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Tão perto, tão longe, de diferenças somos feitos

O número 85 da Revista do Instituto de Estudos Brasileiros abre novamente seu campo interdisciplinar de reflexões com o artigo “Negacionismo e educação: implicações e desafios à formação de professores na pós-graduação stricto sensu”, de Amanda Raquel Rodrigues Pessoa (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará) e Isabel Maria Sabino de Farias (Universidade Estadual do Ceará), problematizando os impactos de uma política neoliberal para a área de educação e, particularmente, para a formação de professores, à luz das invectivas negacionistas e dos atentados contra as ciências, efeitos colaterais ou desejados de tal política. As autoras defendem o campo da pós-graduação stricto sensu como um instrumento de luta e de esclarecimento contra esses efeitos, em muito disseminados e amplificados em nosso país em anos recentes. Entretanto, é necessário refletir que as nossas mazelas em relação à desinformação e à falta de acesso à educação da população vêm de longa data.

Em “Projeto e antiprojeto para a democracia no Brasil: o antagonismo entre Gilberto Freyre e Florestan Fernandes”, de Gustavo Zullo (Universidade Estadual de Campinas), o autor confronta duas visões amplas quanto à formação social no Brasil. De um lado, Gilberto Freyre com seu projeto patriarcal e a defesa de uma democracia racial brasileira, algo que de fato nunca existiu. De outro, a análise de Florestan Fernandes identificando na colonização e em seus processos de violência a origem de comportamentos ou estruturas antissociais ou contrassociais em nosso país. Enquanto no primeiro autor há uma tendência de manutenção do status quo das classes dominantes, com o segundo, lançam-se as bases da possibilidade de pensar uma sociedade brasileira mais justa, com a conscientização do povo, em especial, do negro, para que se possa contrapor à ordem burguesa.

Em “Irmãos na Terra Prometida: crime, igreja e regularização fundiária em São Paulo”, misto de ensaio e relato, Gustavo Prieto (Universidade Federal de São Paulo) e Elisa Favaro Verdi (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo) depõem sobre o conflito fundiário nas áreas periféricas da cidade de São Paulo, para o qual contribuem as disputas entre crime, igreja, empresas e movimentos sociais. Um dos resultados desse embate ou, na verdade, o seu alicerce principal, porquanto assim é o funcionamento do Estado sob o capitalismo, a violência, amplia o sentimento de subalternização e invisibilidade das pessoas que vivem nessas áreas.

Em “Do local ao global: cidades escritas em Luiz Bacellar e Astrid Cabral”, de Fadul Moura (Universidade Federal de Minas Gerais), a cidade também é o locus, dessa feita, como tema de dois livros de poesia: Frauta de barro (1963), de Luiz Bacellar, e Ponto de cruz (1979), de Astrid Cabral. Manaus, a cidade comum ao autor e à autora, oferece planos distintos - uma subdesenvolvida, outra em plena transformação urbanística, inscrevendo-se utopicamente, na concepção das “cidades escritas” de Beatriz Sarlo (2014, p. 142)SARLO, Beatriz. A cidade vista: mercadorias e cultura urbana. Tradução Monica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 2014..

“Viagem, paisagem e poesia: os sertões de Guimarães Rosa e Juan Rulfo”, de Luís Antônio Jorge (Universidade de São Paulo), traz uma análise de dois contos, Cara de Bronze, de Guimarães Rosa, e Talpa, de Juan Rulfo, a partir da possibilidade de representação do sertão como metáfora do destino humano. No primeiro, a paisagem é aberta e imprecisa pois o destino dos personagens não se inscreve em nenhum lugar. No segundo, ao contrário, há uma descrição da paisagem que se equipara à precisão fotográfica, às vezes, ultrapassando-a.

O artigo intitulado “O legado invisibilizado do pensamento de Gilda de Mello e Souza”, de Taisa Palhares (Universidade Estadual de Campinas), traz uma reflexão sobre as direções e desvios tomados pela ilustre professora e pensadora Gilda de Mello e Souza em relação à estética ou filosofia da arte. A autora comenta as razões de tal pensamento, sobretudo, como sua original contribuição com a proposta de uma “estética pobre”, aliada à condição de mulher intelectual e professora universitária numa universidade majoritariamente regida por homens, influenciou o seu esquecimento ou invisibilidade no campo atual de pesquisas nessa área.

No artigo intitulado “The imaginary childhood: for a philosophical-anthropology of the child”, Magali Reis (Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais) desconstrói a visão padronizada sobre os conceitos de infância formulados ao longo do tempo de acordo com interesses particulares e nitidamente ligados a grupos de poder. Muitos desses conceitos cristalizaram uma imagem falseada da criança, beirando o caricatural, que em muitos casos ainda norteia a formação e o pensamento pedagógico. Inversamente, uma reflexão cuidadosa, de caráter filosófico-antropológico, pode permitir a desnaturalização desses conceitos.

João Mostazo (Universidade de São Paulo), em “O pesadelo da exaustão formativa: dois poemas de Ricardo Domeneck”, usa os poemas desse autor como mote para refletir sobre o esgotamento dos modelos de formação social no país, notadamente sob o momento de “totalitarismo neoliberal”, e os descompassos ou crises político-institucionais atuais que fraturam brutalmente a nossa realidade.

Voltando a modelos do passado, Daniela Queiroz Campos (Universidade Federal de Santa Catarina) reflete, em “As ninfas dos mares de cá: a ninfa pagã e seu exílio nos trópicos”, sobre como artistas do século XIX pintaram personagens indígenas vindas da literatura e suas relações com quadros europeus de ninfas. A partir dos estudiosos de imagem Aby Warburg e de Didi-Huberman, foram analisadas detalhadamente cinco obras. José Maria de Medeiros criou as imagens pictóricas de Lindoia e Iracema; Victor Meirelles é autor de Moema; Antônio Parreiras, de outra Iracema; e Rodolfo Amoedo, de Marabá. Todos foram alunos da Academia Imperial de Belas Artes no Rio de Janeiro e todos, menos José Medeiros, estudaram na Europa. Nesse sentido, a figuração de mulheres indígenas brasileiras ainda seguiu modelos europeus, embora fossem buscados aspectos realistas.

A seção Criação traz o depoimento da artista Ivana Soares Paim (Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia de São Paulo) sobre o seu processo de trabalho em duas séries: “Tramas de baralhos” e “Reminiscências”. A primeira foi provocada pela ideia de acolhimento do acaso, homologamente associado ao jogo, para a criação das imagens. Já na segunda série, a artista trabalha com a questão da memória e das interferências ou aparições do inconsciente em seu processo de criação.

Documentação apresenta o texto “Patrimônio cultural: um convite à reflexão coletiva para ações colaborativas”, em que Elisabete Marin Ribas (Universidade de São Paulo) discorre sobre a importância do patrimônio cultural a partir da tradução livre de uma carta, salvaguardada no Fundo Waldisa Russio Camargo Guarnieri (IEB, s. d.IEB - Instituto de Estudos Brasileiros. Catálogo Eletrônico. Arquivo. Fundo Waldisa Russio Camargo Guarnieri. Correspondência assinada por Antônio Paolucci e Maria Fossi Todorow, da Galleria degli Uffizi, sobre a política de conservação do Patrimônio Artístico da instituições italiana. Firenze, s. d. Código de referência WR-RS-APO-001. Disponível em: http://200.144.255.59/catalogo_eletronico/consultaDocumentos.asp. Acesso em: ago. 2023.
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) do Arquivo do IEB, que evidencia a vasta rede de referências e relações internacionais que Waldisa estabeleceu no campo da museologia.

Em nossa seção de resenhas, o texto “O arquivo aberto do modernismo paulista”, de Leandro Pasini (Universidade Federal de São Paulo), analisa as obras Couto de Barros: a elite nos bastidores do modernismo paulista, de Maria Eugenia Boaventura, e Couto de Barros: o filósofo da malta (textos modernistas), organizado pela mesma autora, que, segundo Pasini, resgatam e recolocam o papel de Antônio Carlos Couto de Barros, tanto em relação à Semana de Arte Moderna de 1922, quanto, em termos gerais, em relação ao movimento modernista. Maria Eugenia, incansável pesquisadora sobre esse período histórico no Brasil, desmonta falsos mitos ou opiniões, oferecendo farta documentação primária para atestar as suas premissas. Mais uma vez se prova que nem tudo foi dito ou pesquisado integralmente sobre o assunto, e que uma pesquisa bem fundamentada pode lançar novas luzes sobre a história de nosso modernismo.

O livro O pacto da branquitude, de Cida Bento, em “A branquitude em discussão: formas de exclusão e de manutenção de privilégios”, é analisado por Edinelce Bertin (Universidade de São Paulo). O principal foco do livro, segundo Bertin, é apresentar a tese de que há um “pacto da branquitude”, que “possui um componente narcísico que tem permitido às pessoas brancas manter seus privilégios através do silêncio sobre a racialização de si mesmas”.

“Esculpir o ideal do ‘novo homem’ e da ‘nova mulher’ no Estado Novo”, de Nerian Teixeira de Macedo de Lima (Universidade Estadual de Campinas), resenha o livro Esculpindo para o ministério: arte e política no Estado Novo, de Marina Cerchiaro. Este centra o seu objeto no conjunto escultórico encomendado para o complexo arquitetônico do Ministério de Educação e Saúde do Rio de Janeiro (MES), durante o Estado Novo, e as representações do homem e da mulher brasileiros tipificados de acordo com os interesses políticos do regime estado-novista. Segundo Nerian, a pesquisa de Cerchiaro coteja padrões estilísticos de três escultores brasileiros, destacando-se pela documentação primária levantada em 20 instituições nacionais e estrangeiras.

Por fim, é necessário registrar que todo este número vem ilustrado com xilogravuras de Isa Aderne (1923-2019), que pertencem à Coleção de Artes Visuais do Instituto (IEB, s. d.IEB - Instituto de Estudos Brasileiros. Catálogo Eletrônico. Coleção de Artes Visuais. Coleção Isa Aderne. Doada pela titular em 2001. Disponível em: http://200.144.255.59/catalogo_eletronico/consultaObraCAV.asp?Acervo_Codigo=14&Acervo_Nome=ISA%20ADERNE. Acesso em: ago. 2023.
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). Aderne desenvolveu uma obra focada em temas populares, na religiosidade do povo, assim como em temas sociais, misturando referências formais da xilogravura de cordel e do expressionismo alemão do início do século XX. A partir de 1947 matriculou-se na Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, onde estudou gravura com Adir Botelho. Encantou-se pela gravura de Oswaldo Goeldi (1895-1961), mas, quando foi procurá-lo para possivelmente orientá-la, teve a notícia de que ele havia acabado de falecer. Tal fato, no entanto, não a impediu de construir uma obra em diálogo constante com a do mestre por ela escolhido. Tão longe, mas tão perto!

Referências

  • IEB - Instituto de Estudos Brasileiros. Catálogo Eletrônico. Arquivo. Fundo Waldisa Russio Camargo Guarnieri. Correspondência assinada por Antônio Paolucci e Maria Fossi Todorow, da Galleria degli Uffizi, sobre a política de conservação do Patrimônio Artístico da instituições italiana. Firenze, s. d. Código de referência WR-RS-APO-001. Disponível em: http://200.144.255.59/catalogo_eletronico/consultaDocumentos.asp Acesso em: ago. 2023.
    » http://200.144.255.59/catalogo_eletronico/consultaDocumentos.asp
  • IEB - Instituto de Estudos Brasileiros. Catálogo Eletrônico. Coleção de Artes Visuais. Coleção Isa Aderne. Doada pela titular em 2001. Disponível em: http://200.144.255.59/catalogo_eletronico/consultaObraCAV.asp?Acervo_Codigo=14&Acervo_Nome=ISA%20ADERNE Acesso em: ago. 2023.
    » http://200.144.255.59/catalogo_eletronico/consultaObraCAV.asp?Acervo_Codigo=14&Acervo_Nome=ISA%20ADERNE
  • SARLO, Beatriz. A cidade vista: mercadorias e cultura urbana. Tradução Monica Stahel. São Paulo: Martins Fontes, 2014.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Set 2023
  • Data do Fascículo
    Ago 2023

Histórico

  • Aceito
    14 Ago 2023
  • Aceito
    16 Ago 2023
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