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A ciência

EDITORIAL

A ciência

Deixo deliberadamente à margem a discussão do conceito e da posição da Biologia e da Medicina na classificação das ciências. Seria por si só assunto para uma conferência, tal a complexidade de que se reveste e as controvérsias existentes. Desejo limitar o assunto e focalizar apenas o papel da ciência no mundo contemporâneo e a função social da medicina.

A ciência teve origem na Grécia. Foram os gregos os primeiros a iniciarem as práticas científicas. O que existia antes era, sem dúvida, conhecimento de um número limitado de fatos, uma concepção sensorial do mundo, uma coordenação de ações, destinadas à procura dos elementos necessários à vida humana. Os conhecimentos assumiam, em regra, o aspecto de misticismo e constituíam privilégio de alguns grupos. Havia, antes, sacerdócio ou misticismo, e não propriamente ciência. Três ou quatro milênios mais tarde "os gregos romperam subitamente os muros da prisão do segredo e do tradicionalismo e proclamaram a liberdade da investigação intelectual". Era, no entanto, uma ciência puramente especulativa, sem objetivos imediatos e somente tomou os aspectos da ciência moderna quando o espírito prático dos romanos infiltrou-se no espírito intelectual especulativo dos gregos. O homem começou a compreender suas possibilidades no domínio da natureza, na interpretação dos fenômenos naturais e na organização de leis e instalações de condições que lhes facilitassem a vida e lhes assegurassem melhores prerrogativas na hierarquia dos seres. A evolução e as transformações passaram a ser feitas com rapidez, o que foi reduzindo o tradicionalismo místico e ampliando a concepção objetiva dos fenômenos. Os conhecimentos e os resultados das pesquisas científicas começaram a proporcionar mudanças tão rápidas, verdadeiros avanços na evolução, que os mais esclarecidos e de melhor visão se impressionaram. A burguesia, à medida que foi evoluindo e conquistando posição política mais ou menos definida, começou a estimular a ciência, a ampará-la, com o objetivo de lutar contra o Estado feudal, destruindo as forças que lhe davam apoio. Desde então, teve início o prestígio da ciência e o seu desenvolvimento foi tomando vulto a cada dia, e assim favorecendo grandemente a burguesia e o capitalismo, na sua marcha política para a conquista do poder. Deu-lhes, de fato, a vitória. Começou, então, a organização das sociedades científicas, patrocinadas e favorecidas pelas grandes empresas a núcleos industriais. Um dos principais marcos desta transformação foi a instalação da Royal Society, na Inglaterra, em 1645. Surgiram várias academias de ciências, em diversas partes do mundo. Foi inaugurado o sistema de remunerar determinadas pessoas, com o objetivo único de se dedicarem à investigação científica. Tal prática foi se espalhando em toda a Europa e nos Estados Unidos. No século XIX, o fenômeno assumiu tais proporções que, na Europa, a primeira condição para alguém ser professor universitário era dedicar-se de maneira sistemática à investigação científica. A evolução continuou e, à medida que as técnicas de investigação iam se tornando mais apuradas e o acervo de conhecimentos ia tomando maiores proporções, foi se operando uma transformação rápida no mundo, às vezes desconcertante, criando situações difíceis e embaraçosas. Neste ciclo, apareceram os grandes vultos da humanidade que com seus estudos continuados, pesquisas absorventes, consumindo suas vidas, renunciando aos prazeres do mundo, proporcionaram ao homem os elementos para melhores condições de existência e para a luta árdua contra a natureza.

Estabelecia-se, assim, uma correlação estreita entre a ciência pura e ciência aplicada. Aliás, quase sempre elas se confundem, sendo difícil estabelecer os seus verdadeiros limites. A ciência pura, meramente especulativa, merece este conceito pela falta de imediatismo dos seus propósitos e pelo seu aparente desinteresse, enquanto que a aplicada se exerce com objetivos predeterminados. Mas, em última análise, a ciência tem caráter finalista, evidente, às vezes, oculto, outras, desde que se propõe ao controle e domínio da natureza, em favor do bem-estar e da felicidade do homem.

A história da ciência apresenta numerosos e indiscutíveis exemplos desta estreita correlação.

Os resultados da ciência nem sempre são imediatos. São de Ramon y Cajal as seguintes palavras: "Cultivemos a ciência por si mesma, sem considerar, no momento, as aplicações. Estas chegam sempre. Às vezes, demoram muito, às vezes anos, às vezes séculos."

Com o desenvolvimento científico e o progresso técnico dele decorrente, a evolução da humanidade começou a se fazer em ritmo mais acelerado e surgiram problemas de grande complexidade para os agrupamentos humanos. Os resultados das pesquisas científicas não tiveram aplicação em todos os recantos do mundo e os que tinham sob suas mãos o controle político administrativo não tardaram em se aproveitar do trabalho exaustivo e contínuo, realizado em poeirentos laboratórios, por grupos de idealistas, dominados pela idéia fixa de servir à humanidade. Houve, porém, uma verdadeira dissociação entre a política e a ciência e isto constituiu a principal causa do desequilíbrio que se estabeleceu no mundo. Os políticos não quiseram perder a oportunidade de tirar o melhor proveito material possível e os cientistas não tiveram a habilidade, a malícia, nem dispuseram de tempo suficiente para o estabelecimento de diretrizes que resultassem em benefício da vida humana.

Surgiram os grandes centros científicos e culturais e as universidades. A Física, a Química, a Matemática e as ciências aplicadas se transformaram em chave do progresso, cimentaram a evolução e proporcionaram ao homem magníficos elementos para adaptação da natureza ao seu bem-estar. Disse Cannon: "Em cem anos, os pesquisadores têm transformado o mundo civilizado. O progresso do conhecimento nos tempos modernos é, sobretudo, um progresso do conhecimento da ciência e da técnica científica. Os pesquisadores de Física, Química e das Ciências Médicas, têm trazido tais contribuições, que os antepassados dos que vivem atualmente considerariam descobertas científicas miraculosas". Outro grande pensador, Julian Huxley, diz: "Pode-se dizer que a ciência e os seus resultados são a base da nossa civilização, como os postes de aço num edifício moderno. Eliminais os resultados da ciência e nossa civilização desmoronará como um edifício ruirá sem sua armadura."

A medicina, que é a aplicação de um conjunto de ciências, teve de acompanhar a evolução e deixou de ser individual para tornar-se coletiva.

O médico durante toda a evolução científica teve sempre grandes e pesadas responsabilidades, e desempenhou função social de grande relevo através das manifestações de caridade no exercício da profissão médica. Pagou, porém, pesados tributos.

Com a evolução científica geral, marchou a medicina, que passou a desempenhar a cada dia função das mais importantes nas sociedades. Na própria guerra, o seu papel foi dos mais relevantes.

O Brasil, "este vasto hospital", esta imensa repartição pública desorganizada, esta sociedade em plena crise, precisa mais do que nunca, da ciência das Universidades e da cultura, na sua mais ampla expressão.

Dr. Adalmir Morterá Dantas

Livre-Docente, Professor Titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Ago 2008
  • Data do Fascículo
    Ago 2008
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