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Eletrificação rural, eletrodomésticos e oferta de trabalho feminino: Evidência para o Brasil* * Agradecemos aos comentários de Francisco Costa, Valéria Pero e Arthur Bragança. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.

Resumo

Esse artigo analisa os efeitos do acesso à energia elétrica sobre o uso de eletrodomésticos e sobre a alocação de tempo das mulheres. Para lidar com a endogeneidade do acesso à energia elétrica, o artigo utiliza uma estratégia de identificação de variáveis instrumentais que combina dados do gradiente da terra e expansão da eletricidade induzidas pelo programa Luz para Todos no Brasil para construir instrumentos para o acesso à energia elétrica. Os resultados sugerem que a eletrificação aumentou significantemente o uso de eletrodomésticos no domicílio. As estimativas sugerem que o choque de produtividade advindo do acesso à eletricidade não teve efeito sobre a oferta de trabalho das mulheres no mercado de trabalho e no domicílio.

1. Introdução

Dados do Banco Mundial indicam que 1,3 bilhões de pessoas vivem sem energia elétrica no mundo e que a taxa de eletrificação nos países em desenvolvimento é de apenas 63,2%. Frente a esse cenário, foram realizados grandes investimentos na expansão do acesso à energia em diversos países em desenvolvimento nas últimas duas décadas (Dinkelman, 2011Dinkelman, T. (2011). The effects of rural electrification on employment: New evidence from South Africa. The American Economic Review, 101(7), 3078–3108. http://dx.doi.org/10.1257/aer.101.7.3078
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). O Brasil é um dos países onde ocorreram massivos investimentos na expansão do acesso à energia. Esses investimentos resultaram na quase universalização da energia elétrica em 2010, com 99,8% dos domicílios brasileiros conectados à eletricidade naquele ano.1 1 Entre 2000 e 2010, a proporção de domicílios com energia elétrica no país aumentou 23 pontos percentuais no meio rural — passou de 70,2% para 93,0% em 2010. No meio urbano, a taxa de eletrificação sempre foi alta e passou de 99,0% em 2000 para 99,8% em 2010. Apesar desse aumento, sabe-se muito pouco dos efeitos da expansão do acesso à energia, em especial seu efeito sobre as escolhas de alocação de tempo dos indivíduos.

Modelos teóricos de tradição beckeriana sugerem que o acesso à energia elétrica pode ter diversas consequências sobre a alocação de tempo dos indivíduos, particularmente das mulheres. A energia elétrica permite o uso de tecnologias modernas que simplificam as atividades domésticas como lavar roupas, cozinhar, estocar alimentos e limpar a casa. Por um lado, a adoção dessas tecnologias tornam as mulheres mais produtivas em atividades domésticas, como cuidados com os filhos e preparo de comida, o que tenderia a aumentar o tempo gasto na produção doméstica (efeito substituição). Por outro lado, essa adoção aumenta a duração do dia efetivo e, assim, a dotação de trabalho das famílias, o que tenderia a aumentar o tempo gasto no mercado de trabalho (efeito dotação). Consequentemente, o efeito total dessas mudanças sobre a oferta de trabalho pode ser ambíguo (Gronau, 1986Gronau, R. (1986). Home production: A survey. In O. C. Ashenfelter & R. Layard (Orgs.), (Vol. 1, pp. 273–304). Elsevier. http://dx.doi.org/10.1016/S1573-4463(86)01007-6
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) Apesar da ambiguidade teórica, existe pouca evidência dos efeitos da eletrificação sobre o uso do tempo das mulheres. Ademais, as evidências existentes analisam apenas os efeitos da eletrificação sobre oferta no mercado de trabalho (Dinkelman, 2011Dinkelman, T. (2011). The effects of rural electrification on employment: New evidence from South Africa. The American Economic Review, 101(7), 3078–3108. http://dx.doi.org/10.1257/aer.101.7.3078
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). O objetivo desse artigo é contribuir para essa literatura ao avaliar os efeitos da expansão da energia elétrica tanto sobre a oferta de trabalho no mercado de trabalho quanto seus efeitos sobre atividades domésticas no contexto brasileiro.

Para isso, o artigo explora mudanças no acesso a energia elétrica induzidas por investimentos do Plano de Universalização da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) e do programa Luz para Todos (LpT) do Ministério de Minas e Energias (MME).2 2 Segundo a Eletrobrás, o Programa Nacional de Universalização do Acesso e Uso da Energia Elétrica – Luz para Todos (LPT) foi instituído pelo Decreto nº 4873 em 11 de novembro de 2003. Inicialmente, estava previsto o atendimento aos domicílios identificados pelo IBGE até o ano de 2008. Entretanto, durante a execução do Programa Luz para Todos, os agentes envolvidos verificaram um número maior de famílias não atendidas com energia elétrica, vivendo em áreas remotas. Esse fato levou a alterações no LPT, com a publicação dos decretos nº 6442, de 25/04/2008, nº 7324, de 05/10/2010, nº 7520, de 08/07/2011, nº 7656, de 23/12/2011, nº 8387, de 30/12/2014 e nº 9357 de 27/4/2018. Como as concessionárias têm metas de conexão a serem cumpridas e buscam minimizar seus custos, elas têm incentivos para priorizar investimentos em áreas com menor custo médio de conexão por domicílio. Como o gradiente da terra é um componente importante dos custos de conexão (Dinkelman, 2011Dinkelman, T. (2011). The effects of rural electrification on employment: New evidence from South Africa. The American Economic Review, 101(7), 3078–3108. http://dx.doi.org/10.1257/aer.101.7.3078
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), isso implica que o acesso à eletricidade aumentará mais rápido nas áreas rurais vis-à-vis nas áreas urbanas em municípios com menor gradiente dentro da área de atuação de uma determinada concessionária. Consequentemente, o gradiente da terra interagido com dummies de ano e de domicílio rural é uma fonte de variação exógena para o acesso à energia dos domicílios brasileiros e pode ser utilizado como instrumento para acesso à energia elétrica. A ideia é que o acesso à energia nos domicílios rurais crescerá mais rapidamente do que o acesso à energia dos domicílios urbanos nos municípios em que o gradiente é menor.

A estratégia empírica descrita acima é implementada utilizando dados da Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar (PNAD) do período 2001–2009 combinados com informações geográficas da Missão Topográfica Radar Shuttle (acrônimo em inglês SRTM – Shuttle Radar Topography Mission). As informações da PNAD são utilizadas para construir indicadores de oferta de trabalho dentro e fora do domicílio e para identificar quais domicílios possuem energia elétrica e se estão localizados em zonas rurais. Já os dados do SRTM são utilizados para construir o gradiente médio da terra em cada município.

Os resultados das regressões de primeiro estágio indicam a importância desse instrumento para os investimentos em energia elétrica no período. De fato, o diferencial urbano-rural na taxa de eletrificação caiu mais rapidamente nos municípios com menor gradiente da terra no período de 2001 a 2009. Essa relação não é explicada por diferenças em características iniciais dos municípios e é estável a uma série de controles socioeconômicos e políticos. Testes de falsificação também mostram que o acesso a outros tipos de infraestrutura e a programas de assistência social não cresceu mais rápido em municípios com menor gradiente da terra no mesmo período.

Os resultados da análise de dois estágios sobre o impacto da energia elétrica no uso de eletrodomésticos mostram que o acesso à energia aumenta em 50 pontos percentuais a probabilidade de um domicílio ter televisão e em 60 pontos percentuais a probabilidade de um domicílio possuir geladeira. Isso indica que o acesso à energia elétrica induz a adoção de tecnologias que aumentam a produtividade da produção doméstica. Os coeficientes são parecidos quando estimamos intervalos de confiança robustos a instrumentos fracos propostos por Moreira (2003)Moreira, M. J. (2003). A conditional likelihood ratio test for structural models. Econometrica, 71(4), 1027–1048. http://dx.doi.org/10.1111/1468-0262.00438
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e os intervalos de Anderson–Rubin (AR).

Já os resultados da análise de dois estágios sobre a oferta de trabalho feminino mostram que o acesso à energia elétrica e eletrodomésticos modernos não tem efeito significativo nem sobre a probabilidade da mulher trabalhar (margem extensiva) nem sobre o número de horas trabalhadas (margem intensiva). Os efeitos do acesso à energia sobre a oferta de trabalho no domicílio também não são significativos.

Em geral, as estimativas sugerem que o choque de produtividade advindo do acesso à eletricidade não teve efeito sobre a oferta de trabalho feminina no mercado de trabalho nem sobre o trabalho feminino ofertado no domicílio. Esse resultado é consistente com o modelo de produção doméstica de Becker que indica que o acesso à eletricidade pode ter feitos ambíguos sobre a oferta de trabalho tanto no mercado quanto no domicílio.

Os resultados descritos acima contribuem para a literatura empírica sobre o impacto da eletrificação em escolhas intrafamiliares. A literatura empírica existente indica que energia afeta positivamente o emprego feminino fora de casa (Dinkelman, 2011Dinkelman, T. (2011). The effects of rural electrification on employment: New evidence from South Africa. The American Economic Review, 101(7), 3078–3108. http://dx.doi.org/10.1257/aer.101.7.3078
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), a escolaridade de crianças e adolescente (Khandker, Barnes, & Samad, 2012Khandker, S. R., Barnes, D. F., & Samad, H. A. (2012). The welfare impacts of rural electrification in Bangladesh. The Energy Journal, 33(1), 187. http://dx.doi.org/10.5547/ISSN0195-6574-EJ-Vol33-No1-7
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) e a saúde infantil por meio do acesso a eletrodomésticos e maior tempo dos pais no cuidado dos filhos. Todavia, nenhum trabalho dessa literatura distingue os efeitos do acesso à energia sobre os dois diferentes usos do tempo: mercado de trabalho e trabalho doméstico — o que é possível nos dados da PNAD utilizados no trabalho. Isso o distingue da literatura existente que analisa apenas mudanças na oferta de trabalho no mercado e interpreta que mudanças na oferta de trabalho no mercado levam a mudanças de sinal oposto na oferta de trabalho no domicílio. É importante ressaltar que isso desconsidera que a dotação de tempo útil muda em decorrência do choque de produtividade viabilizado pelo acesso à energia elétrica.

O restante do artigo está dividido em seis seções. A seção 2 discute o papel de choques de tecnologia de produção doméstica na alocação do tempo da mulher por meio de uma discussão conceitual e uma revisão da literatura empírica relacionada. A seção 3 apresenta o contexto institucional dos Planos de Universalização e do programa LpT. A seção 4 descreve os dados e a estratégia empírica adotada. A seção 5 discute os resultados encontrados. Por fim, a seção 6 conclui o artigo.

2. Eletrificação e oferta de trabalho feminina

2.1 Modelo de produção doméstica

A principal restrição para a adoção de tecnologias domésticas é a ausência de energia elétrica no domicílio. A adoção de tecnologias como geladeira e máquina de lavar simplifica as atividades domésticas como cozinhar, estocar alimentos e lavar roupas. Isen e Stevenson (2010)Isen, A., & Stevenson, B. (2010). Women’s education and family behavior: Trends in marriage, divorce and fertility. In J. B. Shoven (Org.), Demography and the economy. National Bureau of Economic Research (NBER). http://www.nber.org/chapters/c8408
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destacam que essas mudanças podem impactar a produção doméstica através de três canais. Primeiro, essas mudanças tornam a produção doméstica mais eficiente. Segundo, elas reduzem os retornos a habilidades domésticas específicas na medida em que essas tecnologias substituem trabalho doméstico por capital. Terceiro, elas tornam os bens produzidos no mercado um substituto próximo de bens produzidos em casa, o que torna o mercado de trabalho um substituto próximo do trabalho doméstico.

O potencial impacto dos mecanismos destacados acima sobre a oferta de trabalho pode ser analisado a partir do modelo de produção doméstica de Becker (1965)Becker, G. S. (1965). A theory of the allocation of time. The Economic Journal, 75(299), 493–517. http://dx.doi.org/10.2307/2228949
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e sua extensão proposta por Gronau (1986)Gronau, R. (1986). Home production: A survey. In O. C. Ashenfelter & R. Layard (Orgs.), (Vol. 1, pp. 273–304). Elsevier. http://dx.doi.org/10.1016/S1573-4463(86)01007-6
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. Esse modelo considera que as famílias consomem bens produzidos no mercado (comprados com o salário obtido ofertando trabalho) e bens produzidos no domicílio (relativamente mais intensivos em tempo). A chegada de eletrodomésticos como geladeira e máquina de lavar representam choques positivos sobre a produtividade marginal do tempo gasto para produzir bens domésticos.

os choques descritos acima têm dois efeitos principais. Por um lado, eles tornam as famílias mais produtivas em atividades domésticas, como cuidados com os filhos e preparo de comida. Esse aumento de produtividade tenderia a aumentar o tempo gasto na produção doméstica (efeito substituição). Por outro lado, eles aumentam a duração do dia efetivo e assim a dotação de trabalho da família. Isso tenderia a aumentar o tempo gasto no mercado de trabalho (efeito dotação). Portanto, o efeito total dessas mudanças sobre a oferta de trabalho dependerá da magnitude relativa dos efeitos mencionados acima e pode atuar tanto sobre a margem intensiva quanto extensiva de oferta de trabalho.

O modelo teórico de produção doméstica proposto por Gronau (1986)Gronau, R. (1986). Home production: A survey. In O. C. Ashenfelter & R. Layard (Orgs.), (Vol. 1, pp. 273–304). Elsevier. http://dx.doi.org/10.1016/S1573-4463(86)01007-6
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permite entender formalmente como esses diferentes mecanismos atuam. Ao contrário dos modelos clássicos de oferta de trabalho, o modelo distingue o tempo gasto no trabalho doméstico do tempo gasto em lazer. Por um lado, o autor supõe que o trabalho doméstico é um substituto próximo do trabalho no mercado de trabalho, uma vez que ambos aumentam a utilidade do indivíduo através do aumento do seu consumo de bens e serviços. Em um caso extremo, o trabalho doméstico e o trabalho no mercado são substitutos perfeitos e o indivíduo é indiferente se o conjunto de bens e serviços que ele consome é produzido em casa ou comprado no mercado. Por outro lado, há poucos substitutos próximos no mercado para atividades de lazer.

Suponha que existe apenas um período e que o indivíduo more sozinho no domicílio.3 3 A hipótese que o indivíduo mora sozinho no domicílio pode ser entendida como uma hipótese em que o domicílio é unitário e que todas as escolhas ocorrem como se o domicílio tivesse apenas um indivíduo. Ver Cahuc e Zylberberg (2004) para uma discussão dessa e de outras hipóteses sobre escolhas intradomiciliares. O domicílio maximiza a utilidade (U) que é uma função do consumo de bens e serviços (X) e de lazer (L) tal que, U(X,L).

Os bens podem ser produzidos em casa (XH) ou comprados no mercado (XM). Suponha que XH e XM são bens substitutos perfeitos,

(1) X = X H + X M .

O indivíduo obtém XM utilizando seu salário (w) obtido com a venda de N horas de tempo no mercado de trabalho e com sua renda não trabalho 𝑉de forma que:

(2) X M = w N + V .

O indivíduo obtém XH utilizando Hhoras do seu tempo em atividades domésticas. A relação entre H e XH é descrita pela função de produção abaixo:

(3) X H = f ( H ) .

Essa função de produção é por hipótese crescente e côncava (𝑓′(⋅) > 0 e 𝑓″(⋅)>0), e satisfaz as condições de Inada (𝑓′(0)=0e 𝑓′(∞)=0).

O indivíduo possui uma dotação de tempo que deve ser dividido entre trabalho no mercado (N), trabalho doméstico (H) e lazer (L) de acordo com a seguinte restrição de tempo:

(4) L + H + N = T .

O problema do indivíduo consiste em escolher L, H e N de forma a maximizar:

(5) max L , H , N U ( w N + V + f ( H ) , L ) s .a . L + H + N = T .

As condições de primeira ordem desse problema indicam que:

f ( H ) = ( U L U X ) = w , se N > 0 , f ( H ) = ( U L U X ) > w , se N = 0 ,

em que H* e N* indicam o valor de oferta de trabalho no domicílio e no mercado de trabalho no ótimo e L* = 𝑇−HN* . Os indivíduos escolhem dividir seu tempo de forma a igualar o produto marginal do trabalho doméstico 𝑓′(⋅)com a taxa marginal de substituição entre bens e lazer. O produto marginal do trabalho doméstico também será igual ao salário quando o indivíduo oferta trabalho no mercado. Mas a solução é de canto quando a oferta de trabalho no mercado é nula e o produto marginal do trabalho doméstico é maior que o salário nesse caso.

Gronau (1986)Gronau, R. (1986). Home production: A survey. In O. C. Ashenfelter & R. Layard (Orgs.), (Vol. 1, pp. 273–304). Elsevier. http://dx.doi.org/10.1016/S1573-4463(86)01007-6
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não analisa o efeito de mudanças na produtividade do trabalho doméstico sobre o uso de tempo do indivíduo. O autor simplesmente argumenta que essas mudanças têm efeito ambíguo sobre uso de tempo sempre que forem poupadoras de trabalho doméstico. Para formalizar essa ideia é preciso estender o modelo básico do autor para incluir um termo de produtividade no trabalho doméstico (E) e reescrever a relação entre XH e H como:

(6) X H = f ( E H ) .

A forma funcional acima capta a intuição de que melhorias na tecnologia de produção doméstica poupam trabalho do indivíduo na produção de bens dentro do domicílio. Essa hipótese é utilizada na literatura sobre eletrodomésticos e oferta de trabalho como em Greenwood, Seshadri, e Yorukoglu (2005)Greenwood, J., Seshadri, A., & Yorukoglu, M. (2005). Engines of liberation. The Review of Economic Studies, 72(1), 109–133. http://dx.doi.org/10.1111/0034-6527.00326
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. A chegada de energia elétrica é um exemplo de um choque que aumenta a produtividade do trabalho doméstica ao permitir que o indivíduo adote eletrodomésticos.

O equilíbrio nesse modelo estendido será descrito pelas seguintes condições de primeira ordem:

f ( E H ) E = ( U L U X ) = w , se N > 0 , f ( E H ) E = ( U L U X ) > w , se N = 0.

As equações acima permitem entender como a chegada de energia elétrica afeta o uso de tempo através de seu efeito sobre E. Considere primeiro o caso de indivíduos que ofertam trabalho no mercado. A condição de equilíbrio 𝑓′(H*)=w nos mostra que o efeito de um aumento de E sobre a oferta de trabalho doméstico será ambíguo. O choque de produtividade torna os indivíduos mais produtivos em atividades domésticas e isso os estimula a ofertar mais trabalho dentro de casa. Mas o choque de produtividade também aumenta o tempo do indivíduo e isso o estimula a alocar esse tempo em outras atividades. Formalmente, isso pode ser visto aplicando o teorema da função implícita nessa condição de equilíbrio tal que:

(7) d H d E = f ( E H * ) f ( E H * ) E 2 1 E 2 Efeito Produtividade ( > 0 ) H * E Efeito Dotação ( < 0 ) .

O primeiro termo da expressão acima é positivo e representa o efeito via maior produtividade em atividades domésticas descrito acima. Já o segundo termo da expressão é negativo e representa o efeito via aumento da dotação de tempo provocado pelo choque de produtividade.

O efeito do choque de produtividade doméstica sobre a oferta de trabalho no mercado também será ambíguo. Mas o efeito do choque de produtividade sobre o tempo gasto com lazer é certamente positivo. Isso ocorre porque o choque de produtividade aumenta a riqueza do indivíduo e porque o lazer é um bem normal.

Mas é importante observar que é possível que a oferta de trabalho aumente tanto no domicílio quanto no mercado de trabalho se a chegada de eletricidade aumenta a produtividade no mercado, como sugerido por Dinkelman (2011)Dinkelman, T. (2011). The effects of rural electrification on employment: New evidence from South Africa. The American Economic Review, 101(7), 3078–3108. http://dx.doi.org/10.1257/aer.101.7.3078
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e Lipscomb, Mobarak, e Barham (2013)Lipscomb, M., Mobarak, M. A., & Barham, T. (2013). Development effects of electrification: Evidence from the topographic placement of hydropower plants in Brazil. American Economic Journal: Applied Economics, 5(2), 200–231. http://dx.doi.org/10.1257/app.5.2.200
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. Nesse caso, o choque de produtividade aumenta a produtividade em ambos os trabalhos e pode induzir o indivíduo a substituir lazer por trabalho.4 4 Isso ocorrerá caso o efeito substituição supere o efeito renda. Qual margem de trabalho aumentará vai depender do efeito relativo sobre a produtividade no mercado e no domicílio.5 5 É possível reinterpretar as escolhas de uso de tempo em duas etapas nesse caso. Primeiro, o indivíduo escolhe entre quanto trabalho e quanto lazer terá com base em uma produtividade média no mercado e no domicílio que ele possui e que depende do parâmetro de tecnologia E. O impacto de um aumento de E sobre essa escolha será qualitativamente idêntico ao impacto de um aumento de w em um modelo de oferta de trabalho sem produção doméstica. Segundo, o indivíduo escolhe como alocar seu trabalho entre o domicílio e o mercado e isso dependerá da produtividade relativa nas duas atividades. O impacto de um aumento de E sobre essa escolha será qualitativamente dependente do impacto relativo de E na produtividade no domicílio e no mercado.

O modelo apresentado acima também pode ser modificado para o caso em que bens produzidos no domicílio e comprados no mercado não sejam substitutos perfeitos. Nesse caso, diferentes respostas a mudanças de tecnologia nos domicílios também se relacionam a preferências heterogêneas por bens produzidos no mercado ou no domicílio. Domicílios onde os indivíduos já são mais engajados em atividades intensivas em tempo dentro do domicílio, como o cuidado com os filhos, sofrem um choque maior com a chegada de eletricidade. Portanto, é esperado que esses indivíduos tenham maior probabilidade de responder a mudanças de tecnologia, alterando a oferta de trabalho no mercado.6 6 Segundo Gronau (1986), mulheres com filhos, em particular filhos mais novos, usam mais seu tempo com trabalho doméstico (cuidado com filhos e outras atividades domésticas). Ainda segundo o autor, parte do aumento da produção doméstica geralmente vem da redução do trabalho no mercado de trabalho.

2.2 Literatura empírica relacionada

Os mecanismos propostos por Becker (1965)Becker, G. S. (1965). A theory of the allocation of time. The Economic Journal, 75(299), 493–517. http://dx.doi.org/10.2307/2228949
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são estudados em análises macroeconômicas sobre a participação feminina no mercado de trabalho. Greenwood et al. (2005)Greenwood, J., Seshadri, A., & Yorukoglu, M. (2005). Engines of liberation. The Review of Economic Studies, 72(1), 109–133. http://dx.doi.org/10.1111/0034-6527.00326
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apresentam evidência histórica sugerindo que o progresso tecnológico na produção doméstica foi importante para explicar a entrada de mulheres casadas no mercado de trabalho. Greenwood, Guner, Kocharkov, e Santos (2016)Greenwood, J., Guner, N., Kocharkov, G., & Santos, C. (2016). Technology and the changing family: A unified model of marriage, divorce, educational attainment, and married female labor-force participation. American Economic Journal: Macroeconomics, 8(1), 1–41. http://dx.doi.org/10.1257/mac.20130156
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apresentam e calibram um modelo em que o valor do trabalho da mulher na produção doméstica diminuiu devido à chegada de eletrodomésticos e da internet nos domicílios, e isso explicaria a entrada das mulheres no mercado de trabalho. Eckstein e Lifshitz (2011)Eckstein, Z., & Lifshitz, O. (2011). Dynamic female labor supply. Econometrica, 79(6), 1675–1726. http://dx.doi.org/10.3982/ECTA8803
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quantificam que aproximadamente 42% da mudança na oferta de trabalho feminina no século passado nos EUA não podem ser explicadas por variáveis como educação, diferencial salarial por gênero, fecundidade, casamento e divórcio. Esse componente residual é atribuído à melhoria na tecnologia de produção doméstica e a mudanças nas normas sociais.7 7 Fernández, Fogli, e Olivetti (2004) estimam como normas sociais afetam a oferta de trabalho feminina. Essa literatura se baseia em tendências de longo prazo que sugerem que o aumento da produtividade das atividades domésticas leva ao aumento da oferta de trabalho feminino no mercado e a queda da oferta de trabalho feminino no domicílio.

A literatura mencionada acima é complementada por uma literatura que avalia o impacto causal da eletricidade sobre escolhas intrafamiliares. Esse artigo se insere nessa literatura uma vez que estima o impacto causal da eletricidade sobre uso do tempo da mulher. Mas o trabalho se diferencia dos trabalhos anteriores ao testar explicitamente o impacto da eletricidade sobre oferta de trabalho não apenas no mercado, mas também no domicílio.

O principal trabalho dessa literatura é o de Dinkelman (2011)Dinkelman, T. (2011). The effects of rural electrification on employment: New evidence from South Africa. The American Economic Review, 101(7), 3078–3108. http://dx.doi.org/10.1257/aer.101.7.3078
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, que estima o impacto de uma política de eletrificação rural ocorrida na África do Sul ao longo da década de 1990. Para estimar esse efeito, Dinkelman (2011)Dinkelman, T. (2011). The effects of rural electrification on employment: New evidence from South Africa. The American Economic Review, 101(7), 3078–3108. http://dx.doi.org/10.1257/aer.101.7.3078
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utiliza regressões de efeitos fixos de distrito e instrumenta alocação de projetos de eletrificação pelo gradiente da terra. Essa estratégia é similar à utilizada nesse trabalho e se baseia na ideia de que um maior gradiente da terra aumenta o custo de conectar um domicílio à rede elétrica e diminui a probabilidade desse domicílio ser beneficiado por investimentos em eletrificação. Dinkelman (2011)Dinkelman, T. (2011). The effects of rural electrification on employment: New evidence from South Africa. The American Economic Review, 101(7), 3078–3108. http://dx.doi.org/10.1257/aer.101.7.3078
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encontra evidência de que a eletrificação rural aumentou significativamente o emprego feminino nesse período e as horas trabalhadas tanto de homens quanto de mulheres. Ela também encontra evidência de que a eletrificação aumentou o salário de homens e reduziu os salários das mulheres. Essa evidência é consistente com a hipótese de que a eletrificação rural cria oportunidades no mercado de trabalho (o que explica o impacto sobre emprego e salários dos homens) e libera tempo da mulher (o que explica o impacto sobre emprego e salários das mulheres).

Khandker, Barnes, e Samad (2012)Khandker, S. R., Barnes, D. F., & Samad, H. A. (2012). The welfare impacts of rural electrification in Bangladesh. The Energy Journal, 33(1), 187. http://dx.doi.org/10.5547/ISSN0195-6574-EJ-Vol33-No1-7
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utilizam regras arbitrárias para a realização de obras de eletrificação do programa Rural Electrification Board (REB) para avaliar o impacto da energia elétrica sobre anos completos de escolaridade e tempo de estudo em casa de crianças de Bangladesh. Khandker, Samad, Ali, e Barnes (2012)Khandker, S. R., Samad, H. A., Ali, R., & Barnes, D. F. (2012, June). Who benefits most from rural electrification? Evidence in India (Policy Research Working Paper No 6095). The World Bank. https://openknowledge.worldbank.org/handle/10986/9328
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também utilizaram variáveis instrumentais para avaliar os efeitos de energia elétrica sobre escolaridade e tempo de estudo para crianças na Índia. Ambos os estudos indicam que energia elétrica aumenta a escolaridade e o tempo de estudo em casa de meninos e meninas.

O principal artigo sobre eletrificação no Brasil é o trabalho de Lipscomb et al. (2013)Lipscomb, M., Mobarak, M. A., & Barham, T. (2013). Development effects of electrification: Evidence from the topographic placement of hydropower plants in Brazil. American Economic Journal: Applied Economics, 5(2), 200–231. http://dx.doi.org/10.1257/app.5.2.200
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que estima o impacto da construção de hidroelétricas no país entre os anos 1960–2000 sobre medidas de desenvolvimento. Para lidar com a endogeneidade entre infraestrutura e desenvolvimento, os autores simulam qual teria sido a evolução da rede elétrica casos esses investimentos tivessem sido feitos apenas considerando custos geográficos. Usando esse modelo de simulação como instrumento, o artigo documenta efeitos positivos consideráveis da eletrificação no desenvolvimento. O estudo sugere ainda que esses efeitos são decorrentes da melhoria na produtividade do trabalho em todos os setores da economia e regiões do país.

A expansão da energia elétrica também é usada para estudar efeitos de choques de produtividade sobre desmatamento e uso da terra em Assunçao, Lipscomb, Mobarak, e Szerman (2017)Assunçao, J., Lipscomb, M., Mobarak, A. M., & Szerman, D. (2017). Agricultural productivity and deforestation in Brazil. https://climatepolicyinitiative.org/wp-content/ uploads/2017/06/Agricultural-Productivity-and-Deforestation-in-Brazil-CPI.pdf
https://climatepolicyinitiative.org/wp-c...
. Os autores identificam choques de produtividade usando a expansão da eletrificação rural no Brasil durante 1960–2000. Os autores também exploram variações geográficas para lidar com o problema da endogeneidade da eletrificação desenvolvendo um modelo que prevê a instalação de barragens hidrelétricas com base nos atributos topográficos de cada local. Com base no modelo,o estudo consegue isolar a porção exógena da variação do painel na eletrificação. Os autores mostram que a eletrificação aumentou a produtividade da safra e, consequentemente, os agricultores expandiram a agricultura por meio da conversão de terras na fronteira, mas também mudaram da pecuária para o cultivo. O estudo sugere, por fim, que a eletrificação causa uma redução líquida no desmatamento.

O principal estudo que investiga o impacto de energia elétrica sobre escolhas intrafamiliares no Brasil é Ribeiro (2013)Ribeiro, F. G. (2013). Ensaios em desenvolvimento e crescimento econômico (Tese de Doutorado, Fundação Getulio Vargas, São Paulo). https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/10923
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. O autor avalia o efeito da energia elétrica no desempenho escolar e na oferta de trabalho de crianças e adolescentes usando como variação os investimentos recentes em eletrificação rural do programa LpT no Brasil e dados do Censo Demográfico de 2000 e de 2010. O autor utiliza os critérios de prioridade do programa LpT para construir um indicador de municípios priorizados pelos investimentos do programa. O autor aplica o método de Regressão com Desenho de Descontinuidade (RDD) e mostra que municípios priorizados apresentam maior acesso à energia elétrica em 2010. Mas ele não encontra nenhum impacto da eletricidade sobre frequência escolar e trabalho infantil utilizando esse método. Ribeiro (2013)Ribeiro, F. G. (2013). Ensaios em desenvolvimento e crescimento econômico (Tese de Doutorado, Fundação Getulio Vargas, São Paulo). https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/handle/10438/10923
https://bibliotecadigital.fgv.br/dspace/...
também utiliza os critérios de prioridade do programa como instrumento do acesso à eletricidade em um modelo de Diferenças em Diferenças, e encontra resultados que sugerem que o acesso à energia elétrica aumentou a probabilidade das crianças e adolescentes estarem matriculadas na escola e serem alfabetizadas e reduziu a defasagem idade/série e a probabilidade de estarem trabalhando. Entretanto, essa estratégia empírica compara mudanças ao longo do tempo de municípios mais pobres (priorizados pelas regras do LpT) e mais ricos (não priorizados pelas regras do LpT). Isso significa que os resultados do autor podem ser decorrentes de convergência entre municípios mais pobres e mais ricos, ou de correlação entre as regras de prioridade do LpT e outros investimentos públicos também direcionados a municípios mais pobres.

3. Eletrificação nas áreas rurais

3.1 Contexto institucional

O Censo de 2000 revelou que mais de três milhões de domicílios brasileiros não tinham acesso à energia elétrica naquele ano. Cerca de 80% desses domicílios estavam localizados na área rural, e em sua maioria tinham baixa renda e situavamse em municípios com baixo Índice de Desenvolvimento Humano (IDH).8 8 Segundo o governo brasileiro, cerca de 90% dessas famílias têm renda inferior a três salários mínimos (http://luzparatodos.mme.gov.br/luzparatodos/asp/). Frente a esse problema, o governo brasileiro criou medidas voltadas para a universalização do acesso à energia elétrica no país. A eletrificação foi definida como vetor de desenvolvimento social e econômico dessas comunidades com o intuito de reduzir a pobreza.

A Figura 1 apresenta a distribuição espacial do índice de atendimento elétrico no país em 2000. A maior parte dos domicílios que não estão conectados a rede elétrica localizavam-se na região norte e nordeste do país.

Figura 1
Índice de Atendimento Elétrico – Censo 2000

As principais medidas adotadas para ampliar o acesso à energia elétrica no Brasil foram os Planos de Universalização de Energia Elétrica e o programa Luz para Todos (LpT). Os Planos de Universalização de Energia Elétrica foram instituídos pela Resolução 223 da Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) em 29 de abril de 2003.9 9 Essa resolução está disponível em http://www.aneel.gov.br/cedoc/res2003223.pdf Essa resolução estabeleceu condições gerais para a elaboração desses Planos de Universalização, fixando as responsabilidades das concessionárias e permissionárias de serviço público de distribuição de energia elétrica.

A principal condição foi o estabelecimento de metas anuais, baseadas no Índice de Atendimento Elétrico (IAE), para que as concessionárias e permissionárias alcançassem a universalização de energia elétrica para unidades consumidoras rurais e urbanas, ainda que localizadas em áreas de baixa densidade de carga.

Dependendo do grupo de consumo estabelecido pela resolução, a concessionária deveria atender sem qualquer ônus para o solicitante o pedido de nova ligação para a unidade consumidora. Essa regra começou a valer a partir da data de publicação da Resolução 223. Já as solicitações de grupos de consumidores que demandassem extensão da rede primária deveriam ser atendidas a partir de primeiro de janeiro de 2004.

A Resolução 223 também estabeleceu que a concessionária deveria submeter à ANEEL o Plano de Universalização de Energia Elétrica. Esse plano deveria ser implementado no período de 1º de janeiro de 2004 até 31 de dezembro do ano estabelecido para o alcance da universalização. A resolução permitia que a concessionária propusesse que a universalização de um determinado município fosse alcançada em ano diferente do estabelecido, desde que respeitando o limite estabelecido pela ANEEL. Caso contrário, a concessionária deveria apresentar justificativas técnicas e econômicas no Plano de Universalização que seriam avaliadas pela Agência.

A análise dos Planos de Universalização submetidos pelas concessionárias revelou que grande parte das alterações de anos limites solicitadas foram justificadas pela geografia do município. Tipicamente, concessionárias justificavam que fatores geográficos, como o relevo, impunham maiores custos para conectar domicílios de determinados municípios à rede de distribuição e pediam à ANEEL para ampliar o prazo para universalizar o acesso nessas localidades. Exemplos podem ser encontrados nos relatórios da AES-Sul (Nota Técnica 084/2004) e da COELBA (Nota Técnica 095/2004). A AES-Sul destacou como justifica para adiar as datas de universalização as dificuldades existentes em relação ao relevo de algumas regiões, nas quais estão situados os municípios de Sobradinho, Tunas, Ibarama e Segredo. Segundo o relatório, são áreas que possuem vales e elevações de difícil acesso, com matas nativas, o que dificulta a construção de redes de distribuição (p.3). A COELBA foi ainda mais específica, ressaltando dificuldades relacionadas ao tipo de relevo e vegetação de sua área de concessão. O relatório acrescenta que a Chapada Diamantina, que se estende do Norte do estado até à fronteira com Minas Gerais, na região Sudeste, “é uma região de relevo acidentado e rochoso, que dificulta ou impede, o uso de sistema elétricos de distribuição mais simples e econômicos, do tipo monofásico com retorno por terra.”

A Resolução 223 também garantiu que o ano máximo para o alcance da universalização de determinados municípios e da concessionária poderia ser antecipado pela ANEEL. Isso ocorreria sempre que houvesse alocação de recursos a título de subvenção econômica. Esses recursos seriam oriundos de programas especiais implementados por órgão da Administração Pública Federal, do Distrito Federal, dos Estados ou dos Municípios, inclusive da administração indireta, ou empréstimos oriundos da Reserva Global de Reversão (RGR).

Nesse contexto, o programa Luz para Todos (LpT) permitiu a ANEEL revisar os planos de universalização visto que garantia recursos para as concessionárias universalizarem o acesso à eletricidade na área rural do Brasil. Por meio da Resolução Normativa nº 175 de 28 de novembro de 2005, a ANEEL, estabeleceu as condições para a revisão dos Planos de Universalização de Energia Elétrica a da antecipação de metas previstas. Essa revisão considerava os objetivos dos Termos de Compromisso firmados com o Ministério de Minas e Energia (MME) no âmbito do Programa LpT.

O LpT foi instituído pelo Decreto nº 4873 e de 11 de novembro de 2003. Sua implementação antecipou o cumprimento das metas de universalização estabelecidas na Resolução 223. A antecipação das metas de universalização foi custeada com recursos provenientes da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), instituída pelo artigo 13 da Lei nº 10438, de 26 de abril de 2002, e da Reserva Global de Reversão (RGR), instituída pela Lei nº 5655, de 20 de maio de 1971, e também de agentes do setor de energia elétrica, dos Estados e dos Municípios. O foco do programa era apenas para unidades consumidoras no meio rural.

O MME estabeleceu prioridades para o atendimento aos municípios. Seriam priorizados consumidores localizados em: i) municípios com Índice de Atendimento Elétrico a Domicílios em 2000 inferior a 85%; ii) municípios com Índice de Desenvolvimento Humano inferior à média estadual em 2000; iii) comunidades atingidas por barragens de usinas hidrelétricas ou por obras do sistema elétrico; iv) projetos que enfoquem o uso produtivo comunitário da energia elétrica e que fomentem o desenvolvimento local integrado; v) escolas públicas, postos de saúde e poços comunitários de abastecimento d’água; vi) assentamentos rurais; vii) projetos para o desenvolvimento comunitário da agricultura familiar ou de atividades de artesanato de base familiar; viii) projetos de eletrificação rural, paralisados por falta de recursos, que atendam às comunidades e à povoados rurais; ix) populações do entorno de Unidades de Conservação da Natureza e dos Territórios da Cidadania; x) populações em áreas de uso específico de comunidades especiais, tais como minorias raciais, comunidades remanescentes de quilombos, comunidades indígenas, comunidades extrativistas, etc.10 10 http://luzparatodos.mme.gov.br/luzparatodos/asp/ (acesso em julho de 2012).

A execução das obras do programa foi intermediada pelas concessionárias de energia elétrica e as cooperativas de eletrificação rural. Um total de 60 concessionárias e 33 cooperativas localizadas em 26 estados brasileiros realizaram obras pelo Programa. As empresas de energia fazem o levantamento da demanda de eletrificação rural na região onde atuam e elaboram o programa de obras. Esse programa é encaminhado à Eletrobrás para análise técnica e orçamentária e, após a sua aprovação, o contrato entre o agente executor e a Eletrobrás é assinado e as obras se iniciam.

O cadastramento dos consumidores deveria ser feito diretamente pelos moradores da área rural sem acesso à energia elétrica no domicílio. Esses consumidores devem procurar o escritório ou o representante da empresa de energia elétrica que atua no seu município e solicitar a instalação da luz mediante cadastro. A prioridade das obras é definida pelo comitê gestor. Já o cronograma é definido pelo agente executor.11 11 O atendimento ao público do programa LpT é realizado de duas formas. Através de requisição de instalação na distribuidora de energia elétrica do município ou com os funcionários responsáveis pela leitura dos relógios da cidade. A solicitação de instalação de energia elétrica por meio do LpT exigia um documento de identificação e localização da propriedade que seria beneficiada. A outra possibilidade era o envio de um ofício comum em nome de toda a comunidade para o Comitê Gestor Estadual. Esse documento deveria conter as informações de cada morador interessado na instalação de energia.

O programa estava previsto para ter suas obras concluídas até 2008, mas teve o prazo prorrogado para 2011 por meio da Resolução Normativa 365 da ANEEL de maio de 2009. No entanto, a publicação do Censo 2010 apontou a existência de domicílios ainda sem energia elétrica. Esses domicílios estavam localizados principalmente nas regiões Norte e Nordeste e nas áreas de extrema pobreza. Isso levou o governo federal a instituir uma nova fase do LpT para o período de 2011 a 2014.

Os critérios de prioridade estabelecidos nos Planos de Universalização e no programa LpT, em geral baseados em regras, deveriam gerar variações exógenas no acesso à energia elétrica entre municípios. No entanto, não observamos isso nos dados. As constantes mudanças de regras e ausência de punições efetivas às concessionárias parecem ter feito esses critérios terem pequeno valor prático. A expansão da eletrificação rural induzida pelas políticas de universalização parece ter seguido incentivos relacionados aos custos da ligação elétrica — as concessionárias tiveram incentivos de investir primeiro na universalização do acesso à eletricidade de municípios onde o custo era menor.

Os dados indicam que o programa conectou 2,6 milhões de famílias rurais entre abril de 2004 e setembro de 2013. A Figura 2 apresenta o número de ligações ao longo do tempo feitas pelo programa Luz para Todos e mostra que os investimentos concentraram-se entre os anos de 2005 e 2010.

Figura 2
Número de Ligações por Mês/Ano no Brasil

Os custos de conectar os consumidores à rede elétrica variam bastante dependendo de fatores demográficos e geográficos de diferentes localidades. Como discutido anteriormente, os relatórios dos planos de universalização das concessionárias de energia elétrica destacam o papel central dos custos e de como eles variam entre diferentes municípios brasileiros. Essas diferenças de custos criaram incentivos para as concessionárias investirem inicialmente na universalização do acesso à eletricidade de municípios onde o custo era menor. Esses incentivos advêm da tentativa das concessionárias cumprirem suas metas de acesso à eletricidade ao menor custo possível.

Três principais fatores reduzem o custo médio de construir linhas de distribuição e conectar domicílios à rede elétrica (West, Dwolatzky, & Meyer, 1997West, N., Dwolatzky, B., & Meyer, A. (1997). Terrain based routing of distribution cables. IEEE Computer Applications in Power, 10(1), 42–46. http://dx.doi.org/10.1109/67.560861
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). O primeiro é a proximidade às subestações e linhas de alta tensão. O segundo é a densidade de moradores na localidade. Já o terceiro é o gradiente da terra e do terreno. Esse terceiro fator será essencial para a estratégia empírica utilizada nesse trabalho. O gradiente da terra reflete a inclinação do terreno. Terrenos menos inclinados apresentam menor incidência de morros e vales e também apresentam solos mais macios. Consequentemente, é mais barato instalar linhas de alta tensão e postes de transmissão em municípios com menor gradiente da terra (Dinkelman, 2011Dinkelman, T. (2011). The effects of rural electrification on employment: New evidence from South Africa. The American Economic Review, 101(7), 3078–3108. http://dx.doi.org/10.1257/aer.101.7.3078
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).

A relação entre gradiente da terra e custo médio de conectar domicílios à rede elétrica torna essa variável útil para a construção de um instrumento para mudanças no acesso à eletricidade observadas no período. A estrutura de custos sugere que uma concessionária de energia elétrica priorizará investimentos nos municípios de sua área de concessão que possuem menor gradiente da terra. Portanto, a probabilidade da concessionária conectar um domicílio será menor em municípios mais acidentados, i.e., com maior gradiente da terra. Essa relação deve crescer ao longo do tempo e deve ser mais intensa nas áreas rurais.

A maior intensidade dessa relação nas áreas rurais está relacionada à menor densidade demográfica das áreas rurais, aos critérios de prioridade do LpT e à menor taxa de eletrificação dessas áreas no início do período analisado.

4. Dados

Essa seção apresenta as fontes de dados utilizadas na análise empírica. As principais variáveis socioeconômicas utilizadas na estratégia empírica são construídas a partir dos microdados da Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar (PNAD) dos anos de 2001 a 2009. Já o gradiente da terra, principal variável necessária para implementar o desenho de variáveis instrumentais (VI), é construído a partir de dados geográficos sobre relevo processados utilizando o software de geoprocessamento ArcGis.

4.1 PNAD

O impacto do acesso à energia sobre o uso de eletrodomésticos e sobre o uso do tempo da mulher é estudado a partir de dados socioeconômicos provenientes da Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar (PNAD) para os anos de 2001 a 2009. A PNAD é realizada por amostragem pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e abrange todo o território nacional. O desenho amostral da pesquisa permite a expansão dos resultados para todo o país, regiões, estados ou áreas metropolitanas. Também é possível identificar o município em que cada domicílio entrevistado na PNAD está localizado utilizando o seu número de controle. Entretanto, é importante ressaltar que a pesquisa não é representativa ao nível municipal.

A amostra selecionada a partir dos microdados da PNAD inclui somente domicílios particulares e localizados em áreas não metropolitanas compostos pelo responsável pelo domicílio, sua cônjuge e filhos. A amostra é restrita para responsáveis e cônjuges com idade entre 18 e 65 anos. A análise principal se concentra nos 401 municípios nos quais a PNAD entrevista domicílios tanto na área urbana quanto na área rural.12 12 Os resultados são robustos ao uso dos 805 municípios incluídos nas entrevistas da PNAD. Dessa forma, esse artigo analisa os efeitos do acesso à energia no uso do tempo em uma amostra de mães (mulheres entre 18 e 65 cuja condição no domicílio é cônjuge e que têm filhos). Além disso, também analisamos esses efeitos em subamostras de mães com filhas mais velhas (mulheres entre 18 e 65 anos cuja condição no domicílio é cônjuge e que têm pelo menos uma filha maior que 10 anos de idade) e em uma subamostra de mães sem filhas mais velhas (mulheres entre 18 e 65 anos cuja condição no domicílio é cônjuge e que não possuem filhas mais velhas que 10 anos de idade). A análise dessas diferentes amostras busca avaliar se os efeitos da expansão da energia elétrica são maiores para o grupo de mulheres com filhos pequenos que, teoricamente, são mais engajadas em atividades intensivas em tempo dentro do domicílio. Além disso, analisamos os efeitos do acesso à energia no uso do tempo dos pais (homens de 18 a 65 anos com filhos no domicílio) e de crianças e adolescentes (crianças de 10 a 14 anos e adolescentes de 15 a 17 anos de idade).

Esse trabalho estima o impacto do acesso à energia elétrica sobre uma série de variáveis de resultado. A variável de interesse, construída a partir das informações sobre o domicílio disponíveis na PNAD, será uma dummy que indica se o domicílio tem acesso à energia elétrica.

O primeiro grupo de variáveis de resultado consiste em variáveis que medem o acesso a bens de consumo duráveis. Essas variáveis são dummies que assumem valor um se o domicílio tem geladeira, máquina de lavar, televisão, fogão ou rádio. O segundo grupo consiste em variáveis que medem a oferta de trabalho de mulheres, homens e filhos. A margem extensiva da oferta de trabalho no mercado é medida por uma dummy que indica se o indivíduo trabalhou ou não na semana de referência da entrevista. Já a margem intensiva é medida pelo logaritmo natural das horas trabalhadas no mercado de trabalho (para quem ofertou trabalho na semana de referência). Variáveis equivalentes são utilizadas para medir se o indivíduo trabalhou no domicílio e o número de horas trabalhadas no domicílio. Também é analisado o impacto do acesso à eletricidade sobre variáveis que indicam se o indivíduo trabalha como empregado, trabalhador por conta própria ou trabalhador para o próprio uso e consumo. Essas variáveis de posição na ocupação são imputadas a todos os indivíduos, sendo atribuído zero para aqueles que não trabalhavam na semana de referência. Por fim, o último grupo de variáveis de resultado consiste na frequência escolar de crianças e adolescentes, uma dummy que indica se a criança ou adolescente frequentou escola na semana de referência e uma dummy que indica se a criança ou adolescente não trabalhou e tampouco estudou na semana de referência.

A análise empírica também inclui testes placebo, que verificam se a relação entre gradiente da terra e diferencial rural e urbano no acesso à energia elétrica também existe para outras variáveis de infraestrutura. As variáveis utilizadas para o teste placebo são construídas a partir da PNAD e consistem em dummies que indicam se o domicílio tem acesso à água canalizada, tratamento de esgoto e coleta de lixo.

4.2 Gradiente da Terra

Para recuperar o efeito causal do acesso à energia no uso do tempo, esse trabalho utiliza como fonte de variação exógena para o crescimento do acesso à eletricidade o gradiente da terra interagido com ano e com uma variável que indica se o domicílio está situado na área rural. O gradiente da terra foi construído para cada município utilizando dados digitais de relevo obtidos através de imagens de satélite. Essas imagens são oriundas do Shuttle Radar Topographic Mission (SRTM) e possuem resolução de 90 metros. Esses dados estão disponíveis para todo o mundo e são os mesmos utilizados por Dinkelman (2011)Dinkelman, T. (2011). The effects of rural electrification on employment: New evidence from South Africa. The American Economic Review, 101(7), 3078–3108. http://dx.doi.org/10.1257/aer.101.7.3078
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.

Os dados brasileiros foram obtidos através da EMBRAPA, que disponibiliza arquivos raster com dados de relevo para todo o território nacional. Esses arquivos foram combinados para construir um arquivo raster contendo as informações de relevo para cada estado brasileiro. Para cada estado, esse arquivo foi combinado com um arquivo shape de municípios para construir uma medida municipal do gradiente médio (em graus).13 13 Os dados do gradiente da terra se restringem a municípios localizados no continente e, portanto, não incluem Fernando de Noronha.

4.3 Outros controles

Todas as regressões também incluem controles individuais e agregados por município construídos a partir de outras bases de dados. O vetor de controles agregados para o município inclui o índice de atendimento elétrico em 2000 (IAE inicial) interagido com uma tendência linear de tempo, a proporção de beneficiários pelo programa Bolsa Família no município em cada ano, o logaritmo natural do Produto Interno Bruto municipal per capita do setor agropecuário, e variáveis que indicam se o prefeito do município é do mesmo partido do Governador ou do Presidente da República. Todas essas variáveis foram obtidas do IPEADATA.

As características individuais e domiciliares construídas a partir da PNAD incluem: anos de estudo, idade, idade ao quadrado, sexo, cor e número de moradores nos domicílios. Além disso, incluímos as características do responsável pelo domicílio (anos de estudo e idade do “chefe”) nas regressões nas amostras de mães e filhos e, apenas nas regressões de acesso a eletrodomésticos são incluídas as variáveis de renda per capita do domicílio.

Os vetores de controle construídos a partir da PNAD de variáveis em nível individual e domiciliar controlam por fatores observáveis que podem afetar tanto o acesso à energia elétrica quanto as escolhas de alocação de tempo dos indivíduos. O controle de inicial interagido com uma tendência linear de tempo controla para a existência de convergência do acesso à energia elétrica entre municípios mais e menos desenvolvidos. Já as variáveis de política controlam por mudanças no alinhamento político de prefeitos com os governos estadual e federal. Essas mudanças influenciam investimentos públicos recebidos pelos municípios que, por sua vez, podem afetar as dinâmicas tanto do mercado de trabalho quanto do acesso à eletricidade. O vetor de controles do PIB agrícola municipal controla por choques que podem afetar economias locais. Por fim, a variável que mede a proporção de beneficiários do programa Bolsa Família controla pelo efeito agregado no município dessa importante política social, que pode ter afetado tanto pobreza quando a dinâmica no mercado de trabalho. As características individuais controlam por características socioeconômicas observadas do indivíduo e do domicílio em que ele vive e que pode afetar as escolhas de oferta de trabalho.

4.4 Estatísticas Descritivas

A Tabela 1 apresenta as estatísticas descritivas das variáveis utilizadas no artigo para a amostra principal de mães casadas com filhos de até 17 anos. A amostra contém 152.568 mulheres, sendo que 35% delas vivem na área rural e 95% têm energia no domicílio, 82% têm geladeira, 83% televisão e apenas 25% têm máquina de lavar. Na amostra de mães, 53% ofertavam trabalho no mercado de trabalho no período de referência e 98% trabalhavam no domicílio. A idade média das mães é de 37 anos de idade e a escolaridade média é de 6 anos de estudo. As demais estatísticas descritivas são apresentadas na tabela.

Tabela 1
Estatísticas Descritivas da Amostra Principal

A Tabela 2 apresenta algumas estatísticas descritivas para as demais amostras de mães e para os pais e filhos. A amostra de mães com filhas com idade acima de 10 anos contém 61.235 mulheres. A proporção de mulheres que ofertam trabalho no mercado é ligeiramente maior, de 57%, e a proporção de mulheres que trabalham no domicílio é de 97%. Já a amostra de mães sem filhas mais velhas que 10 anos contém 91.022 mulheres, sendo que apenas 50% delas ofertam trabalho no mercado e 98% trabalham no domicílio. A amostra de pais contém 151.900 homens, sendo que 90% deles ofertam trabalho no mercado e 48% trabalham no domicílio. Por fim, as amostras de filhos contêm, respectivamente, 59.472 meninas e 64.669 meninos entre 0 e 17 anos.14 14 As estatísticas de mercado de trabalho e afazeres domésticos para crianças é restrita para crianças de 10 anos ou mais. Entre as meninas, 14% trabalham no mercado e 82% trabalham no domicílio. Entre os meninos, 30% trabalham no domicílio e 42% trabalham nos afazeres domésticos.

Tabela 2
Estatísticas Descritivas da Amostra de Mães com Filhas Mais Velhas, Mães sem Filhas mais Velhas, Pais e Filhos

5. Estratégia empírica

Seja E𝑖m𝑐𝑡 o acesso à eletricidade e 𝑦𝑖m𝑐𝑡 uma variável de resultado de um indivíduo 𝑖que reside no município msob a responsabilidade da concessionária 𝑐no período 𝑡. Um potencial estimador do efeito causal de E𝑖m𝑐𝑡 sobre 𝑦𝑖m𝑐𝑡 pode ser obtido através da estimação do modelo abaixo:

onde 𝛿𝑐 e 𝛿𝑡 e são efeitos fixos de concessionária e período enquanto 𝜀𝑖m𝑐𝑡 é um termo de erro idiossincrático. Idealmente, gostaríamos que, condicional aos efeitos fixos, o acesso à eletricidade fosse distribuído aleatoriamente na população. Isso garantiria ortogonalidade entre acesso à energia e fatores não observados incluídos no termo de erro. Dessa forma, o parâmetro 𝛽estimado poderia ser interpretado como o efeito causal de energia sobre as variáveis de resultado como, por exemplo, acesso a eletrodomésticos e oferta de trabalho feminino.

A ortogonalidade entre E𝑖m𝑐𝑡 e 𝜀𝑖m𝑐𝑡 ocorreria no contexto brasileiro caso os investimentos em expansão do acesso à eletricidade ocorridos no Brasil ao longo da década passada tivessem sido determinados aleatoriamente dentro da região de cada uma das concessionárias. Entretanto, esses investimentos foram focalizados em áreas rurais e sua localização no meio rural dependeu de fatores como características dos consumidores e custos de conexão à rede elétrica. Essas características estão possivelmente correlacionadas com as variáveis de resultado, e isso significa que o coeficiente de interesse estimado pela equação acima será possivelmente viesado.

Para entender esse viés, suponha um caso em que o crescimento no acesso à eletricidade é maior em domicílios localizados em municípios cuja economia está crescendo e se desenvolvendo mais rapidamente. O estimador de Mínimos Quadrados Ordinários do efeito do acesso à eletricidade sobre o uso de eletrodomésticos será viesado para cima na medida em que maior crescimento econômico aumenta a renda, o uso de eletrodomésticos e de energia elétrica. Já o estimador de Mínimos Quadrados Ordinários do impacto do acesso à eletricidade sobre a oferta de trabalho feminino será viesado para cima caso maior crescimento econômico aumente a oferta de trabalho feminina e o uso de energia elétrica. Isso pode ocorrer uma vez que crescimento econômico tipicamente está associado ao aumento da demanda por trabalho, especialmente em atividades em que a mulher tem vantagem comparativa.

Essa possibilidade de viés é importante no contexto estudado, uma vez que o crescimento no acesso à eletricidade se concentrou em municípios mais pobres. Uma possibilidade para lidar com esse viés é controlar diretamente por características socioeconômicas dos municípios medidas no período inicial e por características dos municípios, dos indivíduos e dos domicílios que variam ao longo do tempo e que são potencialmente correlacionadas tanto com variações nas variáveis dependentes como a mudanças no acesso à eletricidade. Entretanto, isso controla apenas pela existência de seleção em fatores observáveis e não para seleção em fatores não observados que afetam as trajetórias de crescimento tanto da energia quanto das variáveis dependentes analisadas.

Esse artigo lida com esse potencial problema de seleção em não observáveis utilizando o gradiente da terra interagido com dummies de ano e de domicílio rural como instrumento do acesso à eletricidade. A ideia de utilizar características geográficas interagidas com tempo como instrumento para investimentos em infraestrutura tem sido amplamente utilizada na literatura empírica recente sobre investimentos em infraestrutura tais como Duflo e Pande (2007)Duflo, E., & Pande, R. (2007). Dams. The Quarterly Journal of Economics, 122(2), 601–646. http://dx.doi.org/10.1162/qjec.122.2.601
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e Dinkelman (2011)Dinkelman, T. (2011). The effects of rural electrification on employment: New evidence from South Africa. The American Economic Review, 101(7), 3078–3108. http://dx.doi.org/10.1257/aer.101.7.3078
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. No contexto desse trabalho, essa estratégia explora o fato de que: (i) o gradiente da terra é um componente importante dos custos de expandir o acesso à eletricidade em um determinado município; (ii) a importância desse componente cresceu ao longo do tempo devido a implementação de políticas de incentivo à eletrificação focalizadas em áreas rurais.

Como as concessionárias têm metas de conexão a serem cumpridas e buscam minimizar seus custos, elas têm incentivos para priorizar investimentos em áreas com menor custo médio de conexão por domicílio. Isso implica que o acesso à eletricidade aumentará mais rápido nas áreas rurais vis-à-vis nas áreas urbanas em municípios com menor gradiente dentro da área de atuação de uma determinada concessionária. Já a orientação do programa LpT em direção a áreas rurais cria mais uma fonte de variação idiossincrática no acesso à eletricidade dentro de cada município. Neste caso, o gradiente da terra interagido com dummies de ano e de domicílio rural, condicional a efeitos fixos de concessionária e de ano, assim como às interações duplas remanescentes, consiste em uma fonte de variação exógena para o acesso à energia dos domicílios rurais vis-à-vis dos domicílios urbanos.

O impacto do gradiente da terra no crescimento relativo do acesso à eletricidade nas áreas rurais vis-à-vis nas áreas urbanas é estimado conforme a seguinte equação de primeiro estágio:

E i m c t = υ = 2002 2009 γ 1 υ ( G m × R i m c t × I υ ) + υ = 2002 2009 γ 2 υ ( G m × I υ ) + υ = 2002 2009 γ 3 υ ( R i m c t × I υ ) + γ 4 G m × R i m c t + γ 5 R i m c t + γ 6 I A E 2000 m × λ + γ 7 I A E 2000 m + γ 8 X i m c t + δ c + δ t + ε i m c t ,

onde Gm é o gradiente médio do município; Rimct é uma dummy que indica que o indivíduo 𝑖localizado no município da concessionária 𝑐pertence à área rural; 𝐼 é uma dummy indicadora de ano; 𝜆é uma tendência linear de tempo; IAE2000 é o índice de atendimento elétrico no período inicial; X𝑖𝑐𝑡 é um vetor de controles; 𝛿𝑐 e 𝛿𝑡 são efeitos fixos de concessionária e ano, respectivamente; e 𝜀𝑖m𝑐𝑡 é um termo de erro. X𝑖m𝑐𝑡 é um vetor de variáveis de controle, que inclui proporção de beneficiários do programa Bolsa Família no município, logarítimo natural do PIB agrícola do município, dummy que indica se o prefeito e o presidente são do mesmo partido político, dummy que indica se o prefeito e o governador são do mesmo partido político e uma interação dessas duas variáveis, anos de estudo do indivíduo, uma dummy que indica se o indivíduo é branco e o número de moradores do domicílio. As amostras de mães e de crianças e adolescentes contêm, adicionalmente, a idade e os anos de estudo do responsável pelo domicílio. Para a amostra de mãe com filhos esse vetor inclui, além dos controles listados acima, uma dummy que indica se o domicílio tem crianças ou adolescentes com mais de 10 anos de idade (filhos mais velhos).

Os coeficientes de interesse da especificação anterior são os 𝛾1𝑣, estimados para cada ano 𝑣∈{2002,…,2009}em relação a 2001, o ano omitido. Esses coeficientes indicam se o crescimento do acesso à eletricidade nas áreas rurais vis-à-vis nas áreas urbanas no período de 2001 a 2009 variou de acordo com o gradiente da terra do município. Coeficientes 𝛾1 <0corroboram a hipótese discutida anteriormente de que maior gradiente aumenta o custo de ampliar o acesso à eletricidade e reduz o crescimento do acesso à eletricidade em áreas rurais vis-à-vis áreas urbanas ao longo do tempo.

Os coeficientes estimados no primeiro estágio podem ser utilizados para estimar o efeito causal da energia elétrica sobre o uso de tempo descrito pela seguinte equação abaixo:

A estimação é realizada utilizando o método de mínimos quadrados de dois estágios. Intuitivamente, esse método utiliza o valor predito de E𝑖m𝑐𝑡 obtido na estimação do primeiro estágio ao invés do valor verdadeiro dessa variável para estimar segundo estágio acima. Isso permite recuperar o efeito causal sob a hipótese de que o conjunto de instrumentos incluídos no primeiro estágio e não incluídos no segundo estágio só afeta as variáveis dependentes através do seu efeito sobre a energia elétrica. Mais especificamente, a hipótese de identificação aqui utilizada é que, condicional a efeitos-fixos, ao longo do tempo o gradiente só afetará mudanças das variáveis de resultado dos domicílios rurais vis-à-vis dos domicílios urbanos ao longo do tempo através do seu efeito sobre o acesso à energia. Essa hipótese implica, por exemplo, que o gradiente da terra não está correlacionado com mudanças no acesso dos domicílios rurais vis-à-vis domicílios urbanos em outras medidas de acesso a infraestrutura e de acesso a investimentos públicos ao longo do tempo. Essa hipótese é testada indiretamente utilizando outros indicadores de infraestrutura domiciliar.

Os efeitos fixos de concessionária são importantes uma vez que as escolhas de investimento ocorrem ao nível da concessionária. Diferenças de gradiente da terra levam as concessionárias a priorizarem municípios da sua área de concessão com gradiente mais baixo em detrimento de municípios também da sua área de concessão com gradiente mais alto. Portanto, é importante restringir as comparações a municípios com gradientes diferentes localizados dentro da mesma concessionária. O fato dos investimentos serem decididos ao nível da concessionária também torna importante corrigir os erros-padrão estimados para a presença de correlação arbitrária entre os erros de observações localizadas na mesma área de atuação de uma concessionária. Isso é feito através da estimação de desvios-padrão robustos clusterizados ao nível das 33 concessionárias de energia elétrica presentes na amostra em todas as especificações. Os resultados são similares quando os efeitos fixos de concessionária são substituídos por efeitos fixos de municípios. As demais variáveis de controle incluídas na especificação foram discutidas na seção 4.

Finalmente, é importante considerar que o efeito estimado pela estratégia de variáveis instrumentais é um efeito local. Esse efeito é o efeito médio de tratamento em domicílios rurais que somente receberam investimentos em energia elétrica por estarem localizados em municípios com menor gradiente. Esse efeito pode ser substancialmente diferente do efeito médio da energia elétrica, especialmente porque o grupo afetado é um subconjunto de domicílios selecionado e tipicamente mais pobre.

Uma análise preliminar da relação entre crescimento do acesso à eletricidade nas áreas rurais vis-à-vis a áreas urbanas entre 2001 e 2009 e o gradiente da terra é apresentada na Figura 3. Essa figura indica que o acesso à eletricidade cresceu mais rapidamente na área rural em relação à área urbana nos municípios com gradiente menor. A estratégia empírica desse trabalho explora exatamente essa tripla diferença como fonte de variação exógena para o crescimento no acesso à energia elétrica ao longo dos anos 2000s.

Figura 3
Crescimento do Acesso à Energia Elétrica Rural versus Urbano por Gradiente da Terra

Este gráfico apresenta o crescimento relativo no período 2001 a 2009 do acesso à energia elétrica nas áreas rurais vis-à-vis as áreas urbanas em relação ao gradiente da terra do município. A reta apresentada representa a reta de uma regressão linear do crescimento relativo no gradiente da terra. Os dados de acesso à energia elétrica foram extraídos da PNAD e agregados ao nível do município. Já os dados do gradiente foram construídos a partir dos dados do satélite SRTM. Detalhes sobre a construção dessas variáveis podem ser encontrados na seção 4.

6. Resultados

6.1 Primeiro Estágio

As regressões de primeiro estágio do impacto do gradiente da terra no crescimento do acesso à energia elétrica nos domicílios rurais vis-à-vis nos domicílios urbanos são apresentadas na Tabela 3. A coluna 1 reporta uma especificação que inclui apenas efeitos fixos de concessionária e de ano como controles. A coluna 2 adiciona uma tendência linear de tempo interagida com o IAE inicial do município para controlar por convergência nas taxas de eletrificação independentemente dos programas de universalização. A coluna 3 adiciona controles de alinhamento político do prefeito para controlar por mudanças no alinhamento político que influenciam investimentos públicos recebidos pelos municípios que, por sua vez, podem afetar as dinâmicas tanto do mercado de trabalho quanto do acesso à eletricidade. A coluna 4 adiciona controles de PIB agrícola e investimentos do Bolsa Família, para controlar, respectivamente, por choques que podem afetar economias locais e pelo efeito agregado no município do programa Bolsa Família, que pode ter afetado tanto pobreza quando a dinâmica no mercado de trabalho. A coluna 5 adiciona controles individuais para controlar por fatores observáveis que podem estar correlacionados tanto com o acesso à energia elétrica quanto com escolhas de alocação de tempo dos indivíduos.

Tabela 3
Primeiro Estágio – Impacto do Gradiente da Terra no Acesso à Energia Elétrica

Os resultados indicam que o gradiente da terra afeta negativamente o crescimento do acesso à energia elétrica nos domicílios rurais vis-à-vis nos domicílios urbanos. Esse efeito é significativo para todos os anos com exceção de 2002. É interessante notar que a magnitude do coeficiente da interação tripla Gradiente×Ano×Rural[υ=20022009γ1υ(Gm×Rict×Iυ)] cresce monotonicamente ao longo do tempo. Esse comportamento reflete a resposta das concessionárias à sua estrutura de custo no processo de universalização da energia elétrica. À medida que o processo progride, o acesso à energia aumenta cada vez mais em domicílios rurais localizados em municípios de menor gradiente.

Os coeficientes estimados são bastante similares entre as especificações, sugerindo que, condicional aos efeitos fixos de concessionária e ano, existe pouca correlação entre o gradiente da terra e outras características socioeconômicas que também afetam o acesso à energia elétrica. A magnitude dos coeficientes estimados implica que um aumento em um desvio padrão do gradiente (3 graus) reduz a probabilidade de ter energia elétrica em 1,5 pontos percentuais em 2003. Esse efeito aumenta ao longo do tempo e chega a 5,1 pontos percentuais em 2009.15 15 Os resultados de primeiro estágio são robustos à especificação de primeiro estágio utilizando a interação dupla entre as dummies de ano e o gradiente médio e controlando para efeito fixo de município ou concessionária, condicionado a área rural.

A Tabela 3 também apresenta o teste F efetivo proposto por Andrews, Stock, e Sun (2019)Andrews, I., Stock, J. H., & Sun, L. (2019). Weak instruments in instrumental variables regression: Theory and practice. Annual Review of Economics, 11, 727–753. http://dx.doi.org/10.1146/annurev-economics-080218-025643
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. Como temos um regressor endógeno, usamos a recomendação dos autores e avaliamos a presença de instrumentos fracos a partir do teste F efetivo de Olea e Pflueger (2013)Olea, J. L. M., & Pflueger, C. (2013). A robust test for weak instruments. Journal of Business & Economic Statistics, 31(3), 358–369. http://dx.doi.org/10.1080/00401706.2013.806694
http://dx.doi.org/10.1080/00401706.2013....
. O nosso instrumento não passa no teste (𝐹eff > 10). Contudo, vale ressaltar que o teste F efetivo do instrumento tem o valor limite para ser considerado um instrumento forte (em torno de 8). Simulações de artigos publicados por Andrews et al. (2019)Andrews, I., Stock, J. H., & Sun, L. (2019). Weak instruments in instrumental variables regression: Theory and practice. Annual Review of Economics, 11, 727–753. http://dx.doi.org/10.1146/annurev-economics-080218-025643
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sugerem que o problema de instrumentos fracos está associado a estatísticas F-efetiva em torno de 5.16 16 Usando a regra de bolsa da estatístiva F tradicional, temos um teste F maior que 10 na especificação (1), fica em torno de 9 nas demais especificações, sendo 9,4 na especificação mais saturada (5). Esse valor é bem próximo da regra de bolsa sugerida por Baum, Schaffer, Stillman, et al. (2003) e superior aos valores encontrados no trabalho Dinkelman (2011).

Apesar do teste F não ser conclusivo, apresentamos outras evidências para justificar a qualidade do instrumento utilizado. A restrição de exclusão da estratégia empírica requer que o gradiente da terra só afete o crescimento das variáveis de interesse em domicílios rurais vis-à-vis domicílios urbanos através do seu impacto sobre o acesso à energia elétrica. É impossível testar essa hipótese diretamente. Entretanto, é possível verificar se o gradiente de terra não afeta o crescimento do acesso de outras medidas de infraestrutura e investimentos em programas sociais.

A Tabela 4 apresenta o impacto da interação Gradiente ×Ano ×Rural no crescimento do acesso à água canalizada, a esgoto tratado, coleta de lixo, banheiro e investimentos do programa Bolsa Família. A evidência indica que esse instrumento não afetou o acesso à agua canalizada, coleta de lixo, banheiro e a proporção de beneficiários do Bolsa Família em nenhum ano analisado, com exceção do efeito encontrado no ano de 2002 para coleta de lixo no domicílio (embora a significância do coeficiente encontrado seja baixa). A análise do teste F também corrobora a evidência de que o instrumento não está correlacionado com as medidas de infraestrutura e políticas públicas apresentadas a Tabela 4, indicando que não é possível rejeitar a hipótese de que os coeficientes da interação tripla para os diferentes anos são estatisticamente iguais à zero. Ao contrário do verificado nos resultados da Tabela 3 os testes F estimados são muito pequenos e bem inferiores a 10.

Tabela 4
Placebo – Impacto do Gradiente da Terra em Infraestrutura e Programas Sociais

6.2 Energia elétrica e eletrodomésticos

A Tabela 5 mostra o impacto do acesso à eletricidade sobre a posse de eletrodomésticos. As colunas ímpares reportam resultados de regressões de Mínimos Quadrados Ordinários (MQO). Já os coeficientes das colunas pares reportam os resultados de 2º estágio das regressões de variáveis instrumentais (VI). As estimativas incluem efeitos fixos de concessionária e ano, tendência linear de tempo interagida com o IAE inicial do município, controles de alinhamento político do prefeito, controles de PIB agrícola, proporção de beneficiários do programa Bolsa Família e renda domiciliar per capita, além de controles de características individuais e domiciliares.

Tabela 5
Impacto da Energia Elétrica no Acesso a Eletrodomésticos

As colunas 1 e 2 apresentam os resultados para a posse de geladeira. O impacto do acesso à energia elétrica é positivo e estatisticamente significativo para todas as especificações. O acesso à energia elétrica aumenta em 63,3 pontos percentuais a probabilidade de haver geladeira no domicílio na especificação mais saturada de MQO. Esse coeficiente é de 60 pontos percentuais no caso da especificação mais saturada de VI.

É importante ressaltar que os coeficientes são atenuados quando estimados por VI o que sugere que o MQO sobrestima o impacto da energia elétrica sobre a posse de geladeira como discutido na seção 5. O estimador de MQO do impacto do acesso à eletricidade sobre o uso de eletrodomésticos será viesado para cima na medida em que maior crescimento econômico aumenta a renda, o uso de eletrodomésticos e de energia elétrica. Vale ressaltar que a atenuação é menor quando são incluídos controles individuais, possivelmente pelo fato de essas variáveis serem capazes de controlar para a totalidade de fatores que afetam as trajetórias de crescimento tanto do acesso à energia quanto do acesso a eletrodomésticos ao nível do domicílio.

As colunas 3 e 4 apresentam os resultados para a posse de televisão. O impacto do acesso à energia elétrica é positivo e estatisticamente significativo tanto no coeficiente estimado por MQO quanto VI. A magnitude dos coeficientes implica que energia elétrica aumenta em 70 pontos percentuais a probabilidade de haver televisão no domicílio. Já os coeficientes de VI mostram que energia elétrica aumenta a probabilidade do domicílio ter televisão em 43 pontos percentuais.17 17 Ao permitir o acesso à televisão, a eletricidade também pode afetar escolhas dos indivíduos através de mudanças no acesso à informação. Isso ocorre porque a televisão traz para os indivíduos informações sobre diferentes valores e estilos de vida, afetando escolhas das mulheres, como por exemplo, oferta de trabalho como em Jensen e Oster (2009) ou La Ferrara, Chong, e Duryea (2007). Esse mecanismo pode ser particularmente relevante para comunidades isoladas localizadas no meio rural onde o acesso à informação é limitado. Mais uma vez os coeficientes de IV são menores que os estimados por MQO conforme esperado.

As colunas 5 e 6 mostram os resultados para a posse de máquina de lavar. A estimativa por MQO sugere um pequeno impacto negativo do acesso à energia elétrica sobre a posse de máquina de lavar (impacto de −4 pontos percentuais). Contudo, os resultados de VI indicam que o acesso à energia elétrica não afeta a posse de máquina de lavar. Vale ressaltar que a proporção de domicílios com acesso à máquina de lavar é mais baixa que a proporção de domicílios com acesso à geladeira e televisão no Brasil. Isso pode resultar de dificuldades do acesso à água canalizada. Entretanto, controlar por água canalizada ou restringir a amostra para domicílios com água canalizada não alteram os resultados.

Os impactos da energia elétrica sobre televisão e geladeira sugerem que possíveis barreiras para adoção de tecnologias discutidas anteriormente não afetam a adoção desses dois bens pelas famílias que se beneficiaram da expansão do acesso à energia elétrica no país. Já o impacto sobre máquina de lavar sugere que a demanda por esse bem é particularmente baixa entre os domicílios pobres localizados em áreas rurais. Possivelmente, o retorno desse bem é baixo para essas famílias uma vez que o trabalho executado pela máquina de lavar pode ser substituído pelo trabalho manual dos moradores do domicílio. Do ponto de vista de economia de tempo, essa explicação também poderia valer para o cozimento de alimentos e geladeira, por exemplo. Contudo, a geladeira tem benefícios adicionais como, por exemplo, melhorar a saúde e permitir o consumo de maior diversidade de alimentos.

Finalmente, as colunas 7–10 apresentam os resultados para a posse de fogão e rádio. Ambos não necessitam de energia elétrica para serem utilizados de forma que esses resultados servem como um teste placebo adicional da estratégia empírica. Os resultados das regressões de VI indicam que o impacto da energia elétrica sobre a posse de ambos os bens é nulo. Esse resultado reforça a escolha da estratégia de VI e o uso da tripla diferença como instrumento para o crescimento do acesso à energia elétrica.

Como nosso instrumento não passa no teste F efetivo, adicionamos às tabelas de resultados os intervalos de confiança para instrumentos fracos. Andrews et al. (2019)Andrews, I., Stock, J. H., & Sun, L. (2019). Weak instruments in instrumental variables regression: Theory and practice. Annual Review of Economics, 11, 727–753. http://dx.doi.org/10.1146/annurev-economics-080218-025643
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mostram que instrumentos fracos em modelos sobre-identificados podem gerar um problema de overjection. Por isso, seguindo a recomendação dos autores, reportamos no artigo os intervalos de confiança robustos a instrumentos fracos apenas para as tabelas de resultados de posso de eletrodomésticos (Tabela 5), cujos coeficientes estimados são estatisticamente diferentes de zero. Para os casos de modelos homocedásticos e sobreidentificados, o intervalo proposto CLR (Moreira, 2003Moreira, M. J. (2003). A conditional likelihood ratio test for structural models. Econometrica, 71(4), 1027–1048. http://dx.doi.org/10.1111/1468-0262.00438
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) é o mais indicado. Como não existe um teste estabelecido para casos não homocedásticos, também reportamos os intervalos de confiança AR. A Tabela 5 abaixo mostra que os resultados de posse de eletrodomésticos modernos se mantém inalterados em todos os casos quando consideramos os intervalos de confiança robustos a instrumentos fracos. Energia elétrica instrumentada pelo gradiente da terra afeta positivamente a posse de geladeira (o intervalo de confiança CLR do coeficiente estimado está entre 0,33 a 1,03) e televisão (o intervalo de confiança CLR do coeficiente estimado está entre 0,34 a 0,73).

6.3 Energia elétrica e alocação de tempo das mães

Os resultados anteriores mostram que a expansão da eletrificação no Brasil rural induziu a adoção de geladeira e televisão, mas não alterou o uso de máquina de lavar.

A Tabela 6 investiga se a eletrificação e a consequente adoção de eletrodomésticos modernos afetou a oferta no mercado de trabalho. Ela apresenta os efeitos da expansão da energia elétrica sobre comportamentos no mercado de trabalho para diferentes amostras de mães. Todos os resultados apresentados nas colunas 1 a 12 incluem controles para características individuais, tendência e nível do IAE inicial, e controles para alinhamento político e bolsa família. As colunas ímpares reportam coeficientes de MQO e as colunas pares reportam coeficientes estimados por VI.

Tabela 6
Impacto da Energia Elétrica na Oferta de Trabalho da Mãe

As colunas 1 e 2 apresentam o impacto do acesso à energia elétrica na probabilidade de mulheres ofertarem trabalho na margem extensiva, enquanto as colunas 3 e 4 apresentam o mesmo impacto para a margem intensiva de oferta de trabalho. Já as colunas 5 a 12 apresentam o impacto do acesso à energia elétrica na probabilidade da mulher estar em diferentes posições na ocupação. Esse impacto é não condicional a ofertar trabalho e a amostra inclui tanto mulheres que ofertam trabalho quanto mulheres que não ofertam trabalho.

O painel A apresenta os resultados para a amostra de mães, o painel B apresenta os resultados para mães que têm filhas de 10 anos de idade ou mais, e o painel C apresenta resultados para a amostra de mães sem filhas mais velhas que 10 anos de idade. A análise sobre essas diferentes amostras tem como objetivo verificar se os impactos estimados são diferentes em famílias em que o trabalho das mães pode ser parcialmente substituído pelo trabalho de suas filhas.

No painel A, os resultados das regressões de MQO indicam que a expansão do acesso à energia reduz a probabilidade da mulher ofertar trabalho na margem extensiva em 7 pontos percentuais (coluna 1), mas aumenta o total de horas trabalhadas em 7% para aquelas que ofertavam trabalho (coluna 3). Entretanto, esses resultados não se mantêm nas regressões de VI. Não é possível rejeitar a hipótese de que os coeficientes de trabalho feminino são estatisticamente iguais a zero nas duas margens (coluna 2 e coluna 4).

A Tabela 6, painel B, mostra que o coeficiente estimado por VI sobre a margem extensiva de trabalho é quase três vezes maior na amostra de mães com filhas mais velhas quando comparados aos coeficientes apresentados no painel A (aumento na probabilidade da mãe trabalhar em 22,5 pontos percentuais). Para a margem intensiva, a magnitude dos coeficientes estimados no painel B é duas vezes maior quando comparado ao painel A (90%). Já os resultados do painel C sugerem efeitos muito menores do acesso à energia elétrica entre às mães com filhas mais velhas. O coeficiente sobre a probabilidade de trabalhar é muito próximo de zero e o coeficiente sobre horas trabalhadas é negativo e muito menor que o estimado na amostra completa. Esses resultados podem indicar que a possibilidade de substituir o trabalho da mãe pelo trabalho de suas filhas poder alterar a resposta das mulheres à chegada de energia elétrica no domicílio. Contudo, não conseguimos inferir que esses efeitos sejam estatisticamente diferentes de zero.

Os resultados estimados por MQO nas colunas referentes à posição na ocupação indicam redução de 8,7 pontos percentuais na probabilidade da mulher trabalhar para o próprio consumo (coluna 7), aumento de 2 pontos percentuais na probabilidade dela ser empregada (coluna 9) e aumento de 3,7 pontos percentuais na probabilidade dela ser trabalhadora sem carteira de trabalho (coluna 11). Os coeficientes de VI novamente não são estatisticamente significativos. A magnitude dos coeficientes estimados por VI indicariam redução na probabilidade da mãe ser conta própria e trabalhadora sem carteira assinada, e aumento na probabilidade de serem empregadas e trabalhadoras para o próprio consumo. Esse comportamento, portanto, poderia indicar que as mães saíram para o mercado de trabalho, mas não necessariamente migraram para atividades distantes dos domicílios. A comparação entre amostras indica ainda que mães com filhas mais velhas tiveram menor redução na probabilidade de ser conta própria quando comparadas a mães sem filhas mais velhas, sugerindo que a presença de meninas adolescentes em casa permite que a mãe trabalhe em atividades mais distantes do domicílio, ao contrário de mães sem filhas mais velhas (o coeficiente estimado por variáveis instrumentais referente a conta própria, na coluna 6, é quatro vezes maior na amostra de mães sem filhas mais velhas que o mesmo coeficiente estimado para a amostra de mães com filhas mais velhas). Mas novamente, não é possível inferir que esses efeitos sejam não nulos.

A Tabela 7 apresenta os efeitos da energia elétrica sobre variáveis de oferta de trabalho dentro do domicílio. Os controles utilizados são os mesmos da Tabela 6, as especificações apresentadas nas colunas 1 a 8 possuem controles de características individuais, alinhamento político, IAE inicial e PBF, além de efeitos fixos de concessionária e ano. As colunas ímpares apresentam resultados de MQO e colunas pares apresentam resultados de VI. As colunas 1 e 2 apresentam o impacto da energia elétrica sobre a probabilidade de mulheres ofertarem trabalho doméstico (margem extensiva) e as colunas 3 e 4 apresentam esses impactos para a quantidade de horas trabalhadas em casa (margem intensiva). As colunas 5 e 6 apresentam o impacto da energia elétrica no total de horas totais trabalhadas. Já as colunas 7 e 8 apresentam o impacto da energia elétrica na proporção do trabalho doméstico realizado pelas mães. Como na Tabela 6, os painéis A, B e C apresentam as estimativas para as amostras de mães, mães com filhas maiores que dez anos e mães sem filhas maiores que 10 anos, respectivamente.

Tabela 7
Impacto da Energia Elétrica na Oferta de Trabalho Doméstico das Mães

Os resultados indicam que o acesso à energia elétrica também não afeta a margem extensiva de trabalho doméstico (colunas 1 e 2) nas duas estratégias empíricas analisadas em todas as amostras analisadas. Isso reflete o fato de que a maioria das mulheres já trabalha em casa. Para a margem intensiva (colunas 3 e 4), o coeficiente de MQO indica que ter energia elétrica aumenta em quase 6% as horas trabalhadas dentro do domicílio na amostra do painel A. Os resultados dos painéis B e C sugerem que todo esse esse efeito parece vir da amostra de mães sem filhas mais velhas. Os coeficientes de VI são imprecisos e não significativos nos painéis A e B e marginalmente significativos no painel C (p-valor =0,11), sugerindo que a expansão de energia elétrica aumenta as horas trabalhadas no domicílio para mães sem adolescentes meninas com idade acima de 10 anos de idade (33%).

Em geral, os coeficientes estimados não são estatisticamente diferentes de zero. Os coeficientes estimados por VI têm erros-padrão imprecisos, em particular quando o instrumento utilizado não é forte. Os intervalos de confiança robustos a instrumentos fracos (CLR e AR) também foram estimados para as variáveis de oferta de trabalho no mercado e doméstico e apresentaram comportamento errático e, muitas vezes, não foi possível estimar o intervalo de confiança precisamente (limites indeterminados). Sempre que foi possível estimar tais intervalos, não conseguimos rejeitar a hipótese nula de que o coeficiente seja estatisticamente igual à zero.

As estimativas não significativas também podem indicar a heterogeneidade da resposta do uso do tempo da mulher à chegada de energia no domicílio. Essa heterogeneidade pode estar relacionada às diferenças na produtividade relativa da mulher no domicílio e no mercado. As diferenças das estimativas nas subamostras de mães sugerem que isso pode ser relevante e que o efeito da energia sobre o uso do tempo é bastante heterogêneo entre mulheres com diferentes produtividades no mercado e em atividades domésticas. Entretanto, como essa produtividade relativa não é observada nos dados não é possível estimar diretamente o efeito da energia sobre uso de tempo da mulher para diferentes produtividades relativas.

6.4 Energia elétrica e alocação de tempo de pais e filhos

Essa seção discute o efeito da eletricidade sobre o uso de tempo dos pais e dos filhos. Os coeficientes estimados para esses grupos também não são significativos para a maior parte dos indicadores analisados. A Tabela 8 apresenta os efeitos da expansão da energia elétrica sobre comportamentos no mercado de trabalho para a amostra de pais (painel A), filhos e filhas entre 10 e 17 anos (painel B e C, respectivamente). Todos os coeficientes apresentados nas colunas 1 a 12 são estimados condicionalmente a efeitos fixos de concessionária, ano e controles para características individuais (idade, sexo, cor e número de moradores no domicílio em que a pessoa reside para filhos e, além desses, anos de estudos e idade ao quadrado para os pais), PIB agrícola, proporção de beneficiários do programa Bolsa Família e controles de alinhamento político. As tabelas têm estrutura semelhante às apresentadas para os efeitos da expansão da energia nas escolhas das mães — as colunas ímpares reportam coeficientes de MQO e as colunas pares reportam coeficientes de VI.

Tabela 8
Impacto da Energia Elétrica na Oferta de Trabalho de Pais e Filhos

As colunas 1 e 2 apresentam o impacto do acesso à energia elétrica na probabilidade de pais ou filhos ofertarem trabalho na margem extensiva, e as colunas 3 e 4 apresentam o mesmo impacto para a margem intensiva de oferta de trabalho. Já as colunas 5 a 12 apresentam o impacto do acesso à energia elétrica na probabilidade do indivíduo estar em diferentes posições na ocupação. Esse impacto é não condicional a ofertar trabalho (a amostra inclui homens e filhos que ofertam e que não ofertam trabalho).

No painel A, os resultados das regressões de OLS indicam que a expansão do acesso à energia reduz a probabilidade do pai ofertar trabalho na margem extensiva. O coficiente de VI estimado também é negativo, mas estatisticamente nulo. O coeficiente estimado por VI para o efeito da expansão de energia elétrica sobre a margem intensiva de trabalho de homens também é estatisticamente igual a zero.Os efeitos para posição na ocupação também são nulos. Esses resultados sugerem que a chegada de energia não afeta a participação dos homens no mercado de trabalho nas duas margens observadas.

No Painel B, os resultados de VI sugerem que a expansão do acesso à energia aumenta a probabilidade dos filhos homens ofertarem trabalho (coluna 2) e esse efeito é significativo. Os coeficientes de variáveis instrumentais estimados para a margem extensiva e posição na ocupação são estatisticamente nulos. Ou seja, o acesso à energia aumenta o trabalho dos filhos, mas não conseguimos decompor de onde vem esse efeito. No painel C, os resultados de VI indicam que a expansão do acesso a energia não afeta o oferta de trabalho das filhas fora ou dentro do domicílio.

A Tabela 9 apresenta os efeitos da energia elétrica sobre variáveis de produção doméstica para pais e filhos. O acesso à energia elétrica não afeta a oferta de trabalho doméstico na margem extensiva e intensiva, como mostra os coeficientes de VI para os pais e filhos (painéis A–C, colunas 1 e 2). A eletrificação também não afeta o total de horas trabalhados para pais e filhas (painéis A e C). Já no painel B, o coeficiente de variáveis instrumentais indica que a expansão no acesso à energia aumenta a probabilidade dos filhos trabalharem em casa (coluna 2). O efeito do acesso à energia sobre o total de horas trabalhadas é estatisticamente positivo para os meninos (e nulo para as meninas). Uma explicação possível é que os meninos já começam em um patamar muito mais baixo em termos de média de horas trabalhadas no domicílio quando comparado às meninas (apenas 42% dos meninos declararam trabalhar em atividades domésticas, contra 82% das meninas; As meninas trabalhavam em média 14,2 horas por semana e os meninos apenas 8,6 horas).

Tabela 9
Impacto da Energia Elétrica na Produção Doméstica de Pais e Filhos

Para os painéis B e C, as estimativas sugerem que a expanção da eletrificação não afetou a frequência escolar de meninos e meninas. Vale ressaltar que a estimativa de OLS indicava uma correlação positiva entre energia e frequencia escolar para filhos e filhas e essa relação é nula quando estimamos a relação usando VI. Os resultados sobre a probabilidade de não trabalhar nem estudar também são estatisticamente iguais a zero.

7. Conclusão

Esse artigo analisou os efeitos do acesso à energia elétrica sobre a decisão da mulher de ofertar trabalho no mercado de trabalho e/ou em atividades domésticas. Para isso, utilizamos a expansão da eletrificação no Brasil rural advindas dos planos de Universalização da Agência Nacional de Energia Elétrica e do programa Luz para Todos.

Para investigar os efeitos da mudança no acesso à eletricidade, utilizamos uma estratégia de variáveis instrumentais que explorou o diferencial rural e urbano e o gradiente da terra como variação exógena para mudanças no acesso à energia elétrica. A relação entre gradiente da terra e custo médio de conectar domicílios à rede elétrica torna essa variável útil para a construção de um instrumento para mudanças no acesso à eletricidade observadas no período. A estrutura de custos das concessionárias sugere que uma concessionária de energia elétrica priorizará investimentos nos municípios de sua área de concessão que possuem menor gradiente da terra. Portanto, o gradiente da terra estará correlacionado negativamente com a probabilidade da concessionária conectar um domicílio em municípios mais acidentados. Essa relação deve ser maior ao longo do tempo e mais intensa nas áreas rurais, onde ainda havia espaço para investimento em expansão da energia elétrica no país no período analisado. Deste modo, o instrumento explorou o diferencial rural e urbano em lugares altos e baixos antes e depois dos investimentos em expansão da rede elétrica no país.

Os resultados das regressões de primeiro estágio apresentados na seção 6 corroboram a importância do gradiente da terra interagido com dummies de área rural e ano como instrumento para expansão do acesso à energia elétrica no meio rural no período analisado. O acesso à energia elétrica em áreas rurais vis-à-vis áreas urbanas cresceu mais rapidamente nos municípios com menor gradiente da terra no período de 2001 a 2009. Essa relação não é explicada por diferenças em características iniciais dos municípios e é robusta a uma série de controles socioeconômicos e políticos.

Os efeitos da eletrificação sobre o uso do tempo da mulher têm como principal mecanismo o uso de eletrodomésticos dentro do domicílio. De fato, o acesso à energia elétrica afetou a posse de eletrodomésticos dentro dos domicílios. Os resultados da análise de variáveis instrumentais mostram que o acesso à energia aumentou o acesso a bens duráveis, mais especificamente geladeira e televisão.

Já as estimativas para oferta de trabalho dentro e fora do domicílio sugerem que o choque de produtividade advindo do acesso à eletricidade não afetou a oferta de trabalho no mercado de trabalho e aumentou marginalmente a intensidade de trabalho ofertado no domicílio (principalmente para mulheres que não tem filhas mais velhas). Esse resultado é consistente com o modelo de Becker de produção doméstica que indica que o acesso à eletricidade pode aumentar a oferta de trabalho no domicílio ao poupar tempo da mulher. Da mesma forma, a expansão da energia elétrica não efetou a oferta de trabalho dos pais e das filhas, mas aumentou a oferta de trabalho dos meninos.

Por fim, vale ressaltar que de forma geral os coeficientes estimados não são significativos aos níveis de significência usuais. Isso pode ser justificado pelo fato do instrumento ser fraco. Estimativas com instrumentos fracos incorrem em errospadrão imprecisos. Outra explicação pode estar associada à heterogeneidade da resposta do uso do tempo da mulher à chegada de energia no domicílio. Diferenças na produtividade no domicílio e no mercado induzem respostas distintas com a chegada de energia no domicílio. Essa ideia é reforçada pelas estimativas nas subamostras de mães apresentadas na seção 6, que sugerem que o efeito médio estimado pode estar relacionado às diferenças na produtividade no mercado e em atividades domésticas.

  • *
    Agradecemos aos comentários de Francisco Costa, Valéria Pero e Arthur Bragança. O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Código de Financiamento 001.
  • JEL Codes Q12, C21, D24, C18
  • 1
    Entre 2000 e 2010, a proporção de domicílios com energia elétrica no país aumentou 23 pontos percentuais no meio rural — passou de 70,2% para 93,0% em 2010. No meio urbano, a taxa de eletrificação sempre foi alta e passou de 99,0% em 2000 para 99,8% em 2010.
  • 2
    Segundo a Eletrobrás, o Programa Nacional de Universalização do Acesso e Uso da Energia Elétrica – Luz para Todos (LPT) foi instituído pelo Decreto nº 4873 em 11 de novembro de 2003. Inicialmente, estava previsto o atendimento aos domicílios identificados pelo IBGE até o ano de 2008. Entretanto, durante a execução do Programa Luz para Todos, os agentes envolvidos verificaram um número maior de famílias não atendidas com energia elétrica, vivendo em áreas remotas. Esse fato levou a alterações no LPT, com a publicação dos decretos nº 6442, de 25/04/2008, nº 7324, de 05/10/2010, nº 7520, de 08/07/2011, nº 7656, de 23/12/2011, nº 8387, de 30/12/2014 e nº 9357 de 27/4/2018.
  • 3
    A hipótese que o indivíduo mora sozinho no domicílio pode ser entendida como uma hipótese em que o domicílio é unitário e que todas as escolhas ocorrem como se o domicílio tivesse apenas um indivíduo. Ver Cahuc e Zylberberg (2004)Cahuc, P., & Zylberberg, A. (2004). Labor economics (Vol. 1). The MIT Press. para uma discussão dessa e de outras hipóteses sobre escolhas intradomiciliares.
  • 4
    Isso ocorrerá caso o efeito substituição supere o efeito renda.
  • 5
    É possível reinterpretar as escolhas de uso de tempo em duas etapas nesse caso. Primeiro, o indivíduo escolhe entre quanto trabalho e quanto lazer terá com base em uma produtividade média no mercado e no domicílio que ele possui e que depende do parâmetro de tecnologia E. O impacto de um aumento de E sobre essa escolha será qualitativamente idêntico ao impacto de um aumento de w em um modelo de oferta de trabalho sem produção doméstica. Segundo, o indivíduo escolhe como alocar seu trabalho entre o domicílio e o mercado e isso dependerá da produtividade relativa nas duas atividades. O impacto de um aumento de E sobre essa escolha será qualitativamente dependente do impacto relativo de E na produtividade no domicílio e no mercado.
  • 6
    Segundo Gronau (1986)Gronau, R. (1986). Home production: A survey. In O. C. Ashenfelter & R. Layard (Orgs.), (Vol. 1, pp. 273–304). Elsevier. http://dx.doi.org/10.1016/S1573-4463(86)01007-6
    http://dx.doi.org/10.1016/S1573-4463(86)...
    , mulheres com filhos, em particular filhos mais novos, usam mais seu tempo com trabalho doméstico (cuidado com filhos e outras atividades domésticas). Ainda segundo o autor, parte do aumento da produção doméstica geralmente vem da redução do trabalho no mercado de trabalho.
  • 7
    Fernández, Fogli, e Olivetti (2004)Fernández, R., Fogli, A., & Olivetti, C. (2004). Mothers and sons: Preference formation and female labor force dynamics. The Quarterly Journal of Economics, 119(4), 1249–1299. http://dx.doi.org/10.1162/0033553042476224
    http://dx.doi.org/10.1162/00335530424762...
    estimam como normas sociais afetam a oferta de trabalho feminina.
  • 8
    Segundo o governo brasileiro, cerca de 90% dessas famílias têm renda inferior a três salários mínimos (http://luzparatodos.mme.gov.br/luzparatodos/asp/).
  • 9
    Essa resolução está disponível em http://www.aneel.gov.br/cedoc/res2003223.pdf
  • 10
  • 11
    O atendimento ao público do programa LpT é realizado de duas formas. Através de requisição de instalação na distribuidora de energia elétrica do município ou com os funcionários responsáveis pela leitura dos relógios da cidade. A solicitação de instalação de energia elétrica por meio do LpT exigia um documento de identificação e localização da propriedade que seria beneficiada. A outra possibilidade era o envio de um ofício comum em nome de toda a comunidade para o Comitê Gestor Estadual. Esse documento deveria conter as informações de cada morador interessado na instalação de energia.
  • 12
    Os resultados são robustos ao uso dos 805 municípios incluídos nas entrevistas da PNAD.
  • 13
    Os dados do gradiente da terra se restringem a municípios localizados no continente e, portanto, não incluem Fernando de Noronha.
  • 14
    As estatísticas de mercado de trabalho e afazeres domésticos para crianças é restrita para crianças de 10 anos ou mais.
  • 15
    Os resultados de primeiro estágio são robustos à especificação de primeiro estágio utilizando a interação dupla entre as dummies de ano e o gradiente médio e controlando para efeito fixo de município ou concessionária, condicionado a área rural.
  • 16
    Usando a regra de bolsa da estatístiva F tradicional, temos um teste F maior que 10 na especificação (1), fica em torno de 9 nas demais especificações, sendo 9,4 na especificação mais saturada (5). Esse valor é bem próximo da regra de bolsa sugerida por Baum, Schaffer, Stillman, et al. (2003)Baum, C. F., Schaffer, M. E., Stillman, S., et al. (2003). Instrumental variables and GMM: Estimation and testing. Stata journal, 3(1), 1–31. http://dx.doi.org/10.1177/1536867X0300300101
    http://dx.doi.org/10.1177/1536867X030030...
    e superior aos valores encontrados no trabalho Dinkelman (2011)Dinkelman, T. (2011). The effects of rural electrification on employment: New evidence from South Africa. The American Economic Review, 101(7), 3078–3108. http://dx.doi.org/10.1257/aer.101.7.3078
    http://dx.doi.org/10.1257/aer.101.7.3078...
    .
  • 17
    Ao permitir o acesso à televisão, a eletricidade também pode afetar escolhas dos indivíduos através de mudanças no acesso à informação. Isso ocorre porque a televisão traz para os indivíduos informações sobre diferentes valores e estilos de vida, afetando escolhas das mulheres, como por exemplo, oferta de trabalho como em Jensen e Oster (2009)Jensen, R., & Oster, E. (2009). The power of TV: Cable television and women’s status in India. The Quarterly Journal of Economics, 124(3), 1057–1094. http://dx.doi.org/10.1162/qjec.2009.124.3.1057
    http://dx.doi.org/10.1162/qjec.2009.124....
    ou La Ferrara, Chong, e Duryea (2007)La Ferrara, E., Chong, A., & Duryea, S. (2007). Soap operas and fertility: Evidence from Brazil. American Economic Journal: Applied Economics, 4(4), 1–31. http://dx.doi.org/10.1257/app.4.4.1
    http://dx.doi.org/10.1257/app.4.4.1...
    . Esse mecanismo pode ser particularmente relevante para comunidades isoladas localizadas no meio rural onde o acesso à informação é limitado.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    08 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    09 Abr 2019
  • Aceito
    29 Dez 2020
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