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Watú não está morto!

Watú is not dead!

RESUMO

O presente artigo tem por objetivo apresentar as obras de 11 artistas brasileiros contemporâneos que fizeram parte da mostra Watú não está morto!, apresentada no IEB/USP em 2022, na qual foram abordadas questões gerais da atualidade, a exemplo de gênero e de raça, a destruição das florestas e de seus povos, a crescente dependência do indivíduo contemporâneo em relação à tecnologia, além do lugar do Brasil no plano global de desenvolvimento. Não obstante esse panorama, foram também discutidos temas como apagamento da produção intelectual de mulheres, negros, lgbtqiapn+, indígenas e periféricos. A exposição, assim como o artigo, visa demonstrar, a partir da diversidade de posições, lugares de origem e afirmações de gênero não binário, como o Brasil está permanentemente em xeque por conta da violência, da injustiça social, do apagamento da memória coletiva, da destruição da natureza e do cerceamento da maioria do povo às riquezas tão prometidas pelos mandatários de todos os tempos.

PALAVRAS-CHAVE
Arte; exposição; modernismo; decolonialidade

ABSTRACT

This article aims to present the artworks of 11 contemporary Brazilian artists who were part of the exhibition Watú is not dead!, presented at the IEB/USP in 2022. These artists discussed general current issues, such as gender and race, the destruction of forests, and its native people, the increasing dependency of the contemporary individual on technology, in addition to Brazil’s place in a global development plan. The discussion also focuses on the annulment of the intellectual production of women, blacks, lgbtqia+, indigenous and poor people. The exhibition, as well as the article, aims to demonstrate, through the diversity of positions, places of origin and non-binary gender statements, how Brazil is permanently in check, due to violence, social injustice, the elimination of collective memory, environmental destruction, and the population’s restriction to the wealth so often promised by the rulers of all times.

KEYWORDS
Art; exhibition; modern art; decoloniality

O ano de 2022 é simbólico para a nação brasileira não só porque retoma os 100 anos da semana artística conduzida no Teatro Municipal de São Paulo, que, objeto de recentes debates e controvérsias, foi firmada como marco inaugural da arte moderna brasileira, mas principalmente porque rememora os 200 anos da soberania, ainda que contraditória, do país.

Nesses marcos é comum observar iniciativas por parte de instituições que celebram fatos ou personalidades que se quiseram notáveis. Comemorar portanto é perpetuar uma narrativa que se estabeleça enquanto memória. Não é novidade que desde os tempos antigos as elites dirigentes lançam mão de expedientes objetivando o controle de memórias coletivas, consequentemente de narrativas históricas, que servem a propósitos de manutenção de domínio e de poder, territorial ou social. Se por um lado a história oficial consolidou a Semana de Arte Moderna de 1922 como berço da renovação cultural brasileira, por outro firmou a Proclamação da Independência como origem da nação. Essas duas divisas, por coincidência ou por força, foram exploradas por uma elite social e economicamente privilegiada e apresentadas como a representação do caráter da cultura brasileira. É importante ressaltar que os museus, acervos e grande parte das instituições brasileiras, apesar de poucas exceções, foram assentados nesses princípios, sendo portanto incapazes de salvaguardar a soma de tradições e de identidades diversas. Por mais que hoje haja esforço em promover narrativas diferenciadas, as coleções dessas entidades estão intrinsecamente ligadas à herança colonial e aos seus processos de racialização e de segregação.

Nesse contexto, pensar a complexidade de significados que a efeméride de 22 traz aos dias atuais, sem incorrer entretanto em causalismos simplórios nem tampouco substituições grosseiras, é desafio que a exposição Watú não está morto!2 2 A exposição ocorreu no IEB de 29 de junho a 4 de setembro de 2022, com curadoria de Maíra Ortins, do historiador Fabrício Reiner e do professor Luiz Armando Bagolin (IEB/USP). se propôs enfrentar. Esse projeto, que teve por objetivo apresentar obras de 11 artistas brasileiros contemporâneos, abordou questões de gênero e de raça, a destruição das florestas e de seus povos, a relação cada vez mais dependente do indivíduo contemporâneo dos meios tecnológicos, além do lugar do Brasil no plano global de desenvolvimento, no qual países pobres ainda são vistos como locais exclusivos de extração de matéria-prima, assim como o apagamento da produção intelectual de mulheres, negros, lgbtqiapn+, nordestinos, indígenas e periféricos.

As propostas, tão diversas quanto as origens de seus proponentes, expressaram, através das respectivas poéticas de cada artista, suas visões e angústias sobre o Brasil atual, mostrando, nesse sentido, de modo contundente, como o Brasil está permanentemente em xeque por conta da violência (que é histórica), da injustiça social, da destruição da natureza, do cerceamento da riqueza para a maioria do povo e, principalmente, da manipulação da memória coletiva.


Cinthia Marcelle. Sem título (Verdade ou desafio na Coleção do IEB), 2022. Fotografia: Karim Kahn

O Instituto de Estudos Brasileiros, que junto ao Serviço Social da Indústria (Sesi-SP) promoveu a mostra, é, como se sabe, um dos repositórios mais importantes do país e conta com um acervo dos mais significativos para a história da literatura, artes ou ciência sociais. Não é novidade que a coleção Mário de Andrade, adquirida pelo Instituto ainda no decênio de 1960, notabilizou a instituição como um dos principais centros difusores da história do modernismo brasileiro. Se por um lado essas pesquisas desenvolvidas no IEB fundamentaram as bases para o pensamento acerca das artes e literatura modernas no Brasil, centradas principalmente nas figuras de Mário e Oswald de Andrade, por outro contribuíram, de maneira indireta mas decisiva, para o apagamento das iniciativas exógenas ao círculo dessas duas figuras. Ainda que a história do modernismo brasileiro seja muito recente e careça de revisitação em diversos níveis, uma vez que sua história se confunde com interesses particulares e coletivos que a acompanham, desde seus princípios, é certo afirmar que o território da arte moderna no Brasil sempre esteve em intensa disputa. Curioso notar, por exemplo, que o decênio de 1970 viu a obra de Oswald de Andrade ser pleiteada tanto pelas vanguardas artísticas de esquerda, a exemplo da dramaturgia de José Celso ou pela música de Caetano Veloso, quanto pelas mais altas patentes de inteligência estatal da ditadura militar, que buscava justamente em signos modernistas uma ideia de nação e de unidade cultural.

Essa querela a respeito da proeminência da memória cultural modernista, que se estendeu aos dias atuais, de maneira diversa evidentemente, é objeto da reflexão de Cinthia Marcelle, uma das artistas convidadas, que repropôs sua obra Verdade ou desafio para a mostra. Exposto pela primeira vez em março de 2018 no Modern Art Oxford, o vídeo, realizado por um software desenvolvido, a pedido da artista, por Pedro Veneroso, a partir de uma fotografia de celular feita na África do Sul, apresentava um trígono sobre fundo de terra batida, que, em loop, girava em torno do próprio eixo em movimentos simétricos (em sentido horário e anti-horário, alternado por pequena pausa). Se o movimento do triângulo no filme lembrava o da agulha de uma bússola ou do ponteiro de um relógio, ele também evocava o passatempo pueril “verdade ou desafio”.

Ao relacionar o vídeo às vitrines vazias do Instituto, em paralelo à figura de Mário de Andrade, representada por seu chapéu de palha, Cinthia rediscutia o tema da memória cultural pautada pela construção da ideia de nação brasileira no singular. A incerteza sobre essa pretensa ideia de nação que opera, contudo, em estado de crise permanente, facultada pela polissemia do trígono apontando para vitrines vazias, abre uma discussão ampla, pois enseja à impermanência e ao devir, uma vez que indicia, em perspectiva decolonial, que a preservação e a apresentação de acervos memoriais, como os que pertencem ao IEB, devem ser pensadas de modo crítico, levando-se em consideração mais os esquecimentos da história que sua preservação.


Sabyne Cavalcanti. Ruínas da Prainha (da série Corpo Móvel), 2015. Fotografia: Karim Kahn

A memória institucional é também objeto da reflexão da artista cearense Sabyne Cavalcanti, que em Ruínas da Prainha e Origens da Terra, aborda não só a tragédia da precariedade institucional brasileira, no que se refere à preservação da memória de uma época e de um povo, como ainda relaciona, através da arquitetura e de objetos do cotidiano que marcaram um período, questões de identidade. A tentativa de reconstrução dos azulejos que foram descartados pela paróquia da Igreja Nossa Senhora da Conceição da Prainha, localizada na cidade de Fortaleza, originariamente produzidos em Portugal, aponta para o dilema que mais uma vez se define para o Brasil: preservar a brutalidade da herança colonial portuguesa ou construir algo novo a partir de suas ruínas? A questão se torna ainda mais controversa ao se constatar que a destruição dos azulejos foi executada em edifício tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), que, por sua vez, fora construído sobre uma antiga ocupação potiguara, evidentemente desalojada e destituída.


Gê Viana. Atualizações traumáticas, 2022. Fotografia: Karim Kahn

A herança colonial contraditória é igualmente assunto constante nos trabalhos de Gê Viana. A artista maranhense de Santa Luiza (MA), reconhecida por suas colagens decoloniais em que transpõe imagens contemporâneas inspiradas por acontecimentos cotidianos em confronto com a cultura colonizadora hegemônica e seus sistemas de arte e comunicação, busca ressignificar imagens historicamente firmadas pela cultura oficial com o objetivo de denúncia dos apagamentos perpetrados por esse sistema. Mesmo as imagens etnográficas, tidas como “científicas” e, portanto, neutras, não são, segundo a artista, capazes de dissimular o preconceito nem o interesse de sobreposição e dominação dos povos originários. Nesse sentido, ao questionar as imagens, interroga inclusive as instituições que as preservam. A apropriação do outro a partir da classificação e exibição, por exemplo, de seus objetos culturais e de sua imagem subalternizada, contribuiu para uma estratégia de dominação e de submissão que teve consequências estendidas até os dias atuais, como se pode observar na perpetuação de preconceitos que justificam políticas de extermínio conduzidas pelo governo atual. Embora timidamente, há hoje tentativa de reelaboração crítica dentro de algumas instituições que intenta refletir sobre a história autoritária da formação de seus acervos. Isso é fundamental na medida em que é muito difícil a compreensão do contexto de violência que sustenta um sistema oferecido como benigno, pois rotulado de cultura. Nisso, a obra de Gê Viana excele.

A violência e brutalidade da história colonial brasileira foi similarmente assunto do trabalho interdisciplinar de Luisa Puterman, que imiscuiu uma experiência sonora ao acervo documental da instituição. Ao sistematizar em um arquivo de áudio a descrição de 340 documentos pertencentes ao Arquivo do IEB e recitá-los na sua integridade, a artista explicitou, de maneira crua e direta, atrocidades do sistema legal brasileiro, perpetradas em nome do que se convencionou “civilização”. Ao longo de duas horas de gravação sonora, a leitura sistemática de documentos descreve o processo de loteamento das terras pertencentes aos povos originários, iniciado a partir das capitanias hereditárias e que ainda perdura nos conflitos de demarcação do que restou das terras indígenas atuais. Para além, é possível adentrar o submundo da extração do minério, da descoberta do ouro, das pedras preciosas, do desmatamento e comercialização da madeira. “Custou uma porção de sal a Jozeph de Sousa e João Paes do Amaral a compra de uma criança indígena da nação Camaiuari”, diz um registro feito no Arraial de Nossa Senhora do Amparo de Santa Ana, em 1727, em que também consta a compra de um negro, da nação Manao, por dois machados, adquirido no mesmo ano e pelo mesmo proprietário. Quando lidos de forma burocrática e monotônica pela artista, esse e outros registros insinuam que as raízes das mazelas e preconceitos arraigados na sociedade brasileira residem justamente na apatia administrativa com que tratamos as brutalidades mais injustificáveis de nossa história.


Lyz Parayzo. Escudo tubarão, 2022. Fotografia: Karim Kahn

Crueldade e preconceito são aspectos que a obra de Lyz Parayzo abordou, só que a partir de perspectiva da invisibilidade dos transgêneros no Brasil. A escultora eleva no saguão principal do Instituto Escudo tubarão, peça em alumínio de mais de 2 metros de diâmetro que compõe conjunto de trabalhos nos quais a artista reinterpreta a série Bichos, de Lygia Clark. Se os objetos da artista neoconcreta estimulam o contato e a participação do público como forma de contrapor-se à racionalidade industrial da produção concretista da década de 1950, para Lyz, ao contrário, as esculturas não são dóceis e tampouco devem ser tocadas, dadas as proporções e a imponência monumental que as distinguem enquanto signo. Possuem ásperas arestas que dão ao corpo da peça um aspecto que suscita mais à admiração e à precaução do que ao afeto, uma vez que indiciam o fio de uma navalha ou as bordas de um serrote. O aspecto aguerrido e combativo do Escudo alude entretanto mais à resistência que à agressão, única forma de subsistir em uma sociedade machista e racista que ataca, incessante, diversidades e minorias.


Tetta Marie Carangi. Instetâncias de poder, 2005. Fotografia: Karim Kahn

A emancipação do corpo feminizado frente às estruturas patriarcais de poder é ainda discussão da artista recifense Tetta Marie Carangi, que articula, na instalação Instetâncias de poder, estruturas que se relacionam entre si com o propósito de reivindicar espaços nos quais o corpo possa existir fora de categorizações preexistentes. Usa técnicas transdisciplinares para articular demandas emancipatórias através de intervenção física direta. Na videoperformance des-hino iNacional, voz e gesto esbarram, nem sempre harmonicamente, na arquitetura modernista de Brasília, gerando ecos e efeitos sonoros produzidos pela manipulação de microfones e apito de nariz. Ao inflar a matéria sonora e garantir sua propagação na arquitetura côncava e convexa da capital federal, Tetta busca irromper o espaço, remodelando a comunicação. Dessa especulação emergem novas proposições linguísticas, as quais escapam às normas gramaticais, ainda que criem ambiente propício para a realização de sujeitos apartados das estruturas normativas. Já para a escultura interativa Pulpiteto para pronunciamentetas, a artista pondera sobre uma percepção sensitiva particularizada da própria voz, uma vez que repropõe a postura para um pronunciamento. No “pulpiteto” o peitoral é acolhido enquanto o diafragma é comprimido. Encerrando o arcabouço, o sutiã: peça íntima publicamente associada ao gênero feminino e cujo uso, segundo a artista, relaciona-se a autoestima, proteção, sensualidade, aprisionamento, armadilha e “desconforteto”. Para Tetta, Instetâncias de poder é espaço para amplificação de debates sociais antirracistas, antimisoginia e antitransfobia. Essa obra reverbera, em espaço institucional, questões sobre a violência sofrida por mulheres, lésbicas, travestis, trans e dissidentes de gênero, principalmente nos espaços de poder.


Agrippina R. Manhattan. Erva daninha (da série Modernidade Devorada), 2022. Fotografia: Karim Kahn

Essa voz dissidente e resistente ecoa também na obra da artista e pesquisadora Agrippina Manhattan. Seu trabalho é parte de uma profunda preocupação sobre tudo o que restringe a liberdade: a palavra, a norma, a hierarquia e o pensamento. A artista, que trabalha sempre buscando interpelar criticamente a história da arte brasileira, como se identifica pelo nome que escolheu, derivativo do título do filme de Hélio Oiticica3 3 Trata-se do filme Agripina é Roma-Manhatan (1972). filmado no decênio de 1970, entende a arte como de exceção em relação à produção de transgêneros, mulheres, indígenas, negros e outras minorias sociais. Trouxe na instalação intitulada Erva daninha, composta de terra, plantas, extensões elétricas e monitor LED, parte de uma investigação em que relaciona humanidade e natureza, assim como a simbologia da serpente que devora o próprio rabo. Isso tudo tendo como horizonte as contraditórias comemorações acerca do modernismo, ou pós-modernismo, brasileiro. Para Agrippina, o modernismo é um projeto que já se encontra em ruínas, uma vez que a sociedade vive uma eterna transmutação e que, portanto, se autoconsome. Assim, histórias e narrativas vão se construindo e se sobrepondo a partir de fragmentos desgastados e dilapidados, assolados pelas ervas daninhas, que soterram os escombros da civilização. Para essa artista carioca, o mal está em toda parte, nas fímbrias do cotidiano, crescendo pouco a pouco, aos olhos de todo mundo e, se não for extirpado, cria raízes.


Gu da Cei. Pula-vai, 2022. Fotografia: Karim Kahn

Já Gu da Cei, artista da Ceilândia que desenvolve seu trabalho artístico no âmbito da intervenção urbana, instalação, poesia, performance e vídeo, apresenta uma discussão acerca da vigilância, imagem, direito à cidade e transporte coletivo, além de buscar compreender as possibilidades dialógicas entre processos históricos e contemporâneos da fotografia, bem como seus espaços de exibição e circulação. Na obra Pula-vai, Gu denuncia o cerceamento do trânsito de cidadãos periféricos nos transportes públicos da Ceilândia, divisão administrativa do Distrito Federal, ao emular uma catraca de ônibus em um pula-pula. A obra consiste em uma inusitada crítica às catracas verticais duplicadas em sua altura, fabricadas exclusivamente para serem instaladas em linhas de transporte público que fazem trajetos nas periferias, com o objetivo de impedir que usuários do transporte consigam pulá-las. A ironia subversiva é reiteração ao direito constitucional de ir e vir, que, apesar de restrito pelo modelo econômico vigente, encontra sua superação na perversão de barreiras simbólicas da opressão.


Uýra Sodoma. Bichos do céu dossel, 2022. Fotografia: Karim Kahn

A tenacidade urbana reverbera na floresta pela voz da artista Uýra Sodoma. Emerson Munduruku, jovem amazônico, natural de Santarém, que criou a personagem em 2016, durante o impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff, intitula-se drag amazônica, performer e ponte entre mundos ou, como ela mesma descreve, uma árvore que anda. A entidade é também uma forma de educar e conscientizar as pessoas sobre a preservação amazônica e os direitos lgbtqiapn+. Sob uma forma híbrida, animal e vegetal, Uýra atenta para a reconexão das forças e cosmogonias ancestrais de seu povo, apresentando percepções e definições pouco reconhecíveis por epistemologias eurocêntricas.

Uýra, mais do que a floresta, busca mostrar a dicotomia e a transição entre a mata e a cidade, paisagem que faz parte de seu cotidiano manauara. A analogia que Bichos do céu dossel traz entre esses referenciais por vezes dicotômicos na obra da artista apresenta uma série de imagens fotográficas do céu amazônico vistos desde o solo em direção às copas de árvores. É sobre a imensa borda das árvores em noites de lua cheia que Uýra inscreve diagramas de animais e seres que pertencem à cosmogonia munduruku e identificam a poética da artista.


Sônia Gomes. Sem título, 2005. Fotografia: Karim Kahn

Referenciais e tradições ancestrais são, de outro modo, matéria de Sônia Gomes. Sua obra é uma fusão de muitas lembranças, principalmente as da sua avó, parteira, benzedeira e useira de rodilhas na cabeça; mas não só isso, é da ruminação constante das memórias dos guardados, das fotos, dos retalhos de tecidos e de afetos fragmentados que Sônia alinhava sua arte. Festas populares de matriz afro-brasileira, como folia de reis, congado, reisado e o catolicismo mágico, são substâncias emaranhadas aos materiais que, como a memória, se acumulam e se sobrepõem. Essa base expressiva das tradições afro-brasileiras remendadas aos tecidos presentificados pelos retalhos de roupas permite simbolismos culturais abrangentes, ainda que particulares. Suas amarrações, panos, patuás e trouxas dizem muito sobre uma tradição no Brasil da linha, da agulha e dos gestos técnicos em torno do tecido. Seus procedimentos remetem a fazeres comuns ao candomblé, como amarrações, nós e embalagens, ou mesmo a cultura mineira dos bordados, das roupas para dias santos, dos trajes usados em ritos sociais de passagem: casamentos, batizados, nascimentos. Não por acaso, muitos dos tecidos com os quais trabalha Sônia Gomes são materiais marcados pela memória do uso, funções e práticas de sentido que permitiram que eles chegassem até o presente. Vestígios de ritos sociais de passagem.


Luana Vitra e Jorge da Costa. Céu aberto, corpo fechado, 2021. Fotografia: Karim Kahn

Do vestígio também persevera a arte de Luana Vitra, ainda que ressignificada. É a partir de um projeto não realizado que a artista propõe pensar um enredo de memórias fragmentadas que ela organiza espacialmente, exibindo restos reordenados de materiais que, destituídos de sua função original, passam a apresentar uma finalidade simbólica. O projeto da escada abandonado por seu pai é o fio condutor dessa reordenação. Do chão, interessa apenas o espaçador cruzeta, do telhado, um pedaço de zinco, da escada, a ideia. O projeto não foi concluído, não serve senão para lembrar uma tarefa que não foi concretizada. O projeto de Luana é um não lugar, um desejo não concretizado, uma possibilidade de existência que não vingou. Talvez uma alegoria do próprio Brasil, uma persistente e dolorida lembrança do que poderia ter sido, mas não foi.

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    A exposição ocorreu no IEB de 29 de junho a 4 de setembro de 2022, com curadoria de Maíra Ortins, do historiador Fabrício Reiner e do professor Luiz Armando Bagolin (IEB/USP).
  • 3
    Trata-se do filme Agripina é Roma-Manhatan (1972)AGRIPINA é Roma-Manhattan. Direção Hélio Oiticica. EUA, 1972. Filme. Colorido, mudo. (16 min.)..
  • ANDRADE, Fabrício Reiner de. Watú não está morto!. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 83, p. 177-190, dez. 2022.

Referências

  • AGRIPINA é Roma-Manhattan. Direção Hélio Oiticica. EUA, 1972. Filme. Colorido, mudo. (16 min.).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jan 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2022

Histórico

  • Recebido
    15 Out 2022
  • Aceito
    31 Out 2022
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