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Bloqueio do plano transverso abdominal contínuo bilateral em doente com cirurgia abdominal prévia

Resumos

Os autores apresentam um caso clínico em que foi realizado um bloqueio do plano do músculo transverso abdominal, com colocação de cateter bilateral, para analgesia pós-operatória de laparotomia exploradora, em doente com cirurgia abdominal prévia, insuficiência cardíaca, renal e hepática, em opção à analgesia epidural e aos opioides endovenosos em perfusão.

ANALGESIA, Pós-operatório; Complicações Intraoperatórias; Músculos Abdominais; TÉCNICAS ANESTÉSICAS, Regional, nervos periféricos e gânglios


We present as an option for epidural analgesia and intravenous opioid infusion a clinical case of transversus abdominis plane (TAP) block, with bilateral placement of catheter for postoperative analgesia after exploratory laparotomy performed in a patient with previous abdominal surgery and heart, kidney and liver failure.

Abdominal Muscles; Analgesia; Intraoperative Period/complications; Nerve Block; Postoperative Period


Los autores presentan un caso clínico en que se realizó un bloqueo del plano del músculo transverso abdominal, con la colocación de catéter bilateral para la analgesia postoperatoria de laparotomía exploratoria, en un enfermo con cirugía abdominal previa, insuficiencia cardíaca renal y hepática, como una opción a la analgesia epidural y a los opioides endovenosos en perfusión.

ANALGESIA, Postoperatorio; Complicaciones Intraoperatorias; Músculos Abdominales; TÉCNICAS ANESTÉSICAS, Regional, nervios periféricos y los ganglios


INFORMAÇÃO CLÍNICA

Bloqueio do plano transverso abdominal contínuo bilateral em doente com cirurgia abdominal prévia

Isabel Flor de LimaI; Filipe LindaI; Ângela dos SantosI; Neusa LagesII; Carlos CorreiaII

IHospital Garcia de Orta, Entidade Pública Empresarial, Almada, Portugal

IICentro Hospitalar do Alto Ave, Entidade Pública Empresarial, Fafe, Portugal Trabalho realizado no Serviço de Anestesiologia do Centro Hospitalar do Alto Ave, Entidade Pública Empresarial, Fafe, Portugal

Autor para correspondência Autor para correspondência: Isabel Flor de Lima Serviço de Anestesiologia do Centro Hospitalar do Alto Ave, Entidade Pública Empresarial Fafe, Portugal E-mail: i.flordelima@gmail.com (I.F. Lima)

RESUMO

Os autores apresentam um caso clínico em que foi realizado um bloqueio do plano do músculo transverso abdominal, com colocação de cateter bilateral, para analgesia pós-operatória de laparotomia exploradora, em doente com cirurgia abdominal prévia, insuficiência cardíaca, renal e hepática, em opção à analgesia epidural e aos opioides endovenosos em perfusão.

Palavras-chave: ANALGESIA, Pós-operatório; Complicações Intraoperatórias; Músculos Abdominais; TÉCNICAS ANESTÉSICAS, Regional, nervos periféricos e gânglios

Introdução

O bloqueio do Plano Transverso Abdominal (TAP) tem-se mostrado uma técnica promissora e eficaz no controle analgésico intra e pós-operatório de cirurgias abdominais, urológicas, ginecológicas e obstétricas.

Desde a descrição da primeira abordagem do espaço TAP por Rafi em 2001 e solidificada por McDonnell em 2004,1 múltiplos estudos têm surgido com o objetivo de aumentar a aplicabilidade clínica desse bloqueio.2

Os autores apresentam o relato de um caso em que foi feito um bloqueio TAP contínuo bilateral para analgesia pós-cirurgia abdominal de grande porte.

Caso clínico

Doente de 71 anos, sexo masculino, branco, com índice de massa corporal (IMC) de 20,76; admitido por quadro clínico de oclusão intestinal e sépsis. Apresentava como antecedentes pessoais relevantes: insuficiência cardíaca congestiva (ICC) de etiologia isquêmica e hipertensiva, portador de marca-passo, insuficiência renal crônica (IRC) em estágio III, transplante hepático havia 21 anos por cirrose secundária a infecção por hepatite pós-vírus B (HBV) e internamento havia três meses por encefalopatia hepática. Exames de laboratório mostravam anemia (Hb-10,6 g.dL-1), trombocitopenia (69 mil plaquetas.µL-1) e creatinina de 2,13 mg.dL-1.

Foi feita uma laparotomia exploradora com incisão xifo-púbica, para feitura de Operação de Hartman. Foram efetuadas monitoração padrão e anestesia geral balanceada, com propofol (200 mg), fentanil (0,15 mg) e rocurônio (50 mg) e mantida com desflurano e óxido nitroso, sem intercorrências.

Para analgesia, foram administrados paracetamol (1 g) e tramadol (100 mg) endovenosos (EV). No fim da cirurgia, foi feito um bloqueio TAP infracostal anterior, bilateral, ecoguiado, em linha anatômica condicionada pela cirurgia prévia e atual (figs. 1, 2 e 3), com agulha de Tuohy 18G e introdução de dois cateteres epidurais 20G (Kit Perifix, B Braun), através dos quais se fez um bolus inicial de 20 mL de ropivacaína a 0,5% bilateral. Na Unidade de Recuperação Pós-Anestésica (RPA) foram conectados aos cateteres dois elastômeros com ropivacaína a 0,2%, a 5 mL.h-1 (fig. 4). A essa analgesia associou-se o paracetamol (1gr de 6 em 6 horas), o parecoxib (20 mg EV de 12 em 12 horas) e a morfina EV de resgate (bolus de 2 mg se escala numérica de dor igual ou superior a quatro).





Às 24 horas e às 48 horas (fig. 5), o doente apresentava zero na escala numérica de dor em repouso e em movimento, estava hemodinamicamente estável e sem registo de doses de resgate de morfina.


Após as 48 horas, os cateteres foram removidos e o doente teve alta da Unidade de Cuidados Intermédios para a enfermaria de cirurgia, sempre sem registo de dor.

Discussão

O controle da dor constitui uma fração importante e fundamental dos cuidados assistenciais pós-operatórios e um fator determinante na recuperação de qualquer cirurgia. Nesse doente, o controle da dor assumiu uma relevância ainda maior, dada a sua condição cardíaca. Sabemos que a dor pós-operatória, especialmente se mal controlada, pode causar ativação do sistema nervoso simpático (SNS), responsável pela vasoconstrição coronária, pela taquicardia e pelo aumento do consumo de oxigênio, o que pode originar isquemia ou infarto do miocárdio.3,4

Na literatura são descritas duas opções analgésicas padrão para os doentes submetidos a cirurgia abdominal de grande porte: os opioides EV e a analgesia epidural. Apesar de os opioides EV garantirem uma boa analgesia em repouso (analgesia estática), não são tão eficazes no controle da dor em movimento (analgesia dinâmica).5,6 Para além disso, estão associados a efeitos colaterais (náuseas, vômitos, sedação, íleos paralítico, depressão respiratória), com particular importância na doença hepática e renal, como no caso aqui descrito. Tanto a insuficiência hepática como a renal alteram a farmacocinética dos opioides, em particular da morfina, e podem precipitar o aparecimento desses efeitos adversos, pela acumulação de metabolitos ativos.7,8 Já a analgesia epidural tem sido considerada a técnica padrão-ouro no controle da dor após cirurgias que envolvam incisões na parede abdominal,2 apesar das contraindicações, dos potenciais riscos associados e da percentagem de insucesso descrita - 17% a 37%.9 Nesse doente as contraindicações eram duas: a sépsis (relativa) e a trombocitopenia (absoluta), agravada pela probabilidade de multipunção. Na literatura não existem estudos que garantam a segurança da abordagem do neuroeixo para contagens de plaquetas inferiores a 80 mil.µL-1,10,11 pelo que a possibilidade de feitura de uma epidural nesse doente foi abandonada.

Nenhum bloqueio TAP até a data se mostrou superior à morfina intratecal ou à analgesia epidural, mas é considerado uma opção válida se a abordagem do neuroeixo está contraindicada.2 Considerando o anteriormente referido, os autores optaram por fazer um bloqueio TAP contínuo bilateral, para prolongar o benefício analgésico no pós-operatório.

Existem três abordagens do espaço TAP relatadas: a abordagem posterior, por referências anatômicas no Triângulo de Petit, descrita por Rafi e McDonnell, para analgesia dos quadrantes inferiores do abdômen - dermátomos de T11 a L1;1 a abordagem subcostal ecoguiada, descrita por Hebbard em 2008, para analgesia periumbilical e dos quadrantes superiores do abdômen - dermátomos de T10 a T6;12 e a abordagem subcostal, com inserção oblíqua da agulha desde o apêndice xifoide até a crista ilíaca, também descrita por Hebbard em 2010, para analgesia de toda a parede abdominal - dermátomos de T6 a L1 - uma modificação que vem suplantar as limitações das abordagens anteriores.13 Outros autores consideram que a abordagem combinada posterior e subcostal, com injeção única, é a ideal para uma analgesia ótima de toda a parede abdominal.1

Embora o TAP em comparação com placebo ofereça analgesia superior, a dor tipo visceral, retroperitoneal e da parede abdominal póstero-lateral a partir da linha axilar anterior mantém-se, pelo que é essencial associar ao bloqueio os opioides endovenosos.2,9,13,14

Bloqueios contínuos do espaço TAP conferem analgesia estática e dinâmica, com efeitos mínimos no sistema cardiovascular.9 Podem contribuir para a deambulação precoce e para a rápida recuperação de qualquer cirurgia abdominal, principalmente se associada à analgesia endovenosa.9

Nesse doente a cirurgia abdominal prévia e o edema resultante da atual laparotomia dificultaram a visualização dos músculos da parede abdominal, motivo pelo qual o bloqueio foi feito no nível infracostal anterior, onde a anatomia dos planos musculares era perceptível, e não de acordo com as abordagens descritas na literatura.

A abordagem usada, até o momento não descrita, não sendo "convencional", resultou numa analgesia dos dermátomos de T6 a L1, sem recurso a analgesia de resgate. Nesse doente em particular, o fato de ter como antecedente um transplante hepático com uma incisão subcostal bilateral poderá ter influenciado na diminuição da sensibilidade da parede abdominal. Também não sabemos qual a difusão real do anestésico local (AL). Estudos com contraste mostraram que abordagens posteriores do espaço TAP permitem que o AL se difunda até o espaço paravertebral e, por essa razão, o efeito analgésico poderá ser superior ao esperado, em termos de dermátomos, analgesia visceral e duração.2 No caso que relatamos, a eventual presença de aderências dos planos musculares da parede abdominal poderá ter forçado a dispersão do AL para planos inferiores e posteriores. Importante também é aferir a concentração e o volume ideais para bolus e perfusão e o posicionamento correto do cateter no espaço TAP.1,13

Apesar das dúvidas existentes em relação ao bloqueio TAP, a sua técnica é de execução fácil e tem um excelente perfil de segurança com qualquer abordagem,2,5 pelo que a sua prática deverá ser incentivada. Existem apenas dois relatos de casos de punção hepática.2 Apesar de já terem sido detectadas concentrações tóxicas de anestésico local no plasma, também não há relatos de sinais clínicos de toxicidade sistêmica por AL.2

As contraindicações absolutas do bloqueio TAP incluem: recusa do doente, infecção da parede abdominal e anormalidade no local de punção. Até ao momento não existe evidência de que alterações da coagulação sejam contraindicação ao uso da técnica.1

O bloqueio TAP é um componente importante de uma analgesia multimodal. As suas indicações clínicas como parte de uma técnica anestésica/analgésica combinada são cada vez mais aceitas.

Quando isolado e em administração única tem fragilidades, mas se a técnica for contínua e associada a analgésicos endovenosos, relaciona-se com escores baixos de dor, redução do consumo de opioides com diminuição das náuseas e vômitos pós-operatórios, deambulação e alta hospitalar mais precoce. No entanto, mais estudos são necessários para aumentar a precisão dessa técnica.

No caso que descrevemos, a situação clínica do doente e a cirurgia abdominal prévia condicionaram o procedimento do bloqueio TAP com recurso a uma abordagem não descrita, que resultou em sucesso clínico.

Conflitos de interesse

Os autores declaram não haver conflitos de interesse.

Recebido em 26 de outubro de 2012; aceito em 3 de dezembro de 2012

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  • Autor para correspondência:

    Isabel Flor de Lima
    Serviço de Anestesiologia do Centro Hospitalar do Alto Ave, Entidade Pública Empresarial
    Fafe, Portugal
    E-mail:
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Nov 2013
    • Data do Fascículo
      Out 2013

    Histórico

    • Recebido
      26 Out 2012
    • Aceito
      03 Dez 2012
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