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Doutor, acho que meu bebê está com dor: avaliação da dor de lactentes por profissionais de saúde

EDITORIAIS

"Doutor, acho que meu bebê está com dor": avaliação da dor de lactentes por profissionais de saúde

Marie-Claude GrégoireI; G. Allen FinleyII

IMD, MSc, FRCPC. Dalhousie University, Halifax, Nova Scotia, Canada

IIMD, FRCPC, FAAP. Dalhousie University, Halifax, Nova Scotia, Canada

Correspondência Correspondência: G. Allen Finley Centre for Pediatric Pain Research IWK Health Centre, Dalhousie University 5850 University Avenue, PO Box 9700 Halifax, Nova Scotia, B3K 6R8 - Canada Tel.: +1 (902) 470.7708 Fax: +1 (902) 470.7709 Email: lallen.finley@dal.ca

Não vai longe o tempo em que alguns profissionais de saúde não acreditavam que os lactentes pudessem sentir dor. Eles nem sempre recebiam analgésicos no período pós-cirúrgico e, às vezes, durante a própria cirurgia. A dor não era reconhecida como um sintoma tratável importante e, portanto, era raramente avaliada. Foi somente durante a década de 1980 que os clínicos e pesquisadores começaram a medir o impacto da avaliação e do tratamento da dor em bebês1. Apesar desses avanços em pesquisa, levou anos para que a avaliação e o tratamento da dor de lactentes se tornassem generalizados e, infelizmente, ainda não são universais no contexto médico de hoje.

Os pais, por outro lado, já sabem há séculos que suas crianças pequenas podem sentir dor.

O artigo de Elias et al.2, nesta edição do Jornal de Pediatria, ilustra bem esta discordância entre pais e profissionais de saúde. O achado mais interessante desse estudo, realizado em situação de dor não aguda, é que a concordância entre pais e profissionais de saúde foi melhor em situações extremas, em que a dor estava obviamente presente ou ausente, e não havia dúvida sobre as decisões quanto aos tratamentos. É na zona obscura da dor moderada que a discordância foi mais importante, a zona em que alguns pontos a mais ou a menos na escala análoga visual (EAV) farão a diferença entre usar um analgésico ou não. Somente 10% desta discordância pôde ser explicada por fatores inerentes aos bebês, deixando uma grande proporção de diferença de opinião a fatores relacionados à pessoa avaliando a dor e ao contexto da avaliação. Isso não é uma surpresa, em uma situação em que a dor não é o que o bebê diz, mas o que os pais ou profissionais de saúde dizem.

Já se demonstrou a discordância entre pais e profissionais de saúde para lactentes e crianças pequenas3, mas também entre profissionais de saúde4 e entre crianças e seus pais5. O uso de uma EAV como substituto de escore de avaliação global de dor pode aumentar o risco de discordância.

A EAV é uma escala observacional na qual cada observador utiliza uma coleção de pistas comportamentais, as quais são interpretadas no contexto de suas próprias experiências. Em especial, o significado da questão "pior dor imaginável" varia de pessoa para pessoa. Entretanto, com um único observador, a escala EAV deve apresentar boa consistência e pouca variação ao longo do tempo. Muitas escalas multidimensionais de dor neonatal foram publicadas na década passada; poucas, no entanto, foram extensamente validadas, inclusive as propriedades psicométricas de confiabilidade, validade, viabilidade e utilidade clínica (conferir revisões de Stevens et al.6 e Hummel et al.7). A maioria delas, com exceção da EDIN8, somente foi testada com dor breve durante procedimentos e, portanto, seu uso não é apropriado em situação de dor crônica.

Para assegurar tratamento adequado da dor em lactentes e para evitar ao máximo a subjetividade, a avaliação da dor por algum método deve ser usada regular e sistematicamente, e não somente "conforme necessário", quando um profissional de saúde achar que uma criança pode estar com dor. Muitos centros de saúde agora consideram a dor como o "quinto sinal vital". Isso somente pode tornar-se verdadeiro se, assim como para qualquer outro sinal vital, uma alteração clinicamente significativa na intensidade da dor anotada no prontuário puder ser traduzida numa ação apropriada para aliviar a dor e identificar sua causa.

Os pais e profissionais de saúde também podem diferir em sua preocupação e aflição com a dor do bebê. Frank et al.9 demonstraram que os pais querem informações sobre a dor e o tratamento de seus filhos, bem como desejam estar envolvidos no cuidado da dor de seus filhos. Nesse estudo, realizado na Inglaterra, demonstrou-se que o estresse por parte dos pais era previsto pela estimativa dos pais da pior dor de seus filhos, sua falta de satisfação com as informações recebidas sobre a dor e suas preocupações com a dor e seu tratamento. Os pais são expertos em seus filhos, e a importância deste conhecimento não deve ser subestimada. Uma discordância de avaliação de intensidade da dor entre profissionais de saúde e pais pode se tornar uma boa oportunidade para abrir a discussão sobre a dor de uma criança. Esta troca de informações essenciais entre pais e profissionais de saúde pode ajudar a aprimorar a avaliação e o tratamento da dor para essa criança e outras.

Ao passo que Elias et al.2 consideraram a discordância de forma ampla, o fenômeno de subestimação da dor já foi bem descrito na literatura10. A superestimação da dor parece acontecer com freqüência bem menor, e geralmente quando um paciente relata nível de dor ausente ou muito baixo.

Por que existe este viés em relação à subestimação? Prkachin10 descreveu esta questão como uma falta de "medidor mental" que os provedores de serviços de saúde poderiam utilizar para avaliar a consciência do paciente e capturar seu estado atual. Os observadores buscam pistas no comportamento e contexto da pessoa em sofrimento; o acesso a essas pistas é muitas vezes limitado, e essas informações limitadas podem causar um viés na avaliação da dor em direção a um escore mais baixo. Quanto mais limitado for o acesso às informações, mais grave pode ser a subestimação. Este fenômeno coloca algumas populações vulneráveis em alto risco de ter sua dor subestimada, inclusive crianças que são não-verbais devido à sua idade, déficit cognitivo ou sedação. Obviamente, outros fatores estão envolvidos na avaliação de dor pelo observador, conforme representado no modelo de Prkachin & Craig10. O que torna o estudo de Elias2 tão importante é o fato de que ele considera a díade pai-profissional, e não a díade paciente-profissional, como a maioria dos estudos publicados até hoje.

Não está claro ainda quais os efeitos a longo prazo sobre os lactentes resultantes dessa discordância na avaliação da dor, especialmente se for a subestimação da dor. O que está claro, no entanto, é que os recém-nascidos expostos à dor repetida no início da vida desenvolvem sensibilização. Essa sensibilização é ainda mais significativa em recém-nascidos prematuros ou naqueles submetidos a cirurgia durante o período neonatal11. Para prevenir sensibilização à dor, boa prevenção, avaliação e tratamento da dor são cruciais.

Já foram publicados exemplos de diretrizes para avaliação da dor7. Idealmente, as diretrizes precisam ser adaptadas a cada centro de saúde e a quipes de saúde em particular para serem aceitas, utilizadas e eficientes.

Muitos obstáculos podem aparecer no caminho da boa avaliação da dor, os quais exigirão energia e comprometimento de dedicados profissionais de saúde para serem superados. A falta de treinamento e tempo, além de uma clara falta de vontade de mudar a prática, foram identificadas como sendo os principais obstáculos para alterar a prática de avaliação da dor em pediatria12. O suporte contínuo de uma equipe multidisciplinar para avaliação da dor e a colaboração com "campeões locais" podem ajudar a sustentar novas práticas de avaliação da dor13.

Como podemos aplicar os achados de Elias2 a um serviço de neonatologia movimentado? A mensagem mais importante é certamente avaliar a dor regularmente, usando escalas de dor bem validadas e com boa utilidade clínica.

A menos que se esteja envolvido em pesquisas sobre este tópico, é preciso estar familiarizado com uma ou duas escalas de avaliação de dor e utilizá-las sistematicamente em todos os pacientes. Também precisamos nos lembrar da importância do fenômeno da subestimação da dor. Qualquer um de nós pode se sentir culpado disso; é importante prestar atenção em nossas atitudes, valores e crenças sobre dor ao avaliar a dor de outra pessoa. Por último, nunca devemos esquecer-nos de incluir e confiar nos pais como membros essenciais da equipe de cuidado do seu bebê. Seus objetivos são semelhantes aos nossos.

Não foram declarados conflitos de interesse associados à publicação deste editorial.

  • 1. Anand KJ, Hickey PR. Pain and its effects in the human neonate and fetus. N Engl J Med. 1987;317:1321-9.
  • 2. Elias LS, Guinsburg R, Peres CA, Balda RC, dos Santos AM. Disagreement between parents and health professionals regarding pain intensity in critically ill neonates. J Pediatr (Rio J). 2008;84(1):35-40.
  • 3. Pillai Riddell RR, Craig KD. Judgments of infant pain: impact of caregiver identity and infant age. J Pediatr Psychol. 2007;32:501-11.
  • 4. Breau LM, McGrath PJ, Stevens B, Beyene J, Camfield CS, Finley GA et al. Judgments of pain in the neonatal intensive care setting: a survey of direct care staffs' perceptions of pain in infants at risk for neurological impairment. Clin J Pain. 2006;22:122-9.
  • 5. Chambers CT, Reid GJ, Craig KD, McGrath PJ, Finley GA. Agreement between child and parent reports of pain. Clin J Pain. 1998;14:336-42.
  • 6. Stevens BJ, Pillai Riddell RR, Oberlander TE, Gibbins S. Assessment of pain in neonates and infants. In: Anand KJ, Stevens BJ, McGrath PJ, editors. Pain in neonates and infants, 3rd ed. Philadelphia: Elsevier; 2007. pp.67-90.
  • 7. Hummel P, van Dijk M. Pain assessment: current status and challenges. Semin Fetal Neonatal Med. 2006;11:237-45.
  • 8. Debillon T, Zupan V, Ravault N, Magny JF, Dehan M. Development and initial validation of the EDIN scale, a new tool for assessing prolonged pain in preterm infants. Arch Dis Child Fetal Neonatal Ed. 2001;85:36-41.
  • 9. Franck LS, Cox S, Allen A, Winter I. Parental concern and distress about infant pain. Arch Dis Child fetal Neonatal Ed 2004;89:F71-5.
  • 10. Prkachin KM, Solomon PE, Ross J. Underestimation of pain by health-care providers: towards a model of the process of inferring pain in others. Can J Nurs Res. 2007;39:88-106.
  • 11. Grunau RE, Tu MT. Long-term consequences of pain in human neonates. In: Anand KJS, Stevens BJ, McGrath PJ, editors. Pain in neonates and infants, 3rd ed. Philadelphia: Elsevier; 2007. pp.45-55.
  • 12. Simons JM, MacDonald LM. Pain assessment tools: children's nurses' views. J Child Health Care. 2004;8:264-78.
  • 13. Ellis JA, McCleary L, Blouin R, Dube K, Rowley B, MacNeil M, et al. Implementing best practice pain management in a pediatric hospital. J Spec Pediatr Nurs. 2007;12:264-277.
  • Correspondência:

    G. Allen Finley
    Centre for Pediatric Pain Research
    IWK Health Centre, Dalhousie University
    5850 University Avenue, PO Box 9700
    Halifax, Nova Scotia, B3K 6R8 - Canada
    Tel.: +1 (902) 470.7708
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      04 Mar 2008
    • Data do Fascículo
      Fev 2008
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