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Sexualidade improdutiva e resistência na canção Geni e o zepelim, de Chico Buarque

Unproductive sexuality and resistance in the song Geni e o zepelim, by Chico Buarque

RESUMO

O texto analisa a letra da canção Geni e o zepelim, de Chico Buarque, a fim de refletir sobre sua potência político-crítica, que atribuímos à forma como seu autor-criador, enquanto posição axiológica recortada pelo autor-pessoa, reordena discursos e experiências históricas conforme certas intencionalidades estéticas. Sobre a representação da personagem Geni, destacamos uma posição de resistência frente à opressão capitalista-colonial por meio da experiência de práticas sexuais não apenas moralmente transgressoras, mas sobretudo economicamente improdutivas.

PALAVRAS-CHAVE
Resistência; Geni e o zepelim ; Chico Buarque

ABSTRACT

The paper analyzes the lyrics of the song Geni e o zeppelin, by Chico Buarque, seeking to reflect about its political-critical potentially, which we attribute to the way its author-creator, an axiological position refracted by the author-person, reorders discourses and historical experiences according to certain aesthetic intentions. About the representation of the character Geni, we highlight a position of resistance against the capitalist-colonial oppression through the experience of sexual practices not only morally transgressive, but above all economically unproductive.

KEYWORDS
Resistance; Geni e o zepelim ; Chico Buarque

Na canção Geni e o zepelim, composta por Chico Buarque para a peça Ópera do Malandro2 2 A Ópera do Malandro é baseada na Ópera de Três Vinténs (1928), de Bertold Brecht e Kurt Weill, por sua vez inspirada na Ópera dos Mendigos (1728), de John Gay. Embora façamos, ao longo do trabalho, referências pontuais às obras predecessoras, não nos aprofundaremos, neste momento, na análise dos movimentos dialógicos inerentes ao processo de adaptação que funda o roteiro da peça, em que pese a proposta do teatro épico brechtiano. Reconhecemos, porém, a importância de se considerar tais questões para o adensamento da compreensão da obra de Chico. , de 1978, e gravada em disco homônimo, lançado em 1979, o posicionamento da personagem principal é representado sob a chave da resistência: uma resistência que se dá, conforme leitura que propomos desenvolver neste texto, pela experimentação de uma práxis sexual não apenas moralmente transgressora, mas, sobretudo, economicamente improdutiva. É justamente esta espécie de “conquista infrapolítica” – para usar a expressão empregada por María Lugones (2019)LUGONES, María. Rumo a um feminismo decolonial. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 357-377.3 3 Filiando-se à crítica das mulheres-não brancas e do terceiro mundo ao feminismo universalista, María Lugones (2019), importante teórica do feminismo decolonial, assume a intersecção de gênero/raça/classe como chave para a compreensão da relação entre colonizador e colonizado, descrevendo a imposição de uma “estrutura de gênero”, entendida como sistema de categorização/dicotomização, como mecanismo fundamental de operação da “colonialidade do poder”. Assim, como procedimento principal para uma metodologia de pesquisa decolonial, a autora defende o olhar para experiências de resistência à colonialidade dos gêneros. – frente à opressão capitalista-colonial o que nos parece constituir a principal fonte da potência crítica presente na canção, conforme a leitura que procuraremos desenvolver ao longo do presente trabalho4 4 Evidentemente, para colocar o pensamento de Lugones (2019) em cotejo com a realidade brasileira, algumas mediações devem ser feitas. Em especial, destacamos a dificuldade de inclusão plena do Brasil em certa noção de “américa-latinidade” e a particular condição das dinâmicas de dominação racial no país; como nos lembra Lélia González (2019, p. 341), seríamos, antes, “ladino-amefricanos”. Não obstante tais ressalvas, apostamos na pertinência da perspectiva de Lugones (2019) para pensar o espaço de resistência representado, pela mobilização de marcadores interseccionados de gênero, sexualidade e classe, na canção Geni e o zepelim. .

Para tanto, propomos examinar a construção discursiva de Geni e o zepelim, com ênfase à forma como são construídos o mundo e a consciência da personagem

Geni. Recorrendo à perspectiva bakhtiniana sobre autoria (BAKHTIN, 2003BAKHTIN, Mikhail. O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.), buscamos compreender como o autor-criador da obra, enquanto posição axiológica recortada pelo autor-pessoa, reordena eventos da vida e discursos prévios conforme intencionalidades estéticas singulares (FARACO, 2005FARACO, Carlos Alberto. Autor e autoria. In: BRAIT, Beth. (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005.), em uma complexa e profícua dialogização de vozes sociais que caracteriza a canção de Chico Buarque. Embora reconheçamos a melodia como fator fundamental de produção de sentido, priorizamos, neste trabalho, a análise da letra da canção, inspirando-nos em escolha recorrente na obra de Meneses (2021)MENESES, Adélia Bezerra de. “As caravanas”: racismo e novo racismo. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros (São Paulo), v. 1, n. 80, p. 18-32, dez. 2021. Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v1i80p18-32.
https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X....
. A seguir, transcrevemos os versos que compõem a letra da canção, como gravada na faixa C5 do disco Ópera do Malandro, de 19795 5 É possível encontrar pequenas variações na letra da canção entre diferentes versões. No roteiro da peça Ópera do Malandro, por exemplo, os versos 7 a 9 aparecem como: “Foi assim desde menina/ Das lésbicas, concubina/ Dos pederastas, amásio”. (BUARQUE, 1985, p. 161). :

1. De tudo que é nego torto
2. Do mangue e do cais do porto
3. Ela já foi namorada
4. O seu corpo é dos errantes
5. Dos cegos, dos retirantes
6. É de quem não tem mais nada
7. Dá-se assim desde menina
8. Na garagem, na cantina
9. Atrás do tanque, no mato
10. É a rainha dos detentos
11. Das loucas, dos lazarentos
12. Dos moleques do internato
13. E também vai amiúde
14. Com os velhinhos sem saúde
15. E as viúvas sem porvir
16. Ela é um poço de bondade
17. E é por isso que a cidade
18. Vive sempre a repetir
19. Joga pedra na Geni!
20. Joga pedra na Geni!
21. Ela é feita pra apanhar!
22. Ela é boa de cuspir!
23. Ela dá pra qualquer um!
24. Maldita Geni!
25. Um dia surgiu, brilhante
26. Entre as nuvens, flutuante
27. Um enorme zepelim
28. Pairou sobre os edifícios
29. Abriu dois mil orifícios
30. Com dois mil canhões assim
31. A cidade apavorada
32. Se quedou paralisada
33. Pronta pra virar geleia
34. Mas do zepelim gigante
35. Desceu o seu comandante
36. Dizendo: Mudei de ideia!
37. Quando vi nesta cidade
38. Tanto horror e iniquidade
39. Resolvi tudo explodir
40. Mas posso evitar o drama
41. Se aquela formosa dama
42. Esta noite me servir
43. Essa dama era Geni!
44. Mas não pode ser Geni!
45. Ela é feita pra apanhar
46. Ela é boa de cuspir
47. Ela dá pra qualquer um
48. Maldita Geni!
49. Mas de fato, logo ela
50. Tão coitada e tão singela
51. Cativara o forasteiro
52. O guerreiro tão vistoso
53. Tão temido e poderoso
54. Era dela, prisioneiro
55. Acontece que a donzela
56. (E isso era segredo dela)
57. Também tinha seus caprichos
58. E ao deitar com homem tão nobre
59. Tão cheirando a brilho e a cobre
60. Preferia amar com os bichos
61. Ao ouvir tal heresia
62. A cidade em romaria
63. Foi beijar a sua mão
64. O prefeito de joelhos
65. O bispo de olhos vermelhos
66. E o banqueiro com um milhão
67. Vai com ele, vai, Geni!
68. Vai com ele, vai, Geni!
69. Você pode nos salvar
70. Você vai nos redimir
71. Você dá pra qualquer um
72. Bendita Geni!
73. Foram tantos os pedidos
74. Tão sinceros, tão sentidos
75. Que ela dominou seu asco
76. Nessa noite lancinante
77. Entregou-se a tal amante
78. Como quem dá-se ao carrasco
79. Ele fez tanta sujeira
80. Lambuzou-se a noite inteira
81. Até ficar saciado
82. E nem bem amanhecia
83. Partiu numa nuvem fria
84. Com seu zepelim prateado
85. Num suspiro aliviado
86. Ela se virou de lado
87. E tentou até sorrir
88. Mas logo raiou o dia
89. E a cidade em cantoria
90. Não deixou ela dormir
100. Joga pedra na Geni!
101. Joga bosta na Geni!
102. Ela é feita pra apanhar!
103. Ela é boa de cuspir!
104. Ela dá pra qualquer um!
105. Maldita Geni!
106. Joga pedra na Geni!
107. Joga bosta na Geni!
108. Ela é feita pra apanhar!
109. Ela é boa de cuspir!
110. Ela dá pra qualquer um!
111. Maldita Geni! (HOLLANDA, 1979HOLLANDA, Chico Buarque de. Ópera do malandro. Rio de Janeiro: Philips, 1979. LP duplo.).

Inicialmente, é preciso situar a canção Geni e o zepelim – e a peça teatral para a qual foi composta – no contexto da obra de Chico Buarque. De acordo com Meneses (1982)MENESES, Adélia Bezerra de. Desenho mágico: poesia e política em Chico Buarque. São Paulo: Editora Hucitec, 1982., o conjunto da obra do compositor assume três modalidades distintas: lirismo nostálgico, variante utópica e vertente crítica. Seguindo essa tipologia, a Ópera do Malandro pode ser localizada na terceira categoria (“vertente crítica”), dada sua rasgada crítica social efetivada por meio de uma “ironia paródica” (MENESES, 1982MENESES, Adélia Bezerra de. Desenho mágico: poesia e política em Chico Buarque. São Paulo: Editora Hucitec, 1982., p. 147). De fato, embora seja nas peças de teatro que a visada crítica do autor se apresente de modo mais contundente, “será realmente com a ‘Ópera do Malandro’ [...] que se intensifica ao máximo a crítica social, não deixando intacto ‘valor’ algum” (MENESES, 1982MENESES, Adélia Bezerra de. Desenho mágico: poesia e política em Chico Buarque. São Paulo: Editora Hucitec, 1982., p. 40). Ainda segundo a autora, com o afrouxamento da censura moral em fins dos anos 1970, passam a ser abordados de modo mais aberto, na canção popular, temas e personagens então tidos como “tabus”, como a prostituta, a bissexualidade a figura da travesti, temas centrais em Geni e o zepelim6 6 Ainda que não se possa afirmar a existência de influências diretas no plano de composição das obras, não deixa de ser relevante destacar o possível diálogo estabelecido pela Ópera do Malandro em relação à personagem Geni de Toda nudez será castigada, de Nelson Rodrigues, obra fundamental do teatro brasileiro moderno, que estreou em 1965, no Rio de Janeiro, com direção de Ziembinski. Na peça de Nelson, Geni é uma prostituta que se torna objeto da paixão do protagonista Herculano, recém-viúvo. Ele se casa com Geni e a leva para morar na mansão da família, onde Geni terá um caso extraconjugal com Serginho, seu enteado. .

À desmistificação dos valores operada em Ópera do Malandro, soma-se a denúncia do aspecto sedutor do capitalismo, que oculta a exploração econômica e social sob o verniz da modernidade e do progresso. A narrativa da peça é ambientada no contexto do Estado Novo (1937-1945), momento histórico crucial ao processo de desenvolvimento do capitalismo no Brasil, com a crescente influência cultural norte-americana7 7 Considerando a Ópera do Malandro como alegoria da modernização capitalista, a figura do zepelim, central à narrativa da canção que analisamos neste trabalho, parece representar papel particularmente sugestivo, já que seu comandante – descrito como um “forasteiro” e um “guerreiro temido e poderoso” – remete às relações entre o poder militar que comandava o Estado brasileiro nos anos 1970 e o imperialismo estadunidense, que invade a cidade da canção para, diante de “tanto horror e iniquidade”, colocar “ordem na casa” (ou “tudo explodir”). e a ascensão – para usar expressão da canção Homenagem ao Malandro – do “malandro profissional”, que se vale da corrupção do Estado para efetivar objetivos ligados aos interesses das elites econômicas e assume o lugar outrora ocupado pelo “malandro tradicional”, cuja morte está simbolicamente presente em O Malandro N.º 28 8 Embora a presença frequente e marcante de representações do malandro e da malandragem na literatura, na canção popular, no cinema e no teatro brasileiros não seja objeto principal deste trabalho, é preciso observar que o já-dito destas narrativas se coloca, inevitavelmente, no pano de fundo das relações dialógicas que caracterizam a canção Geni e o zepelim. Da mesma forma, o percurso trágico do “malandro brasileiro” de Chico Buarque não poderia deixar de ser considerado à luz da “dialética da malandragem” descrita, anos antes, por Antônio Cândido (1970). . Nesse sentido, a obra em questão apresenta um olhar crítico que se efetiva pela representação irônica da pretensa modernização capitalista como peça-chave para a compreensão das duas ditaduras em jogo: a do Estado Novo, em que se passa a história, e a civil-militar, durante a qual a peça é escrita (CABRAL, 2012BUARQUE, Chico. Ópera do Malandro. São Paulo: Círculo do Livro, 1985., p. 11)9 9 Apesar disso, vale lembrar, como assinala Lélia Gonzalez (2020), que a associação da negritude à indolência – e, destas, com a malandragem – é peça-chave do discurso racista (e, sobretudo, de um discurso de naturalização do racismo) no Brasil. .

A esse respeito, é devido observar que, embora o texto da Ópera do Malandro problematize, de modo explícito, a dimensão de classe inerente à opressão na modernidade capitalista-colonial, os aspectos raciais implicados nessa dominação, centrais à experiência histórica brasileira, não têm o mesmo lugar na obra. De fato, marcadores de raça parecem estar implícitos na representação do “malandro tradicional”, o “malandro pra valer” de Chico, que vivia na Lapa e é substituído pela figura do “malandro regular, profissional”, mas o texto teatral não os tematiza ou discute abertamente. Nesse sentido, a peça de Chico Buarque, em consonância com parte dos debates no campo progressista à época, opera num registro crítico sintonizado com a centralidade da classe social e com um sentido de universalismo que encontra na ideia de nação espaço privilegiado de realização (ORTIZ, 2015ORTIZ, Renato. Universalismo e diversidade: contradições da modernidade-mundo. São Paulo: Boitempo, 2015.), não reconhecendo na mesma medida o papel das diferenças de raça e gênero como fundamento da opressão capitalista-colonial.

Como o faz toda atividade linguageira, Geni e o zepelim, enquanto canção integrante da Ópera do Malandro, responde a uma experiência social (VOLÓCHINOV, 2017VOLÓCHINOV, Valentin. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017.). Assim, embora ambas as narrativas (a da peça e a da canção) se inscrevam em um cronotopo distinto daquilo que Bakhtin (2018)BAKHTIN, Mikhail. Teoria do romance I: a estilística. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2015. denomina como “cronotopo real” – isto é, a relação de espaço e tempo em que se localizam tanto a produção quanto a recepção de uma obra –, o que elas fazem é voltar-se ao passado para refletir sobre o presente. Em outras palavras, nota-se, na Ópera do Malandro e em Geni e o zepelim, um processo de deslocamento10 10 No caso de Geni e o zepelim, este processo de deslocamento apresenta singularidades em relação ao texto principal da peça. Isso porque, enquanto, no texto teatral, a narrativa se passa no Estado Novo, o exame do cronotopo representado na canção parece indicar a predominância de referências a um tempo histórico relativamente inespecífico, embora seja possível identificar um elemento – o zepelim – que sugira a representação de um passado ainda mais distante do que aquele representado no texto principal peça, já que os zepelins tornaram-se conhecidos sobretudo por seu uso militar durante a Primeira Guerra Mundial. , conforme observado por Adélia Bezerra de Meneses acerca de outras obras de Chico, que consiste “no tratamento de temas candentes da temática nacional, projetada num tempo passado da história brasileira” (MENESES, 1982MENESES, Adélia Bezerra de. Desenho mágico: poesia e política em Chico Buarque. São Paulo: Editora Hucitec, 1982., p. 148). É nesse sentido que se pode observar como o autor-criador é recortado pelo viés valorativo do autor-pessoa, tornando-se veículo por meio do qual eventos da vida e discursos prévios são refratados conforme intencionalidades estéticas e posicionamentos axiológicos específicos (BAKHTIN, 2003BAKHTIN, Mikhail. O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.).

No caso da Ópera do Malandro, quando pensamos na forma como o autor-criador reordena o mundo social, a representação da temática da malandragem merece atenção um pouco mais detida, já que se mostra particularmente reveladora da forma como o texto refrata discursos em evidência no momento em que o texto foi produzido (CABRAL, 2012BUARQUE, Chico. Ópera do Malandro. São Paulo: Círculo do Livro, 1985.), evidenciando vieses valorativos do autor-pessoa. Isso porque a violenta repressão dos movimentos de oposição à ditadura transformava a possibilidade de concretização da revolução socialista em um sonho distante no horizonte de intelectuais, artistas e militantes de esquerda, experiência histórica figurativizada através da imagem do fim da “nata da malandragem”, para citar a letra de Homenagem ao malandro. Associado ao samba, ao uso da navalha e à rejeição de uma ética do trabalho, o “verdadeiro malandro” de Chico – expressão tanto de um Brasil arcaico, marcado pela chaga da escravatura, quanto de uma utopia política de superação do capitalismo – é, assim, apagado pela experiência da modernização.

Essa experiência – que, ademais, não somente não implica em superação da desigualdade social, como parece adensá-la – é relacionada, na peça, à desmobilização de um potencial de resistência inerente à malandragem. O malandro poderia ser visto, sob essa perspectiva, como impregnado pela marca da “diferença colonial”, que (Lugones 2019LUGONES, María. Rumo a um feminismo decolonial. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 357-377., p. 362) entende como uma conquista infrapolítica por representar “algo diferente daquilo que a hegemonia nos faz [sujeitos que resistem à colonialidade] ser”. Entretanto, importa observar que, no roteiro teatral de Chico, embora se coloquem em evidência as dimensões de classe (explicitamente) e raça (implicitamente) como fundamentos da experiência de opressão no capitalismo colonial, não encontramos referência à intersecção destas com uma dimensão de gênero – relação que, para Lugones (2019)LUGONES, María. Rumo a um feminismo decolonial. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 357-377., caracteriza-se como construto central do sistema capitalista de poder11 11 Sem nos aprofundarmos em uma discussão acerca desta ausência, cabe notar que o debate acadêmico e político sobre gênero e interseccionalidade tarda a se constituir no Brasil em virtude das próprias singularidades que caracterizam a trajetória de consolidação do espaço dos estudos feministas e, mais especificamente, dos estudos de gênero no país. (HOLLANDA, 2018). .

Será somente em Geni e o zepelim que poderemos identificar certo tensionamento dessa ausência, com a presença de referências a componentes de opressão capitalista-colonial que operam a partir do gênero e, mais explicitamente, do sexo. Mais do que isso, identificamos na letra da canção uma potência político-crítica relacionada à forma como nela se apresenta uma brecha para a resistência a partir de uma experiência da sexualidade não apenas moralmente livre, mas também economicamente improdutiva. Para isso, propomos apreender e discutir elementos do ordenamento narrativo de Geni e o zepelim12 12 A Ópera do Malandro é um musical e, portanto, as canções que a integram possuem papel decisivo na construção de sua narrativa (MAGALDI, 1979). No entanto, dadas as limitações no espaço neste texto e considerando a autonomia relativa de Geni e o zepelim enquanto obra musical, optamos por examiná-la de modo independente. Dessa forma, recorreremos a elementos próprios do roteiro teatral apenas de modo pontual, quando necessário à iluminação de particularidades do objeto em foco e/ou à elucidação de aspectos de um contexto mais amplo de interação discursiva no qual a canção foi composta. .

Em relação à estrutura do trabalho, partimos da presença de diferentes vozes sociais na canção, o que nos aproxima da própria condição de existência da linguagem, que Bakhtin (2015)BAKHTIN, Mikhail. O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003. denomina como “heterodiscurso”13 13 Em Bakhtin (2015), o heterodiscurso é definido como o conjunto de diferentes linguagens que compõem o discurso do romance, sendo concebido como recurso estético característico desse gênero discursivo, no qual se materializa por meio de unidades básicas de composição, tais como os discursos dos personagens e do narrador, a presença de gêneros intercalados etc. Assim, sem deixar de reconhecer as evidentes diferenças entre as formas históricas do romance e da canção popular comercial, o conceito de heterodiscurso é aqui mobilizado como ponto de partida para uma leitura da forma como diferentes vozes são representadas em Geni e o zepelim. . Sabendo que o heterodiscurso coloca em cena “pontos de vista específicos sobre o mundo, formas da sua interpretação verbal, perspectivas específicas objetais, semânticas e axiológicas” (BAKHTIN, 2015BAKHTIN, Mikhail. O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003., p. 98), dedicamos especial atenção à forma como o posicionamento de Geni é construído e integrado ao todo narrativo. Na sequência do trabalho, enquanto manifestação particular do dialogismo discursivo (BARROS, 2003BAKHTIN, Mikhail. Teoria do romance II: as formas do tempo e do cronotopo. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2018.), examinamos as marcas de intertextualidade presentes na canção14 14 Em relação à problemática geral da heterogeneidade discursiva, reconhecemos a existência de diferentes autores no campo da Análise do Discurso, sobretudo em sua vertente francesa, que desenvolveram trabalhos relevantes sobre a questão. Porém, que a opção por adotar neste texto a perspectiva do chamado “Círculo de Bakhtin” – em especial, a partir de Volóchinov (2017) e Bakhtin (2015) – justifica-se pelo fato de o objeto de estudo sobre o qual nos debruçamos ser da ordem do enunciado, e não da ordem de uma formação discursiva, conforme caberia a uma análise apoiada em Maingueneau (2008), por exemplo. .

Em nosso percurso analítico, considerando Geni e o zepelim a partir de sua estruturação narrativa e tendo em vista o objetivo de compreender como diferentes vozes sociais são orquestradas na obra, buscamos tanto diferenciar os vários planos enunciativos (ou seja, como a palavra é “passada” entre os planos do autor, do narrador e das diferentes personagens) quanto apreender a “bivocalidade” presente em alguns trechos da canção, dado fundamental para que se possa compreender a presença de construções híbridas, isto é, de “dupla dicção e duplo estilo” (BAKHTIN, 2015BAKHTIN, Mikhail. O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003., p. 84).

Cabe, neste momento, abrir um parêntese para ressaltar que a simples constatação quanto à presença de determinadas vozes na canção não seria suficiente para compreendermos o posicionamento axiológico assumido pelo narrador, uma vez que, tanto em casos de intercalação de planos enunciativos quanto no caso de construções híbridas, é possível que as diversas vozes presentes sejam refutadas, ou ironizadas, ou contestadas, ou reafirmadas – e assim por diante. Por isso, a discussão acerca do modo como o narrador se posiciona em relação ao objeto da narração não poderia partir de frases ou palavras localizadas; em lugar disso, deve considerar a composição arquitetônica das diferentes vozes no todo do enunciado, bem como o contexto mais amplo de interação discursiva do qual o enunciado participa.

AS VOZES NA CANÇÃO

Em Geni e o zepelim, aparecem três personagens representados como tipos integrados à vida na cidade: o prefeito, o bispo e o banqueiro, apresentados nos versos 64, 65 e 66. Vale aqui observar que Geni constitui um caso à parte: embora saibamos que ela vive na cidade, a própria canção atribui a ela um lugar marginalizado. Assim, temos, por um lado, a cidade, que a condena; de outro lado, Geni, que se relaciona, inicialmente, apenas com outros marginalizados, como mostram os versos 1 a 6: “De tudo que é nego torto/ Do mangue e do cais do porto/ Ela já foi namorada/ O seu corpo é dos errantes/ Dos cegos, dos retirantes/ É de que não tem mais nada”. Adiante, nos versos 10 a 12, há referências a outras figuras marginalizadas (“detentos”, “loucas”, “lazarentos”, “moleques do internato”), entre homens e mulheres15 15 Não deixa de ser interessante notar que, enquanto, no roteiro teatral, a personagem Geni/Genivaldo é uma travesti, essa identidade não é explicitada – embora tampouco seja negada – na letra da canção; da mesma forma, enquanto, na peça, Geni é descrita como uma prostituta, esse dado não se apresenta em nenhum momento na letra da canção. Neste trabalho, consideraremos as formas pelas quais a personagem é representada especificamente na canção, escolha que se justifica, para além dos motivos já expostos, pelo fato de a canção ter se tornado provavelmente mais famosa do que a própria peça, ao menos entre parte do público de Chico. .

No caso dos três personagens destacados (prefeito, bispo, banqueiro), todos eles ocupantes de posições de poder, temos claras referências aos poderes político, religioso e econômico, instâncias mutuamente comprometidas, que se apresentam como forças reguladoras de sociedades capitalistas e, particularmente, da sociedade brasileira. De fato, é possível apreender, a partir de tais referências, que a sociedade representada na canção é caracterizada como capitalista e católica – como o Brasil dos anos 1970. Outro dado que reitera essa conexão com o cronotopo real de produção da obra é a referência a um quarto personagem: o comandante do zepelim, figura detentora de poder militar. Ele é descrito como forasteiro – teríamos aqui uma referência ao domínio colonial português? Ou ao imperialismo estadunidense dos anos 1970? – que logo impõe sua (ilegítima) autoridade sobre a cidade, subordinando toda a população. O poder do comandante traduz-se também em seu desejo de possuir sexualmente Geni, reiterando a condição de objetificação da personagem, destituída de humanidade pela voz da cidade, o que remete à própria condição subjetiva do ser colonizado: “A hierarquia dicotômica entre seres humanos e não humanos é a dicotomia central da modernidade colonial” (LUGONES, 2019LUGONES, María. Rumo a um feminismo decolonial. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 357-377., p. 358).

Se, por um lado, a “colonialidade do poder”16 16 Central ao pensamento de Lugones (2019), o conceito de “colonialidade do poder” foi cunhado, originalmente, pelo sociólogo peruano Aníbal Quijano, com o objetivo de evidenciar, nas palavras de Susana de (Castro 2018, p. 53), “que o colonialismo não representa apenas uma época e um modo de relacionamento de dominação entre países europeus e países não europeus, mas também configura uma forma de dominação cultural do capitalismo global que perdura até hoje”. é exercida pela imposição de um sistema moderno de produção de diferenças fundado sobre a diferença de gênero (LUGONES, 2019LUGONES, María. Rumo a um feminismo decolonial. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 357-377.), temos, por outro lado, a resistência por parte de Geni em aceitar por completo essa lógica dicotômica17 17 Esse dado parece-nos particularmente claro quando consideramos que, no texto da Ópera do Malandro, Geni é a travesti Genivaldo; ela desafia, portanto, a dicotomia masculino/feminino, ao mesmo tempo em que evidencia o caráter arbitrário/construído da performance de gênero. – lógica esta que, não à toa, parece ser representada, de modo exemplar, na figura do zepelim, referência ao poder masculino-heterocentrado-militar-colonialista do comandante. Não à toa, o comandante tanto aspira a um atributo de poder político (poderíamos pensar no “falo” como fonte da significação e, portanto, de produção da diferença, em perspectiva lacaniana) quanto exerce seu poder sobre o outro pela via da busca de satisfação sexual (o falo como o pênis do homem, invocado pela forma do zepelim)18 18 Dialogamos aqui com a leitura psicanalítica proposta pela crítica feminista Laura Mulvey (1983); embora seus escritos se dediquem sobretudo à análise de obras fílmicas, sua leitura sobre as dinâmicas de opressão sexual a partir de diferentes modos de subjetivação de homens e mulheres (e, em particular, sobre o papel da satisfação do desejo masculino a partir do cinema) oferecem insights relevantes para este trabalho. . O comandante deixa-se conduzir pelo desejo – o zepelim “gigante”, maior do que ele próprio –, inscrito em um sistema de dominação de sexo-gênero. Dessa forma, a opressão de gênero, associada a outras formas de violência/dominação, aparece como estruturante da própria narrativa de Geni e o zepelim – afinal, é a chegada do comandante à cidade e seu desejo sexual por Geni o que desencadeia a intriga central da canção.

Quando consideramos as formas pelas quais as vozes dos personagens e do narrador são orquestradas na canção, duas estratégias principais podem ser distinguidas. Em primeiro lugar, temos a intercalação de planos enunciativos, correspondente ao que comumente se denomina como introdução do “discurso direto” em uma narrativa. É o que observa, com particular ênfase, nos trechos entoados pelo coro, no qual se manifesta a voz da cidade (versos 19 a 24; 43 a 48; 67 a 72; 100 a 111).

Nestas passagens, a cidade apresenta julgamentos moralistas sobre Geni, defende que ela seja apedrejada, mostra-se indignada diante do desejo do comandante do zepelim de manter relações sexuais com a personagem e suplica que ela ceda às investidas do forasteiro. Geni é “falada” a partir da marcação de um lugar de alteridade, traço característico da colonialidade do poder que se exerce sobre o corpo desumanizado da personagem19 19 Se a desumanização de Geni ocorre no plano narrativo, podemos indagar se, em alguma medida, ela também se dá no plano composicional, já que o autor-pessoa da canção é um homem não marginalizado, que concebe a história da personagem Geni, uma mulher marginalizada. Trata-se de uma indagação complexa, cujo tratamento foge ao escopo e às possibilidades deste texto, mas cumpre-nos destacá-la aqui como forma de reconhecer os limites deste trabalho e, ao mesmo tempo, sublinhar a relevância da questão, a ser tratada em pesquisas futuras. .

Em todas as entradas do coro na canção, a mudança de plano enunciativo é explicitada, tanto na dimensão da interpretação (com vários intérpretes cantando simultaneamente) quanto na letra, em que se observam estruturas por meio das quais o narrador “passa a palavra” para a cidade, como em: “E é por isso que a cidade / Vive sempre a repetir” (versos 17 e 18) e “E a cidade em cantoria / Não deixou ela dormir (versos 89 e 90).

Neste ponto, cabe abrir um parêntese para apontar que discordamos da leitura segundo a qual, porque a voz de Chico Buarque é escutada (na gravação em disco) juntamente com o coro nos refrãos de Geni e o zepelim, seria possível apontar para uma possível concordância, por parte do narrador, em relação à perspectiva moralista da cidade. Nossa discordância se justifica por dois motivos principais. Em primeiro lugar, há que se considerar que, tanto na estrutura linguístico-verbal da canção quanto em sua intepretação, há, sintaticamente marcada, uma clara mudança de plano enunciativo, que se dá quando a voz do narrador cede lugar à voz da cidade; assim, no caso da interpretação da canção, notadamente em sua gravação no disco Ópera do Malandro, o fato de a voz de Chico Buarque ser ouvida junto às vozes do coro não muda o fato de que o que se ouve é ainda um coro, isto é, uma outra voz, cuja corporeidade não pode ser decomposta nos timbres de diferentes cantores que a interpretam20 20 Em outras palavras, seria possível pensar a canção como qualquer outro texto narrativo lido (interpretado) em voz alta para uma plateia: evidentemente, haveria ali uma única voz (a voz de quem lê em voz alta) responsável pela leitura de todos os trechos, inclusive aqueles em discurso direto, mas isso não nos permite confundir a voz do leitor-intérprete com as vozes lidas (nem com a voz do narrador, nem com as vozes dos personagens). . Para além disso, em segundo lugar, é preciso lembrar que a mera presença de diferentes vozes em um enunciado – seja quando as fronteiras entre elas estão formalmente presentes, como no caso da voz da cidade entoada pelo coro em Geni e o zepelim, seja quando tais fronteiras não podem ser identificadas, como ocorre nas formas de bivocalidade – não indica, a priori, um único tipo de relação semântico-valorativa (como, por exemplo, uma relação de proximidade ou concordância) entre elas.

Noutro trecho, nos versos 36 a 42, também é possível verificar uma mudança de plano enunciativo, já que nesta passagem o narrador cede a palavra ao comandante do zepelim, que diz: “[...] Mudei de ideia!/ Quando vi nesta cidade/ Tanto horror e iniquidade/ Resolvi tudo explodir/ Mas posso evitar o drama/ Se aquela formosa dama/ Esta noite me servir”. Novamente aqui, a intercalação de diferentes situações de enunciação é demarcada de forma explícita no enunciado, quando o narrador afirma, nos versos 34 e 35: “Mas do zepelim gigante/ Desceu o seu comandante/ Dizendo [...]”. Da mesma forma, ao interpretar a canção, o cantor (Chico Buarque) altera o timbre da voz e o ritmo da fala, imprimindo a ela traços declamatórios, ao representar a voz do comandante.

A partir de tais observações, poderia ser tentador apontar que, ao permitir que a cidade e o comandante do zepelim “falem por si” na canção, o narrador estaria assumindo a perspectiva dessas vozes; como observado por Volóchinov (2017)VOLÓCHINOV, Valentin. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017., porém, os jogos entre a voz do narrador e as vozes reportadas podem significar tanto relações de ironia, contestação, afastamento, aproximação etc. No caso de Geni e o zepelim, o recurso à intercalação de planos enunciativos parece conceder certo dinamismo e ritmo à canção, ao mesmo tempo em que reflete a vocação cronística transversalmente presente na obra de Chico Buarque (AGUIAR, 2014AGUIAR, Miriam Bevilacqua. Tempo e artista: Chico Buarque, avaliador de nossa cotidianidade. Tese (Doutorado em Letras). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014.). Indo além, a incorporação das vozes da cidade e do comandante em discurso direto poderia ser vista como contribuindo para certo efeito de sentido de menor mediação por parte do narrador em relação às perspectivas em questão; nesse sentido, vale lembrar, como afirma Grillo (2005)GRILLO, Sheila Vieira Camargo. Discurso alheio: polifonia e apreensão. In: SILVA, Luiz Antônio da. (Org.). A língua que falamos. Português: história, variação e discurso. 1. ed. São Paulo: Globo, 2005, p. 73-104., que a delimitação nítida das fronteiras e o baixo grau de réplica e comentário ao discurso alheio podem ser compreendidos como traços indicativos de certo distanciamento em relação à enunciação de outrem, expediente comum quando se trata da transmissão de enunciados proferidos a partir de posições de poder.

Ainda em relação às formas pelas quais as vozes dos personagens e do narrador são orquestradas na canção, uma segunda manifestação deve ser considerada, a saber: a presença de estruturas híbridas, em que diferentes vozes falam em enunciados bivocais, sem que se possam distinguir as fronteiras entre elas. Uma primeira – e mais evidente – manifestação de bivocalidade na canção diz respeito à forma como, em diversas passagens, a voz do narrador entrelaça-se à de Geni. As marcas enunciativas deixadas pela personagem aparecem – quando consideramos a dimensão de interpretação da canção – nas modulações melódicas do narrador, que dá vazão a sentimentos de constrangimento, autopiedade, tristeza.

Assim, observamos que o narrador – também ele, vale lembrar, entendido como uma voz social refratada (FARACO, 2005FARACO, Carlos Alberto. Autor e autoria. In: BRAIT, Beth. (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005.) –, ao representar a história de Geni, mostra-se próximo e empático em relação à personagem. São diversas as formas pelas quais essa proximidade se manifesta, e a consideramos como possível efeito da construção de uma zona de influência da heroína sobre o narrador (BAKHTIN, 2015BAKHTIN, Mikhail. O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003.), que extrapola as manifestações do discurso direto. Já no início da canção, o narrador demonstra conhecimento do universo a que pertence Geni, referindo-se a ela de modo afetuoso (“Dá-se assim desde menina”), utilizando palavras positivas para representá-la (“namorada”, “rainha”) e atribuindo-lhe caracteres morais normalmente exaltados como nobres e elevados, como bondade (“Ela é um poço de bondade”)21 21 Neste caso, parece haver um sentido irônico, afinal, não se espera que uma pessoa seja violentamente insultada por ser bondosa. Trata-se de uma passagem interessante porque, considerando a orquestração global das vozes na canção, é possível atribuir tal visada irônica à crítica social proposta pelo autor-criador, refratada na voz do narrador, que se volta contra a hipocrisia social presente na cidade, que se diz cristã, mas se incomoda com a benevolência alheia. Como veremos adiante, a bondade de Geni, que tanto incômodo causa, parece decorrer de sua práxis sexual, uma vez que a personagem se dá (e não se vende) a “quem não tem mais nada”. e humildade (“Tão coitada, tão singela”)22 22 No caso da expressão “Tão coitada, tão singela”, enxergamos a materialização de uma construção híbrida, que expressa tanto a voz do narrador (modulação afetuosa) quanto a voz da cidade (palavras empregadas), que se mostra espantada com o fato de Geni ter sido escolhida como objeto de desejo sexual pelo comandante do zepelim. Dessa forma, a presença de duas ou mais vozes em um fragmento textual não deve ser vista, segundo Bakhtin (2015), como indício de alinhamento axiológico por parte de uma das vozes (no caso, a voz do narrador) em relação às demais vozes representadas (no caso, a voz da cidade). .

Se estes versos, em seu sentido global, parecem incorporar uma perspectiva valorativa positiva sobre a personagem, não se pode desconsiderar a presença de termos que revelam carga semântica a priori negativa para descrever a população de marginalizados com os quais Geni se relaciona: “nego torto”, “loucas” e “lazarentos” são alguns exemplos. Seria plausível, a esse respeito, indagar se o narrador da canção não estaria compactuando com os valores discriminatórios expressos pela cidade; defendemos, porém, que esta seria uma leitura equivocada, uma vez que estamos diante de enunciados nos quais é possível ler a presença de dois universos semântico-axiológicos distintos: o do narrador, que se mostra empático em relação a Geni por meio do emprego de palavras de teor afetuoso e/ou elogioso; e o do discurso elitista e discriminatório da cidade, que transparece nos termos pejorativos acima citados.

Assim, embora as fronteiras entre estes dois universos não sejam formalmente demarcadas no enunciado, é nítida a presença de diferentes “dicções”, dois “modos de falar”, configurando o fenômeno estético que Bakhtin (2015)BAKHTIN, Mikhail. O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003. define como bivocalidade: Chamamos de construção híbrida um enunciado que, por seus traços gramaticais (sintáticos) e composicionais, pertence a um falante, mas no qual estão de fato mesclados dois enunciados, duas maneiras discursivas, dois estilos, duas “linguagens”, dois universos semânticos e axiológicos. Entre esses enunciados, estilos, linguagens e horizontes, repetimos, não há nenhum limite formal – composicional e sintático: a divisão das vozes e linguagens ocorre no âmbito de um conjunto sintático, amiúde no âmbito de uma oração simples, frequentemente a mesma palavra pertence ao mesmo tempo a duas linguagens, a dois horizontes que se cruzam numa construção híbrida e, por conseguinte, tem dois sentidos heterodiscursivos, dois acentos. (BAKHTIN, 2015BAKHTIN, Mikhail. O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003., p. 84).

Consideramos particularmente relevante a afirmação de (Bakhtin 2015BAKHTIN, Mikhail. O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003., p. 84) de que “frequentemente a mesma palavra pertence ao mesmo tempo a duas linguagens”, o que reitera nossa interpretação de que a mera presença de expressões pejorativas para descrever os marginalizados com os quais Geni se relaciona não é suficiente para indicar uma possível adesão por parte do narrador em relação à perspectiva da cidade. De fato, o que temos, no caso de expressões como “nego torto”, “lazarentos” e “detentos”, são palavras que operam simultaneamente em dois registros de linguagem: de um lado, o julgamento excludente da cidade; de outro, um gesto que parece ressignificar tais expressões, afirmando sua positividade a partir de seu uso em um outro contexto semântico e axiológico.

Assim, sabendo que a linguagem é sempre heterodiscursiva, e que as relações dialógicas no interior de um enunciado são muitas vezes complexas, para compreender como uma voz se comporta axiologicamente (no caso, a voz do narrador), devemos olhar para a globalidade do enunciado (neste caso, a canção como um todo). Ao longo das estrofes, a proximidade assumida pelo narrador em relação a Geni é constantemente reafirmada, alcançando máxima densidade quando a voz narrativa demonstra conhecer intimamente a consciência da personagem, como mostram os versos 55 a 60: “Acontece que a donzela/ (E isso era segredo dela)/ Também tinha seus caprichos/ E ao deitar com homem tão nobre/ Tão cheirando a brilho e a cobre/ Preferia amar com os bichos” (grifos nossos). Nesta passagem, estão presentes construções que hibridizam ao menos duas dicções: a do narrador, que fala sobre a ética sexual de Geni; e a da própria personagem, cuja voz parece ecoar sobretudo nos versos grifados, ainda que as fronteiras entre sua voz e a do narrador não sejam formalmente evidenciadas. Não obstante, se prestarmos atenção ao verso 57, a palavra “caprichos” parece ecoar a voz da cidade, que condena e faz pouco de Geni, ainda que o sentido global da estrofe aponte para uma apropriação irônica do vocábulo.

Finalmente, à forma como Geni e a voz do narrador são representadas na canção, destaca-se a atribuição de uma postura de convicção e altivez à personagem. Pode-se falar em uma ética relacionada ao exercício de sua sexualidade, na qual se combinam aspectos de benevolência e resistência. A bondade da personagem é evidenciada ao longo da canção, por meio de uma imagem de doação de si que culmina na aceitação em ceder à investida sexual do comandante do zepelim, contrariando seus próprios princípios e cedendo aos pedidos da cidade, que ela acreditava, então, serem sinceros.

Geni é, dessa forma, representada como uma espécie de heroína trágica, aos moldes de Antígona, que resiste à opressão da cidade a partir da afirmação e defesa de uma posição ética. Acreditamos que foge à proposta do trabalho discutir a motivação “íntima” que teria levado Geni a ceder ao assédio do comandante do zepelim e aos apelos da cidade23 23 Entre diferentes hipóteses, poderíamos questionar se ela o teria feito por uma espécie de “desejo inconfessável” ou por uma “demanda de reconhecimento”, por exemplo. ; em todo caso, acreditamos que as motivações da personagem devem ser analisadas narrativamente, considerando a representação dela construída pelas vozes da canção (a voz do narrador, em primeiro lugar, e a voz da própria Geni, que se insinua mais discretamente, ambas refretadas pela voz do autor). Nesse sentido, sabendo que Geni decide “dominar seu asco” e “entregar-se a tal amante” diante dos pedidos da cidade, que foram “tantos” e “tão sinceros, tão sentidos”, vemos que a postura da personagem remete a uma espécie de ato sacrificial, que responde a um sentimento de comoção e compaixão aparentemente despertado pelas demandas de outros indivíduos.

Sob esse entendimento, portanto, a bondade e a resistência de Geni se apresentam como forças que se reforçam mutuamente quando se trata da doação de si para outros iguais, seres marginalizados, desumanizados, colonizados; porém, quando se trata da sujeição ao poder masculino-militar-colonizador, bondade e resistência apresentam-se como forças contraditórias, não passíveis de coexistência.

Se, através da perspectiva do narrador, temos acesso à Geni-pessoa, Geni-humanizada, Geni-sujeita, é preciso considerar que esta construção é fruto de opções feitas pelo autor-criador, que narra tanto o objeto/assunto da história, quanto o próprio narrador, entendido ele próprio como objeto narrativo. Nesse sentido, é preciso lembrar que uma das vozes na canção é a própria perspectiva refratada de seu autor-criador:

Por trás da narração do narrador, lemos uma segunda narração: a narração do autor sobre a mesma coisa narrada pelo narrador e, além disso, sobre o próprio narrador. Percebemos nitidamente cada elemento da narração em dois planos: no plano do narrador, em seu horizonte expressivo, semântico-objetal, e no plano do autor, que fala de modo refratado com essa narração e através dessa narração. (BAKHTIN, 2015BAKHTIN, Mikhail. O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003., p. 99).

Dessa forma, se, por um lado, o desfecho da narrativa coloca em evidência uma sujeição por parte de Geni a apelos de conciliação com o poder, a última estrofe, em que a cidade não apenas retoma a depreciação da personagem, como a intensifica (“Joga pedra na Geni/ Joga bosta na Geni”), pode ser lida como expressão de uma intencionalidade crítica por parte do autor, que buscaria mostrar que o ser-oprimidocolonizado, ao ocupar os lugares a ele designados pelo ser-opressor-colonizador, não consegue transcender a condição de desumanização a ele reservada. Tal leitura se sustenta, para além dos elementos internos ao próprio enunciado, em que se pode ler uma espécie de desfecho “moralizante”, pela consideração do contexto mais amplo da interação discursiva da qual a canção participa: destacamos, especialmente, o conhecido posicionamento axiológico do compositor em relação ao cenário político-ideológico em vigor no momento de criação da canção, bem como as características relacionadas à “vertente crítica” (MENESES, 1982MENESES, Adélia Bezerra de. Desenho mágico: poesia e política em Chico Buarque. São Paulo: Editora Hucitec, 1982.) de sua obra.

O SACRIFÍCIO SEM REDENÇÃO DE GENI

Geni é representada pelo narrador em tom melancólico – o que se reforça no plano melódico da canção – desde os primeiros versos, nos quais se relata a trajetória da personagem, marcada pelo relacionamento com indivíduos marginalizados, em algum sentido, mutilados – a quem falta algo, podendo ser este algo entendido como o próprio reconhecimento quanto a uma condição de humanidade. Como já apontado anteriormente, a primeira estrofe coloca em evidência também a bissexualidade de Geni, aspecto que extrapola as fronteiras dicotômicas não apenas entre masculino/ feminino, como também entre hétero/homossexualidade.

Como nos lembra (Meneses 1982MENESES, Adélia Bezerra de. Desenho mágico: poesia e política em Chico Buarque. São Paulo: Editora Hucitec, 1982., p. 39), “Um perfil das personagens mais frequentes que povoam suas letras [de Chico Buarque] levará à figura do marginal, do desvalido”. A essa postura de colocar a nu a “negatividade da sociedade”, segundo a autora, relaciona-se à “vertente crítica” das canções do compositor. Essa “romaria dos mutilados” na obra de Chico, nas palavras de Meneses, não à toa compõe-se de personagens como aqueles citados na canção O que será, por exemplo: infelizes, bandidos, meretrizes, desvalidos... Ainda que a autora não cite especificamente o caso de Geni e o zepelim (embora mencione a Ópera do Malandro), a canção pode ser considerada como mais um caso, na obra de Chico, em que esse universo de marginalizados sociais é alçado a primeiro plano.

Ainda na primeira estrofe da canção, encontramos referências ao desapego de Geni em relação aos locais onde “se dá”, como vemos nos versos 7 a 9: “Dá-se assim desde menina/ Na garagem, na cantina/ Atrás do tanque, no mato”24 24 Deve-se reconhecer que estes versos poderiam ser problematizados a partir da perspectiva de Rago (2014), que identifica, em discursos médicos do século XIX, representações que apontavam a “faceirice” como uma característica “inata” das meninas, argumento empregado para defender toda sorte de práticas repressivas. Assim, seria possível indagar se eles não ecoariam algo do estereótipo sobre a “faceirice inata” das mulheres. Portanto, embora fuja ao escopo deste texto, ressaltamos a necessidade, em trabalhos futuros, de analisar criticamente a letra da canção e a própria situação do autor-pessoa à luz dos Estudos de Gênero. . Do mesmo modo, a escolha do verbo “dar” pelo autor-criador imprime um importante sentido à posição axiológica encampada pela personagem: ela “se dá” – não “se vende”. Assim, embora, em sua inserção original no texto Ópera do Malandro, a personagem Geni – a travesti Genivaldo – seja descrita como uma prostituta, a forma como Geni é retratada na canção não revela qualquer pista que nos permita inferir que ela mantenha relações sexuais em troca de remuneração. O uso do verbo em sua forma reflexiva (“dá-se”) potencializa tal sentido.

Com isso em vista, vale determo-nos um pouco mais no exame do lugar de Geni na sociedade representada na canção, já que a personagem parece se localizar fora da lógica das relações de consumo no capitalismo. Como dissemos, ela “se dá”, mas “não se vende” – e mais: seu corpo “é de quem não tem mais nada”. Sob a lógica capitalista, Geni não gera lucro, não possui valor de troca e, portanto, está apartada da lógica de mercadoria (“aquém”, mas também “além”). Consideramos este o ponto nevrálgico da lógica resistir<>oprimir que caracteriza a posição atribuída a Geni na canção, já que a personagem não apenas não encontra lugar na sociedade, como gera um profundo incômodo, traduzido em ódio, porque põe em crise os próprios fundamentos da modernidade capitalista-colonial.

Nesse sentido, a investidura da cidade contra Geni ganha densidade enquanto posição axiológica representada na canção. Um paralelo com o conto Tribulação de um pai de família, de Franz Kafka, deve tornar nosso argumento mais claro:

À primeira vista ele tem o aspecto de um carretel de linha achatado e em forma de estrela, e com efeito parece também revestido de fios; de qualquer modo devem ser só pedaços de linha rebentados, velhos, atados uns aos outros, além de emaranhados e de tipo e cor dos mais diversos. Não é contudo apenas um carretel, pois do cento da estrela sai uma varetinha e nela se encaixa depois uma outra, em ângulo reto. Com a ajuda desta última vareta de um lado e de um dos raios da estrela do outro, o conjunto é capaz de permanecer em pé como se estivesse sobre duas pernas. Alguém poderia ficar tentado a acreditar que essa construção teria tido anteriormente alguma forma útil e que agora ela está apenas quebrada. Mas não parece ser este o caso; pelo menos não se encontra nenhum indício nesse sentido; em parte alguma podem ser vistas emendas ou rupturas assinalando algo dessa natureza; o todo na verdade se apresenta sem sentido, mas completo à sua maneira. (KAFKA, 2003KAFKA, Franz. Um Médico Rural. São Paulo: Cia das Letras, 2003., p. 43).

Nas palavras do crítico Roberto Schwarz, Odradek – como Geni, acrescentemos – representa o “impossível” da ordem capitalista:

Se a produção para o mercado permeia o conjunto da vida social, como é próprio do capitalismo, as formas concretas de atividade deixam de ter em si mesmas a sua razão de ser; a sua finalidade lhes é externa, a sua forma particular é inessencial [...] Odradek, portanto, é a construção lógica e estrita da negação da vida burguesa. (SCHWARZ, 1978SCHWARZ, Roberto. Tribulação de um pai de família. In: O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 21-26., p. 24).

O narrador do conto de Kafka descreve a inapreensível e completamente estranha figura de Odradek da seguinte forma:

Inutilmente eu me pergunto o que vai acontecer com ele. Será que pode morrer? Tudo o que morre teve antes uma espécie de meta, um tipo de atividade e nela se desgastou; não é assim com Odradek. Será então que a seu tempo ele ainda irá rolar escada abaixo diante dos pés dos meus filhos e dos filhos dos meus filhos, arrastando atrás de si os fios do carretel? Evidentemente ele não prejudica ninguém, mas a ideia de que ainda por cima ele deva me sobreviver me é quase dolorosa. (KAFKA, 2003KAFKA, Franz. Um Médico Rural. São Paulo: Cia das Letras, 2003., p. 44).

As atribulações narradas pelo pai de família seguem dando conta da natureza móvel da criatura, que, sem endereço certo, desloca-se entre sótãos e porões, sempre por perto, ainda que oculta na penumbra, de quem lhe ouse dirigir o olhar. O pai de família, zeloso de uma postura de razão e comedimento, admira-se do riso, do ar de infantilidade e da ausência de preocupações expressas por Odradek: algo da palavra do louco ecoa em sua voz, constantemente emitida, mas raramente ouvida.

A comparação que propomos entre Geni e Odradek tem finalidade didática, uma vez que a metáfora kafkiana, em sua plasticidade, talvez possa nos ajudar a esclarecer alguns aspectos da canção em análise. Nesse sentido, reconhecemos a existência de diferenças significativas entre os dois personagens. Em primeiro lugar, Geni não é exatamente alguém informe e sem lugar – ainda que seu lugar seja de opressão e exclusão, ela possui lugar às margens da cidade –, diferentemente do que observa Schwarz (1978)SCHWARZ, Roberto. Tribulação de um pai de família. In: O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 21-26. a respeito de Odradek. Ao mesmo tempo, é inegável que Geni tem serventia, afinal, “ela é boa de apanhar, ela é boa de cuspir”; Odradek, nem isso.

Tais diferenças, não obstante, são também indicativas do argumento que gostaríamos de desenvolver, a saber: enquanto Odradek não possui valor de uso ou valor de troca, Geni caracteriza-se somente por seu valor de uso – e referimo-nos aqui não apenas à sua finalidade como bode expiatório da cidade, mas também ao valor afirmado a partir de sua práxis sociossexual, que satisfaz as necessidades afetivo-sexuais da multidão de desvalidos com os quais se relaciona e, quiçá, dela própria, já que, na letra da canção, o envolvimento da personagem com outros marginalizados é representado, revestindo-se de matizes utópicas, como livre de coerções, fruto de seu livre-arbítrio. Desse modo, não obstante suas singularidades, Geni se aproxima de Odradek por seu desprovimento de valor de troca, aspecto que, como temos insistido, parece-nos central à posição de resistência representada pela personagem na canção de Chico Buarque.

Assim caracterizados, Odradek e Geni são posicionados como o “Outro” da sociedade burguesa – tão estranho quanto revelador dos traços que constroem a identidade moderna-capitalista-colonial. (Aqui, vale assinalar, uma vez mais, a ausência de elementos, na canção, tomada como obra relativamente autônoma, que permitam inferir que Geni se prostitua, como já apontamos algumas vezes ao longo deste texto25 25 Neste ponto, vale lembrar que, não obstante seja anterior às relações mediadas pelo dinheiro, a prostituição vinculou-se de modo indissociável a este último com o advento do capitalismo, assumindo hoje contornos totalmente diversos daqueles verificados em contextos não modernos e não capitalistas, nos quais esteve ligada inclusive a práticas rituais e sagradas (ROBERTS, 1998). Nesse sentido, quando afirmamos que não há na canção evidências de que Geni se prostitua – afinal, ela “se dá”, mas não “se vende” –, referimo-nos ao sentido que a prostituição assume na modernidade capitalista, qual seja, o de prática sexual mediada por dinheiro. ). Por isso mesmo, a presença de Odradek é constrangedora: quando olha para ele, o pai de família de Kafka enxerga algo de si. Por isso, as presenças de Odradek, de Geni e de outros desvalidos, com seus corpos improdutivos e alheios às atribulações cotidianas da “gente de bem”, tornam-se particularmente incômodas.

No cerne da leitura que propomos neste trabalho, é precisamente este o potencial subversivo da forma como Geni experimenta sua sexualidade: mais do que sua liberdade ou imoralidade, sua improdutividade. Como Odradek, que desperta um “misto de desprezo e inveja”, ela é a tentação, a sedução representada pela utopia de estar livre de todo o sistema discursivo capitalista. Em suma, a presença de Geni é perturbadora porque representa “a existência gratuita”, que “catalisa as contradições do vocabulário burguês, que preza, mas não preza a liberdade” (SCHWARZ, 1978SCHWARZ, Roberto. Tribulação de um pai de família. In: O pai de família e outros estudos. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978, p. 21-26., p. 24).

Na segunda estrofe de Geni e o zepelim, apresenta-se o fator que abalará a vida na cidade: a chegada de um enorme dirigível, preparado para destruir tudo o que ali se encontrava. O comandante da aeronave impõe uma condição para que deixe a cidade intacta e, assim, restabeleça-se a “harmonia” anterior: exigindo que Geni o sirva sexualmente por uma noite, o guerreiro desperta a indignação da cidade, que vê sua possibilidade de salvação nas mãos de um ser destituído de valor de troca.

Geni, inicialmente, recusa a proposta do comandante do zepelim, como mostram os versos 55 a 60: “Acontece que a donzela/ (E isso era segredo dela)/ Também tinha seus caprichos/ E a deitar com homem tão nobre/ Tão cheirando a brilho e a cobre/ Preferia amar com os bichos”. A recusa por parte da personagem coloca em cena a possibilidade de resistência, traço crucial na constituição da personagem. Uma resistência à interação com as classes dominantes, que a excluem e marginalizam; uma recusa à conciliação, ao mascaramento das injustiças; uma conquista contra a sujeição à opressão ao mesmo tempo de classe e gênero da modernidade capitalista.

Diante dessa postura, a cidade, amedrontada e interessada em sua salvação, implora à personagem que sirva ao comandante forasteiro. Geni cede aos pedidos da cidade justamente quando poderia decidir pela destruição da cidade, que sempre a reprimiu e a castigou. Narrativamente, a razão de tal decisão pode ser entendida como parte da ética de benevolência da heroína, como mostram os versos 73 a 78: “Foram tantos os pedidos/ Tão sinceros, tão sentidos/ Que ela dominou seu asco/ Nessa noite lancinante/ Entregou-se a tal amante/ Como quem dá-se ao carrasco”. Neste ponto, como já dissemos anteriormente, encontramos o limite da posição de resistência assumida por Geni na canção, que se esvazia diante de uma postura altruísta e sacrifical.

Em um imaginário judaico-cristão, o sacrifício situa Geni como um “bode expiatório”26 26 Há referências ao sacrifício ritual de animais como forma de purificação no livro de Levítico, do Velho Testamento. Mais especificamente, encontramos a descrição de como, no chamado “Dia da Expiação”, os hebreus promoviam o sacrifício de dois bodes – sendo que, um deles, o “bode expiatório”, tinha a função de carregar todas as culpas da nação. , alguém que deveria expiar as culpas da cidade por meio de uma penitência, purificando-a de suas faltas. Metaforicamente, para a manutenção da estrutura de dominação da modernidade capitalista-colonial, é necessária a existência de muitas “Genis”, que se deixem sacrificar. Vale ainda observar que, segundo um ponto de vista cristão, Geni, por sua postura sexualmente libertina, não teria a pureza necessária para redimir a sociedade de seus pecados – o que se expressa na indignação inicial da cidade diante da escolha de Geni. Mas, neste ponto, podemos atribuir ao arranjo composicional do autor-criador da canção a expressão de uma intencionalidade de contrariar esse pressuposto, como se se questionasse, afinal, o que é a verdadeira dignidade.

De fato, não apenas a atitude sacrificial de Geni alude a uma forma de redenção27 27 No roteiro da peça Ópera do Malandro, a personagem Geni/Genivaldo, no momento em que interpreta Geni e o Zepelim, assume uma posição decisiva, que se assemelha à de Geni da canção, na medida em que também sacrifica seus princípios ao delatar o paradeiro de Max Overseas ao inspetor Chaves com o objetivo de redimir a cidade, cujos poderes instituídos estavam prestes a ser desmascarados por uma passeata de setores sociais marginalizados. Dessa forma, também na peça o sacrifício de Geni está ligado à conciliação com as classes dominantes. , como as qualidades a ela atribuídas na obra correspondem a virtudes cristãs: bondade, generosidade, humildade, desapego de bens materiais, postura de doação de si, entendida em sentido amplo, como dedicação ao próximo. Com tal atribuição de tinturas cristãs a Geni, o autor-criador da canção parece querer descortinar, mais uma vez, a hipocrisia da cidade, pois o mesmo discurso religioso que condena a personagem é incapaz de enxergar nela virtudes fundamentais da doutrina que o embasa.

Finalmente, quando o comandante parte da cidade com seu zepelim, saciado, a situação anterior é restabelecida. Aliviado, pois, o temor da cidade, que mais uma vez não vê “serventia” em Geni para além de seu uso como objeto de escárnio e insulto, retomam-se os rituais de condenação inicialmente presentes. O desfecho da canção não aponta para uma superação da estrutura de dominação representada; não se trata de um final com elementos utópicos. Como as chagas de Cristo – que, na tradição cristã, alguns santos trazem no corpo –, Geni carrega a marca indelével de sua condição de ser oprimido-colonizado-desumanizado.

Por tudo isso, mantendo intacta a nobreza de sua heroína, o final trágico da canção (como o da peça) aponta para aquele que talvez seja nosso maior desafio como sujeitos colonizados na modernidade capitalista, dos anos 1970 aos anos 2020: se, por um lado, a conciliação com as elites não nos redimirá, é preciso encontrar, na diferença colonial que nos fratura, caminhos de resistência.

MAIS ALGUNS DIÁLOGOS

Por fim, antes de encerrarmos estas breves reflexões sobre Geni e o zepelim, algumas observações sobre os diálogos intertextuais presentes na canção são necessárias a fim de se ampliarem e complexificarem os argumentos expostos. Ausente do vocabulário bakhtiniano, o termo “intertextualidade” foi proposto por Julia Kristeva como desdobramento da noção de dialogismo desenvolvida pelo pensador soviético (FÁVERO, 2003FÁVERO, Leonor Lopes. Paródia e dialogismo. In: BARROS, Diana Luz Pessoa; FIORIN, José Luiz (Orgs.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade. São Paulo: Edusp, 2003, p. 49-61.). Reconhecendo que o dialogismo comparece na obra de Bakhtin como “condição do sentido do discurso”, Diana Luz Pessoa de (Barros 2003BAKHTIN, Mikhail. Teoria do romance II: as formas do tempo e do cronotopo. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2018., p. 2) destaca dois aspectos principais em que o conceito se desdobra: o da interação entre enunciador e enunciatário e o da intertextualidade no interior do próprio discurso. No segundo caso, que nos interessa fundamentalmente aqui, está em jogo o “diálogo entre os muitos textos da cultura, que se instala no interior de cada texto e o define”, de modo que a intertextualidade se converte em “condição primeira de que o texto deriva” (BARROS, 2003BAKHTIN, Mikhail. Teoria do romance II: as formas do tempo e do cronotopo. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2018., p. 4)28 28 Dimensão muito explorada por comentadores de Bakhtin, sobretudo por aqueles próximos à perspectiva da Análise do Discurso de linha francesa, a correlação entre intertextualidade e dialogismo encontra eco em trabalhos seminais deste campo de estudos, a exemplo do trabalho de Maingueneau (2008) sobre a interação entre formações discursivas polêmicas. .

Nesse sentido, uma das obras com as quais Geni e o zepelim dialoga diretamente é o conto Bola de sebo (1880), de Guy de Maupassant, que retrata alguns dias de convívio entre franceses (burgueses, condes, religiosos) que deixam suas casas, durante a Guerra Franco-Prussiana (1870-1871), parando em uma velha hospedaria no meio da viagem. No grupo, encontra-se uma cortesã, apelidada de “Bola de Sebo” devido a seu sobrepeso. Como o comandante prussiano responsável pela hospedaria decide que só deixaria o grupo seguir viagem quando Bola de Sebo passasse uma noite com ele, a personagem é persuadida por todos a ceder, embora se mostrasse completamente avessa à ideia. Depois de efetivada a “salvação coletiva”, a cortesã é novamente desprezada por seus companheiros de viagem – em um desfecho semelhante ao que encontramos em Geni e o zepelim.

Se tais semelhanças parecem claras e já foram apontadas anteriormente29 29 Destacamos, por exemplo, a abordagem comparada proposta pelo trabalho de Rezende (2007). Em veículos jornalísticos, também é possível encontrar referências à relação entre o conto de Guy de Maupassant e a canção de Chico Buarque, sobretudo em cadernos literários e publicações especializadas. (MATTAR, 2017; ZERO HORA, 2014). , interessa-nos observar os pontos em que o Geni e o zepelim, ao transpor posições axiológicas representadas em Bola de Sebo para uma outra ordenação discursiva, deixa entrever os vieses valorativos segundo os quais sua composição é estruturada. Em especial, destacamos os fatores que motivam as posturas de resistência assumidas por Bola de Sebo e Geni. Isso porque, enquanto no texto de Maupassant (2009)MAUPASSANT, Guy de. Bola de sebo. In: 125 contos de Guy de Maupassant. Trad. Amílcar Bettega. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 34-69. a personagem é movida por um sentimento nacionalista, a canção de Chico imprime um sentido de pertencimento de classe, ainda que difusamente entendido, a Geni.

Cabe destacar lembrar, como temos reiterado, a ausência de elementos, na canção, que permitam afirmar que Geni se prostitua – à diferença da personagem de Maupassant e do roteiro da Ópera do Malandro. Por essa insistência, queremos chamar a atenção para o que, no diálogo proposto pela canção em relação ao conto, opera um deslocamento que reforça a chave interpretativa que propomos neste trabalho: a grande transgressão de Geni está em não se vender, isto é, colocar-se ao mesmo tempo aquém e além da lógica da mercadoria.

Além do conto de Maupassant, a canção de Chico Buarque dialoga também com a canção Jenny-Pirata, que integra a Ópera de três vinténs (1928), de Bertold Brecht. Em Jenny-Pirata, uma trabalhadora de hotel, acostumada ao desprezo e consciente de sua situação de exploração, volta-se contra a opressão burguesa em um gesto de vingança. A personagem tem apoio de homens que chegam em uma nau e bombardeiam toda a cidade, preservando apenas o local de trabalho da moça. Jenny, então, julga os moradores do lugar, presos pelos homens da embarcação, e, em seu veredicto, não poupa ninguém, mostrando-se fria e sádica: ela comemora as cabeças decapitadas (“E ao tombar a cabeça, digo: – oba!”) e embarca com a nau (BRECHT, 1992BARROS, Diana Luz Pessoa de. Dialogismo, polifonia e enunciação. In: BARROS, Diana Luz Pessoa de; FIORIN, José Luiz. (Orgs.). Dialogismo, polifonia, intertextualidade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2003, p. 1-9.).

Observemos que Chico Buarque retoma da canção de Brecht, além da óbvia semelhança entre os nomes “Jenny” e “Geni”, o retrato de uma situação de exploração e grandes disparidades sociais, em que a personagem central, acostumada ao menosprezo e à humilhação, tem nas mãos, subitamente, o poder de decidir pela salvação ou destruição das elites opressoras. Como a canção de Brecht é narrada em primeira pessoa, temos aqui a primeira diferença fundamental em relação à canção Geni e o zepelim: o narrador-personagem de Brecht (Jenny), munido de voz própria, determina os rumos de sua história, enquanto, na canção de Chico, Geni não tem voz e, tampouco, conduz a própria trajetória. Enquanto Jenny adota uma conduta de verdadeira ruptura com a estrutura capitalista de opressão, Geni cede aos desejos dos poderes político, econômico e religioso, movida por um senso irracional de generosidade.

Tomando como inspiração a comparação proposta por Walter Garcia (2013)GARCIA, Walter. Radicalismos à brasileira. Celeuma, v. 1, n. 1, 2013, p. 20-31. https://doi.org/10.11606/issn.2318-7875.v1i1p20-31.
https://doi.org/10.11606/issn.2318-7875....
entre as canções Sinhá (Chico Buarque e João Bosco) e Negro Drama (Edy Rock e Mano Brown), o desfecho de Geni e o zepelim talvez possa ser melhor compreendida se comparada a representações da temática da resistência que configurem outros modos de elaboração do processo histórico da opressão capitalista colonial. Assim, no campo da canção popular, embora correndo o risco de soarmos pouco criativos, seria impossível não retomar a obra do grupo de rap paulistano Racionais MCs, especialmente a partir de Capítulo 4, Versículo 3, terceira faixa do álbum Sobrevivendo no Inferno, de 1997. Na letra de Mano Brown, é possível observar a afirmação de uma ética de classe e raça – a ética do “preto tipo A” – baseada na resistência em relação à adesão a valores das classes dominantes30 30 Retratado como sujeito comprometido com seus semelhantes – ele é admirado pelos outros “manos” e “busca sua preta no portão da escola” –, o “preto tipo A” transforma-se em um simples “neguinho” quando passa a se relacionar com os “branquinhos do shopping” e com “putas de butique”. Assim, pode-se dizer que Capítulo 4, Versículo 3 afirma uma subjetividade pautada por “uma postura combativa por meio da recusa à conciliação com a classe média e as elites e pela denúncia crítica das injustiças sociais. Reconhecer-se nesse éthos é a observância da ‘lei’ proposta pelo rapper”. (OLIVEIRA; SEGRETO; CABRAL, 2013, p. 105). . O ponto fundamental a se observar aqui é que, na canção dos Racionais, a resistência em relação à conciliação com as classes dominantes não é opcional: diferentemente do que vemos no caso de Geni e o zepelim, a violação à ética do “preto tipo A” tem como único destino a morte (metafórica ou literal) do jovem negro e periférico que tenta “sobreviver no inferno”.

Apesar da tintura conciliatória, o melancólico desfecho da canção de Chico parece ser, dialeticamente, um elemento fundamental de sua proposta crítica, ao colocar em cena a impossibilidade de conciliação de classes – como se, às custas da “lição” aprendida por Geni (aprendemos?), fosse desvelada a verdadeira intenção das elites.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste texto, buscamos analisar a letra da canção Geni e o zepelim, de Chico Buarque, composta originalmente para a peça teatral Ópera do Malandro, de 1978, que empreende uma crítica “radical e desesperada dos valores sancionados pela moral burguesa” e traz a marca brechtiana da “tentativa de ruptura com o universo do establishment” (MENESES, 2000MENESES, Adélia Bezerra de. Figuras do feminino na canção de Chico Buarque. São Paulo: Ateliê Editorial/Boitempo, 2000., p. 76). Embora partamos da observação de alguns aspectos temáticos e discursivos presentes na peça a fim de melhor localizar a situação concreta de composição da canção, tomamo-la aqui como objeto autônomo, tendo em vista não apenas a “vida própria” por ela adquirida em seu contexto de recepção – vide, por exemplo, o caso do refrão “joga pedra na Geni!”, que se tornou uma espécie de bordão popular –, como também sua singular potência crítico-política. A fim de compreender os arranjos estéticos capazes de explicar tal singularidade, buscamos observar como o autor-criador, enquanto posição axiológica recortada pelo autor-pessoa, reordena experiências históricas – sobretudo, a experiência de imposição da modernidade capitalista-colonial no Brasil – e textualidades prévias – dentre as quais destacamos o diálogo com Guy de Maupassant e Brecht, por exemplo. Esse processo de reordenação, ou refração, para usar um termo caro ao pensamento do Círculo de Bakhtin (FARACO, 2005FARACO, Carlos Alberto. Autor e autoria. In: BRAIT, Beth. (Org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005.), ocorre segundo vieses valorativos específicos, cuja análise possibilita compreender como diferentes vozes sociais são integradas ao todo estético da obra.

Com base nesse percurso reflexivo, destacamos a forma como o posicionamento axiológico da personagem Geni é representado na canção. Desprovida de valor de troca, uma espécie de Outro da sociedade burguesa, incompreensível e amedrontador, a exemplo – ainda que com as devidas ressalvas – do Odradek de Kafka, a heroína de Chico Buarque sustenta uma posição de resistência frente às estruturas de opressão de gênero-classe impostas pela modernidade capitalista-colonial por meio de uma práxis sexual não apenas moralmente transgressora, mas também – e mais importante – economicamente improdutiva.

Nos termos de Meneses (2000)MENESES, Adélia Bezerra de. Figuras do feminino na canção de Chico Buarque. São Paulo: Ateliê Editorial/Boitempo, 2000., podemos entender como um infeliz privilégio a forma como Geni se relaciona com sua própria sexualidade (MENESES, 2000MENESES, Adélia Bezerra de. Figuras do feminino na canção de Chico Buarque. São Paulo: Ateliê Editorial/Boitempo, 2000.). Esse aparente “paradoxo” da heroína remete ainda ao que Lugones (2009, p. 364) descreve como uma possibilidade de “conquista infrapolítica” por meio do processo do “oprimiràßresistir no lócus fraturado da diferença colonial”, ao colocar em cena uma experiência subjetiva não moderna, não capitalista, que irrompe em sua existência colonizada, como algo diferente do que a hegemonia a faz ser.

Dentre as vozes que falam na canção, destaca-se o discurso do narrador, que restitui à personagem principal o direito ao reconhecimento de seu estatuto de humanidade. Atribuindo a Geni valores como generosidade, benevolência, humildade e integridade, o narrador se movimenta a partir de uma posição axiológica em princípio semelhante ao ideário cristão valorizado na sociedade representada na canção; ao mesmo tempo, esse posicionamento entra em choque com as vozes da cidade ao chamar a atenção para suas contradições, mostrando que o mesmo discurso que condena a heroína desconsidera suas virtudes cristãs.

A partir do narrador e das demais personagens, o autor-criador orquestra as vozes que falam na canção, escancarando as contradições e a perversidade dos discursos político, econômico e religioso que representam o poder instituído na sociedade que condena Geni – e também em um Brasil marcado (em 1978, mas também em 2022) pelo militarismo, pela intolerância, pelo liberalismo econômico, pelo fundamentalismo religioso. Dessa forma, a perspectiva crítica presente no discurso da canção deve ser considerada à luz de uma posição valorativa assumida por ser autor-pessoa, que representa as posições axiológicas em jogo na obra à luz de questões colocadas pela experiência histórica do momento de sua composição.

Não se pode esquecer ainda que a regulação da sexualidade na modernidade ocidental opera a serviço da manutenção da sociedade burguesa e do modo de produção capitalista. Há, com efeito, uma economia do sexo, com a demarcação das sexualidades improdutivas e sexualidades produtivas. Preciado (2014)PRECIADO, Beatriz. Manifesto Contra-sexual. Trad. Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: n-1 edições, 2014., por exemplo, refere-se ao sexo e ao gênero como resultantes de dispositivos disciplinares que instauraram pedagogias da sexualidade andróginas e heterocentradas, em uma concepção que ecoa – e radicaliza – as palavras de (Foucault 1997FOUCAULT, Michel. História da sexualidade. A vontade de saber. Rio de Janeiro: Graal, 1997., p. 35): “uma sociedade normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida”31 31 A radicalidade do gesto de resistência representado através da posição de Geni torna-se mais evidente quando consideramos que foi apenas na década de 1970 que o conceito de gênero como categoria relacional adentrou o pensamento ocidental (MATOS, 2008), chegando ainda mais tarde aos debates feministas brasileiros. .

Por tudo isso, a resistência maior de Geni parece residir não no fato de a personagem viver sua sexualidade livremente, mas, sobretudo, no fato de vivê-la improdutivamente. Assim, apesar da proximidade narrativa entre Geni e o zepelim e o conto Bola de sebo, de Guy de Maupassant, é significativa a ausência de elementos, na canção, que permitam afirmar que Geni prostitua-se – à diferença da personagem de Maupassant e do próprio enredo da Ópera do Malandro. Isso porque, ao silenciar sobre esse aspecto, a canção abre uma possibilidade interpretativa importante: a grande transgressão de Geni está em não se vender, despertando o ódio da “gente de bem” da cidade por colocar-se ao mesmo tempo aquém e além do valor de troca que caracteriza as relações sociais mercantilizadas no contexto do neoliberalismo.

Em suma, Geni apresenta uma postura que se opõe à moralidade sexual hegemônica e à hipocrisia que mascara as desigualdades sociais; sobretudo, ela se faz sujeita na resistência à estrutura de opressão capitalista-colonial que se instaura por meio da imposição de categorias dicotômicas, interseccionando dimensões de gênero, sexualidade e classe. Dando-se aos marginalizados e desvalidos, a “quem não tem mais nada”, Geni resiste à própria modernidade que parecia anunciar-se no Brasil dos anos 1970 e continua, mais de quatro décadas depois, investindo contra possibilidades subjetivas de existência-resistência que, à revelia, continuam a emergir, nas bordas e nas brechas.

  • 2
    A Ópera do Malandro é baseada na Ópera de Três Vinténs (1928), de Bertold Brecht e Kurt Weill, por sua vez inspirada na Ópera dos Mendigos (1728), de John Gay. Embora façamos, ao longo do trabalho, referências pontuais às obras predecessoras, não nos aprofundaremos, neste momento, na análise dos movimentos dialógicos inerentes ao processo de adaptação que funda o roteiro da peça, em que pese a proposta do teatro épico brechtiano. Reconhecemos, porém, a importância de se considerar tais questões para o adensamento da compreensão da obra de Chico.
  • 3
    Filiando-se à crítica das mulheres-não brancas e do terceiro mundo ao feminismo universalista, María Lugones (2019)LUGONES, María. Rumo a um feminismo decolonial. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 357-377., importante teórica do feminismo decolonial, assume a intersecção de gênero/raça/classe como chave para a compreensão da relação entre colonizador e colonizado, descrevendo a imposição de uma “estrutura de gênero”, entendida como sistema de categorização/dicotomização, como mecanismo fundamental de operação da “colonialidade do poder”. Assim, como procedimento principal para uma metodologia de pesquisa decolonial, a autora defende o olhar para experiências de resistência à colonialidade dos gêneros.
  • 4
    Evidentemente, para colocar o pensamento de Lugones (2019)LUGONES, María. Rumo a um feminismo decolonial. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 357-377. em cotejo com a realidade brasileira, algumas mediações devem ser feitas. Em especial, destacamos a dificuldade de inclusão plena do Brasil em certa noção de “américa-latinidade” e a particular condição das dinâmicas de dominação racial no país; como nos lembra Lélia González (2019, p. 341)GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural da Amefricanidade. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019, p. 341-352.
    https://doi.org/341-352...
    , seríamos, antes, “ladino-amefricanos”. Não obstante tais ressalvas, apostamos na pertinência da perspectiva de Lugones (2019)LUGONES, María. Rumo a um feminismo decolonial. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 357-377. para pensar o espaço de resistência representado, pela mobilização de marcadores interseccionados de gênero, sexualidade e classe, na canção Geni e o zepelim.
  • 5
    É possível encontrar pequenas variações na letra da canção entre diferentes versões. No roteiro da peça Ópera do Malandro, por exemplo, os versos 7 a 9 aparecem como: “Foi assim desde menina/ Das lésbicas, concubina/ Dos pederastas, amásio”. (BUARQUE, 1985BRECHT, Bertold. Teatro Completo. Trad. Wolfgang Bader e Marcos Roma Santa. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992., p. 161).
  • 6
    Ainda que não se possa afirmar a existência de influências diretas no plano de composição das obras, não deixa de ser relevante destacar o possível diálogo estabelecido pela Ópera do Malandro em relação à personagem Geni de Toda nudez será castigada, de Nelson Rodrigues, obra fundamental do teatro brasileiro moderno, que estreou em 1965, no Rio de Janeiro, com direção de Ziembinski. Na peça de Nelson, Geni é uma prostituta que se torna objeto da paixão do protagonista Herculano, recém-viúvo. Ele se casa com Geni e a leva para morar na mansão da família, onde Geni terá um caso extraconjugal com Serginho, seu enteado.
  • 7
    Considerando a Ópera do Malandro como alegoria da modernização capitalista, a figura do zepelim, central à narrativa da canção que analisamos neste trabalho, parece representar papel particularmente sugestivo, já que seu comandante – descrito como um “forasteiro” e um “guerreiro temido e poderoso” – remete às relações entre o poder militar que comandava o Estado brasileiro nos anos 1970 e o imperialismo estadunidense, que invade a cidade da canção para, diante de “tanto horror e iniquidade”, colocar “ordem na casa” (ou “tudo explodir”).
  • 8
    Embora a presença frequente e marcante de representações do malandro e da malandragem na literatura, na canção popular, no cinema e no teatro brasileiros não seja objeto principal deste trabalho, é preciso observar que o já-dito destas narrativas se coloca, inevitavelmente, no pano de fundo das relações dialógicas que caracterizam a canção Geni e o zepelim. Da mesma forma, o percurso trágico do “malandro brasileiro” de Chico Buarque não poderia deixar de ser considerado à luz da “dialética da malandragem” descrita, anos antes, por Antônio Cândido (1970)CÂNDIDO, Antônio. Dialética da Malandragem. Revista Do Instituto De Estudos Brasileiros (São Paulo), n. 8, 1970, p. 67-89. Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i8p67-89.
    https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X....
    .
  • 9
    Apesar disso, vale lembrar, como assinala Lélia Gonzalez (2020)GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: RIOS, Flavia; LIMA, Mariana (Orgs.). Por um feminismo afro-latino-americano. São Paulo: Zahar, 2020., que a associação da negritude à indolência – e, destas, com a malandragem – é peça-chave do discurso racista (e, sobretudo, de um discurso de naturalização do racismo) no Brasil.
  • 10
    No caso de Geni e o zepelim, este processo de deslocamento apresenta singularidades em relação ao texto principal da peça. Isso porque, enquanto, no texto teatral, a narrativa se passa no Estado Novo, o exame do cronotopo representado na canção parece indicar a predominância de referências a um tempo histórico relativamente inespecífico, embora seja possível identificar um elemento – o zepelim – que sugira a representação de um passado ainda mais distante do que aquele representado no texto principal peça, já que os zepelins tornaram-se conhecidos sobretudo por seu uso militar durante a Primeira Guerra Mundial.
  • 11
    Sem nos aprofundarmos em uma discussão acerca desta ausência, cabe notar que o debate acadêmico e político sobre gênero e interseccionalidade tarda a se constituir no Brasil em virtude das próprias singularidades que caracterizam a trajetória de consolidação do espaço dos estudos feministas e, mais especificamente, dos estudos de gênero no país. (HOLLANDA, 2018HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Explosão feminista: arte, cultura, política e universidade. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.).
  • 12
    A Ópera do Malandro é um musical e, portanto, as canções que a integram possuem papel decisivo na construção de sua narrativa (MAGALDI, 1979MAGALDI, Sábato. Chico Buarque frustra uma esperança. São Paulo: Jornal da Tarde, 1979.). No entanto, dadas as limitações no espaço neste texto e considerando a autonomia relativa de Geni e o zepelim enquanto obra musical, optamos por examiná-la de modo independente. Dessa forma, recorreremos a elementos próprios do roteiro teatral apenas de modo pontual, quando necessário à iluminação de particularidades do objeto em foco e/ou à elucidação de aspectos de um contexto mais amplo de interação discursiva no qual a canção foi composta.
  • 13
    Em Bakhtin (2015)BAKHTIN, Mikhail. O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003., o heterodiscurso é definido como o conjunto de diferentes linguagens que compõem o discurso do romance, sendo concebido como recurso estético característico desse gênero discursivo, no qual se materializa por meio de unidades básicas de composição, tais como os discursos dos personagens e do narrador, a presença de gêneros intercalados etc. Assim, sem deixar de reconhecer as evidentes diferenças entre as formas históricas do romance e da canção popular comercial, o conceito de heterodiscurso é aqui mobilizado como ponto de partida para uma leitura da forma como diferentes vozes são representadas em Geni e o zepelim.
  • 14
    Em relação à problemática geral da heterogeneidade discursiva, reconhecemos a existência de diferentes autores no campo da Análise do Discurso, sobretudo em sua vertente francesa, que desenvolveram trabalhos relevantes sobre a questão. Porém, que a opção por adotar neste texto a perspectiva do chamado “Círculo de Bakhtin” – em especial, a partir de Volóchinov (2017)VOLÓCHINOV, Valentin. (Círculo de Bakhtin). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico na ciência da linguagem. Trad. Sheila Grillo e Ekaterina Vólkova Américo. São Paulo: Editora 34, 2017. e Bakhtin (2015)BAKHTIN, Mikhail. O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003. – justifica-se pelo fato de o objeto de estudo sobre o qual nos debruçamos ser da ordem do enunciado, e não da ordem de uma formação discursiva, conforme caberia a uma análise apoiada em Maingueneau (2008)MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos Discursos. São Paulo: Parábola Editorial, 2008., por exemplo.
  • 15
    Não deixa de ser interessante notar que, enquanto, no roteiro teatral, a personagem Geni/Genivaldo é uma travesti, essa identidade não é explicitada – embora tampouco seja negada – na letra da canção; da mesma forma, enquanto, na peça, Geni é descrita como uma prostituta, esse dado não se apresenta em nenhum momento na letra da canção. Neste trabalho, consideraremos as formas pelas quais a personagem é representada especificamente na canção, escolha que se justifica, para além dos motivos já expostos, pelo fato de a canção ter se tornado provavelmente mais famosa do que a própria peça, ao menos entre parte do público de Chico.
  • 16
    Central ao pensamento de Lugones (2019)LUGONES, María. Rumo a um feminismo decolonial. In: HOLLANDA, Heloisa Buarque de (Org.). Pensamento feminista: conceitos fundamentais. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019. p. 357-377., o conceito de “colonialidade do poder” foi cunhado, originalmente, pelo sociólogo peruano Aníbal Quijano, com o objetivo de evidenciar, nas palavras de Susana de (Castro 2018CASTRO, Susana de. Condescendência: estratégia pater-colonial de poder. Revista Fundamentos, Teresina, v. 1, n. 1, 2018, p. 51-59. Disponível em: https://revistas.ufpi.br/index.php/fundamentos/article/view/7863. Acesso em: 15 abr. 2022.
    https://revistas.ufpi.br/index.php/funda...
    , p. 53), “que o colonialismo não representa apenas uma época e um modo de relacionamento de dominação entre países europeus e países não europeus, mas também configura uma forma de dominação cultural do capitalismo global que perdura até hoje”.
  • 17
    Esse dado parece-nos particularmente claro quando consideramos que, no texto da Ópera do Malandro, Geni é a travesti Genivaldo; ela desafia, portanto, a dicotomia masculino/feminino, ao mesmo tempo em que evidencia o caráter arbitrário/construído da performance de gênero.
  • 18
    Dialogamos aqui com a leitura psicanalítica proposta pela crítica feminista Laura Mulvey (1983)MULVEY, Laura. Prazer visual e cinema narrativo. In: XAVIER, Ismail. (Org.). A experiência do cinema. Rio de Janeiro: Graal, 1983.; embora seus escritos se dediquem sobretudo à análise de obras fílmicas, sua leitura sobre as dinâmicas de opressão sexual a partir de diferentes modos de subjetivação de homens e mulheres (e, em particular, sobre o papel da satisfação do desejo masculino a partir do cinema) oferecem insights relevantes para este trabalho.
  • 19
    Se a desumanização de Geni ocorre no plano narrativo, podemos indagar se, em alguma medida, ela também se dá no plano composicional, já que o autor-pessoa da canção é um homem não marginalizado, que concebe a história da personagem Geni, uma mulher marginalizada. Trata-se de uma indagação complexa, cujo tratamento foge ao escopo e às possibilidades deste texto, mas cumpre-nos destacá-la aqui como forma de reconhecer os limites deste trabalho e, ao mesmo tempo, sublinhar a relevância da questão, a ser tratada em pesquisas futuras.
  • 20
    Em outras palavras, seria possível pensar a canção como qualquer outro texto narrativo lido (interpretado) em voz alta para uma plateia: evidentemente, haveria ali uma única voz (a voz de quem lê em voz alta) responsável pela leitura de todos os trechos, inclusive aqueles em discurso direto, mas isso não nos permite confundir a voz do leitor-intérprete com as vozes lidas (nem com a voz do narrador, nem com as vozes dos personagens).
  • 21
    Neste caso, parece haver um sentido irônico, afinal, não se espera que uma pessoa seja violentamente insultada por ser bondosa. Trata-se de uma passagem interessante porque, considerando a orquestração global das vozes na canção, é possível atribuir tal visada irônica à crítica social proposta pelo autor-criador, refratada na voz do narrador, que se volta contra a hipocrisia social presente na cidade, que se diz cristã, mas se incomoda com a benevolência alheia. Como veremos adiante, a bondade de Geni, que tanto incômodo causa, parece decorrer de sua práxis sexual, uma vez que a personagem se dá (e não se vende) a “quem não tem mais nada”.
  • 22
    No caso da expressão “Tão coitada, tão singela”, enxergamos a materialização de uma construção híbrida, que expressa tanto a voz do narrador (modulação afetuosa) quanto a voz da cidade (palavras empregadas), que se mostra espantada com o fato de Geni ter sido escolhida como objeto de desejo sexual pelo comandante do zepelim. Dessa forma, a presença de duas ou mais vozes em um fragmento textual não deve ser vista, segundo Bakhtin (2015)BAKHTIN, Mikhail. O problema do texto na linguística, na filologia e em outras ciências humanas. In: Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes, 2003., como indício de alinhamento axiológico por parte de uma das vozes (no caso, a voz do narrador) em relação às demais vozes representadas (no caso, a voz da cidade).
  • 23
    Entre diferentes hipóteses, poderíamos questionar se ela o teria feito por uma espécie de “desejo inconfessável” ou por uma “demanda de reconhecimento”, por exemplo.
  • 24
    Deve-se reconhecer que estes versos poderiam ser problematizados a partir da perspectiva de Rago (2014)RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade disciplinar: Brasil 1890-1930. 4. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2014, p. 113-115., que identifica, em discursos médicos do século XIX, representações que apontavam a “faceirice” como uma característica “inata” das meninas, argumento empregado para defender toda sorte de práticas repressivas. Assim, seria possível indagar se eles não ecoariam algo do estereótipo sobre a “faceirice inata” das mulheres. Portanto, embora fuja ao escopo deste texto, ressaltamos a necessidade, em trabalhos futuros, de analisar criticamente a letra da canção e a própria situação do autor-pessoa à luz dos Estudos de Gênero.
  • 25
    Neste ponto, vale lembrar que, não obstante seja anterior às relações mediadas pelo dinheiro, a prostituição vinculou-se de modo indissociável a este último com o advento do capitalismo, assumindo hoje contornos totalmente diversos daqueles verificados em contextos não modernos e não capitalistas, nos quais esteve ligada inclusive a práticas rituais e sagradas (ROBERTS, 1998ROBERTS, Nickie. As prostitutas na história. Trad. Magda Lopes. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1998.). Nesse sentido, quando afirmamos que não há na canção evidências de que Geni se prostitua – afinal, ela “se dá”, mas não “se vende” –, referimo-nos ao sentido que a prostituição assume na modernidade capitalista, qual seja, o de prática sexual mediada por dinheiro.
  • 26
    Há referências ao sacrifício ritual de animais como forma de purificação no livro de Levítico, do Velho Testamento. Mais especificamente, encontramos a descrição de como, no chamado “Dia da Expiação”, os hebreus promoviam o sacrifício de dois bodes – sendo que, um deles, o “bode expiatório”, tinha a função de carregar todas as culpas da nação.
  • 27
    No roteiro da peça Ópera do Malandro, a personagem Geni/Genivaldo, no momento em que interpreta Geni e o Zepelim, assume uma posição decisiva, que se assemelha à de Geni da canção, na medida em que também sacrifica seus princípios ao delatar o paradeiro de Max Overseas ao inspetor Chaves com o objetivo de redimir a cidade, cujos poderes instituídos estavam prestes a ser desmascarados por uma passeata de setores sociais marginalizados. Dessa forma, também na peça o sacrifício de Geni está ligado à conciliação com as classes dominantes.
  • 28
    Dimensão muito explorada por comentadores de Bakhtin, sobretudo por aqueles próximos à perspectiva da Análise do Discurso de linha francesa, a correlação entre intertextualidade e dialogismo encontra eco em trabalhos seminais deste campo de estudos, a exemplo do trabalho de Maingueneau (2008)MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos Discursos. São Paulo: Parábola Editorial, 2008. sobre a interação entre formações discursivas polêmicas.
  • 29
    Destacamos, por exemplo, a abordagem comparada proposta pelo trabalho de Rezende (2007)REZENDE, Irene Severina. Similaridades temáticas além-fronteiras: Chico Buarque e Guy de Maupassant. Revista Crioula, n. 2, 2007, p. 1-11. Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.1981-7169.crioula.2007.53581.
    https://doi.org/10.11606/issn.1981-7169....
    . Em veículos jornalísticos, também é possível encontrar referências à relação entre o conto de Guy de Maupassant e a canção de Chico Buarque, sobretudo em cadernos literários e publicações especializadas. (MATTAR, 2017MATTAR, Rita. O duplo invisível. Quatro Cinco Um. Literatura, [S.l.], 01 dez. 2017. Disponível em: https://www.quatrocincoum.com.br/br/resenhas/l/o-duplo-invisivel. Acesso em: 12 jan. 2021.
    https://www.quatrocincoum.com.br/br/rese...
    ; ZERO HORA, 2014ZERO HORA. Conheça a história por trás de cinco músicas de Chico Buarque. Zero Hora, Cultura e Lazer, 19 de junho de 2014. Disponível em: https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-e-lazer/noticia/2014/06/Co-nheca-a-historia-por-tras-de-cinco-musicas-de-Chico-Buarque-4529856.html. Acesso em: 12 jan. 2022.
    https://gauchazh.clicrbs.com.br/cultura-...
    ).
  • 30
    Retratado como sujeito comprometido com seus semelhantes – ele é admirado pelos outros “manos” e “busca sua preta no portão da escola” –, o “preto tipo A” transforma-se em um simples “neguinho” quando passa a se relacionar com os “branquinhos do shopping” e com “putas de butique”. Assim, pode-se dizer que Capítulo 4, Versículo 3 afirma uma subjetividade pautada por “uma postura combativa por meio da recusa à conciliação com a classe média e as elites e pela denúncia crítica das injustiças sociais. Reconhecer-se nesse éthos é a observância da ‘lei’ proposta pelo rapper”. (OLIVEIRA; SEGRETO; CABRAL, 2013OLIVEIRA, Leandro Silva de; SEGRETO, Marcelo; CABRAL, Nara Lya Simões Caetano. Vozes periféricas: expansão, imersão e diálogo na obra dos Racionais MC’s. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros (São Paulo), n. 56, 2013, p. 101-126. Disponível em: https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X.v0i56p101-126.
    https://doi.org/10.11606/issn.2316-901X....
    , p. 105).
  • 31
    A radicalidade do gesto de resistência representado através da posição de Geni torna-se mais evidente quando consideramos que foi apenas na década de 1970 que o conceito de gênero como categoria relacional adentrou o pensamento ocidental (MATOS, 2008MATOS, Marlise. Teorias de gênero ou teorias e gênero? Se e como os estudos de gênero e feministas se transformaram em um campo novo para as ciências. Revista Estudos Feministas, v. 16, n. 2, 2008, p. 333-357. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-026X2008000200003.
    http://dx.doi.org/10.1590/S0104-026X2008...
    ), chegando ainda mais tarde aos debates feministas brasileiros.

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Set 2022
  • Data do Fascículo
    Ago 2022

Histórico

  • Recebido
    25 Jan 2022
  • Aceito
    02 Maio 2022
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