos, Sérgio Milliet e Roger Bastide, somente a partir do Surrealismo arte e o povo seriam reconectados. Para Milliet era o caminho para a arte socializante, para Bastide, a partir da mística da pintura, também. Ao defender a importância da crítica de arte, Bastide justificou o uso da crítica sociológica aplicada às obras de arte para evidenciar as conexões da obra com o meio social e reestabelecer o caráter comunicativo que a arte deveria ter com o grande público. Objetivo de Milliet, já evidenciado no texto, ao qual Bastide também atribuía grande importância.

Algumas palavras sobre brasilidade

Um dos primeiros artigos publicados por Roger Bastide de que se tem notícia desde sua chegada ao Brasil chama-se Méditations brésiliennes sur un marché de São Paulo, publicado em 2 de junho de 1938. Nele, Bastide descreve um passeio em um mercado municipal paulistano e argumenta que o drama brasileiro não era a mistura de raças e sim a necessidade de se livrar de tradições antigas para que o tempo pudesse agir e cristalizar a cultura brasileira, a exemplo do que ocorreu com a França, que, como lembrou Bastide, também passou por um processo de miscigenação. Esse primeiro artigo já revela a posição que o autor francês tomou desde os primeiros momentos até o final em relação à cultura brasileira. Se para muitos a diversidade cultural era um problema, uma vez que era imperioso encontrar o original da cultura brasileira, Bastide via na diversidade a originalidade da cultura brasileira.

Milliet via a questão da cultura brasileira com ceticismo. Para ele, a cultura brasileira não poderia ser enxergada como uma questão simples, a partir de um discurso político e baseada em fórmulas. A cautela do crítico em relação à questão pode ser encontrada nas páginas do seu Roteiros do café e outros ensaios, quando Milliet (1941)MILLIET, Sérgio. Roteiros do café e outros ensaios. São Paulo: Coleção Departamento de Cultura V. XXV, 1941. denuncia certo “formulismo” por parte de estudiosos da cultura brasileira que partiam do pressuposto de que a população de São Paulo e de algumas outras regiões do país, como o Sul por exemplo, era composta do português colonizador, do negro e do índio, ignorando toda uma massa de imigrantes de todas as partes do mundo que chegaram ao Brasil a partir do final do século XIX (MILLIET, 1941_____. Duas cartas no meu destino. Curitiba: Ed. Guaíra, 1941., p. 148). Para Milliet, essas generalizações que tomavam como base a “Teoria de Martius” eram um erro, pois tal fórmula não correspondia mais à realidade do Brasil e de São Paulo em particular. Aqui vale lembrar que Milliet estava olhando, especialmente para o estado de São Paulo.

Milliet discute a composição da população paulista e analisa que não há perigo de o sentimento de pertença à pátria se perder em função da mistura de sangues. Para Milliet (1941, p. 149)MILLIET, Sérgio. Roteiros do café e outros ensaios. São Paulo: Coleção Departamento de Cultura V. XXV, 1941., o “que constitui um perigo à nacionalidade não é a mistura maior ou menor de sangue estrangeiro, nem a proporção mais ínfima da influência ameríndia ou negra. É, isso sim, e em larga escala, a anarquia cultural em que vivemos”. O diagnóstico de Milliet sobre a cultura nacional coincide com as primeiras impressões que Roger Bastide registrou no texto mencionado mais acima. Ambos concordam que a diversidade brasileira não é o perigo para a cultura, mas sim o apego a determinadas tradições antigas, ligadas à ideia de superioridade da cultura europeia e um certo sentimento de indefinição sobre o que seria de fato a cultura brasileira. Para eles, esse sentimento de indefinição sobre a brasilidade e de inferioridade em relação à cultura trazida pelos imigrantes impedia que tivesse início um processo de acomodação. De um lado, os grupos de imigrantes mais resistentes à cultura brasileira e, de outro, a dificuldade dos brasileiros em aceitar a presença de outras culturas e, eventualmente, incorporar aspectos culturais desses imigrantes à cultura brasileira. Para isso, aponta Milliet, era preciso que fosse feito um trabalho cuidadoso, demorado, sem que se almejassem grandes glórias, para conhecer essas peculiaridades culturais e buscar, por meio da educação, desde a base, trabalhar questões que unissem esses aspectos culturais em torno de uma cultura brasileira que incluísse esses grupos e que se tornasse algo de que eles pudessem se sentir orgulhosos e pertencentes (MILLIET, 1941_____. Marginalidade da Pintura Moderna. São Paulo: Departamento de Cultura, 1941., p. 149), assim como todos os brasileiros.

Já no final do texto, Milliet critica a obra de Gilberto Freyre Casa grande & senzala, publicada alguns anos antes e que teve grande repercussão na época. Para Milliet, Freyre construiu, a partir da mistura das três raças defendida pela teoria de Martius o modelo ideal da nacionalidade. Milliet adverte que a mistura do índio, do colonizador português e do negro pode ter criado uma fórmula que funcionou bem no nordeste brasileiro, mas que não refletia a população do restante do país. Com isso, Milliet (1941, p. 150)MILLIET, Sérgio. Roteiros do café e outros ensaios. São Paulo: Coleção Departamento de Cultura V. XXV, 1941. conclui: “O conhecimento da realidade é que nos mostrará os remédios para os enquistamentos e os caminhos da nacionalização eficiente do país”. A crítica do sociólogo brasileiro aos métodos analíticos muito generalizados de Freyre justifica a razão pela qual Bastide chamou Milliet de o “contra-Freyre” do Brasil.

Enquanto esteve no Brasil, Bastide dedicou-se incansavelmente a compreender a cultura brasileira – e sem dúvidas integrar o grupo que pesquisou a cultura nacional, como solicitou Milliet –, usou a perspectiva histórica e transitou entre domínios variados como a sociologia, a antropologia, a psicologia e tudo o que pudesse lhe oferecer ferramentas de compreensão e análise para entender a cultura popular, a arquitetura barroca, a literatura, a arte e tantos outros aspectos culturais e sociais do Brasil, tornando-se, assim, um importante intérprete da cultura nacional. Em sua interpretação da cultura brasileira, Roger Bastide compreendeu essas ambiguidades temporais e espaciais, tão discutidas desde os sertanistas do início do século XX, como elementos antagônicos que se acomodavam na diversidade brasileira. Identificou que a cultura brasileira é construída a partir de uma série de justaposições – ambiguidades temporais e espaciais que coexistem sem grandes mediações, apenas coexistindo. Justaposição de tempos históricos, em que o passado se mistura ao presente traduzidos pelas contradições entre as grandes cidades, com seus arranha-céus, e o sossego das cidades do interior, com seus costumes preservados. Bastide lembra que a cultura brasileira harmoniza elementos antagônicos e faz dos contrastes aquilo de mais original que se tem no Brasil.

Os contrastes não estão somente na justaposição dos tempos, mas também na divisão do que Bastide (1979, p. 11)_____. Brasil, terra de contrastes. São Paulo: Difel, 1979. chamou de “dois Brasis”, duas formas de tomar posse da terra. No passado, o norte dos engenhos de cana-de-açúcar, o sul da aventura bandeirante e, depois, o norte representavam, para Bastide, o Brasil arcaico, e o sul, o Brasil moderno. Bastide observou que os deslocamentos de populações de uma região do Brasil para outra ao longo da história misturaram as culturas locais, confundiram os gêneros de vida, embaralharam as cores e impediram que movimentos separatistas tivessem êxito. Observou também que os antagonismos se reconciliavam na sexualidade, na cozinha, e que o preconceito contra o negro e contra o estrangeiro ocorria especialmente em São Paulo, para então concluir: “Existem forças de antagonismo no interior das forças de adaptação, de acomodação, de assimilação, do mesmo modo que as forças de acomodação existem no interior das forças em conflito e no jogo dos contrastes” (BASTIDE, 1979_____. A propósito da poesia como método sociológico. Primeira conversa com o crítico. In: QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de (Org.). Roger Bastide. São Paulo: Ática, 1983a, p. 81-84., p. 15). Essa visão de Bastide sobre a cultura brasileira se constrói, também, apoiada na sua condição de europeu, que, acostumado aos códigos de civilidade construídos em séculos de civilização, sempre viu no “Novo Mundo” a possibilidade de construir culturas forjadas na diversidade mais livres de rigores civilizatórios, ricas em contrates e, talvez, de espíritos mais tolerantes formados em uma cultura de contrastes.

Sob aspectos diferentes, Milliet e Bastide enxergam a diversidade brasileira como um tema central. Milliet apontou a necessidade de mais pesquisas e alertou para a necessidade de ações que conciliassem as diferenças em torno de uma ideia de pertença de todos os diferentes grupos de imigrantes e de brasileiros. Bastide olhou para as camadas culturais justapostas, apesar das forças de conversão e de antagonismo que surgiam no interior dos movimentos sociais e apesar dos conflitos. Para Bastide, essas camadas simplesmente coexistiam, até que passassem por um processo de cristalização que acomodaria, enfim, as diferenças.

Algumas considerações...

O percurso do texto, que reflete os cruzamentos entre o pensamento de Roger Bastide e de Sérgio Milliet, revela algo além das preocupações dos dois intelectuais. Os propósitos de ambos são distintos. Se Milliet se utilizava da sociologia como um meio de análise para elaboração de suas críticas, Bastide usava a crítica literária como fonte de apreensão do meio social para seus estudos sociológicos. Apesar das diferenças de finalidades, a literatura e a pintura como expressões de arte e a sociologia como ciência foram elementos que aproximaram os dois intelectuais. Sérgio Milliet era um crítico de arte, sociólogo também, mas a sociologia em Milliet era como uma passagem, um amadurecimento intelectual do crítico de arte tão atuante e influente no seu tempo. Bastide era cientista, docente. A crítica era uma ferramenta de compreensão do meio social da qual ele lançava mão para compreender a contrastante cultura brasileira, da qual se tornou um importante intérprete.

Os cruzamentos mais gerais encontrados ao longo do texto se deparam com questões como a preocupação com ética, com a moral, a crítica ao formulismo, ao slogan simplificador de fenômenos que, na opinião de ambos, mereciam ser compreendidos e não explicados mediante fórmulas. A compreensão não viria apenas por meio do conhecimento árido, exato. A compreensão deveria vir de outros aspectos como a estética e a ética. Ambos reconheciam na subjetividade uma ferramenta de compreensão do meio social, e a relatividade diferenciava fenômenos que inicialmente eram tratados como análogos.

Bastide regredia no tempo para compreender os fenômenos da brasilidade. O mestre francês enxergou a cultura brasileira nas suas diversas camadas, procurando os cruzamentos e as justaposições de diversas culturas, em especial a afro-brasileira, inscrita na brasilidade. Milliet deixou nos volumes do seu Diário crítico, uma fonte rica acerca dos fatos ocorridos no calor da hora, acompanhados de análises céticas e responsáveis, de quem propunha a reflexão e não oferecia o juízo. Os Diários são a grande obra de Milliet, uma obra escrita aos poucos, em cada texto publicado a cada dia no jornal. Uma fonte importante para qualquer pesquisador que queira compreender aqueles tempos. A originalidade e o legado de cada um dos dois intelectuais estão, enfim, na maneira como Bastide e Milliet responderam aos dilemas daquela época e estão registrados na (vasta) produção intelectual de cada um, da qual ficou registrada neste texto apenas uma pequena parte.

  • 2
    Conforme ele mesmo se auto definiu na apresentação de sua obra Estudos afro-brasileiros (BASTIDE, 1983_____. Segunda conversa com o crítico. In: QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de (Org.). Roger Bastide. São Paulo: Ática, 1983b, p. 84-87.), publicada em português em 1983 pela Editora Perspectiva.
  • 3
    Conforme o livro Roger Bastide, publicado em 1983 pela Editora Ática, cuja organização ficou a cargo de Maria Isaura Pereira de Queiroz e a coordenação, a cargo de Florestan Fernandes.
  • 4
    Aqui Bastide se refere a uma escrita mais sentimental, lírica, que o permite transparecer no texto as impressões captadas pela sua própria sensibilidade, abandonando, mesmo que por alguns momentos apenas, a escrita objetiva, sempre requerida pelos textos científicos.
  • 5
    Nesse caso, é preciso lembrar que o Simbolismo, na época de Milliet, era compreendido como um movimento estético de “exportação”. O próprio Bastide, que iria combater esse julgamento corrente na época de que o Simbolismo não encontrava homologias com as questões da época, chamou a atenção para a biografia dos principais autores simbolistas, apontando-os como militantes republicanos e abolicionistas, mas, muito prudentemente, indicou a separação entre homens e poetas, afirmando que a militância era dos homens e que por isso não aparecia na obra dos poetas – “o homem pode ser participante sem que sua poesia seja participante” (BASTIDE, 1/11/1953_____; FERNANDES, Florestan. Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo. São Paulo: Anhembi, 1955.).
  • Este trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) – Código de Financiamento 001.
  • GONSALES, Patricia Cecilia. Roger Bastide e Sérgio Milliet: sociólogos, críticos e humanistas. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 76, p. 201-219, ago. 2020.

Referências

  • A UNIVERSIDADE de São Paulo conferiu ao prof. Roger Bastide o título de honoris causa. Diário de S. Paulo, 13/11/1951. Fonte obtida no arquivo IEB/USP (Produção Intelectual de Roger Bastide).
  • AMARAL, Glória Carneiro. Navette literária França-Brasil Tomo I A crítica de Roger Bastide. São Paulo: Edusp, 2010.
  • ATIK, Maria Luiza Guarnieri. Navette literária Brasil-França – a crítica de Roger Bastide. Bakhtiniana, Rev. Estud. Discurso, São Paulo , v. 6, n. 1, dez. 2011 p. 281-284. https://doi.org/10.1590/S2176-45732011000200017.
    » https://doi.org/10.1590/S2176-45732011000200017
  • BASTIDE, Roger. Pintura mística. Revista do Arquivo Municipal, v. 1, Ano V, set. 1938a, p. 47-60. Fonte obtida no arquivo IEB/USP (Produção Intelectual de Roger Bastide).
  • _____. Méditations brésiliennes sur um marché de São Paulo. Revista Dom Casmurro, 2/6/1938b. Disponível em: <https://projetobrasilfranca.wordpress.com/2010/07/29/meditations-bresiliennes-sur-un-marche-de-sao-paulo-roger-bastide>. Acesso em: 24 out. 2018.
    » https://projetobrasilfranca.wordpress.com/2010/07/29/meditations-bresiliennes-sur-un-marche-de-sao-paulo-roger-bastide
  • _____. Poesia afro-brasileira Ed. Livraria Marins, 1943.
  • _____. Imagens do Nordeste místico em branco e preto Rio de Janeiro: Ed. O Cruzeiro, 1945.
  • _____. L’Amérique vue par l’Europe Anais do Congresso Internacional de Escritores e Encontros Intelectuais. São Paulo: Anhembi, 1957, p. 159-194.
  • _____. (1944a). Diários críticos. Diário de S. Paulo, 19/8/1944. In: AMARAL, Glória Carneiro do (Org.). Navette literária França-Brasil Tomo II. Textos de crítica literária de Roger Bastide. São Paulo: Edusp, 2010a, p. 355-358.
  • _____. (1944b). Carta sobre a crítica sociológica. O Estado S. Paulo, 25/11/1944. In: AMARAL, Glória Carneiro do (Org.). Navette literária França-Brasil Tomo II. Textos de crítica literária de Roger Bastide. São Paulo: Edusp, 2010b, p. 399-403.
  • _____. (1947). Definição de uma crítica (A propósito do IV Volume do Diário crítico de Sérgio Milliet). O Estado de S. Paulo, 8/10/1947. In: AMARAL, Glória Carneiro do (Org.). Navette literária França-Brasil Tomo II. Textos de crítica literária de Roger Bastide. São Paulo: Edusp, 2010c, p. 634-638.
  • _____. (1949). Pintura... e muita literatura. Revista Artes Plásticas, mai./jun., 1949. In: AMARAL, Glória Carneiro do (Org.). Navette literária França-Brasil Tomo II. Textos de crítica literária de Roger Bastide. São Paulo: Edusp, 2010d, p. 715-717.
  • _____. (1953). O simbolismo brasileiro. Revista Mercure de France, 1/11/1953, In: AMARAL, Glória Carneiro do (Org.). Navette literária França-Brasil Tomo II. Textos de crítica literária de Roger Bastide. São Paulo: Edusp, 2010e, p. 775-778.
  • _____. Arte e sociedade São Paulo: Edusp, 1971.
  • _____. Histoire d’un amour déçu. Boletim Bibliográfico, n. XXXI Edição Especial, 1972, p. 31-36.
  • _____. Brasil, terra de contrastes São Paulo: Difel, 1979.
  • _____. Estudos afro-brasileiros São Paulo: Perspectiva, 1983.
  • _____. A propósito da poesia como método sociológico. Primeira conversa com o crítico. In: QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de (Org.). Roger Bastide São Paulo: Ática, 1983a, p. 81-84.
  • _____. Segunda conversa com o crítico. In: QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de (Org.). Roger Bastide São Paulo: Ática, 1983b, p. 84-87.
  • _____. Entrevista com Roger Bastide. Realizada em São Paulo, a 18/8/1973, por Irene Cardoso. Discurso, n. 16, 1987, p. 181-197.
  • _____. Poetas do Brasil São Paulo: Duas Cidades, 1997.
  • _____; FERNANDES, Florestan. Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo São Paulo: Anhembi, 1955.
  • CANDIDO, Antonio. Prefácio. In: BASTIDE, Roger. Poetas do Brasil São Paulo: Duas Cidades, 1997, p. 13.
  • GONÇALVES, Lisbeth Rebollo. Sérgio Milliet, crítico de arte São Paulo: Perspectiva, 1991.
  • _____ (Org.). Sérgio Milliet 100 anos: trajetória, crítica de arte e ação cultural. São Paulo: Imprensa Oficial, 2005.
  • MILLIET, Sérgio. Roteiros do café e outros ensaios São Paulo: Coleção Departamento de Cultura V. XXV, 1941.
  • _____. Duas cartas no meu destino Curitiba: Ed. Guaíra, 1941.
  • _____. Marginalidade da Pintura Moderna São Paulo: Departamento de Cultura, 1941.
  • _____. Pintura quase sempre Porto Alegre: Globo, 1944.
  • _____. Arte e sociedade. Diário de Notícias, n. 6.894, 15 de abril de 1945. Fonte obtida no arquivo IEB/USP (Produção Intelectual de Roger Bastide).
  • _____. Diário crítico de Sérgio Milliet V. I. São Paulo: Edusp, 1981a.
  • _____. Diário crítico de Sérgio Milliet v. II. São Paulo: Edusp, 1981b.
  • _____. Diário crítico de Sérgio Milliet v. IV. São Paulo: Edusp, 1981c.
  • _____. Diário crítico de Sérgio Milliet v. V. São Paulo: Edusp, 1981d.
  • _____. Diário crítico de Sérgio Milliet v. VIII. São Paulo: Edusp, 1981e.
  • _____. Diário crítico de Sérgio Milliet v. X. São Paulo: Edusp, 1981f.
  • _____. De ontem, de hoje, de sempre v. 2. São Paulo: Ed. Martins, 1962.
  • MOTA, Carlos Guilherme. Apresentação. In: CAMPOS, Regina. Ceticismo e responsabilidade: Gide e Montaigne na obra crítica de Sérgio Milliet. São Paulo: Annablume, 1996, p. 7-13
  • QUEIROZ, Maria Isaura Pereira de; FERNANDES, Florestan (Org.). Roger Bastide São Paulo: Ática, 1983.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2020
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2020

Histórico

  • Recebido
    22 Out 2019
  • Aceito
    22 Jul 2020
Instituto de Estudos Brasileiros Espaço Brasiliana, Av. Prof. Luciano Gualberto, 78 - Cidade Universitária, 05508-010 São Paulo/SP Brasil, Tel. (55 11) 3091-1149 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revistaieb@usp.br